terça-feira, novembro 03, 2009

EDUARDO FELIPE P. MATIAS

Tango para 3?

Valor Econômico - 03/11/2009


A entrada da Venezuela só viria acentuar dificuldades que o Mercosul já enfrenta e precisa superar o quanto antes

A decisão sobre o ingresso da Venezuela no Mercosul passa por uma discussão sobre os efeitos que sua presença pode causar e, sobretudo, por uma reflexão sobre a natureza desse bloco e os objetivos que ele pretende atingir.

O Mercosul parece um tango, mas não porque sua história seja uma tragédia. Comercialmente, apesar dos conflitos frequentes entre seus participantes - vide a atual guerra de licenças não automáticas de importação entre Brasil e Argentina. Desde seu surgimento, mais que quadruplicaram as exportações e importações intrabloco. E não será a entrada da Venezuela, cujo comércio com os países do Mercosul, especialmente com o Brasil, tem crescido muito, que vai mudar essa realidade.

O Mercosul se assemelha a um tango por exigir grande afinidade de seus parceiros para manter o ritmo da integração - às vezes na mesma direção, às vezes em sentidos opostos - sem tropeçar. Como diz a canção, "it takes two to tango", e o Mercosul não existiria se, na década de 1980, Brasil e Argentina não tivessem começado a se entender. A "détente" entre eles veio com o fim de seus regimes ditatoriais, a superação de sua rivalidade militar e o compromisso com o uso pacífico da energia nuclear. Essa aproximação atraiu também Paraguai e Uruguai, que não poderiam ficar de fora de um acordo reunindo seus dois maiores parceiros econômicos.

O objetivo alardeado pelo Mercosul era garantir a inserção competitiva dessas quatro nações na economia mundial - seguindo uma fórmula conhecida como regionalismo aberto. Sua ambição não era exclusivamente a de ampliar o comércio entre seus participantes, mas a de somar forças, abrindo-se para outros países e blocos e aumentando seu peso no cenário internacional. O modelo que se resolveu adotar foi o de União Aduaneira. Isso evitaria a burocracia e as ineficiências encontradas em uma Zona de Livre Comércio, graças à adoção de uma Tarifa Externa Comum. No caso do Mercosul, essa tarifa, como se sabe, ainda apresenta alguns "furos", como suas inúmeras exceções e sua dupla incidência. Ainda assim, concessões que impliquem em reduções de alíquotas precisam ser negociadas em conjunto por seus membros.

No entanto, o bloco tem tido dificuldade em definir uma posição única em negociações internacionais. Ultimamente, divergências com a Argentina se tornaram um empecilho em pelo menos duas ocasiões. A primeira foi a reunião da Rodada Doha, ocorrida em agosto de 2008, em Genebra. Nela, contrariando a promessa de que essa seria a "Rodada do Desenvolvimento", os países ricos não se mostraram dispostos a fazer concessões na área agrícola a menos que obtivessem novos ganhos em setores que já haviam sido objeto de rodadas anteriores. A reunião foi interrompida por outros impasses, porém ficou claro que, se a redução dos subsídios oferecidos pelos países desenvolvidos dependesse de concessões mais significativas dos países em desenvolvimento nas áreas industrial e de serviços, o Brasil enfrentaria a resistência argentina em reduzir tarifas.

Como é improvável que Doha deslanche tão cedo, é preciso analisar outras opções. A próxima oportunidade no horizonte é a de um tratado de livre comércio com a União Europeia (UE). As discussões entre os dois blocos têm história, que inclui a celebração de um Acordo-Quadro de Cooperação em 1995. Pois bem, essa negociação foi relançada na reunião de cúpula entre Mercosul e UE, no último dia 6 de outubro. Paira sobre ela, entretanto, a ameaça de que as mesmas diferenças entre Brasil e Argentina venham a se repetir. Enquanto isso, a UE está aprovando amplo acordo de livre comércio com a Coreia do Sul, cuja negociação levou apenas dois anos.

As divergências no bloco são um problema porque nele as decisões são tomadas por consenso, tendo todos os seus integrantes o mesmo poder de voto e de veto. Isso pode se tornar um peso para o Brasil que, fosse o Mercosul uma simples zona de livre comércio, teria boas chances de celebrar acordos com outros países, mas abre mão de sua liberdade de fazê-lo em nome de um ideal de integração que encontra pouco eco em seus vizinhos.

Se o Mercosul não consegue ter uma voz única, e se isso tem sido prejudicial, o ingresso da Venezuela ajuda ou atrapalha?

Hoje, a economia da Venezuela não fica atrás da Argentina. Logo, se a lição histórica é que o bloco tem sido uma dança que depende principalmente do entendimento de seus dois maiores integrantes, passariam a ser três os países que não poderiam estar em descompasso. E é aí que surge o fator Chávez. O presidente da Venezuela acumula cada vez mais poder - o que, em princípio, já seria argumento suficiente para impedir a adesão dessa nação a um acordo que possui uma cláusula democrática. A voz do Mercosul deverá sair, também, de Hugo Chávez, que, como até o rei da Espanha já percebeu, "no se calla" facilmente. Fica evidente o desafio de fazer o bloco ter o mesmo tom.

Portanto, a entrada da Venezuela - que ainda depende, de qualquer forma, da aprovação paraguaia - só viria acentuar dificuldades que o Mercosul já enfrenta e precisa superar o quanto antes. Quando as instituições de um processo de integração são fracas, como é o caso do Mercosul, o sucesso ou o fracasso desse processo passam a depender diretamente das circunstâncias e das pessoas que o conduzem. Sem o fortalecimento institucional do bloco, sua unidade estará sempre sujeita ao vai e vem das crises econômicas e aos humores dos líderes da vez. Seu risco é nunca acertar o passo ou, pior, agravar os conflitos entre seus integrantes, passando, aí sim, a lembrar um tango por seus desenganos e desilusões.


Eduardo Felipe P. Matias é doutor em Direito Internacional pela USP, sócio de L. O. Baptista Advogados, autor do livro A Humanidade e suas Fronteiras - do Estado soberano à sociedade global

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