Roberto Pompeu de Toledo
O silêncio dos bons
"O conceito de ‘governabilidade’ foi interpretado, na política brasileira, como a necessidade de reservar áreas do governo à livre prática da corrupção"
Agora já não há mais dúvidas: houve uma batalha entre os bons e os podres, e os podres venceram. É simples assim. Tal qual num teatro em que o autor finalmente desvela o que ainda faltava desvelar, e os espectadores são contemplados com o chocante desfecho, os últimos dias, começando pela tentativa de assalto comandada por um ministro a um fundo de pensão, e terminando com a articulação para eleger o novo presidente da Comissão de Infraestrutura do Senado, disseram tudo.
A mesma turminha braba agiu num caso como no outro. Aquela turminha famosa mesmo antes de o senador Jarbas Vasconcelos denunciá-la na VEJA de três semanas atrás, e mais famosa ainda depois. Ela estende sua sombra por um vasto condomínio: o Senado, a Câmara, os ministérios de mais polpudos orçamentos, o comando das estatais. Onde há ainda algum cofre fora de seu alcance, ou algum promissor recanto do estado a salvo de seu poder de chantagem, não se perde por esperar. Eles estão com as garras afiadas e, certos de que não há força capaz de barrar-lhes o avanço, ainda chegam lá. É simples assim: acabou. Eles venceram.
Como foi isso acontecer? Já se cansou de falar da voracidade com que os políticos se lançaram ao pote, quando do desmanche da ditadura. Já se cansou de falar da impunidade, já se arquicansou de falar de regras eleitorais favoráveis à trapaça e ao engodo. Ficou faltando falar de um fator igualmente decisivo, ou mais: o silêncio dos bons. Os podres avançaram na mesma proporção em que os bons recuavam. Quanto mais silêncio de um lado, mais estimulado se sentia o outro em seguir adiante. A audácia com que recentemente descartaram os últimos escrúpulos tem sua perfeita contrapartida na atitude daqueles que, por timidez ou, pior, por conveniência, se recusaram a atrapalhar-lhes o caminho.
Um aviso ao leitor incréu: existem, sim, os bons. Existe gente honesta e com a cabeça no bem do país no Congresso e nos ministérios, no governo dos estados e nas prefeituras. É tão equivocado achar que todo político é desonesto quanto achar que todos são anjos. Quando o senador Jarbas Vasconcelos soltou o verbo, expondo o PMDB como um partido cuja vocação é pleitear cargos para praticar a corrupção, seria de esperar que os bons viessem em peso engrossar o coro. Enfim, surgia um paladino daquela verdade que todo mundo via, mas que ninguém de semelhante prestígio e influência ousara denunciar. A obrigação dos bons, tanto nos outros partidos quanto nos minoritários bolsões de honestidade no próprio PMDB, seria, num tropel de cavalaria justiceira, vir em reforço do senador. Era de esperar uma mobilização que, do mais humilde vereador ao mais poderoso governador de estado, passando pelos senadores e deputados que exercem seu mandato com honradez, contaminasse a sociedade com um estrondo de avalanche. Em vez disso, o que se viu foi uma ou outra protocolar declaração de apoio, o silêncio de muitos, e vida que segue.
Por que o silêncio dos bons? Eis outra revelação para deixar a plateia chocada: porque puseram na cabeça que não podem prescindir dos maus. Não é que toleram; se assim fosse, não seria tão grave. Eles cortejam os maus. Acenam para eles com carinho, jogam beijinhos, reviram os olhos. Chegaram à conclusão de que sem eles não se governa, por isso se desdobram nas amabilidades e solicitudes. Esse fenômeno vem lá do funesto governo Sarney. O governo Fernando Henrique Cardoso foi a penúltima esperança de que pudesse ser detido. O governo atual, em que atingiu sua expressão máxima, foi a última. "Governabilidade", uma palavra que em outros países significa encontrar pontos doutrinários comuns, entre partidos diferentes, para permitir efetividade à ação administrativa, no Brasil ganhou o significado de reservar áreas do governo à livre prática da corrupção, em troca de apoio em votações no Congresso e em campanhas eleitorais. Em outras palavras, legalizou-se a corrupção. Acabou-se a história. A vitória foi entregue de bandeja à banda podre.
O homem escolhido para chefiar a Comissão de Infraestrutura do Senado, um posto que oferece boas possibilidades de manipulação e chantagem, é o ex-presidente Fernando Collor. Expulso do poder por corrupção em 1992, o homem que pedia para não ser deixado só teve seu desejo atendido: conta com a companhia amiga dos colegas, numa teia de solidariedade que corre até o centro do governo. Sozinho ficou o senador Jarbas Vasconcelos.
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