No penico, mas sem livro
João Ubaldo Ribeiro
No domingo passado, tomei a liberdade de fazer uma experiência. Praticamente tenho dedicado esta coluna à situação do País. Antigamente eu não tinha esse hábito e gostava de contar umas historinhas lá da ilha de vez em quando, escrever sobre bem-te-vis e narrar meus muitos padecimentos no calçadão. A julgar pelo que me falava, a maioria gostava. Aí, no domingo passado, resolvi lembrar, numa mudança completa de assunto, como meu avô materno nunca tocou em nada elétrico, nunca se permitiu ver televisão ou cinema e coisas assim. Está certo, nada de sensacional ou hilariante, mas também, quero crer, nada de insuportavelmente chato ou intoleravelmente mal escrito - um texto para embrulhar peixe como outro qualquer.
Não chegaram a tentar linchar-me, mas receio que tenham chegado perto. Uma das minhas coroas da Ataulfo de Paiva, por exemplo, quase me dá uma cabeçada, quando eu parti para a bitoca habitual (nada de selinho, somos muito austeros) e ela não queria me dar bitoca nenhuma desta vez. Pelo contrário, creio que, se não estivesse com uma sacola grande na mão, ela teria partido para me fulminar com um uppercut de direita no queixo.
- Se acovardou, é? Foi chamado pra ministro? Está morando em Marte? Foi contratado pela Secretaria de Turismo da Bahia?
Rudemente surpreendido, não tive nem tempo de desfazer de todo o beicinho da bitoca e ela já prosseguiu, agora aparentemente bem menos colérica. Que eu perdoasse sua veemência, eu já sabia, pelos muitos beijinhos por nós trocados naquele mesmo percurso, da sua grande admiração por mim. Mais que admiração, afeto, irmandade de espíritos, comunhão de valores, aliança de ideais! E agora eu a traía, envergonhava-a diante das amigas com quem discutia para mostrar que eu estava certo, ao fazer tal ou qual crítica ou previsão, obrigava-a a evitar certos mal disfarçados desafetos seus que mofariam da ridícula croniqueta daquele domingo - um vexame total, completa desilusão. Eu estava bem? Não estava me enchendo de remé dios de tarja preta, estava?
Tive um certo trabalho, coisa aí de mais ou menos meia hora. Quase ela vence pelo cansaço, mas resisti bravamente a assumir o compromisso de só escrever para "descer o malho nessa indecência que está aí", serviço talvez para séculos com o qual eu era moralmente obrigado a colaborar. Mas eu não queria todo mundo pensando que eu sou uma espécie de ave agourenta mal-humorada e achando defeito em tudo.
- Está bem - terminou concordando ela. - Você escreve sobre seus bem-te-vis e suas caminhadas toda vez em que não estiver acontecendo alguma dessas indecências deprimentes.
- Então? Não digo que não estejam acontecendo indecências, porque isso nunca vai ser realidade. Mas você não está achando que estamos vivendo uma fase relativamente boa, com boas notícias pululando aqui e ali, pelo menos na economia, e a popularidade do presidente crescendo cada vez mais? Pelo menos é o que vejo no jornal, a maioria parece muito satisfeita com o governo e eu fico soando como um espírito de porco, que nunca está contente e vive torcendo para que nada dê certo.
- É mentira! Eles mentem o tempo todo! Você não viu a última lorota dele mesmo, a maior cara-de-pau da história deste país? Quer dizer, a última lorota não, a mais recente, porque a esta altura ele já deve ter contado mais umas 800. Não viu, não? Deu em tudo quanto foi jornal.
- Bem, de fato ele mente um pouco, mas...
- Um pouco? Se forem quatro horas e você perguntar que horas são, ele responde que são quatro e meia, só para não perder a prática. Faz um dia ou dois, mas você não viu o que ele falou sobre a política do meio ambiente, com a saída da Marina? Mentiu para nós como sempre, mentiu para a imprensa e mentiu para a primeira-ministra alemã.
- Que foi que ele disse?
- É, você deve estar acometido de uma crise de burrice, deve ser o aquecimento global. Mas viu, sim, é que a mentira nele é tão natural, tão embutida, com a cara tão séria... Ele disse que não mudará nada na política ambiental. Então não mudará, todo mundo é estúpido e vai cair nessa. A mentira é tão clara, que ele nem procurou disfarçar, não precisa. Então a Marina saiu porque estava contente com a política ambiental. E ele gostou muito que ela saísse porque fazia a política dele. Ora, meu Deus, está na cara que ela saiu porque ele quer mudar a política. Ou seja, ele diz uma coisa, faz outra coisa e a gente acredita no que ele diz, não no que ele faz. É, nós merecemos. E agora está alardeando que o consumo no Nordeste cresceu muito, que os pobres estão comprando até eletrodomésticos. É, devem estar. A gente dá um pulinho ao Nordeste e confere. Vamos cansar de ver casebres de barro batido com microondas, liquidificador, ventilador e uma tevê colorida grande no meio da única sala. E depois vamos perguntar se não é verdade que a casa nem penico tem, porque, além de não haver água encanada, dá menos trabalho fazer cocô no mato mesmo. Energia para os aparelhos às vezes também não tem, mas ele saca outra potoca e diz que depois das eleições vai ter. E pergunte se há um livro na casa. E se não tem ninguém com verminose, esquistossomose ou doença de Chagas. Educação e saúde, que o povo paga sem saber, neca. Mas em compensação despejam esses sonhos de consumo todos em cima dele, o que traz ainda a vantagem de estimular a indústria de eletrodomésticos. Quanto a saneamento, escolas, hospitais, não dá tempo, só lá para o terceiro ou quarto mandato dele. Mas é bem possível que o PAC do Penico venha aí, né não?
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