Antônio Márcio Buainain*
Autoridades têm vociferado contra os especuladores. Algumas empresas investiram bilhões para ampliar a capacidade produtiva, conquistaram o mercado internacional, empregam milhares de pessoas, são líderes em suas áreas e hoje são expostas ao público como "especuladoras".
A figura do especulador carrega uma carga negativa parecida com a do tradicional atravessador, execrado pelas políticas de desenvolvimento rural. Era o personagem que levava mercadoria aos rincões do País, amealhava o excedente de produção no interior e vendia nas cidades com margens elevadas. Desalmado, explorava o pequeno agricultor e ficava com a parte do Leão. Essa imagem, ainda que corresponda em parte à realidade, não leva em conta as dificuldades enfrentadas pelo atravessador nem o papel social positivo de integrar ao mercado produtores que, de outra maneira, nem sequer venderiam os excedentes. Todas as tentativas de substituí-lo por canais de comercialização criados pelas políticas públicas fracassaram, e quem perdeu mais foram os pequenos agricultores.
O senso comum vê o especulador como um comerciante ganancioso, que usa até da má-fé para obter lucros extraordinários, acima do aceitável. Tecnicamente, o especulador é o agente que "compra" o risco que outros não querem ou não podem assumir. Toda vez que um agente fica livre do risco inerente aos negócios na economia contemporânea, na outra ponta está um especulador, que pode ganhar ou perder na transação. Nesse sentido, o especulador é uma das figuras mais importantes da economia contemporânea. Seu papel é absorver riscos e antecipar fluxos de renda para agentes que não querem ou não podem esperar o futuro chegar. Quando um agricultor vende hoje o seu produto para entregar em seis meses a um preço preestabelecido - essencial para garantir o planejamento da safra e dar o mínimo de tranqüilidade ao produtor -, está transferindo os riscos de preço para um especulador.
Temos lido muitas explicações para a crise. A primeira, mais séria, a associa aos empréstimos para devedores duvidosos no setor imobiliário americano e à falta de controle das operações no mercado financeiro. Uma versão nacionalista atribui a crise às operações de crédito em caderneta feitas pelo Sr. Biu, conhecido botequeiro do interior de Pernambuco. Com a venda de cachaça em alta por causa da abertura de uma obra do PAC nas redondezas (sem falar em alguns titulares do Bolsa-Família que acham que cachaça é alimento), o Sr. Biu securitizou a caderneta e seu banqueiro emitiu títulos que tiveram grande sucesso num mercado exuberante e que absorvia qualquer título. Com a súbita paralisação da obra por falta de licença ambiental e outras irregularidades, os clientes do boteco sumiram, o Sr. Biu não teve como honrar os compromissos e acabou falindo, com repercussões globais. A última versão, mais criativa e irrealista que a da caderneta do Sr. Biu, explica que a crise só venceu as sólidas barreiras que o Brasil tinha erguido contra problemas internacionais porque alguns empresários gananciosos resolveram especular, entraram num tal mercado de derivativos, perderam e internalizaram o problema que era dos outros.
Quem puder, atire a primeira pedra! A verdade é que, exceto os excluídos, somos todos especuladores. Famílias e empresas aplicam a poupança e recursos em caixa no mercado financeiro, em fundos que carregam maior ou menor risco teórico. Outros aplicam diretamente nas bolsas, adquirindo ações na expectativa de que os preços subam. A especulação, no caso, é útil para capitalizar as empresas, valorizar seus ativos e alavancar novos recursos para investimentos. E não havia nada de errado em especular e obter ganhos espetaculares com as ações da Petrobrás ou da Vale nos anos anteriores. Era o sinal da recuperação da economia brasileira após tantos anos de estagnação. Os fundos de pensões - privados e de empresas públicas - também são grandes especuladores, cujos prejuízos com a crise corrente terão graves conseqüências no futuro.
Os agricultores são os maiores especuladores deste país, beirando à loucura. Correm todos os riscos de uma natureza cada vez mais imprevisível e inquieta com as agressões que vem sofrendo, não têm a menor idéia, hoje, do preço a que venderão a safra no futuro, compram insumos em alta quando os preços estão em queda, sofrem corte de crédito e... insistem em produzir. Só a especulação explica.
*Antônio Márcio Buainain é professor do Instituto de Economia da Unicamp(buainain@eco.unicamp.br)
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