segunda-feira, dezembro 25, 2017

Bagunça nas delações - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 25/12

Ao julgar ação sobre competência da Polícia Federal para fechar acordo de delação premiada, STF se deparou com bagunça que criou em torno da colaboração premiada


Ao julgar a ação que discute a competência da Polícia Federal para fechar acordo de delação premiada, mais uma vez o Supremo Tribunal Federal (STF) teve de se deparar com a bagunça que, em junho deste ano, ele mesmo criou em torno da colaboração premiada, ao decidir sobre os limites da atuação do relator nesse tipo de acordo. Fica evidente que os equívocos judiciais, especialmente quando ocorrem na esfera da Suprema Corte, têm efeitos sistêmicos deletérios. No caso, a solução adotada em junho pelo STF tinha o objetivo de não desautorizar o ministro Edson Fachin na homologação do acordo de delação premiada da JBS. O problema é que, para supostamente salvar a face do ministro, a Corte seguiu um posicionamento contrário ao que dita a lei, o que, como era óbvio, só agravou o erro. Em vez de um ministro, agora é geral a imbricação numa interpretação parcial, que desequilibra o instituto da delação premiada.

Após a divulgação dos termos do acordo de delação premiada entre a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o pessoal da JBS, ficou claro que o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, não havia seguido com muito rigor a lei. Entre outras questões, não lhe cabia conceder irrestrita imunidade penal aos delatores. No entanto, quando foi descoberto o deslize, o acordo de delação da JBS já havia sido homologado pelo ministro Edson Fachin. Naquele momento, o erro de Janot era também erro de Fachin, que não podia ter dado aval a essas condições acintosamente ilegais.

Acionado a se pronunciar sobre o assunto, o STF não quis corrigir o erro do ministro Edson Fachin. A Suprema Corte preferiu dizer que o papel do juiz que homologa uma delação é muito restrito, não lhe cabendo interferir nos termos do acordo. Deveria apenas verificar a legalidade, a voluntariedade e a regularidade do acordo, bem como seu cumprimento por parte do colaborador. Com essa criativa interpretação, os ministros do STF acabaram por alargar imensamente as competências do Ministério Público na celebração de acordos de delação premiada. Por exemplo, a fixação da pena, matéria que é de competência exclusiva do juiz, foi deslocada para a esfera do Ministério Público.

Menos de seis meses depois, o assunto voltou ao plenário do Supremo, por força de uma ação impetrada pelo Ministério Público contra a possibilidade de a Polícia Federal celebrar acordos de delação premiada. Ao mesmo tempo que não há dúvida de que a legislação prevê tal possibilidade – afinal, a Polícia Federal é responsável por investigar, e a delação premiada é um auxílio às investigações –, também não há dúvida de que fogem do escopo da Polícia Federal as matérias que o STF colocou sob a batuta exclusiva do órgão que celebra, em nome do Estado, o acordo de delação com as pessoas que desejam colaborar nas investigações.

Com razão, o Ministério Público defende que não cabe à Polícia Federal fixar pena para um investigado num eventual acordo de delação premiada. Por óbvio, idêntica regra também é aplicável ao Ministério Público, que não tem poderes para fixar penas. Como se vê, antes de o STF se debruçar sobre as competências específicas de cada órgão na celebração de acordo de delação premiada, é prioritário que seja revista a sistemática geral da colaboração premiada, corrigindo os equívocos da decisão de junho. Caso contrário, teremos um sistema absolutamente disforme para a colaboração premiada, provocando profunda insegurança jurídica e exigindo constantes revisões, caso a caso, do próprio STF.

Os efeitos do equívoco criado em junho pelo STF foram vividamente sentidos durante o julgamento sobre a competência da Polícia Federal para a celebração de acordo de delação premiada, a começar pelos próprios ministros da Suprema Corte. Cada voto foi de um jeito, como se cada ministro estivesse falando de uma realidade jurídica própria, sem qualquer conexão com a dos colegas. O que se viu no plenário do STF foi uma verdadeira bagunça. Nas ponderações de cada voto, a lei ganhava contornos muito vagos, como se pouco pudesse iluminar a questão. Em seu lugar, reluzia forte o arbítrio individual. É preciso retornar, o quanto antes, ao bom Direito, sem pudor de retificar eventuais e evidentes equívocos.


