Betty Milan
Os machistas sobrevivem
"Apesar de a revolução sexual datar de meio século atrás,
o machismo ainda determina o cotidiano de muitas pessoas,
em especial por causa da identificação delas com os seus
familiares mais próximos"
Machismo rima com arcaísmo, palavra que se refere a algo que está fora de uso. No entanto, o machismo continua a vigorar, como mostra a mensagem que uma leitora enviou para a minha coluna em VEJA.com. Ela escreveu que, para falar de sexo, o pai usava expressões que eram de dar nojo, e, quando brigava com a mãe, chamava-a de "geladeira". Contou ainda que tem 31 anos e é casada com um "homem maravilhoso", apesar de o sexo ser péssimo porque ela não tem vontade de transar.
Pudera! Ela é filha de pais cuja ética é a do machismo, que desautoriza o desejo feminino – condenando, por exemplo, a mulher a ser uma "geladeira". Essa ética se manifesta na letra de várias canções da música popular brasileira. Quem não ouviu "Ele é quem quer / ele é um homem / eu sou apenas uma mulher", na voz de Caetano Veloso? Ou "Na presença dele me calo / eu de dia sou sua flor / eu de noite sou seu cavalo / a cerveja dele é sagrada / a vontade dele é a mais justa", de Chico Buarque? Nesse contexto, há um só desejo legítimo, o do homem – e a mulher deve se retrair.
John Rush/Getty Images |
A história da leitora mostra a assimetria entre o mundo das ideias e a realidade. Apesar de a revolução sexual datar de meio século atrás, o machismo ainda determina o cotidiano de muitas pessoas, em especial por causa da identificação delas com os seus familiares mais próximos. A filha de um homem cujo discurso provocava nojo de sexo e de uma mãe frígida não tem como ser sexualmente feliz, a não ser que faça a crítica do discurso dos pais. Ser crítico, no caso, significa sustentar o "não" que nos libera. Ao contrário do que comumente se supõe, tal negativa nada tem a ver com um ato de desamor. A desobediência deve ser praticada sempre que ela se impõe, e isso pode ser feito com delicadeza. Não implica necessariamente ruptura.
A fantasia de que o "não" é sinônimo de rejeição nos paralisa. Mas não é possível viver sem dizer "não", porque nós nascemos de um pai e de uma mãe que, além de desejar a nossa vida, consciente ou inconscientemente, planejaram o nosso futuro sem nos consultar. O escritor Deonísio da Silva fez uma menção bem-humorada a esse fato, por meio da seguinte frase: "Minha mãe teve vocação para eu ser padre". Quem não se reconhece nela? Ousaria dizer que todos nos reconhecemos. As mães – e os pais – podem ter sonhos para os filhos. É inescapável também que procurem infundir-lhes suas visões e preconceitos. É humano. Mas é igualmente humano dizer "não", quando este aponta o caminho para uma existência mais livre e digna.
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