terça-feira, abril 14, 2020

Obsessão com a cloroquina nasce da ignorância, medo e desespero - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 14/04

Nada atormenta mais os homens modernos do que o reflexo da sua própria impotência



Será que engordei durante essa quarentena? Difícil dizer. Não tenho balança. Rebentei com ela, dez anos atrás, durante uma crise bulímica. Mas existem sinais: quando me levanto, descubro que a silhueta do meu corpo ficou cavada no colchão —uns dez centímetros de profundidade, não mais.

Se as coisas continuarem assim, ainda vou dar um contributo inestimável para a física quântica: conseguir, ao mesmo tempo, acordar na cama e no chão. Decadente?

Admito. Mas o estado do meu corpo é bastante semelhante ao estado do mundo, pelo menos na tese de Ross Douthat.

Apresentações: Ross Douthat, como colunista do New York Times, é a voz da razão. O seu mais recente livro, “The Decadent Society” (a sociedade decadente), é a prova.

Tese dele: desde 1970 que vivemos em estado de decadência. Não inovamos; repetimos. Não avançamos; andamos em círculos. Esse não é o sentimento comum?

Fato. Temos a sensação de que a velocidade tomou conta de tudo. Aparência. É muito ruído por nada: as mudanças significativas são mais raras.

Imaginemos o seguinte cenário: um americano, em casa, em 1890. Subitamente, o mesmo americano é levado para 1950, aterrando no meio de telefones, rádios, geladeiras, lava-louças —e com automóveis cruzando as ruas. É motivo para infarto.

Agora imaginemos o mesmo americano saltando de 1950 para 2020. Excetuando a decoração, o que mudou?

Verdade: existe a internet. Impossível negar essa proeza. Mas Ross Douthat pergunta: você preferia viver no mundo que existiu até 2002 (o que inclui, apesar de tudo, laptop com Windows 98 e até acesso à Amazon), abrindo mão de tudo que veio depois; ou, pelo contrário, você preferia o mundo pós-2002, com Twitter, Facebook ou iPad, mas sem banheiro em casa?

Eis o ponto do autor: nos séculos 19 e 20, a humanidade conheceu o “sublime tecnológico”. Do caminho de ferro ao avião, da bomba atômica à chegada do homem à Lua, sem esquecer a anatomia de Rita Hayworth (opinião pessoal), o progresso foi gigantesco, alucinante —e sublime.

Mas, tirando a internet, onde estão os carros voadores que nos prometeram? Onde está aquele resort turístico em Marte? Onde está a cura do câncer? Onde está a imortalidade?

E, já agora, pergunto: onde estão as vacinas contra os mil vírus que sempre circularam por aí —e que, subitamente, paralisam o mundo e nos obrigam a regressar às quarentenas da Idade Média?

Ross Douthat explica: nas décadas de 1990 e 2000, as farmacêuticas gastaram cada vez mais dinheiro em pesquisa, aprovando cada vez menos medicamentos. A partir de 2010, o declínio tem sido ainda mais acentuado.

É também por isso que, suspeita minha, a obsessão corrente com a cloroquina na luta contra a Covid-19 não nasce apenas da ignorância.

Também se explica com uma mistura de medo e desespero de que a vacina milagrosa, a existir, não será para amanhã de manhã. E nada atormenta mais os homens modernos do que o reflexo da sua própria impotência.

Como sair daqui?

Sim, como reativar o renascimento das artes; a pujança da demografia; a vitalidade das instituições políticas; e, pormenor delicioso, a própria vivacidade da música pop (conta Douthat que, nos últimos anos, as canções que fizeram sucesso revelaram um declínio no número de acordes e, até, no número de novas transições entre acordes)?

Essa, talvez, é a grande observação do livro: a decadência pode durar anos, décadas, séculos. Uma espécie de purgatório, sem grandes alegrias ou tristezas, mas perfeitamente habitável e até confortável, no sentido básico da palavra.

Como o poeta W.H. Auden gostava de recordar, o que nos fascina e aterroriza na história do Império Romano não foi o fato de ele ter terminado; foi ter continuado, durante quatro séculos, sem criatividade, afeição ou esperança.

A repetição circular, a sensação de esterilidade tão própria das nossas sociedades afluentes, onde a gritaria política e a pornografia são os tópicos com maior ibope na internet (duas formas de onanismo e nada mais), não tem prazo de validade.

Exceto se, pelo caminho, o imprevisto acontecer e o torpor atual se desintegrar, exigindo uma forma diferente de viver e de encontrar respostas. Será que esse vírus e o futuro ainda desconhecido que ele traz no ventre podem ser os bárbaros de que estávamos à espera?

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Ataques fragilizam Brasil e ajudam China a obter concessões - ENTREVISTA COM OLIVER STUENKEL

FOLHA DE SP - 14/04

Ataques fragilizam Brasil e ajudam China a obter concessões, avalia acadêmico
Para Oliver Stuenkel, resposta dura da embaixada chinesa explicita mudança na diplomacia do país



Falar mal da China tem um custo. Ataques como o do deputado federal Eduardo Bolsonaro e do ministro da Educação, Abraham Weintraub, deixam o Brasil em posição frágil e ajudam o governo chinês a conseguir concessões do Brasil em negociações.

Esse é o alerta de Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da FGV-SP e autor do livro “O Mundo Pós-Ocidental: Potências Emergentes e a Nova Ordem Global".

O acadêmico avalia que Pequim provavelmente não fará retaliações óbvias contra o Brasil, como deixar de exportar máscaras e ventiladores mecânicos.

Mas a reação diplomática às declarações de Eduardo e Weintraub revelam “que a China não foge mais do confronto, e ela sabe que muitos grupos [no Brasil] dependem da boa relação” com os chineses, como empresários e o agronegócio.

Para Stuenkel, que está escrevendo um livro sobre a competição tecnológica global entre os EUA e a China, a sinofobia não é exclusividade do governo Bolsonaro e veio para ficar.

“Muita gente acha que o bolsonarismo inventou a sinofobia, mas isso é global. Em países da África, falar mal da China faz parte da política doméstica, criticar a China pode te eleger", explica ele. "A China compreendeu que sempre estará no meio do debate, então ficar calada não é mais uma opção.”

Existe um esforço da China para fazer uma “diplomacia da máscara” em meio à pandemia de coronavírus, com doações de equipamentos médicos e assistência para ajudar o país a ganhar soft power?

Sim, a diplomacia da máscara é pensada primeiro para compensar a questão de a China ter sido o país de origem da pandemia, o que tem conotação negativa. Essa abordagem busca mudar a narrativa.

Mas o segundo fator é que, para ser visto como um líder global, não bastam poder econômico e bélico, é preciso mostrar capacidade de prover bens públicos globais, de resolver problemas. Se você olha a liderança americana após a Segunda Guerra Mundial, não foi só capacidade econômica ou militar que alçaram os EUA a essa posição, foi também a capacidade de resolver problemas, de mediar conflitos, de oferecer ajuda econômica e humanitária em momentos de crise e de coordenar líderes para pensarem conjuntamente sobre uma determinada questão.

A China percebe que tem os meios de liderar neste momento, e que os EUA não têm, existe um vácuo de poder imenso. E é óbvio que a China consegue negociar paralelamente outras questões. Se você recebe milhares de máscaras e ventiladores mecânicos da China, você não vai, poucos meses depois, avisar Pequim a exclusão da Huawei da construção da sua rede 5G.