Boeing & Embraer - CELSO MING

ESTADÃO 24/12

Há muita coisa boa a desfrutar com anúncio de que Embraer e Boeing negociam arranjo


O anúncio de que Embraer e Boeing negociam um arranjo não pode ser analisado pela ótica da desnacionalização em marcha, como os aflitos de sempre se apressam em protestar. Tem que ser visto pelo lado do que é melhor para o Brasil. E há aí muita coisa boa a desfrutar.

Há o reconhecimento de que a Embraer conquistou lugar especial no setor. Se não tivesse sido privatizada, como foi em 1994, não passaria de um monte de sucata ou de cabide de empregos, como aconteceu com a Engesa, que fazia veículos bélicos para uso em terra.

A Boeing está vindo atrás porque sentiu que precisa se posicionar no segmento de jatos de médio porte, principalmente depois que a europeia Airbus e a canadense Bombardier anunciaram, em outubro, planos de fusão.

Também é preciso ter em conta que a Embraer, terceira maior produtora de jatos no mundo, se tornou um dos campeões nacionais porque livrou-se de vícios que tomam outros setores da indústria, como subsídios e, principalmente, políticas supostamente nacionalistas, como exigências de conteúdo local. De 17% a 20% dos componentes das aeronaves da Embraer vêm de fora. Ela não foi obrigada a pagar mais caro para desenvolver o que outros países e empresas fazem mais barato. No caso das aeronaves da família E-Jet E2, as asas têm parte da estrutura feita em Portugal; a cabine e seus assentos são do Reino Unido; o motor das turbinas, do Canadá; o sistema estabilizador, dos Estados Unidos; o sistema de controle de flaps vem da Alemanha... E assim vai. A Embraer se especializou em produzir projetos e conceitos.

A Embraer não é uma empresa que tenha um dono. Cerca de 65% de seu capital está pulverizado no mercado. Tem como principais acionistas a norte-americana Brandes (15% do total), a Mondrian (10%), o BNDES (5%) e o fundo Blackrock (5%). O Tesouro brasileiro possui uma golden share, ou prerrogativa de vetar qualquer negócio que contrarie o interesse nacional.

A proposta em negociação não está clara. Mas não dá para dizer que seja de compra pela Boeing. Por disposição estatutária, nenhum acionista pode ter mais do que 35% das ações da empresa.

Mas já dá para antever algumas das vantagens de que desfrutaria a Embraer a partir de uma associação com a Boeing. A primeira delas seria o fortalecimento do seu próprio segmento do mercado que está sendo deslealmente atacado pela Bombardier e pode enfrentar forte concorrência de novos players, especialmente da China, do Japão e da Coreia do Sul. Segunda vantagem, a Embraer poderia partilhar com a Boeing a faixa de aviões de grande porte. E, terceira, ganharia importante reforço em seu capital.

Não faz sentido o discurso de que a Embraer também fabrica aviões militares e, por isso, não se podem misturar interesses das empresas por motivos de segurança nacional. É difícil imaginar que os produtos da Embraer para fins militares sejam segredos importantes para os norte-americanos – até porque qualquer um dos produtos pode ser adquirido no mercado. Em segundo lugar, a Boeing tem mais abrangência e produtos de defesa do que a Embraer.

De todo modo, antes de conhecer melhor o que está em jogo, não se terão os principais elementos para uma melhor avaliação desse pretendido acordo.

Dedico minhas preces de Natal aos mentirosos e a suas pobres vítimas - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 25/12

Dedico minhas preces de Natal aos mentirosos e suas vítimas. A natureza humana tem uma vocação irresistível para a mentira e para a hipocrisia. Principalmente os que se dizem ao lado do "bem" e os que gostam de mentir para que fiquemos mais felizes. E, acima de tudo, cuidado com os que querem fazer um mundo melhor.

