O Senado logo retomará o debate do projeto de lei de cotas raciais nas universidades e escolas técnicas federais, que pode se tornar a primeira lei racial da nossa história. Diferentes pesquisas evidenciam que uma ampla maioria dos brasileiros, de todas as cores, rejeita a introdução da raça na lei. Mas o projeto, que passou na Câmara sem voto em plenário, por acordo de lideranças, tem grandes chances de ser aprovado no Senado. Como explicar o paradoxo que faz a maioria parlamentar deliberar contra a vontade da maioria dos eleitores?
Há, antes de tudo, um desvio que não é exclusivo de nosso sistema político. Os parlamentares temem contrariar os grupos de pressão organizados mais do que temem frustrar as expectativas da maioria desorganizada. Corporações, movimentos sociais e ONGs atuam como máquinas eleitorais, impulsionando ou destruindo candidaturas. Os interesses da maioria, por sua natureza difusa, podem ser contrariados com menor risco. Se o Estado brasileiro criar, oficialmente, castas de cidadãos separadas pela cor da pele, isto será um triunfo das ONGs racialistas e uma derrota da vontade popular.
Não existe no Brasil um "movimento negro", em nenhum sentido legítimo da palavra. As ONGs racialistas quase nada representam, além dos interesses e ideologias de seus próprios ativistas. Mas elas recebem, todos os anos, milhões de dólares da Fundação Ford e se incrustaram no interior do Estado, dispondo do aparelho de uma secretaria especial da Presidência e do controle de postos-chaves nos ministérios da Educação e da Saúde. Os dirigentes de tais grupos formam uma elite adventícia, estruturada em redes nas universidades e instituições internacionais, que se reclamam porta-vozes de uma "raça". Eles usarão o termo "racista" como insulto destinado a marcar a ferro todos os que insistem em defender o princípio da igualdade perante a lei. Eis o que temem deputados e senadores.
A ciência a serviço da expansão imperial europeia inventou a raça no século XIX. A ciência do pós-guerra a desinventou, provando que a cor da pele é uma adaptação evolutiva superficial a níveis diferentes de exposição à luz solar. Mas a questão de saber se a raça existe não pode ser solucionada em definitivo pelos cientistas, pois o Estado tem o poder de fabricar raças na esfera política. Nos EUA e na África do Sul, leis raciais incutiram na sociedade a noção de que uma fronteira natural divide as pessoas em grupos fechados.
Leis raciais supostamente voltadas para o "bem" não são, sob esse aspecto crucial, diferentes de leis raciais voltadas para o "mal". Umas e outras ensinam às pessoas que seus direitos estão ligados à sua cor da pele - e que seus interesses objetivos solicitam a "solidariedade de raça". A lei que tramita no Senado pouco afetará os mais ricos, mas dividirá os alunos de escolas públicas em dois conjuntos "raciais" com interesses opostos. Na hora em que os filhos dos trabalhadores não puderem mais olhar uns aos outros como irmãos e colegas, terá emergido um Brasil diferente daquele que conhecemos. Mas a nossa elite política não vislumbra esse risco, pois interpreta a nação pelas lentes do preconceito de classe.
A maioria dos parlamentares não nutre entusiasmo pelo projeto de cotas raciais, mas está disposta a contribuir com a indiferença para sua aprovação. Eles enxergam as leis raciais como esmolas concedidas aos pedintes, moedinhas inúteis entregues a meninos na rua, um preço quase simbólico que se paga para comprar gratidão. "Coisa de preto" - é assim que, silenciosamente, avaliam os projetos apresentados sob a cínica justificativa de fazer justiça social por intermédio da oficialização da raça. Mas não se trata, a rigor, de preconceito racial: o "preto", no caso, funciona como sinônimo de pobre, na mais pura tradição senhorial brasileira. Junto com o temor dos grupos de interesse, as leis de raça beneficiam-se dessa aversão benevolente ao princípio da igualdade.
Há mais de um ano, foi aprovado em comissão um projeto de lei, de autoria do senador Demóstenes Torres (DEM-GO), que determina a implantação de tempo integral nas escolas públicas de ensino fundamental. Mas a maioria governista não permite que o projeto siga para votação, alegando que custaria cerca de R$20 bilhões anuais, pouco menos que o dobro do Bolsa Família. Parece muito, mas representaria apenas 1,6% do Orçamento da União - algo como um aumento inferior a 15% nos repasses federais para estados e municípios. É um valor relevante, porém perfeitamente viável se a deflagração de uma revolução qualitativa no ensino público figurasse, de fato, como prioridade nacional. Entretanto, nossa elite política parece preferir enfeitar com cotas raciais a ordem iníqua que relega a maioria dos jovens, de todas as cores, a escolas arruinadas.
O antropólogo Kabengele Munanga, um arauto das políticas de raça, justificou do seguinte modo a necessidade das cotas raciais: "Muitos acham que o caminho para corrigir as desigualdades sociais seria uma política universalista, baseada na melhoria da escola pública, o que tornaria todos os cidadãos brasileiros capazes de competir. Masisso é um discurso para manter o status quo, porque enquanto se diz isso nada é feito." A afirmação é uma esfinge que pede para ser decifrada. Munanga sugere ser favorável à política universalista de "melhoria da escola pública" mas, simultaneamente, qualifica tal demanda como "um discurso para manter o status quo", pois na prática "nada é feito". Então, utilizando-se de uma perversão lógica, não reivindica que se faça a "política universalista", mas a sua substituição por uma política diferencialista destinada a distribuir direitos segundo a cor da pele. É que no Congresso, enquanto ele diz isso, os parlamentares que compartilham de sua ideologia racialista ajudam a bloquear o projeto universalista do tempo integral.
DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br |
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