O senhor disse que a resposta confusa dos EUA à pandemia indica que a liderança global de Washington chegou ao fim. Os EUA abriram mão de serem os líderes globais?

Era inevitável que isso ocorresse em algum momento. É preciso lembrar que a liderança americana, historicamente, é atípica, porque o mundo, do ponto de vista demográfico e econômico, sempre foi asiacêntrico. A ascensão chinesa em algum momento iria levar à volta desse mundo.

É muito evidente, no debate público americano, um certo cansaço, uma resistência crescente de liderar globalmente, principalmente com os custos que isso traz. Isso já vinha acontecendo, Donald Trump é um reflexo dessa tendência, e a pandemia acelera o processo. Nos últimos 70 anos, nenhum país pensava em um problema internacional sem levar em conta a posição dos EUA.

Seja falando da guerra entre Equador e Peru em 1995 ou do combate a terroristas na Somália, o representante do governo americano era sempre crucial. Isso certamente deixará de ser o caso e, se você olhar a coordenação global para lidar com crise migratória, barreiras protecionistas ou combate à pandemia, Washington é um ator importante, mas não é mais um ator que tem a legitimidade para liderar.

A China também tem fragilidades para assumir uma liderança global, se considerarmos respeito a direitos humanos, transparência, democracia partidária. Como seria uma liderança chinesa pós-pandemia?

Eles têm muita noção de suas limitações, e ninguém na China tem ilusões em relação à atratividade da sociedade chinesa. Seria um outro tipo de liderança. Pela provisão de bens públicos, o país pode ser considerado muito atraente pelo mundo em desenvolvimento.

Na última vez que fui a Xangai, vi uma delegação de políticos africanos no aeroporto, havia um guia mostrando como o país vem crescendo, a tecnologia. Isso é soft power chinês. Agora, em muitos aspectos, a China não vai conseguir liderar, teremos um vácuo permanente, o que é muito perigoso. Mesmo assim, a China está muito mais confiante.

Antes, a China seguia a estratégia de se manter discreta, “bide your time and hide your strengths” [espere a melhor oportunidade e esconda seus pontos fortes, suas armas]. Era uma postura de ficar fora do radar, mais passiva e defensiva. Os diplomatas só se manifestavam quando havia algo que Pequim considerava muito importante e pertinente para seus assuntos internos.

A China acumulou capacidade econômica, mas nunca tinha se posicionado de maneira mais visível como hoje. Mas ela faz isso porque sabe que a sinofobia também veio para ficar. E ela é inevitável, qualquer grande potência será responsabilizada ou atacada por políticos, porque as pessoas começam a se preocupar com essa ascensão —do mesmo jeito que aconteceu com os Estados Unidos.

O senhor já chamou a atenção para o fato de que a conta no Twitter da embaixada da China no Brasil tem, agora, mais seguidores do que a da embaixada dos Estados Unidos. Como os chineses estão conduzindo essa nova diplomacia pública mais assertiva no Brasil?

Existe uma nova orientação de Pequim, que é claramente visível quando se vê o comportamento de diplomatas chineses em outros países também, na Escandinávia, na Alemanha. O mais importante para a China agora é não deixar sem resposta influenciadores ou autoridades que buscam associar o vírus à China.

Aí tem uma resposta dura, e muito mais dura do que antes. Antigamente, quando alguém falava mal da China, às vezes eles respondiam "gostaria de ressaltar a importância da nossa amizade", mas nunca com ataques específicos. Agora, buscam aumentar o custo de falar mal da China, e estão conseguindo.

Os casos de Eduardo Bolsonaro e Abraham Weintraub revelam que a China não foge mais do confronto e que sabe que muitos grupos dependem da boa relação com a China. A embaixada recebeu cartas de governadores, de líderes empresariais e do agronegócio pedindo desculpas. Isso fragiliza muito o Brasil.

Aí, o [presidente Jair] Bolsonaro tem que ligar para o [líder chinês] Xi Jinping para pedir desculpas, possivelmente no meio de uma negociação sobre quantidade de compra de soja ou sobre a questão da Huawei, e é nesse momento que a China pode fazer avançar muito seus interesses. A China sabe aproveitar esses momentos, esses comentários negativos têm um custo.

Agora, muita gente acha que o bolsonarismo inventou a sinofobia, mas isso é global. Em países da África, por exemplo, falar mal da China faz parte da política doméstica, criticar a China pode te eleger. A China compreendeu essa nova dinâmica, de que ela sempre estará no meio do debate doméstico, então ficar calada não é mais uma opção.

O caso de Eduardo e Weintraub teve repercussão entre o eleitorado de Bolsonaro, Weintraub se consolidou no governo ao atacar a China. A China percebeu, com isso, que a sinofobia no Brasil veio para ficar.

Além de o embaixador chinês ter dados respostas duras aos ataques de Eduardo Bolsonaro e Weintraub, houve relatos de que a China iria reduzir a compra de soja brasileira –embora não esteja claro se isso faz parte do acordo com os EUA para chegar a uma trégua na guerra comercial entre os dois países. Pode haver retaliações mais práticas às declarações das autoridades brasileiras?

Acho difícil a China utilizar compras de soja para mandar sinais diplomáticos, é um assunto muito importante pra eles. A China não é autossuficiente do ponto de vista alimentar nem energético, essas questões são o coração do projeto diplomático chinês. Eles não são de brincar muito com esses fornecedores, e um exemplo é a Venezuela, com quem Pequim mantém laços. Não acho que vai passar muito pela via comercial.

O Brasil é meio que um assunto colateral em uma negociação muito mais importante com os Estados Unidos. Se a China decidir comprar mais ou menos soja, vai ser sempre em relação ao governo Trump. Mas o que pode acontecer, sim, são empresários chineses ficarem mais inseguros em relação a investimentos. Se [a hostilidade em relação à China] continuar, podemos ter uma situação em que leva mais tempo para uma empresa brasileira conseguir a emissão de um documento para investir na China. Ficará tudo mais difícil, as coisas não funcionarão tão bem como antes.

E a China simplesmente aproveita essas situações para avançar interesses em outras áreas na relação bilateral. Xi Jinping recebeu telefonema do Bolsonaro e três dias depois, o general Augusto Heleno disse que a Huawei poderá participar [da infraestrutura de 5G no Brasil]. É mais elegante do que dizer não compro mais a soja de vocês, porque vocês falaram mal da gente. Se uma parte do governo ataca, e a outra fica desesperada, essa ala fica muito mais disposta a fazer concessões em uma negociação, porque está com medo de a relação piorar. Essa divisão interna enfraquece muito a posição de negociação do Brasil com a China.

Além da Huawei, que outros temas prioritários o governo chinês pode tentar fazer avançar, aproveitando-se dessa fragilidade e divisão dentro do governo brasileiro?

A Huawei é o caso mais importante. É visto como o projeto central da diplomacia chinesa neste momento. Mas, no caso brasileiro, outra prioridade seria evitar que o Brasil copie todas as posturas críticas dos EUA à China, evitar que o presidente se posicione de maneira negativa em relação à China.

Impedir que o Brasil adote essas posturas em outras áreas –por exemplo, questionando por que Taiwan não faz parte da OMS?

A China não tem ilusões de conseguir apoio brasileiro em órgãos multilaterais, mas querem basicamente que o Brasil não se alinhe sempre aos EUA em embates que serão cada vez mais frequentes.

O fortalecimento do nacionalismo neste momento e o contexto de lei da selva, em que países pagam mais para “roubar” encomendas de equipamentos médicos destinadas a outras nações, vão continuar após a pandemia?