Estranho o parágrafo acima, não? Mas, tenha calma, hoje é Natal.

Façamos um recuo histórico e logo voltaremos ao tema do estranho parágrafo acima.

Sempre me perguntam, afinal, quais são as fontes em minha formação. São muitas. A filosofia é um diálogo contínuo com os mortos.

Entre elas, hoje, apontaria o filósofo, teólogo e matemático francês Blaise Pascal (1623-1662), e o jansenismo, movimento do qual ele fez parte.

Jansenismo é um movimento dentro do catolicismo francês que teve no século 17 seu ápice em termos de controvérsias.

O termo vem do nome do padre holandês Cornelius Jansenius (1585-1638), que escreveu uma obra sobre a teologia da graça de santo Agostinho (354-430), cujo título mais conhecido é "Augustinus" (1640).

Resumidamente, sua "síntese" da teologia agostiniana da graça é que, sem a graça de Deus, não saímos do pecado. Logo, a natureza humana "caída" não é capaz de sair do atoleiro sem "a vigilante piedade de Deus", termo de um jansenista contemporâneo, Georges Bernanos (1888-1948).

Para um jansenista, uma das piores lutas é contra o orgulho e a vaidade que alimentam nosso cotidiano. Ambos, além de contaminarem a vida moral, contaminam a vida cognitiva, isto é, vemos o mundo e a nós mesmo através da lente do orgulho e da vaidade: logo, nos achamos bons, corajosos e honestos.

O "efeito jansenista" é estar constantemente em combate contra essa contaminação moral e cognitiva causada pelo amor ao orgulho e à vaidade.

Não é à toa que os "senhores de Port-Royal", como ficaram conhecido os jansenistas no século 17 francês (Port-Royal é o nome de um convento de freiras diretamente associado ao movimento em questão), eram vistos como pessoas um tanto melancólicas e dadas à busca atormentada da verdade sobre a natureza humana.

O jansenismo alimentou muito, ao longo do século 17 francês, o subterrâneo intelectual de autores que refletiram sobre a natureza humana. Esses autores ficaram conhecidos como "les moralistes", sendo Pascal o maior entre eles.

Voltemos ao tema do parágrafo inicial. Uma das apresentações desse "efeito jansenista" é reconhecer o quão insuportável é a verdade.

A marca jansenista é a análise fina da natureza humana e de suas agonias com a verdade.

Temos entre nós um exemplo de filósofo muito próximo da tradição jansenista, o jovem Andrei Venturini Martins. Vou te dar um presente de Natal: a indicação de um livro, "A Verdade É Insuportável", da editora Garimpo (R$ 30, 144 págs.).

O livro de Andrei é exemplo elegante e didático do olhar jansenista, em sua profundida e dureza. Mas a obra não se limita à tradição jansenista enquanto tal. As referências vão de Mário Quintana a Marilena Chaui. De Michel Onfray a Arthur Schopenhauer. De Platão a Freud.

O fio condutor é o tema da dificuldade de olhar o mundo naquilo que ele tem de mais sofrido.

O método é a generosidade com o leitor. Por isso trata-se de uma obra muito útil para quem quer se aventurar de forma introdutória e sólida na tradição filosófica que descortina a hipocrisia do mundo.

Outro traço é o "contemporâneo" relendo a tradição.

Qual seria o efeito do "pessimismo antropológico" jansenista hoje?

Vejamos alguns exemplos do próprio autor.

Se, por um lado, dizem que o homem é o único animal que busca alguém a quem amar e por isso sofrerá das armadilhas "do outro" em sua vida, por outro lado, para aqueles que defendem o "ficarei só", a solidão o espera, antes que ele imagine.

Nunca se fez tanta propagando do sexo, quando, na verdade, nunca fomos tão brochas, porque a "máquina biológica é precária".

