Roberto Pompeu de Toledo
Reviravolta no quartel
"O ministro Jobim quer fazer do serviço militar um ‘nivelador republicano’. Se realmente obrigatório, ajudaria a abalar o muro entre as classes"
Houve um tempo em que os jovens, não importa de que classe social, tinham um encontro marcado com o serviço militar. Alguns festejavam a ocasião. Entre estes, os mais preparados optavam pelo Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), que, por exigir presença só nos fins de semana, permitia a continuidade dos estudos. Outros – a maioria – procuravam um jeito de escapar. Se a família fosse bem conectada, conheceria um tenente ou coronel a quem recorrer para pedir a dispensa do filho. Se não, restava confiar no pé chato. Bendito pé chato! Seria mito? Seria verdade? Corria entre os rapazes que quem tivesse pé chato seria considerado inapto para o serviço. Excelente hora para ter pé chato ou, ao menos, confiar em que o pé pudesse passar por chato. Hoje, quem é da classe média para cima passa longe do serviço militar. Para estes, é algo arquivado num passado tão remoto quanto o futebol com bola de capotão, o laquê que segurava o penteado das meninas e a TV em preto-e-branco.
O ministro da Defesa, Nelson Jobim, apresentará ao presidente Lula nesta semana um Plano Estratégico de Defesa que, entre outras coisas, proporá mudanças no serviço militar. "Durante a maior parte do século XX, as Forças Armadas foram um nivelador republicano", escreve Jobim num artigo publicado pela revista Interesse Nacional. "Constituíram um espaço de oportunidades iguais para todos, onde se reproduzia um microcosmo da sociedade brasileira, tanto do ponto de vista social quanto do geográfico." Não mais. Hoje, só pobre presta serviço militar. Do 1,5 milhão de jovens que anualmente chegam à idade de servir, a maioria é dispensada de cara; é só dizer que não quer. Os que querem – 600 000 – entram num processo de seleção, para afinal, dada a restrita capacidade de absorvê-los, serem aproveitados de 60.000 a 70.000. Na prática, ao contrário de obrigatório, como previsto na Constituição, o serviço virou voluntário.
Os que querem, com raras exceções, são jovens das classes que os publicitários chamam de "C" e, principalmente, "D". As Forças Armadas constituem para eles uma oportunidade. No período de serviço terão cama, comida e um pequeno soldo. Os mais capazes poderão até ser convidados a seguir carreira. Os outros ganharão treinamento que poderá lhes ser útil em outras atividades. O serviço militar virou mais um braço da rede brasileira de proteção social aos desvalidos.
Um filme recente, o bom documentário PQD, do diretor Guilherme Coelho, mostra a realidade vivida hoje no Exército. O filme acompanha a turma de 2005 de uma companhia de pára-quedistas ("PQD", no jargão da corporação) do Rio de Janeiro, com foco nos jovens, seus desejos, seus planos, suas famílias e seus ambientes. São quase todos de pele escura, moradores de favelas ou semifavelas e, tipicamente, criados pela mãe. Aos que mais se destacam o serviço oferece, no fim, um prêmio reservado para poucos – são engajados na carreira e, como cabos, passam a receber o invejável salário de 1 200 reais. Consideram-se então "estabilizados", como dizem no filme, para o resto da vida. Os outros imaginam que poderão aspirar a uma vaga de segurança ou, quem sabe, policial. (As mães do filme não gostam dessa opção: no mundo em que vivem, é arqui-sabido que pertencer à polícia é pôr-se na mira dos traficantes.)