Em momentos de crise, as pessoas se dão conta de que o Estado é a estrutura principal. Outras coisas podem ser relevantes em outros momentos, mas, na hora agá, é o Estado que protege. As indústrias vão dizer: não podemos comprar de fora, precisa ser produzido aqui dentro, pode haver outra pandemia. Os EUA, por exemplo, compravam uma enorme porcentagem de seus medicamentos da China. Isso certamente acabou.

Esse ressurgimento do nacionalismo é uma resposta a essa sensação de instabilidade. Essa tendência veio para ficar, e é preciso reconhecer que, neste momento, o Estado tem um papel fundamental. Na América Latina, vai surgir o debate sobre controle de capitais, substituição de importações, nacionalização de alguns setores. Mesmo na Europa, a União Europeia está discutindo comprar participações em setores-chave para impedir que a China assuma o controle em empresas estratégicas. Cada vez mais são os aspectos geopolíticos que guiam as decisões, e não os aspectos econômicos —e obviamente o Estado é o ator central.

Alguns governos, como o de Viktor Orbán, na Hungria, de Rodrigo Duterte, nas Filipinas, e de Binyamin Netanyahu, em Israel, estão se aproveitando da pandemia para acumular poderes. Isso mudará após o fim da crise?

Essas crises aceleram tendências pré-existentes. Tudo isso já estava acontecendo, não foi uma surpresa a escalada autoritária de Orbán, ele vem trabalhando nisso há bastante tempo. Netanyahu e Duterte também.

Isso dificilmente será revertido, porque, a partir de agora, sempre se pode defender posturas autoritárias em nome da saúde pública, dizer que a doença pode voltar, a segunda onda está chegando. Em países com instituições frágeis é um risco, e veremos outros países onde a democracia deve passar por um processo de erosão, como a Polônia, por exemplo. E, até em democracias robustas, a necessidade de obtenção de dados dos cidadãos aumentou —para monitorar a saúde pública. Numa democracia funcional e com liderança com convicções democráticas, isso não é um risco. Mas pode haver um futuro governo que tenha acesso a essa informação e a use para perseguir, para tolher a liberdade de expressão.

Como o Brasil deveria se posicionar em relação a China e aos EUA?

O Brasil deveria ter noção de que pedir ajuda à China neste momento, em vez de atacá-la, não significa estar de acordo com a política interna chinesa. O Brasil é um dos poucos governos do mundo que, nesta situação de pandemia, ataca de maneira muito direta o governo chinês.

A longo prazo, equilibrar-se entre as duas potências será crucial. Será um desafio, e a questão da Huawei dificulta essa postura mais neutra. Deixar de se envolver sem necessidade em conflitos entre esses dois é algo fundamental e difícil, pois há uma politização desses temas, uma nova guerra fria. Mas é bom lembrar que foi Ernesto Geisel quem estabeleceu relações diplomáticas com a China em 1974. O então chanceler Azeredo da Silveira o convenceu de que era uma atitude pragmática, e não tinha nada a ver com sua preferência política. Do mesmo jeito foi com Richard Nixon, que também estabeleceu relações com Pequim, e era de direita, ninguém poderia acusá-lo de ter simpatia pelos comunistas.

Bolsonaro podia ter um momento Nixon?

Bom, o [vice Hamilton] Mourão até tentou... Mas está tudo tão louco que já disseram que o Mourão é comunista.

O senhor brincou que o Brasil é um dos quatro integrantes da aliança dos avestruzes –ao lado de Turcomenistão, Nicarágua e Belarus, únicos países que negam a gravidade da pandemia do coronavírus. Qual é o reflexo disso sobre nosso soft power?

Isso automaticamente inviabiliza qualquer postura de liderança do Brasil no maior desafio que o mundo enfrenta neste momento. Ninguém olha para o Brasil e diz "nossa, o governo brasileiro está lidando bem com a crise".

Em diplomacia, os desafios são oportunidades de você mostrar sua capacidade, e o Brasil exclui a possibilidade de essa crise servir para demonstrar a competência brasileira. É uma oportunidade perdida que gera a percepção de que o Brasil vive numa realidade paralela.


Nas entrelinhas - Uma crise instalada - LUIZ CARLOS AZEDO

Correio Braziliense - 14/04

”A queda na arrecadação é tratada por Bolsonaro como uma espécie de castigo aos governadores que estão defendendo o isolamento social”


O choque entre o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, é a face mais visível de uma crise de maiores proporções entre a União e os estados, numa recidiva da velha contradição centralização versus descentralização. A epidemia de coronavírus e a recessão mundial dela decorrente exacerbaram o conflito, que se manifesta na discussão sobre aprovação do chamado Plano Mansueto, ou seja, a ajuda a estados e municípios. Bolsonaro está em litígio aberto com os governadores e prefeitos que estão na linha de frente do combate à epidemia de coronavírus e não esconde o incômodo com o alinhamento entre eles e o ministro Mandetta.

Uma decisão de Bolsonaro é emblemática quanto às dificuldades que cria para os governadores na implementação da estratégia de distanciamento social adotada pelo Ministério da Saúde para conter a velocidade da epidemia. No fim de março, as operadoras de telecomunicações ofereceram ao Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) um mapa de calor para mostrar a geolocalização da população. O intuito era identificar aglomerações e situações de risco de contaminação do novo coronavírus. Bolsonaro vetou o uso das informações, que seria mais uma arma no combate à Covid-19, pois o georreferenciamento permite a pronta atuação das autoridades locais para reduzir essas aglomerações.

O ministro Marcos Pontes chegou a gravar um vídeo anunciando a implantação do sistema nesta semana. No sábado, porém, Bolsonaro ligou para Pontes e suspendeu tudo. Alegou que há riscos para a privacidade do cidadão e que a Presidência precisa estudar melhor o tema, apesar de um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) aprovar o uso da ferramenta proposta pelas teles, uma solução semelhante à que foi adotada pela Coreia do Sul, um dos países com menores taxas de mortalidade pela Covid-19.

A decisão de Bolsonaro tem endereço certo: o governador tucano João Doria, que está controlando o nível de isolamento social no estado de São Paulo pelo monitoramento dos celulares. Para se ter uma ideia de como isso é útil, a diferença de 50% para 70% da população em regime de distanciamento social, para efeito da propagação da epidemia por pessoa, salta de uma média de dois para quatro novos contaminados, ou seja, um crescimento exponencial.

Nada disso importa. A tese que empolga Bolsonaro é a do ex-ministro da Cidadania Osmar Terra, para quem a epidemia já atingiu o seu pico e entrará em declínio, acabando em maio, o que não bate com os modelos matemáticos da equipe do Ministério da Saúde. Segundo Terra, que é médico, o isolamento social não tem eficácia e apenas aprofunda a recessão, além de retardar a autoimunização da maioria da população. A tese também está sendo endossada pelo líder do governo na Câmara, deputado Victor Hugo (PSL-GO), que vem defendendo abertamente a saída de Mandetta do governo. Ontem, Mandetta não falou com a imprensa. Sua permanência no governo é incerta.

Ajudas

A estrela da entrevista de ontem no Palácio do Planalto foi a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, que anunciou medidas destinadas a proteger grupos de risco, como indígenas, quilombolas, ciganos, moradores de rua e idosos em asilos. Damares também contrariou a orientação do Ministério da Saúde e defendeu o chamado isolamento vertical, ou seletivo, focado nesses grupos. Na ocasião, anunciou a distribuição de cestas básicas e o confinamento de tribos indígenas, quilombolas e acampamentos ciganos, além de uma rede de proteção aos moradores de rua e outras populações de risco, formada por instituições filantrópicas e religiosas.