"Boa parte dos homens trabalharão toda a vida como bois num curral" e, ao final, morrerão de tédio.

Jesus disse que a verdade nos libertará.

Quem paga esse preço?

Mal-estar - DENIS LERRER ROSENFIELD

ESTADÃO/O GLOBO - 25/12

Se a moralidade pública se tornou uma bandeira política, é porque não faltaram razões que corroboram tal percepção


Há um profundo mal-estar na sociedade brasileira. As pessoas estão tomadas pelo desânimo e pela insegurança, portadoras de grande descrença nos políticos e nos partidos. Se a moralidade pública se tornou uma bandeira política, é porque não faltaram razões que corroboram tal percepção. É bem verdade que a economia voltou a crescer, criando novas condições sociais, graças às reformas realizadas pelo atual governo. Porém tais efeitos ainda não se fizeram sentir ou não são percebidos como tal.

Não deveria, portanto, causar estranheza o fortalecimento da candidatura do deputado Jair Bolsonaro, na medida em que ele consegue dar vazão ao sentimento de uma sociedade cansada de desmandos. Pretender desqualificá-lo como sendo de extrema direita nada mais é que uma reação de tipo ideológico, pois não leva em consideração que suas posições estão enraizadas na sociedade. Ele não é uma “bolha” que logo estourará, mas um fenômeno que expressa questões e posições de uma sociedade que está de saco cheio de tudo o que está aí.

A descrença da sociedade nos políticos e nos partidos em geral tem sérias razões. Não há praticamente nenhum grande partido que escape. O PT foi o grande mestre, com o mensalão e o petrolão. Nos governos petistas o País foi levado à ruína econômica e à falta completa de ética. Ex-membros do novo governo estão envolvidos na Lava Jato, como um ex-ministro com mais de R$ 50 milhões escondidos num apartamento. As imagens foram impactantes. O ex-presidente do PSDB também aparece envolvido com a JBS. A lista seria interminável. Fica, porém, a percepção de que todos os partidos estão podres, embora, evidentemente, haja pessoas sérias e honestas em todos eles. O que conta, todavia, é a percepção popular. Nesse sentido, a posição de um outsider tende a ser muito bem recebida.

As denominações de esquerda e de direita, em tal contexto, passam a não ter maior significação, porquanto a questão reside em como dar respostas aos problemas que são postos pela sociedade. Expressão desse deslocamento se encontra em recente entrevista do ex-presidente Fernando Henrique, ao declarar que tem “medo da direita”, em alusão indireta ao deputado Bolsonaro. Curioso. Não teria ele “medo da esquerda” petista lulista, que destruiu o País? Ou de Hugo Chávez e sucessores, que conduziram a Venezuela ao abismo?

A sociedade não tolera mais as invasões do MST e de seus assemelhados urbanos, como o MTST. Quer tranquilidade em sua vida e em seu trabalho. Note-se que o MST foi estimulado e acariciado tanto pelos tucanos quanto pelos petistas, com exceção da ex-presidente Dilma, que dele se demarcou, e do atual presidente, que tampouco compactua com a desordem. Acontece que o desrespeito à propriedade privada é condenado pela imensa maioria da população, que não mais embarca nos cantos românticos de uma esquerda irresponsável. Consequentemente, quando um outsider como o deputado Bolsonaro toma para si essa bandeira, ele não apenas se contrapõe a importantes partidos, como expressa o que é sentido e condenado pela sociedade.

Pegue-se, por exemplo, um projeto de lei hoje tramitando que permite aos proprietários rurais a autodefesa mediante autorização para registro e posse de armas. Alguns afoitos ou mal-intencionados já criticam tal lei como se ela viesse estabelecer o “faroeste no campo”. Como assim? Ele já não existe na forma de invasões violentas do MST, com uso de armas, sequestros, incêndios, destruição de propriedades, e assim por diante? E a prática do abigeato? E os simples roubos e assassinatos? Condenam-se os que procuram defender-se, e não os que usam da violência em suas invasões. Então, se um candidato dá voz aos que não conseguem fazer-se ouvir, qual seria o problema? Ser de direita? Santa paciência!

