De um passo foi ao chão
O ESTADO DE SÃO PAULO - 21/04/09
Aos 77 dias de escândalos ininterruptos no Congresso, o deputado Fernando Gabeira chegou à conclusão de que não adianta se inibir com os próprios erros nem se intimidar com a força da inércia preponderante na corporação: algo precisa ser feito antes que o Parlamento vá de vez ao chão e, na descida da ladeira, leve junto o conceito de democracia representativa.
“Essa é a pior crise que o Congresso já enfrentou, mais profunda e duradoura que todas as outras juntas, pois ocorre quando o grau de consciência das pessoas é muito maior, os instrumentos de vigilância são mais eficazes e o nível de tolerância da sociedade está próximo do zero”, diz Gabeira, que na quarta-feira fará um discurso expondo sua posição.
Insistir no mau combate, se insurgir contra a divulgação de denúncias ou tentar enganar o público com falsas soluções resulta, no máximo, na exposição da mais clássica das manifestações de privação de inteligência: a persistência no erro.
O deputado começa por si. Pioneiro na constatação pública de que a permanência de Severino Cavalcanti na presidência da Câmara era inaceitável e crítico contumaz da política à moda antiga, Fernando Gabeira confessa que demorou a entrar de peito aberto no debate porque estava debaixo de um telhado de vidro.
Assim como os colegas, ele também cedeu passagens de sua cota para familiares. “Se não estava completamente limpo, não podia entrar a briga sem expor o erro e reconhecer que compartilhava da visão de que o uso da passagem aérea é uma gestão solitária do parlamentar. Não é. Só o salário pode ser administrado como um assunto particular.”
Tão inibido quanto ele para reagir, acredita Gabeira, ficaram outros parlamentares pegos direta ou indiretamente, voluntária ou involuntariamente incorrendo em irregularidades.
O pagamento de um serviço para empresa de correligionário com verba indenizatória aqui, a contratação de empregada doméstica com dinheiro público ali, recebimento de auxílio-moradia para quem tem imóvel em Brasília acolá, tudo isso intimidou os parlamentares que não costumam frequentar o departamento de transgressões do Poder Legislativo e interditou a reação.
E por que tão ampla aceitação de facilidades?
“Porque a tradição brasileira é patrimonialista. O mundo político ainda não captou as mudanças de um tempo que andou muito rápido. Os meios eletrônicos se modernizaram, a sociedade avançou e os políticos ficaram lá atrás sem acompanhar os aperfeiçoamentos.”
Perdidos na obscuridade do anacronismo, sequer perceberam que não cabia mais acreditar que o Congresso pode funcionar só na base da correlação de forças internas, ignorando a pressão e as demandas de fora.
“Basta ver que a Câmara elegeu um corregedor (Edmar Moreira) muito mais necessitado de correção que disposto a corrigir qualquer coisa e um presidente do Conselho de Ética ( José Carlos Araújo) condescendente em relação ao decoro parlamentar.”
Completamente fora de sintonia com a opinião pública, a maioria menosprezou o efeito nefasto da rendição do Congresso ao projeto de poder do PMDB, com a eleição para o terceiro mandato de José Sarney no Senado e Michel Temer na Câmara, este um pouco menos comprometido com a obsolescência que aquele.
Juntos, acabaram provocando o choque entre a evidência do atraso interno e as exigências externas de modernização. “Havia uma expectativa de melhoria, mas, quando Sarney e Renan passam a comandar o Senado a mídia resolve, então, mostrar o que é o Congresso, que não resiste a essa exposição”, raciocina Gabeira.
E aqui o deputado dá a exata medida de como o Parlamento não é transparente nem suficientemente fiscalizado. Quando é visto com lupa, revela mazelas em série.
A questão agora é como conduzir a reação num ambiente onde não prevalece a disposição de reagir a não ser negativamente, na defensiva.
Na semana passada, Fernando Gabeira tentara atuar no âmbito interno. Entregou à Mesa as seguintes propostas: restrição do uso dos bilhetes ao parlamentar, divulgação da emissão das passagens na internet, apresentação de relatórios sobre viagens de trabalho, repasse de passagens apenas mediante justíssima, e justificada, causa.
Foi informado de que seria chamado para discutir suas sugestões. Não apenas não foi avisado como ficou sabendo pela imprensa da decisão de oficializar o uso das passagens por terceiros, se parentes ou funcionários do parlamentar.
O deputado percebeu, então, que era preciso vencer a inibição, fazer a autocrítica, lutar também no campo externo e tentar reorganizar o grupo que em outras ocasiões já conseguiu impedir vexames homéricos, como o reajuste de 90% nos salários concedido, e revogado, no fim de 2007.
Gabeira alerta, porém, que é preciso dar “um passo de cada vez”. Para não se transformar a reformulação dos costumes congressuais em algo assemelhado à proposta de reforma política: fácil de dizer, impossível de fazer.
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