Reverter as Forças Armadas à condição de "nivelador republicano", como quer Jobim, representará uma mexida e tanto. Significa tornar o serviço militar obrigatório de verdade, e para todas as classes. O ministro de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, co-autor do plano a ser levado a Lula, propõe que o serviço obrigatório seja civil, do tipo do Projeto Rondon, e prestado também pelas meninas. Talvez tudo não passe de sonho, pelos gastos implícitos e pelo tamanho do sacolejão na inércia burocrática, mas são propostas na boa direção. Se o abandono do serviço militar pelos "As" e pelos "Bs", a exemplo do que ocorrera na escola pública, ajuda a reforçar o já colossal muro entre as classes, no Brasil, a mistura com os "Cs" e os "Ds" opera no sentido contrário. Quanto ao serviço civil, independentemente de outras virtudes, vale pelo simples fato de dispensar as armas. Quanto menos gente souber pegar num fuzil, ou mesmo num revólver, num país como este, melhor.
O ministro da Defesa, Nelson Jobim, apresentará ao presidente Lula nesta semana um Plano Estratégico de Defesa que, entre outras coisas, proporá mudanças no serviço militar. "Durante a maior parte do século XX, as Forças Armadas foram um nivelador republicano", escreve Jobim num artigo publicado pela revista Interesse Nacional. "Constituíram um espaço de oportunidades iguais para todos, onde se reproduzia um microcosmo da sociedade brasileira, tanto do ponto de vista social quanto do geográfico." Não mais. Hoje, só pobre presta serviço militar. Do 1,5 milhão de jovens que anualmente chegam à idade de servir, a maioria é dispensada de cara; é só dizer que não quer. Os que querem – 600 000 – entram num processo de seleção, para afinal, dada a restrita capacidade de absorvê-los, serem aproveitados de 60.000 a 70.000. Na prática, ao contrário de obrigatório, como previsto na Constituição, o serviço virou voluntário.
Os que querem, com raras exceções, são jovens das classes que os publicitários chamam de "C" e, principalmente, "D". As Forças Armadas constituem para eles uma oportunidade. No período de serviço terão cama, comida e um pequeno soldo. Os mais capazes poderão até ser convidados a seguir carreira. Os outros ganharão treinamento que poderá lhes ser útil em outras atividades. O serviço militar virou mais um braço da rede brasileira de proteção social aos desvalidos.
Um filme recente, o bom documentário PQD, do diretor Guilherme Coelho, mostra a realidade vivida hoje no Exército. O filme acompanha a turma de 2005 de uma companhia de pára-quedistas ("PQD", no jargão da corporação) do Rio de Janeiro, com foco nos jovens, seus desejos, seus planos, suas famílias e seus ambientes. São quase todos de pele escura, moradores de favelas ou semifavelas e, tipicamente, criados pela mãe. Aos que mais se destacam o serviço oferece, no fim, um prêmio reservado para poucos – são engajados na carreira e, como cabos, passam a receber o invejável salário de 1 200 reais. Consideram-se então "estabilizados", como dizem no filme, para o resto da vida. Os outros imaginam que poderão aspirar a uma vaga de segurança ou, quem sabe, policial. (As mães do filme não gostam dessa opção: no mundo em que vivem, é arqui-sabido que pertencer à polícia é pôr-se na mira dos traficantes.)
Reverter as Forças Armadas à condição de "nivelador republicano", como quer Jobim, representará uma mexida e tanto. Significa tornar o serviço militar obrigatório de verdade, e para todas as classes. O ministro de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, co-autor do plano a ser levado a Lula, propõe que o serviço obrigatório seja civil, do tipo do Projeto Rondon, e prestado também pelas meninas. Talvez tudo não passe de sonho, pelos gastos implícitos e pelo tamanho do sacolejão na inércia burocrática, mas são propostas na boa direção. Se o abandono do serviço militar pelos "As" e pelos "Bs", a exemplo do que ocorrera na escola pública, ajuda a reforçar o já colossal muro entre as classes, no Brasil, a mistura com os "Cs" e os "Ds" opera no sentido contrário. Quanto ao serviço civil, independentemente de outras virtudes, vale pelo simples fato de dispensar as armas. Quanto menos gente souber pegar num fuzil, ou mesmo num revólver, num país como este, melhor.
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