As pessoas não conseguem mais caminhar livremente nas cidades brasileiras. A insegurança impera, a violência está sempre à espreita. O automóvel é hoje utilizado para qualquer deslocamento, expressando um medo disseminado. Os mais ricos andam em carros blindados. O direito básico de livre circulação é simplesmente anulado pela insegurança física das pessoas e dos seus bens. Pais e mães ficam angustiados à espera de um filho ou filha que foi a uma festa noturna. Mães são assassinadas quando buscam filhos na escola. A situação é absolutamente intolerável e nenhum governo se ocupou seriamente da segurança pública. Tucanos e petistas nada fizeram e a nossa realidade, hoje, é produto de uma longa história de descaso pela coisa pública. Não deveria surpreender que um candidato que vocalize tal problema básico do Estado cresça na opinião pública. Se o deputado Bolsonaro cresce nas pesquisas, é por que os partidos tradicionais lhe abriram espaço ao não enfrentarem as questões por ele suscitadas.

Chegamos a uma situação assaz esquisita, em que bandidos circulam livremente com armas de restrito uso militar pelas favelas brasileiras, sem que nada seja efetivamente feito. Até posam para fotos, dada a total impunidade. Se um militar os enfrenta, da polícia, do Exército, da Marinha ou da Aeronáutica, logo se instaura um processo contra ele – agora, felizmente, sob os auspícios da Justiça Militar. Se for menor de idade, pior ainda, pois um “civil” indefeso é que teria sido morto. Os valores estão totalmente invertidos. Os ditos “direitos humanos” não deveriam ser utilizados para a proteção de criminosos, maiores ou menores. Menores matam livremente e depois de uma breve reclusão saem com ficha limpa. É um estímulo ao crime. Assim, se um candidato defende a redução da maioridade penal e a revisão do Estatuto da Criança e do Adolescente é imediatamente estigmatizado como conservador e retrógrado. A perversão é completa.

* PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS.

Jurisprudência e insegurança jurídica - FABIO MEDINA OSÓRIO

O Globo - 25/12


O mínimo que se espera do Judiciário, portanto, é que atue a favor da segurança jurídica, irradiando seus efeitos no Direito, na economia e em outras áreas


Em qualquer lugar do planeta, a segurança é um valor escasso atualmente. Não digo apenas no Direito, mas segurança de um modo geral — nas relações interpessoais e afetivas, nos ambientes de trabalho, nos espaços físicos, na internet, na política, na economia. Já existem muitos tratados sobre segurança jurídica e sobre conceitos de segurança em diversas áreas, mas o fato é que predomina a insegurança em face do aumento das liberdades e do pluralismo de pensamentos e valores na sociedade contemporânea.

Zygmunt Bauman, célebre sociólogo polonês, chamou nossa era de “modernidade líquida”, porque, dentre outras características, rompeu esse paradigma da segurança que marcava a modernidade clássica. As novas tecnologias, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, impactaram intensamente as culturas globais.

Houve um aumento das liberdades e do pluralismo nessa globalização tecnológica, econômica, mas também outras formas específicas de exclusão e discriminação emergiram. As sociedades de consumo tornaram muitos direitos efêmeros e até descartáveis. No entanto, o que emerge como perturbador é a perda de referências: na arte, nas religiões, na educação, nas culturas, e até mesmo nos limites do que é ou não violento, permitido ou proibido.

Assim, aumentam as discussões sobre limites às liberdades individuais versus direitos fundamentais, sem que se consiga chegar a patamares de consensos razoáveis. Deve-se proibir ou permitir determinadas condutas? A quem cabe este papel? Ao Judiciário ou ao Legislativo? A deterioração da imagem de um Poder autoriza que outro Poder ocupe os espaços que não lhe pertencem? Quais são os direitos de determinados acusados ou das pessoas em geral, diante da ambiguidade das leis ou da Constituição?

Se Bauman fala nessa modernidade líquida, assim como Zagrebelsky (jurista italiano) falava no direito dúctil (flexível), não há dúvida de que a segurança é um valor indispensável. Se não fosse, não teríamos necessidade das instituições. Os alicerces do capitalismo encontram guarida na segurança e na previsibilidade das relações. O mínimo que se espera do Judiciário, portanto, é que atue a favor da segurança jurídica, irradiando seus efeitos no Direito, na economia e em outras áreas da vida.

Implantar teoria dos precedentes no âmbito da jurisprudência é uma necessidade e um compromisso com o princípio da segurança jurídica, seja nas jurisdições cíveis, criminais ou administrativas.

E o que se constata hoje? Observamos uma atuação extremamente individualista dos operadores do Direito, exacerbando suas visões subjetivas a respeito do mundo e da realidade, à luz de uma suposta independência funcional.

Os Ministérios Públicos têm milhares de representantes espalhados pelo Brasil, e cada promotor ou procurador apresenta suas próprias convicções e interpretações. Portanto, falta dar densidade ao princípio da unidade institucional que caracterize um Ministério Público brasileiro. O mesmo se diga de muitos magistrados que não seguem a jurisprudência dos Tribunais superiores.

Na esfera administrativa, o problema se agrava, pois as autoridades, em inúmeras instâncias ou órgãos públicos, nem mesmo dão transparência a seus critérios decisórios. Fica difícil conhecer ou racionalizar a jurisprudência administrativa no Brasil.

E quanto aos tribunais superiores? Realmente decidem em colegiado ou constituem somatórios de decisões individuais? Observam seus próprios precedentes? Valem-se de técnicas corretas para fixar jurisprudência e exigir seu cumprimento por outras autoridades?

O Brasil é um país seguro para investir? Se é certo que os ambientes globais são dominados pelas incertezas, devemos repensar o papel dos operadores jurídicos e fortalecer a busca por segurança jurídica em nosso país. Penso que devemos avançar muito. 
Fabio Medina Osório é jurista e foi ministro da Advocacia-Geral da União

A miopia do nacionalismo - O GLOBO

O Globo - 25/12


A estatal foi exaurida pela MP de Dilma, e não há outra alternativa para o setor receber investimentos


Segundo Millôr Fernandes, “quando uma ideologia fica bem velhinha, ela vem morar no Brasil”. Pois nos aproximamos da segunda década do século XXI e a visão do nacionalismo, mesmo num mundo globalizado, ainda atrai brasileiros, à esquerda e à direita.

Como certas ideologias são uma forma de religião sectária, não importa os estragos que o nacionalismo fez e faz no mundo, nos aspectos político e econômico. Trump e Putin são dois exemplares desta visão estreita e que, no extremo, costuma levar a catástrofes. Na economia, não basta o atraso que o Brasil demorou a superar no petróleo, e que começou a ser eliminado quando a Petrobras se abriu a contratos de exploração com empresas estrangeiras. Mas os religiosos continuam fieis.

A miopia nacionalista continua sem enxergar o que dizia Deng Xiao-Ping com sua frase: “Não importa a cor do gato, contanto que cace o rato”. Ele não escapou de ser uma vítima da Revolução Cultural, reação do maoismo a tentativas de abrir a China, mas sobreviveu para construir bases sobre as quais o país se modernizou no aspecto econômico, usando para isso instrumentos do capitalismo. Como resultado, a China se tornou a segunda economia do mundo. Tem um encontro marcado com a contradição de se modernizar, gerar milionários e uma enorme classe média, e continuar uma ditadura política de partido único. Mas esta é outra questão.

No Brasil o velho nacionalismo volta a ser brandido contra a intenção do governo de privatizar o controle da Eletrobras, pulverizando-o no mercado. Voltam os antigos jargões que fazem pouco caso da racionalidade.

O problema é fácil de entender: a estatal, holding do setor elétrico, foi quebrada pela política voluntarista da presidente Dilma Rousseff, considerada grande especialista no setor. E sem condições mínimas de liderar os pesados investimentos que o país precisa na geração e de energia, o sensato é repassá-la ao setor privado, o que não significa perder o controle do planejamento na atividade. Além de haver formas de assegurar a palavra final em assuntos estratégicos na empresa. Vide a Embraer.

A bomba que implodiu o setor elétrico chama-se MP 579, de 2012, cuja intenção era reduzir as tarifas em 20% — objetivo também de interesse políticoeleitoral. A varinha mágica da operação era antecipar a renovação de concessões de usinas a vencer entre 2015 e 2017. Hidrelétricas de estados (Minas, São Paulo e Paraná) não aceitaram, e ainda um grave período de seca forçou o uso intensivo de termelétricas, de custo superior às usinas hidrelétricas. Mágicas foram tentadas com subsídios, empréstimos do Tesouro, e tudo somado não apenas não reduziu de forma consistente as tarifas, como abriu rombos bilionários na contabilidade de todo o sistema Eletrobras.

A reação pavloviana do nacionalista é usar o Tesouro. Mas este tem acumulado gigantesco déficits anuais de 8% a 9% do PIB. A racionalidade de um comunista como Deng-Xiao Ping aconselha se escolher a melhor solução: a privatização, o gato para caçar o rato.

Macri avança - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 25/12

Fortalecida pela vitória nas eleições legislativas de outubro, a coalizão Cambiemos que sustenta o governo do presidente argentino Mauricio Macri tem conseguido avançar nas reformas econômicas.

A agenda é ampla e tem como pilar a contenção do gasto público. O buraco nas contas, incluindo as províncias e o pagamento de juros, está projetado em 7% do Produto Interno Bruto neste ano (um pouco menor que o brasileiro, que chega a 9% do PIB).

Macri trabalha em duas frentes. De um lado, aprovou no Senado uma reforma tributária, que reduzirá taxas para as empresas. Ao longo de cinco anos o imposto sobre os lucros cairá de 35% para 25%. Pretende-se favorecer a competitividade e alinhar a cobrança no país a padrões internacionais.

Para bancar a redução, que ainda precisa passar pelos deputados, e ao mesmo tempo reduzir o déficit, o governo precisa conter gastos. Nessa frente, tal como no Brasil, o sistema previdenciário é grande parte do problema.

Em meio à violência nas ruas, que resultou em dezenas de feridos e pelo menos 70 pessoas detidas, o governo conseguiu aprovar mudanças nas aposentadorias na semana passada, em sessão de mais de 12 horas na Câmara.

A alteração principal se dá nas regras de cálculo dos benefícios, que seguirão uma fórmula de reajuste trimestral que leva em conta a inflação e a evolução dos salários.

A economia estimada chega a 67 bilhões de pesos (0,6% do PIB) em 2018. Se a regra estivesse em vigor neste ano, a correção das aposentadorias seria de 23,6%, contra 28% concedidos com base dos parâmetros existentes antes da reforma.

Como atenuante, o governo promete pagar um abono para os cidadãos que ganham até 10 mil pesos (equivalentes a US$ 570) ao mês, cerca de 10 milhões de pessoas.

Por fim, a lei garantirá uma renda mínima para quem contribuir por 30 anos e facultará o adiamento da aposentadoria até os 70 anos.

Registre-se que na Argentina a idade mínima atual é de 65 anos para homens e 60 para mulheres, muito próximo ao que se quer aprovar no Brasil com longo atraso.

Com o êxito no redesenho previdenciário, o governo abre caminho para finalizar as mudanças na área tributária, o que tende a favorecer o crescimento da economia e a criação de empregos.

O país deve fechar o ano com alta do PIB próxima dos 3%. Acredita-se que a expansão possa ser maior no ano que vem, ajudando Macri na disputa pela reeleição em 2019.

