Breve notícia sobre Zecamunista
Estadão-ponto de vista
João Ubaldo Ribeiro
Já tentei formular várias teorias sobre o incitante assunto de que tratarão hoje estas linhas, mas nenhuma delas é satisfatória. Tanto assim que desisti. Além disso, teorizar, pensando bem, é apenas a expressão da ansiedade humana de que a vida faça algum sentido apreensível por nós. Daí o pouco sucesso, creio eu, dos romances sem "enredo". A trama, sabem os romancistas e os bons leitores, precisa ser bem mais verossímil que a chamada vida real, que sempre foi muitíssimo mais inacreditável que os piores delírios dos ficcionistas. A trama, o enredo, ajuda tanto o autor quanto o leitor a fingir, para não ficar meio ou completamente lelé, que existe alguma lógica nos acontecimentos, ao alcance de nossa percepção. Claro que não existe, mas a gente precisa tão desesperadamente dela que procura enredos em romances, filmes, peças e histórias em geral. Teorizar, enfim, acaba não adiantando nada, não explicando coisa nenhuma e gerando discussões desagradáveis depois do almoço.
Então não teorizo, vou ao fato. O fato é que Zecamunista, lá de Itaparica, despertou, entre os leitores que tomaram conhecimento dele nesta coluna, também chamada, para orgulho meu, de "A voz da ilha", um interesse fora do normal. Desde a primeira vez em que o mencionei, recebo pedidos de informações adicionais, contatos e, principalmente, a narrativa de mais episódios que contem com a participação desse legendário e respeitado subversivo lá da ilha. Isso me põe numa situação meio chata, porque, apesar de amigos, ignoro muito da vida que ele leva e tem levado. É natural, aliás, porque as atividades dele foram, ou em parte ainda são, necessariamente sigilosas ou clandestinas, de maneira que não sei responder com exatidão a muitas perguntas sobre ele.
Mas sei alguma coisa, além das que já contei aqui. De extração beduína, seu sobrenome parece ser Harafush, Herefush, algo assim, que ele nunca faz muita questão de esclarecer - há de ter suas razões. E seu primeiro nome é José Carlos, ou seja, Zeca, como todos os Josés Carlos que nascem em Itaparica. Revelou-se comunista desde a escola primária, onde liderou movimentos para espiar, na companhia de seus sempre numerosos liderados, as meninas fazendo ginástica ou sendo vacinadas contra varíola nas coxas, como era comum naqueles tempos. Sempre apoiou ativamente esses negócios de comunista - imoralidade para minar os fundamentos da família cristã, cabelo grande no tempo em que a polícia prendia homem que usava cabelos iguais aos dos Beatles, divórcio no tempo em que só havia desquite e assim por diante, essas coisas que os comunistas faziam tanto.
Ganhou desde cedo a alcunha de Zecamunista, forma apocopada (aferesada? sincopada? Vejam aí, aposto que vocês também não sabem) de Zeca Comunista, que dá muito trabalho para pronunciar, assim como "Méditerranée", que a gente prefere chamar "crube" mesmo. E sempre esteve à frente de todos os movimentos subversivos em que pôde entrar. Numa conversa recente, depois de tomar umas dez doses de vodca (ele só bebe vodca e cerveja e dizem que já deu um tiro que não pegou num turista que lhe ofereceu um bourbon), ele me confessou só carregar uma única mágoa, em todo este tempo de militância: nunca ter sido preso o tempo suficiente para passar a noite na cadeia.
- E olhe que eu já fiz por onde - me disse ele, com o queixo trêmulo de comoção. - Eu fiz por onde, é uma injustiça muito grande. Conheço muita gente que não fez nem um milésimo do que eu fiz, que tinha muito menos direito que eu e passou 30, 90 dias, até meses na cadeia, para depois vir botar banca em cima de mim e eu tendo de engolir. É duro, é duro.
- Mas eu soube que, no dia em que você mudou os dizeres da bandeira para "Desordem e Atraso" e foi desfilar na frente de um quartel, o oficial do dia mandou pegar você.
- É, mandou. Mas foi para concordar comigo, milico desnaturado, até isso eu achei! O desgraçado concordou comigo, me soltou, marcou tomar umas cervejas comigo e ainda ficou com a bandeira como lembrança! É muito azar! E, agora que eu estou ficando velho e sem muita disposição para encarar a turnê todo ano, perdi até o direito de me aposentar como o presidente. Esse nasceu virado para a lua, meu compadre. Devem ter ficado com preguiça de soltar ele no dia em que ele foi preso e deixaram que ele dormisse em cana por distração. Não é nada, não é nada, me disseram que rendeu uma aposentadoriazinha de quatro milhas livres de impostos, já quebrava meu galho aqui. Não vou negar que a turnê rende muito bem, mas cansa, estou passando da idade.
A turnê a que ele se refere é o périplo que ele todo ano faz pela Bahia, tomando um dinheirinho aqui e outro ali, no pôquer, que ele diz que joga dialeticamente: tese num parceiro, antítese no outro, síntese sempre nele. Ganha fortunas, mas a ideologia atrapalha muito. Na última vez, ele investiu tudo no Leninorama, uma - como direi? - boate de tolerância de luxo. Mandou buscar várias kombis cheias de mulheres-damas em Nazaré das Farinhas, Cachoeira e até Santo Antônio de Jesus, todas com dentes, e deu uma festa de arromba, de graça e com direito ao sorteio de um talão de vale-quenga. O estabelecimento, que viveu dias de glória enquanto o dinheiro durou, era, naturalmente, em regime de cooperativa socialista e não deu certo, as meninas acabaram voltando todas e, o que é pior, a maior parte neoliberal
.Agora está envolvido em outro projeto monumental, o Cassino Potemkin, lá na ilha. Mas não é contra a lei, os parlamentares permitiriam?
- Só falta definir quantas ações do cassino cada um vai receber - disse ele. - Mas Brasília sai muito mais em conta do que a gente pensa, eles até que são baratinhos.
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