Mas o maior conflito é mesmo a negociação do Plano Mansueto. O ministro da Economia, Paulo Guedes, convenceu Bolsonaro a não ceder a governadores e prefeitos, que pedem socorro financeiro em razão da queda da arrecadação. Eles são responsabilizados pela recessão e o desemprego. A queda na arrecadação é tratada por Bolsonaro como uma espécie de castigo aos governadores que estão defendendo o isolamento social.

As negociações entre o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e os líderes partidários com o governo, nos últimos dias, foram muito tensas. Guedes foi duro: “O desenho deste projeto é muito perigoso, é um cheque em branco para governadores e prefeitos fazerem uma gestão descuidada, levando todo ônus para o contribuinte, justamente no momento em que mais precisamos da boa gestão para proteger os mais vulneráveis”, declarou.

Rodrigo Maia, entretanto, articulou mudanças no projeto para garantir a aprovação da nova versão do chamado Plano Mansueto, que foi limitada à instituição de um seguro-garantia de arrecadação para estados e municípios, com impacto estimado de R$ 80 bilhões. “A posição que ouvi majoritária entre os líderes é que nós façamos como se fosse um seguro. Se arrecadação era 100 e caiu pra 70, o governo recompõe 30. Se daqui a quatro meses a arrecadação era 100 e foi 100 (novamente), o governo não precisa dar um real”, afirmou Maia.

Uma aposta em Bolsonaro - JOSÉ CASADO

O Globo - 14/04

A médica que morreu do vírus do qual desdenhou


‘O coronavírus vai invadir o Brasil”, ironizou numa rede social às 16h32m de quinta-feira, 12 de março. Atendia à incitação do presidente para protestos contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal.

O sorriso largo no rosto cheio indicava uma mulher de bem com a vida. Aos 65 anos, viu em Jair Bolsonaro a referência da sua identidade política.

Visitava a filha em Fortaleza. Médica há 40 anos, trabalhava no interior e duvidava da “pandemia” anunciada na véspera (11/3), pela OMS. Existiam 83 casos no país, nenhum no Ceará. E Bolsonaro falava em “muita fantasia” (10/3), insistindo: “Outras gripes mataram muito mais” (11/3).

Celebrou o presidente na catarse antipolítica (15/3) organizada por grupos autoproclamados de direita. Às 13h41m do dia seguinte, repetiu a “lógica” presidencial: “Existem vírus muito mais potentes e que matam muito mais (H1N1 por exemplo) e ninguém está nem aí... Porque será??????” E acrescentou:

“Nenhuma morte ainda registrada do coronavírus no Brasil, mas a imprensa já matou quase a metade da população.” Mais tarde foi anunciada a primeira morte. Bolsonaro vangloriava-se: “Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar.”

Seguiu para casa, em Iguatu, a 370 quilômetros, na beira do Jaguaribe. A cidade foi fundada por pecuaristas expulsos do litoral açucareiro no início do século XVII. Tem 102 mil habitantes e é um polo educacional.

Na sexta (27/3), antes de voltar ao Posto de Saúde da Família de Gadelha, na zona rural, anunciou uma carreata no Recife, a 670 quilômetros de distância: “Todos precisam que o Brasil volte a funcionar, já!” Bolsonaro insistia: “Outros vírus já mataram muito mais.”

Atravessou os dias seguintes na batalha contra a Covid-19. Já não era médica, mas vítima. Lucia Dantas de Abrantes morreu na sexta (10/4). O presidente já tem novo “diagnóstico” da pandemia, adequado à sua luta contra o ministro da Saúde: “Está começando a ir embora.” Ontem, o número de mortos ultrapassou 1,3 mil.

O vírus não espera decisões complicadas - JOSÉ PASTORE

O Globo - 14/04

Qual pequeno empresário dormirá sossegado após fazer acordos que podem ser questionados pelos sindicatos?


Imaginem uma empresa que precisa faturar hoje para pagar as contas amanhã. Fechada, sem vendas e sem faturamento, ela só pagará suas contas se o empresário tiver uma boa poupança. Esse é o caso das grandes corporações, mas não é o que ocorre com 82% das empresas brasileiras — pequenas e médias —que respondem por uma enormidade de empregos. Pesquisas recentes do Sebrae indicam que essas empresas aguentam, no máximo, 12 dias.

O governo lançou inúmeras medidas para acudir as pequenas empresas brasileiras com crédito, diferimento de pagamentos, isenções de impostos e contribuições etc. No campo trabalhista, abriu para elas duas possibilidades de aliviar suas responsabilidades em relação à folha de pagamentos. A Medida Provisória 936 contempla a redução de jornada e a suspensão do contrato do trabalho.

Reconhecendo o clima de catástrofe criado pela pandemia do coronavírus, empregados e empregadores têm a liberdade para fazer acordos individuais simples e expeditos para salvar os empregos. A velocidade é crucial para enfrentar um vírus ágil e competente.

O ministro Ricardo Lewandowski, do STF, em liminar, desejava que a redução de jornada e a suspensão de contrato de trabalho tivessem o aval dos sindicatos, pouco se importando com a demora exigida pela CLT. Ontem, reformou sua própria liminar para dizer que os acordos individuais valem, mas que os sindicatos não são arquivistas e que podem provocar as empresas para fazer acordos coletivos diferentes dos individuais.

A insegurança jurídica permaneceu. Qual é o pequeno empresário que vai dormir sossegado depois de fazer dezenas de acordos individuais sabendo que os mesmos podem ser questionados pelos sindicatos? Ou seja, a livre negociação direta entre empregados e empregador constante da MP 936 não teria nada de definitivo.

Lewandowski, com aguçada esgrima, revogou sem revogar. Numa hora de desespero, ele complicou o processo, dando um tiro no peito dos trabalhadores cujos empregos poderiam ser salvos por meio de um acordo individual simples, direto e temporário.

Consta que já foram realizados quase 300 mil acordos individuais à luz da MP 936. Com isso, foram salvos centenas de milhares de empregos. Imaginem a insegurança de quem firmou esses acordos se prevalecer a nova versão de Lewandowski!

As variações interpretativas do nobre ministro, com todo o respeito, farão as pequenas e médias empresas darem um passo atrás. Inseguras e não tendo fôlego para aguentar esse clima de insegurança, muitas vão partir para demissões em grande escala, não raro, sem pagar as verbas rescisórias por absoluta falta de recursos decorrente da paralisia econômica ora em andamento e sem data para terminar.

Se vingar, a nova “tese” do ministro Lewandowski provocará um flagelo. O próprio governo estima que serão acrescentados 12 milhões de desempregados em cima dos 12 milhões atuais. São quase 25% da força de trabalho! Um drama que só ocorreu nos Estados Unidos na crise de 1929.

Lembro que o empregado despedido hoje não encontrará trabalho (nem informal) por muitos meses. E, para obter as verbas rescisórias, terá de esperar um ano ou mais na Justiça do Trabalho.

É um drama de proporções gigantescas. Ao desconsiderar o estado de guerra criado pela pandemia e ignorar a situação quase falimentar da maioria das pequenas e médias empresas, o ministro Lewandowski deixou-as sem escolha. Na ausência de receita, sem capital de giro e sem perspectivas de breve recuperação e no meio de tanta insegurança, elas serão forçadas a demitir.

Estou certo de que os demais ministros do STF entenderão a destruição econômica e social que um sistema confuso e complexo como o proposto por Lewandowski provocará em todo o Brasil. O governo fez o que pôde. Criou ferramentas simples, ágeis, expeditas e com prazo certo para aliviar o desemprego. Não há por que não usá-las.

José Pastore é professor da Universidade de São Paulo

Ressurreição - ANA CARLA ABRÃO

ESTADÃO - 14/04

A crise é urgente, mas seus impactos podem ser mais ou menos duradouros

O domingo de Páscoa marca a mais importante celebração cristã, a ressurreição de Jesus, ápice da Paixão de Cristo. A data coincide com a Páscoa judaica, ou Pessach, tradição milenar que comemora a libertação do povo hebreu. Segundo o Livro do Êxodo, a Páscoa Judaica aconteceu pouco antes da décima praga se abater sobre o Egito, matando todos os primogênitos daquela terra.

Libertação ou ressurreição, a Páscoa – cristã ou judaica – deste ano de 2020 passará para a história pela intensidade que esses significados assumiram, nos convidando a reflexões inéditas. A dimensão da crise de saúde pública e da recessão econômica que se desenha, levam à revisão de conceitos e a novas experiências que certamente transformarão o mundo e o Brasil – para o bem e, a depender das respostas à crise, talvez também para o mal.

O Brasil foi atingido pelo surto de covid-19 em situação econômica muito distinta daquela que nos caracterizava no fim de 2008, quando a crise financeira mundial se abateu sobre o País. O PIB daquele ano cresceu 5,1%, após uma queda de 3,6% no último trimestre de 2008 em comparação com o trimestre anterior. Em 2007, o crescimento havia sido de 6,1%. Em 2019, em contraste, ficamos com um frustrante 1,3% de crescimento e abrimos o ano de 2020 com perspectivas de pouco mais de 2%. Essas estimativas já estão sendo revistas para quedas em torno dos 5% estimados pelo Banco Mundial para o Brasil.

Outros indicadores, como os níveis de dívida líquida (12 pontos de porcentagem mais alto agora), desemprego (11,2% agora, comparativamente aos 7,9% em 2008) e informalidade de 41%, frente aos 28% em 2008, segundo o IBGE, também apontam para uma fragilidade econômica muito maior.

Não por coincidência, nosso mercado de ações apresentou uma das maiores quedas dentre os mercados mais importantes, atingindo uma perda média de 40% entre 21 de fevereiro e 23 de março. Uma economia frágil se reflete em perda de confiança, que se reflete em destruição de valor. As maiores perdas se concentram nos setores diretamente afetados pela crise, como o setor aéreo, mas também não pouparam os outros setores, mostrando a característica de espalhamento da crise e sua disseminação por toda a cadeia produtiva, diferentemente da crise de 2008.

As respostas emergenciais vieram. Governos federal, estaduais e municipais se mobilizaram no combate à crise. O Congresso tem agido de forma ágil. O setor privado se juntou como nunca antes numa grande rede de filantropia. Vide o exemplo dos acionistas do Itaú Unibanco, com a doação histórica de R$ 1 bilhão para o combate à crise. A falta de coordenação por parte do governo federal certamente comprometerá a eficácia de algumas das ações. Mas esse vácuo começa a se mostrar cada vez menos relevante à medida que lideranças políticas e da sociedade civil vão assumindo papel protagonista e outras diferentes de coordenação vão tomando forma.

Mas há que se tomar cuidado e tentar qualificar as ações. Afinal, a crise é urgente e seu fato gerador deverá ser, quiçá, temporário. Por outro lado, os impactos deverão ser mais ou menos duradouros a depender da efetividade e foco das ações. Quanto mais evitarmos resolver de maneira oportunista problemas de outra ordem e que nada têm a ver com a atual crise, maiores as chances de emergirmos de forma mais organizada desse grave episódio. Mais oportunistas e menos focadas, maiores as chances das ações representarem apenas o agravamento da crise fiscal que já nos acompanha há anos. E aqui destacam-se as discussões sobre o socorro aos Estados e o desvirtuamento de uma solução estrutural como o Plano Mansueto, há meses repousando no Congresso Nacional e agora ressuscitado.

Não há dúvidas de que os Estados precisam de recursos e de salvaguardas para evitar seu colapso frente à queda na arrecadação em função da brusca interrupção da atividade produtiva. Isso deverá se dar via transferências diretas e também por meio da garantia de que as perdas tributárias serão recompostas pelo Tesouro Nacional durante o período necessário para o enfrentamento da crise e de suas consequências.

Ações adicionais de socorro à economia e ao crédito no nível federal também deverão ser desenhadas. Mas pendurar aí perdão de dívidas passadas e permissão para endividamentos novos em níveis incompatíveis com a capacidade de geração futura de receita desses entes, equivale a fomentar o descontrole fiscal e validar a irresponsabilidade passada, e não a apoiar os gastos que sabemos necessários e urgentes. Confundir as duas coisas equivale a comprometer nossa capacidade de recuperação no futuro e a perpetuar a crise que por si só já é muito grave e profunda.

Há que se garantir que regras e conceitos sejam respeitados e também que as bases das nossas instituições fiscais sejam respeitadas. Somente elas nos garantirão a possibilidade de – assim como nas Páscoas cristã e judaica –, passada a quarentena, nos libertarmos desse vírus e ressuscitarmos nossa economia.

ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN.

Presidente louco - MERVAL PEREIRA

O Globo - 14/04

A questão é a certeza de que, se demitir Mandetta, Bolsonaro nomeará quem pensa como ele sobre a Covid-19


Não é a primeira vez. Tivemos mesmo uma Rainha Louca, Maria I, Rainha do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Já tivemos presidentes considerados loucos. Um tinha olhar de doido, outro se comportava como tal. Mas Delfim Moreira, presidente entre 1918 e 1919, foi o único até agora a ser clinicamente considerado louco. Vice na chapa de Rodrigues Alves, Delfim Moreira assumiu a presidência por causa de sua morte, que teria sido vítima da gripe Espanhola.

Mas a loucura de Delfim Moreira era mansa. Às vezes colocava seu fraque, com todas as condecorações, preparado para uma solenidade que não havia. Certa vez, conta a lenda, foi visitado por Ruy Barbosa, mas ficou olhando atrás da porta, abrindo-a e fechando-a. O que teria feito Ruy Barbosa comentar: “Que estranho é o Brasil, onde até um louco pode ser presidente e eu não posso”, referindo-se à eleição presidencial que perdera.

Bolsonaro não sai à rua de fraque, mas provoca mais estragos apertando a mão de incautos. O Código Penal, no seu capítulo III, que trata “ Dos crimes contra a saúde pública”, o artigo 268 (infração de medida sanitária preventiva) define como crime “Infringir determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doenças contagiosas.”

Como o presidente da República encarna o próprio poder público, estamos numa dessas enrascadas que só acontecem abaixo do Equador. Da mesma gravidade de termos um presidente que luta contra determinações de seu próprio governo, representado nesse caso pelo ministério da Saúde.

Essa disputa que politizou o combate à Covid-19 continua em curso, e não se sabe onde vai parar. O tom da entrevista do ministro Luiz Henrique Mandetta ao Fantástico no domingo foi uma reação sua à humilhação pública a que o presidente o submeteu, desta vez em pessoa, na visita que fizeram juntos a um hospital de campanha que está sendo construído no interior de Goiás.

Diante da insensatez de Bolsonaro, de mais uma vez ir ao encontro de populares, apertar-lhes a mão e até beijar, tanto Mandetta quanto o governador Ronaldo Caiado, que, rompido com o presidente, deu-lhe álcool gel para passar nas mãos como boas vindas, sentiram-se afrontados. Caiado é médico e foi o principal avalista de Mandetta para a Saúde.

Uma semana depois da primeira crise, a possibilidade de Mandetta ser demitido por Bolsonaro voltou à cena política, e ainda está no radar de parlamentares e assessores palacianos. Os ministros militares, que da primeira vez intervieram para evitar a demissão, hoje já estariam com outro olhar, pois Mandetta teria quebrado a hierarquia ao criticar, mesmo indiretamente, o presidente da República.

A mudança em si não é uma questão, pois não há dúvida de que o presidente da República pode demitir e nomear quem ele quiser, muito embora o então presidente Temer não tenha conseguido nomear a deputada Cristiane Brasil para o ministério do Trabalho, porque ela respondia a processos no próprio ministério que dirigiria.

A questão da saúde agora é a certeza de que, se demitir Mandetta, o presidente Bolsonaro nomeará alguém que pensa como ele sobre o combate à Covid-19, provavelmente o deputado Osmar Terra, ou o presidente da Anvisa Antonio Barras Torres.

A nomeação em si pode não ser judicializada, mas as decisões que o novo ministro vier a tomar, sim. No momento em que o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) Tedros Adhanon Ghebreyesus reafirma que o isolamento social é a única saída para combater a Covid-19, e que a retomada das atividades tem que ser planejada cautelosamente, qualquer mudança de política no sentido de encerrar o isolamento social provavelmente será contestada no Supremo Tribunal Federal (STF) ou no Congresso.

Como alertou o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, o que o presidente não pode fazer é adotar uma política genocida. Nesse caso, teremos uma crise institucional encomendada.

A peste moral (teatro) - CARLOS ANDREAZZA

O Globo - 14/04

Curva do debate público brasileiro se achata


Elementos do enredo farsesco e alegorias para um arco trágico: crise sem precedentes; depressão econômica a caminho; “imaginação totalitária” (conforme Francisco Razzo) imperando; jacobinistas de repente apaixonados por garantias constitucionais; súbitos defensores do direito de ir e vir protestando —farreando o carnaval da vida banalizada — com caixões cenográficos nas avenidas; presidente da República, com plano de saúde, investindo no (convidando ao) rolê; povo, sem plano de saúde, saindo às ruas para trombar com o pico do contágio e, talvez, tombar em caixões de verdade; governador, em defesa da vida (e para antagonizar com um fã de Brilhante Ustra), ameaçando prender quem lhe desafie a norma e ouse circular livremente.

Compõe a trama também — glória do populismo — a luta de classes, forjada artificialmente pelo bolsonarismo, ante uma pandemia. De um lado, o pobre que quer comida — pobre defendido por (virada dramática) Jair Bolsonaro, aquele outrora contrário ao Bolsa Família, doravante preocupado com o pão na mesa do desvalido. De outro, o rico — sai da bolha!— que quer o pobre em casa, passando fome, morrendo de fome, mas sem lhe transmitir doença. Importante realçar esta marca de personalidade do abastado egoísta: se mostrar preocupação com o colapso do SUS, estará mentindo. Relevante também — para a correta caracterização das nuances — que esse alienado não seja confundido com o empreendedor dinâmico que quer o povo no trem, no rumo do batente, imunizando-se enquanto trabalha para gerar riqueza.

Hora de apresentar os artistas do espetáculo: o vírus chinês (comunista, outrora gripezinha), o isolamento social caviar (luxo elitista, coisa de governador almofadinha) e o remédio do Bolsonaro, a cloroquina (ainda carente de chancela científica, mas já largamente ministrada para a exploração personalista) — contra cuja eficácia os céticos torcem porque seu sucesso seria uma vitória do presidente.

Todo esse elenco de bárbaros a se bater sob a discreta direção da mentalidade autoritária, aquela graças à qual — sem percebermos — passamos a considerar normal, até mesmo bom, que um irresponsável autoritário eleito seja tutelado por generais; ou que, como resposta à sociopatia de um governante, outro fale em encarcerar os que furarem uma quarentena. (Sim, sei que há base jurídica no Código Penal; da mesma forma que, na Constituição, estão previstos os recursos aos estados de defesa e de sítio.)

Tratemos, portanto, da trilha sonora. Democratas — se democratas forem — devem atentar à música que põem para tocar em tempos de exceção. Convém não se esquecer do guarda da esquina. O concurso por quem pode mais em compasso excepcional convida ao baile dançarinos que não se deveria querer no salão. Ou, como explicaria Bolsonaro (em idioma próprio), “para toda ação desproporcional a reação também é forte.”

Falemos sobre iluminação — que não equivale a luzes. Todo esse plantel de autocratas por vocação (ou ignorância) e de golpistas em potencial a encenar tamanha comédia no mais absoluto escuro — isto enquanto o Ministério da Saúde do doutor Mandetta (o herói por contraste, homem modesto cuja simples razoabilidade, por oposição ao chefe, erigiu um Oswaldo Cruz) continuar incapaz de responder a este breve conjunto de perguntas: quantos testes já foram aplicados no Brasil?; quantos são aplicados diariamente?; qual o critério para aplicação?

Assim se achata — pressionada pela miséria moral sanitária — a curva do debate público brasileiro. Politizamos vírus, reclusão e medicamento — essa baixaria toda enquanto tateamos no breu. É o que chamo de as pestes dentro da peste. Uma delas — talvez política de Estado: a subnotificação; aquela que, associada à quarentena, é prece ao autoritarismo. Prudência com a valsa, senhores democratas. Decretar isolamento social sem promover testes em massa — por meio dos quais projetar algum futuro relaxamento nas restrições — é concentrar poder excepcional, por tempo indeterminado, na mão do Estado. Há quem aprecie o clima.

A chaga da subnotificação; a mesma que abaliza o presidente quando diz que o pior já terá passado. Subnotificação que — até a imposição da realidade — alicerçará o discurso irresponsável de que a reação à Covid-19 era mesmo histérica e o bicho, não tão feio. Até lá, o bolsonarismo aloprará — cantará vitória — se valendo da ilusão estatística e se apegando a princípios que sempre desprezou (os constitucionais, por exemplo) para empurrar as gentes à normalidade; e a normalidade de uma pandemia é caos e cadáveres.

Atenção, senhores democratas: não mordam a isca. Bolsonaro — cuja compreensão de liberdade contempla ter torturador por ídolo — apenas instrumentaliza, como provocação, o direito fundamental de ir e vir. Não o queiram chamar para uma corrida pelo posto de quem pode lançar mais mão de canetadas discricionárias.

O Brasil depois da covid-19 - RUBENS BARBOSA

O Estado de S.Paulo - 14/04

Sociedade civil deveria começar a discutir estratégias internas e externas de médio prazo



Como é natural, a quase totalidade das análises e dos comentários na imprensa falada, escrita, nas TVs e na mídia social se concentra hoje nos grandes desafios internos para superar a crise provocada pelo coronavírus. Depois de a pandemia passar, o Brasil e o mundo serão outros.

Do ângulo interno, os desafios econômico-financeiros, sociais, de logística, de modernização do Estado, do fim dos privilégios, da violência e da corrupção vão ter de ser enfrentados como nunca antes. O Brasil deverá ser reconstruído. O orçamento de guerra determinou despesas indispensáveis para atender aos trabalhadores formais e informais e as empresas afetadas pela quase paralisia da economia doméstica e global. Como tratar o déficit publico e fiscal? Como sair da recessão? Como gerar crescimento e reduzir as desigualdades e o desemprego? Como ficará o equilíbrio federativo? A sociedade brasileira vai ter de enfrentar um período de decisões profundas sobre as prioridades nacionais, as contas públicas, o funcionamento do Estado, a reativação da economia, a reindustrialização, enfim, essas e outras vulnerabilidades que, diante da crise, ficaram evidentes.

As incertezas são crescentes. Segundo os ministros de comércio exterior do G-20, a economia global em 2020 poderá reduzir-se em 5% ou 6% e o comércio externo, entre 5% e 30%. Como evoluirão a economia e o comércio internacional? Como as duas maiores potências globais, EUA e China, serão afetadas? Como evoluirá a governança global - ONU, OMC, BM, FMI e OMS, entre outros organismos? Como evoluirão a globalização e a dependência dos países e das empresas da capacidade industrial da China nas cadeias produtivas globais? A interdependência vai prevalecer ou as tendências e políticas nacionalistas e isolacionistas dominarão? Como ficará a disputa entre China e EUA pela hegemonia global no século 21? Como reagirão os países emergentes, potências médias, entre as quais se inclui o Brasil? Como os países enfrentarão a desigualdade entre as nações e dentro de seus territórios, cada vez mais uma ameaça à estabilidade política e econômica? Qual será, no mundo, o lugar desse Brasil que emergirá? Como as grandes transformações econômicas, comerciais e políticas afetarão os interesses nacionais? Como o Brasil se posicionará no contexto hemisférico e regional? Como o Brasil deveria reagir se a confrontação EUA-China continuar a se ampliar? Como o Brasil poderá contribuir para o fortalecimento da governança global? Como ficarão as políticas em relação ao meio ambiente e à mudança de clima em face da nova importância nas negociações comerciais, como Mercosul-União Europeia?

Levando em conta o peso da economia nacional, em especial no setor do agronegócio, e a necessidade de melhorar a competitividade do setor industrial e de serviços, com a tendência de descentralização da produção industrial da China, é provável que surjam oportunidades de investimento. Para isso - para competir com países em melhor posição, como Vietnã e outros asiáticos - os problemas internos políticos, econômicos e sociais deveriam ser rapidamente enfrentados para fortalecer a capacidade produtiva nacional. O Brasil vai depender de uma sólida base nacional para competir e para isso deverão ser adotadas medidas efetivas para reindustrialização e aumento da competitividade.

Controlada e superada a crise pandêmica, será importante ter uma visão estratégica de médio e longo prazos das perspectivas relativas à economia e à projeção externa do País. Todos os países vão estar afetados por crises em cascata. Como o Brasil poderá aproveitar as oportunidades e reduzir os riscos de modo a ter uma voz fortalecida no cenário internacional?

Não será fácil chegar a um consenso, pela polarização ideológica, pela divisão da sociedade brasileira e pela ausência de lideranças expressivas que possam inspirar essas discussões. O mundo não vai esperar pelo Brasil. A paralisia dos principais atores políticos e a falta de visão estratégica e de futuro levarão à marginalização e, mais uma vez, o País poderá perder uma oportunidade histórica para se afirmar como potência média a ser ouvida na defesa de seus interesses.

Em vista disso, a sociedade civil - empresários, trabalhadores, academia, junto com o Congresso, o Judiciário e o Executivo - deveria começar a discutir uma estratégia de médio prazo nas áreas interna e externa.

Pensando no Brasil em primeiro lugar e deixando de lado ideologias, os Ministérios da Economia, Agricultura, Itamaraty, SAE, Meio Ambiente e Infraestrutura, em especial, além da Escola Superior de Guerra, e os (poucos) think tanks existentes deveriam somar esforços e iniciar uma discussão com propostas e ações visando ao emprego e ao crescimento para serem postas em vigência em caráter emergencial no pós-pandemia. Um conselho gestor da reconstrução poderia ser criado para coordenar as “medidas de guerra”, que deverão ser tomadas - é bom lembrar - no período que antecede as eleições presidenciais de 2022.

O Brasil é uma das dez maiores economias do mundo e devemos agir como tal, tendo como objetivo, pelo menos, manter o País nessa categoria.

Desde já, mãos à obra!

Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)

Meu Brasil brasileiro - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 14/04

O Brasil é o único país no mundo em que há carreatas contra o isolamento e pró-pandemia



Só num país, entre os mais de 190 existentes no mundo, pessoas fazem carreata contra o isolamento social, riem do coronavírus, desdenham da doença e da morte ou dançam na rua com uma imitação de caixão em plena pandemia. Não há registro de algo tão macabro nos Estados Unidos, Itália, Espanha, França, Alemanha, Canadá, Argentina, Coreia do Sul...

Também não se consegue imaginar Donald Trump, Giuseppe Conte, Pedro Sanchez, Emmanuel Macron, Angela Merkel, Justin Trudeau, Alberto Fernandez ou Moon Jae-in indo às ruas alegremente, sem máscaras, causando aglomeração, misturando-se com incautos, tocando pessoas mesmo depois de tossir.

Com mais de meio milhão de casos oficiais de coronavírus e perto de cem mil mortes no planeta, já imaginaram Trump e Macron misturados com pessoas na rua ou num aeródromo? E que tal Merkel e Trudeau confraternizando displicentemente com manifestantes contra a Suprema Corte e o Congresso?

Bem, com o mandatário do Brasil o mundo todo já está acostumado. O que não tem explicação e a compreensão geral não alcança é por que pessoas com razoável escolaridade se metem em carrões, caminhonetes e motocicletas para protestar contra o isolamento e exigir que os trabalhadores enfrentem o coronavírus, cara a cara.

O ministro da Saúde grita “isolamento, isolamento, isolamento” para o seu paciente Brasil. E “trabalho, trabalho, trabalho” para ele próprio, que é médico, está dormindo e acordando com a pandemia e sabe da gravidade da situação – e como é muito diferente o vírus se espalhar entre os bem nutridos, como agora, e entre miseráveis que se amontoam em casebres insalubres, como fatalmente vai acontecer.

O que essas pessoas das carreatas têm na cabeça? Elas fecham os olhos e os ouvidos para as informações de todo santo dia, toda santa hora, sobre a disseminação e as mortes? Não sabem que milhares de pessoas morrem todos os dias no mesmo planeta que abriga o Brasil? Ou elas sabem, estão bem informadas, mas acham mesmo que morrer umas 5 mil, 6 mil pessoas não tem nenhum problema? Desde que sejam pobres, evidentemente.

O presidente da República diz que o vírus e essa gripezinha já estão indo embora. O ministro da Saúde diz que os tempos “mais duros” serão entre maio e junho. A quem os brasileiros devem ouvir? Isso confunde, desagrega, desorganiza e atrapalha os responsáveis por reduzir a disseminação e as mortes. Eles imploram por “paz para trabalhar”, como o ministro.

Não há a menor dúvida de que o coronavírus, além de ameaçar a saúde e a vida, é uma tragédia para indústria, comércio, empregos e renda das pessoas. O presidente está correto em reconhecer e advertir que a coisa vai ficar cada vez pior na economia – que pode entrar em recessão de até 4%, segundo o governo, ou 5%, de acordo com o Banco Mundial. A questão é que, sem isolamento, vai haver milhares de contaminados e mortos a mais do que o previsto. Isso não vai ajudar, só piorar a economia.

Não parece tão complicado de compreender, de tão lógico, o que reforça a dúvida, ou angústia: por que pessoas fazem carreata contra o isolamento e dancinha nas ruas em plena pandemia? Por ideologia, teimosia, fanatismo, perversidade? Por desdém pelas maiores vítimas em todas as circunstâncias, os mais pobres, os “invisíveis”?

Sinceramente, essa é a direita brasileira? Fanática, terraplanista, que desdenha de uma pandemia, brinca com a morte de entes queridos alheios, luta contra a realidade e reverencia mitos sem usar de senso crítico, racionalidade, humanidade? Não pode ser verdade. Apesar de escondida, certamente há uma direita moderna, inteligente e humana, que não aprova essas carreatas nem ódio na internet. Apresente-se, por favor!

É correto chamar Bolsonaro só de irresponsável? - RANIER BRAGON

FOLHA DE SP - 14/04

Como qualificar quem despreza a vida humana em nome da sobrevida política?


Se hoje o presidente da República batesse à porta das pessoas sugerindo estricnina para tratar cólicas, possivelmente não seria removido em uma camisa de força. Provavelmente surgiria aí um debate nacional. Especialistas de coisa nenhuma sairiam dos bueiros para adulá-lo, o bom senso se insurgiria, carreatas de novos e velhos ricos cafonas enfeariam as ruas e estaria instalada mais uma balbúrdia.

A atual pandemia já matou mais de 100 mil pessoas, com uma média subestimada de cerca de 100 mortos por dia no Brasil. Brincar com isso, desprezar isso, é só irresponsabilidade?

Entre um passeio e outro à padaria, Bolsonaro se insurge contra o mundo e busca sabotar o trabalho do ministro que se recusou a aderir ao batalhão dos paspalhos.
Bolsonaro durante visita ao Hospital de Campanha de Águas Lindas de Goiás - Marcos Corrêa/PR

Em um caso que envolve vidas, muito mais de cem mil, você prefere estar ao lado da ciência, do bom senso, da razão ou ao lado da ala cafajeste do empresariado e de gente como o profeta Osmar Terra, que há alguns dias disse que a Covid-19 mataria menos gente do que a gripe sazonal do Rio Grande do Sul. Era uma aposta corajosa, que, em suas próprias palavras, poderia desmoralizá-lo por completo —e nesse ponto não podemos negar que ele estava coberto de razão.

Poupem-me da suposição de que Bolsonaro esteja preocupado com os miseráveis. Em toda a sua longa carreira política,só se lembrou de pobres para defender a sua esterilização em massa. O presidente nem esconde que seu real temor é ser culpado pela debacle econômica, levando seu governo, de vez, para o beleléu.

Não há, em um momento como esse, "ninguém em sã consciência preocupado com popularidade", assegurou nesta segunda (13) Sergio Moro, mestre em dizer pouco falando muito e em dizer muito não falando nada.

Embora também odeie artigos que deixam as perguntas no ar, transfiro ao leitor e à leitora a conclusão.

É correto chamar Bolsonaro só de irresponsável? Como diziam e dizem colegas muito mais gabaritados do que eu, cartas à Redação.

Ranier Bragon
Repórter especial em Brasília, está na Folha desde 1998. Foi correspondente em Belo Horizonte e São Luís e editor-adjunto de Poder.

O vírus e a república - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 14/04

Estamos muito longe da república ideal quando justamente o eleito para presidi-la se comporta como se não tivesse qualquer responsabilidade sobre o bem comum



O presidente Jair Bolsonaro resolveu mais uma vez contrariar as recomendações de isolamento social feitas pelo Ministério da Saúde para conter a pandemia de covid-19 e saiu a passear por Brasília na sexta-feira passada, causando aglomerações e mantendo contato físico com eleitores, atitudes que podem facilitar a transmissão do novo coronavírus. Nada indica que não tornará a fazê-lo quando lhe der na telha. Questionado sobre seu comportamento, o presidente respondeu: “Eu tenho o direito constitucional de ir e vir. Ninguém vai tolher minha liberdade de ir e vir. Ninguém”.

De fato, o direito de ir e vir está entre os direitos e garantias fundamentais de todos os brasileiros, conforme a Constituição. No entanto, diferentemente do presidente da República, a maioria dos cidadãos está cumprindo as determinações dos governos locais, baseadas em consenso médico e científico, para que permaneça em casa e de lá só saia em caso de necessidade. Ou seja, milhões de cidadãos aceitaram um limite temporário a seu direito constitucional de ir e vir em nome da preservação de um precioso bem coletivo, isto é, a saúde pública.

Essa é a essência da ideia de república, em que o desejo pessoal de cada indivíduo, por mais legítimo que seja, não pode se sobrepor ao interesse coletivo, expresso nas leis pactuadas por políticos democraticamente eleitos. Para que a república se realize plenamente, portanto, é preciso que seus cidadãos desenvolvam consciência cívica, isto é, tenham noção não somente de seus direitos, mas também, e sobretudo, de seus deveres.

Estamos muito longe da república ideal quando justamente o eleito para presidi-la se comporta como se não tivesse qualquer responsabilidade sobre o bem comum. Ao insistir na “volta à normalidade” muito antes do que a prudência recomenda, fazendo demagogia barata à custa da morte de milhares de compatriotas, o presidente Bolsonaro manda às favas seu dever irrenunciável de liderar os esforços para proteger a saúde da população diante da ameaça real da pandemia. Pior: inspira seus mais fanáticos seguidores a fazer campanha contra as determinações dos governantes estaduais e municipais destinadas a forçar o isolamento social.

Assim, não se trata somente de uma divergência em relação à melhor forma de enfrentar a pandemia; trata-se de uma verdadeira sabotagem aos esforços do Ministério da Saúde e de governadores e prefeitos para que o sistema hospitalar tenha condições de atender o máximo possível de doentes, poupando os médicos da terrível tarefa de ter que escolher quem viverá e quem morrerá.

Quando Bolsonaro, na condição de presidente da República, passeia por Brasília, confraterniza com simpatizantes e diz, no seu idioma peculiar, que “parece que está começando a ir embora essa questão do vírus”, estimula muitos brasileiros a imaginar que a crise esteja perto do fim ou que talvez não tenha a gravidade que as autoridades sanitárias – a começar pelo Ministério da Saúde – apregoam. Não à toa, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, queixou-se do comportamento do presidente em entrevista ao Fantástico. Ao defender um discurso “unificado” no governo, baseado na ciência e no bom senso, o ministro Mandetta disse que hoje o brasileiro “não sabe se escuta o ministro ou o presidente”.

Para os bolsonaristas radicais e o próprio Bolsonaro, contudo, não há dubiedade alguma. Não existe bem comum a ser preservado. Só existem os interesses particulares de Bolsonaro e de seus fanáticos seguidores, incapazes de aceitar os limites republicanos para suas vontades. Não por coincidência, são esses que vivem a vituperar contra as instituições republicanas, justamente aquelas que, felizmente, impedem Bolsonaro de realizar plenamente seu projeto de poder.

Afortunadamente, como mostrou um estudo de cientistas políticos divulgado pelo Estado, a maioria dos brasileiros – e dos eleitores de Bolsonaro – é favorável ao isolamento social pelo tempo que for necessário. Ou seja, o bolsonarismo antirrepublicano é minoritário mesmo entre aqueles que um dia votaram no presidente. Na hora da crise, a consciência cívica afinal parece falar mais alto – e as autoridades farão bem se ignorarem o alarido dos que só pensam em si mesmos.