A farra dos penduricalhos - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 25/12

Banalização de benefícios tornou impossível saber o custo do Judiciário com folha de pagamento


A banalização dos benefícios pecuniários pagos à magistratura tornou impossível saber ao certo qual é o custo efetivo do Poder Judiciário com a folha de pagamento de seus juízes, desembargadores e ministros. Ao todo, são 91 tribunais e em quase todos seus integrantes ganham verba de representação, bonificações e gratificações sob a forma de auxílio-moradia, auxílio-alimentação, auxílio-saúde, auxílio-livro, auxílio-paletó e vários outros penduricalhos pagos com dinheiro dos contribuintes. Como cada tribunal tem sua lista de penduricalhos, a área técnica do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estima que existam em todo o País 40 tipos distintos de gratificações, representações e adicionais aos salários dos juízes.

Com base em informações atualizadas enviadas ao CNJ sobre os vencimentos de cada um de seus magistrados, o Estadão Dados constatou que, no período entre janeiro e novembro de 2017, esses penduricalhos custaram R$ 890 milhões aos cofres públicos. Descobriu, igualmente, que os penduricalhos pagos aos 14 mil magistrados dos Tribunais de Justiça representam, em média, 30% de seu salário básico. Descobriu, ainda, que três em cada quatro juízes estaduais recebem auxílio-moradia, independentemente da cidade onde trabalham e do fato de possuírem ou não residência própria.

Além disso, como os penduricalhos são pagos a título de verba indenizatória, e não como vencimentos, os valores não são levados em conta no cálculo do teto salarial estabelecido pela Constituição para a administração pública, que hoje é de R$ 33,7 mil. Pela pesquisa do Estadão Dados, um terço dos juízes estaduais tem vencimentos líquidos superiores ao teto. A remuneração nacional média desse grupo é de R$ 42,5 mil. Em Rondônia, a média é de R$ 68,8 mil. No topo da lista, um magistrado desse Estado recebeu recentemente R$ 227 mil no contracheque. E, em julho, um juiz de primeira instância do Estado de Mato Grosso recebeu quase duas vezes e meia esse valor.

Ao defender os penduricalhos da magistratura, que sempre esteve entre as categorias mais bem pagas do funcionalismo público, os presidentes dos tribunais alegam que, se não receberem salários equivalentes aos diretores jurídicos das grandes empresas, os juízes não seriam eficientes na defesa da cidadania e na decisão das questões de alto relevo público. Independentemente da falta de uma relação lógica entre uma coisa e outra, pois a eficiência de um magistrado depende de sua competência, de seu esforço e de sua responsabilidade, os dirigentes da Justiça também não negam que a multiplicação dos penduricalhos foi a resposta que o Judiciário deu ao Executivo, quando os responsáveis pelas finanças públicas alegaram não dispor de recursos para aumentar ainda mais os já polpudos salários dos magistrados. Há três anos, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) chegou ao disparate de invocar a necessidade de um padrão mínimo de elegância dos juízes para justificar a concessão dos penduricalhos.

O principal argumento da magistratura é que esses benefícios são previstos por lei, motivo pelo qual seu pagamento não seria irregular. O problema, porém, não está na legalidade dos benefícios, mas na sua falta de legitimidade, afirma o ex-presidente do STF Carlos Ayres Britto, profundo conhecedor das artimanhas dos magistrados para burlar as limitações impostas pela Constituição que juraram cumprir. “À medida que há claraboias nesse teto, perde-se a noção dos custos do Judiciário”, afirma o ex-ministro.

A farra dos penduricalhos no Judiciário chegou a tal ponto que até juízes aposentados entraram com ações reivindicando, em nome do princípio da isonomia, os mesmos “direitos” dos magistrados da ativa. Isso mostra o grau de descolamento da realidade por parte de uma corporação incapaz de perceber a crise econômica em que o País se encontra e de compreender que, embora os Poderes sejam independentes, o cofre é um só e a responsabilidade sobre o que nele sai e entra é do Executivo.