Na crise, a cúpula do governo se rende à infinita paixão que nutre por si mesma e transfere à população responsabilidades e culpas que lhe pertencem
O presidente da República tem, mui patrioticamente, repetido o bordão da gastança. Onde quer que vá, discursa com a narina inflamada do indignado, acusa meia dúzia de “torcer pela crise” e exorta a platéia a gastar dinheiro. “Se tem dívidas, pague. Mas se não tem, vá e faça suas compras”, é o brado do homem, nas paradas de caixeiro-viajante país afora.
Ruim de palanque, mas boa de escritório, invariavelmente a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, aparece depois do chefe para preencher as lacunas da retórica. Diz ela que as pessoas pararam de gastar porque temem perder o emprego — devido à tal crise, é claro. Ora, raciocina a ex-guerrilheira, se ninguém compra, as lojas não vendem. Se as lojas não vendem, não fazem encomendas à indústria. Que por seu lado, não produz. No fim das contas, o operário vai mesmo ser mandado embora, assim como o comerciário e daí pra frente todos os demais.
Há nas grandes linhas do comportamento da alta cúpula governamental uma ligeira impostura. E me explico. Ele transfere à chusma uma responsabilidade do comandante. Sim, pois, pelo que dizem nossos historiadores econômicos, o Brasil nunca, jamais, desde a industrialização, teve problemas quanto à propensão ao consumo por parte da população — variável decisiva de uma das equações que explicam o crescimento de um país.
Por outro lado, desde a fundação da República até hoje, passamos por crises fiscais cíclicas (quem duvida pode se certificar lendo A ordem do progresso – Cem anos de política econômica republicana, organizado por Marcelo de Paiva Abreu, Editora Campus, 445 páginas). Em geral, elas são provocadas pela ganância dos políticos, gastadores irresponsáveis do dinheiro público, sugado a tragadas cada vez mais profundas pelo Estado perdulário e corrupto.
Nos países em desenvolvimento, a despoupança do setor público gera um desequilíbrio tal que afeta os preços, a produção ou ambos. Ao chegar ao poder, em 2003, o presidente Lula encontrou o coquetel completo de inflação e baixo crescimento paridos do déficit público.
Para resolvê-lo, não só adotou, mas aprofundou uma política que passou a vida inteira xingando (na verdade, o faz até hoje), de controlar o caixa com mão de ferro. Resolveu o velho problema formando poupança pública. Provavelmente, você, leitor atento, já ouviu falar do resultado dessa política: é o superávit primário, aquele mesmo que os esquerdistas só o mencionam após um adjetivo pejorativo.
Por tê-lo feito, Lula soltou as amarras que detinham a nau. A despoupança pública virou poupança. Os investimentos privados aconteceram, a taxa de juros caiu, houve ganho de renda em todos os setores. Os brasileiros, sempre gastadores, voltaram às compras.
Como o mundo também se expandia — ou seja, havia vento a favor —, fiat lux, o neoliberalismo tocado pelo PT, mais puro que o dos tucanos, produziu um crescimento acima de 6% na economia brasileira. Melhor, sem correlação negativa nos preços. A inflação esteve domada todo esse tempo. Um lindo céu azul, até hoje devidamente refletido nos altíssimos índices de aprovação do presidente.
Mas... E esse é o mal da hipocrisia, ainda mais nos políticos, pior naqueles que vencem eleições. O homem condenara a vida inteira as políticas das quais lançava mão depois de eleito. Reeleito, começou a duvidar delas. Diante da claudicância, seu governo rendeu-se à infinita paixão que nutre por si mesmo. O rigor fiscal dos primeiros anos anuviou-se. A permissividade quanto às despesas públicas misturou-se a interesses tacanhos e partidários. O Orçamento do próximo ano já mostra explosivo e exorbitante gasto com pessoal.
Incapaz de cortar investimentos, o Congresso fez a escolha de sofia. Ao discutir as despesas de 2009, aplicou corte sumário sobre bolsas de estudo para pesquisa e sobre os gastos correntes dos hospitais universitários. Duas temeridades, sobre as quais o próprio governo chiou. Mas tirar de onde?
O vento parou de soprar a favor e uma tormenta irresistível se avizinha. Já em meio à chuva grossa e ondas pesadas, confundidas ingenuamente com cândidas marolas, o comandante sai de sua cabine e grita: remem, a todo vapor a frente, remem. Tenha santa paciência, senhor. Já não há lastro no barco para essa aventura. Reconstrua-o ou lance a âncora. Mas, por favor, não jogue culpa e responsabilidade sobre aqueles que não as têm. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário