terça-feira, julho 10, 2018

O plantonista amigo - EDITORIAL O ESTADÃO

O plantonista amigo - EDITORIAL O ESTADÃO

10/07

Além de ser incompetente para interferir no processo de Lula e de desrespeitar decisão prévia do STF, o desembargador Favreto afrontou, como poucas vezes se viu, o bom Direito



A tentativa de membros do PT de obter ilegalmente a soltura do seu cacique Lula da Silva evidenciou desespero e irresponsabilidade, além de completo menosprezo pelo Estado de Direito. Ao longo do domingo passado, os brasileiros observaram, atônitos, uma manobra canhestra que, não fossem a prudência da Polícia Federal, que não deu cumprimento a uma ordem manifestamente ilegal, e a prontidão de alguns membros do Judiciário, que afinal desfizeram os atos de um desembargador desatinado, poderia ter conduzido o País a uma confusão maior do que a já reinante.

Os três autores do pedido de habeas corpus, em seu açodamento, esqueceram-se de que o réu, noutro habeas corpus impetrado por terceiro, havia desautorizado “qualquer forma de representação judicial ou extrajudicial em seu nome, que não seja através de seus advogados legalmente constituídos para representá-lo e defender os seus interesses”. Não podiam, portanto, pedir a liberdade de Lula.

Mas o plano mequetrefe de soltar o ex-presidente petista, burlando o juiz natural do caso, foi adiante pois estava de plantão - grande coincidência, para quem acredita nisso - o desembargador Rogério Favreto. Com vínculos biográficos com o PT, ele teve o descaramento de expedir o ilegal alvará de soltura para Lula.

Como afirmou o presidente do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), Carlos Eduardo Thompson Flores, o desembargador plantonista não tinha competência para atuar no caso, pois não existia nenhum fato novo que pudesse, de alguma forma, justificar decisão de urgência. Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia concluído pela constitucionalidade da prisão de Lula. Após a condenação em segunda instância, não há impedimento para que o réu comece a cumprir a pena. Que um juiz petista, num domingo de manhã, pudesse desfazer tudo o que foi feito até aqui era um acinte à ordem institucional e a qualquer resquício de bom senso.

Sendo a ordem de soltura manifestamente ilegal - e para isso já havia alertado o juiz Sérgio Moro -, fizeram muito bem os agentes da Polícia Federal em averiguar se quem mandava soltar tinha, de fato e de direito, poderes para tanto. Cabe aos agentes da lei distinguir o que é ordem jurídica e o que é malandra carteirada, mesmo sendo de desembargador plantonista tentando soltar réu amigo.

Além de ser incompetente para interferir no processo de Lula e de desrespeitar decisão prévia do STF, o desembargador Favreto afrontou, como poucas vezes se viu, o bom Direito. Ao justificar a ordem de soltura de Lula da Silva pelo fato de o réu se apresentar como pré-candidato, o plantonista amigo do PT demonstrou a extensão de uma ignorância que só pode ser superada por má-fé. Em primeiro lugar, porque a tal pré-candidatura já é idosa. Em segundo lugar, porque pré-candidatura não é figura jurídica alguma e, se fosse, não constituiria motivo para a emissão de alvará de soltura para condenado que cumpre pena. Além disso, condenado em segunda instância por crime de corrupção não dispõe do exercício regular de seus direitos políticos, como determina a Lei da Ficha Limpa.

A manobra teve explícito caráter político. Nessa óptica enviesada, que faz troça da Justiça, os impetrantes do PT tentaram uma vez mais transformar o juiz Sérgio Moro no algoz de Lula. A burla, no entanto, é patética, sem apoio nos fatos. Como lembrou o Ministério Público, “não há ato ilegal que possa ser imputado ao Juízo da 13.ª Vara Federal de Curitiba, aqui apontado como coator, uma vez que o paciente está recolhido à prisão por determinação desse tribunal”. Novamente ficava explícita a ilegalidade da ordem do desembargador Favreto: um plantonista tentando monocraticamente reverter decisão colegial de seu próprio tribunal.

O golpe teve a exata dimensão moral, política e profissional de quem o engendrou: inábil, barulhento e incompetente. Frustrou-se diante da serenidade dos desembargadores Gebran Neto e Thompson Flores, que fizeram prevalecer o bom Direito. Em consequência, o sr. Lula da Silva continua preso. Ao contrário do que pretendiam os impetrantes do habeas corpus, o Poder Judiciário assegurou que as decisões judiciais são ainda cumpridas. Mas é preciso constante vigilância, pois sempre há aloprados dispostos a subverter o regime das leis.

No ritmo de Lula - CARLOS ANDREAZZA

No ritmo de Lula - CARLOS ANDREAZZA

O Globo - 10/07

Já passou o tempo de estar perplexo, o que justificaria a cegueira até aqui. É hora de compreender o que está em curso — aliás, há meses. Há três, especificamente, Lula — preso — lidera todas as pesquisas de intenção de voto a presidente. Trata-se de posição sólida, estável. Um lugar construído, com método, desde a condenação em primeira instância — a rigor, desde a própria existência do inquérito, com destaque para o espetáculo político em que se converteria o primeiro depoimento do réu Lula ao juiz Moro, rito jurídico transtornado em duelo eleitoral, como se ali afinal debatessem dois adversários. Tudo calculado. Quantos outros circos dessa natureza não vimos serem armados no último ano? Como não se lembrar da rave em que consistiu sua prisão? Tudo medido.

Não importa que Lula não possa — e não poderá — concorrer formalmente em outubro. Ele concorrerá. Já é um concorrente. O concorrente. Tampouco importa quem seja seu ungido a candidato: porque Lula será. Esse é conceito decisivo ao entendimento do componente plebiscitário que sequestrou uma das faces da eleição: não interessa se Haddad, Wagner ou qualquer outro cavalo petista, porção representativa do eleitorado votará sobre se Lula é ou não perseguido. Para esse buraco nos levou o ex-presidente. Ele é o senhor do jogo, mestre do tabuleiro eleitoral. Negar isso é subestimar os recursos de alguém que conseguiu — ou vem conseguindo — manter-se no centro do debate público, mesmo preso, e empurrá-lo para o terreno da insegurança, da incerteza, o único em que um presidiário pode vender esperança.

Nunca tive dúvida de que não sairia da prisão no domingo. Tenho certeza de que só deixará a cadeia sob decisão de corte superior. Isso não diminui a relevância dos eventos de anteontem no Tribunal Federal da Quarta Região. A estratégia lulista — de politização do processo judicial e de judicialização do processo político-eleitoral — precisa de marcos simbólicos como o propiciado pelo desembargador Favreto. Há vários exemplos. Falo de narrativa; de discurso. Não se pode analisar os movimentos da defesa de Lula à luz do Direito. Seria o mesmo que observar um carcará buscando nele um beija-flor. A tática é tão óbvia quanto eficaz: cultivar — a partir dos instrumentos jurídicos — a percepção de que o ex-presidente é vítima do sistema. Funciona.

Lula comunica hoje, exclusivamente, para algo como um terço do eleitorado. Não é volume capaz de tornar alguém presidente. Ele sabe disso. Sabe igualmente, porém, que existe vitória na derrota, e que muitos jogos são jogados à margem do principal. Ou não lhe seria triunfo extraordinário, consideradas suas circunstâncias, preso e virtualmente inelegível, ainda assim alçar o candidato que o encarnará a uma vaga no segundo turno? Há mais. Porque, paralelamente, em disputa também está a hegemonia sobre a esquerda brasileira — sobre a esquerda latino-americana, portanto. Essa, a da própria sobrevivência, talvez a peleja mais importante para o PT em 2018. Se Lula conseguir mesmo transferir, conforme indicam as pesquisas, algo como dois terços dos votos declinados para si, não apenas terá encaixado seu ungido na rodada final como assegurado a seu partido a liderança da esquerda no continente. É a conquista possível — e a que ele almeja.

A estratégia lulista é urdida e executada à perfeição porque, na origem, compreende as próprias limitações. Lula conhece o mapa eleitoral brasileiro. Ele o desenhou, sobretudo a partir de 2006. Sabe que, impulsionada pelo mais poderoso programa de transferência de votos já concebido, o Bolsa Família, a esquerda, graças ao voto do Nordeste, estará no segundo turno — e que são grandes as chances de que esteja com seu candidato. Não precisa de mais para se sustentar como o que é. Aqui cabe lembrar 1989, uma das poucas ocasiões em que aquela eleição servirá de baliza para 2018. Brizola era, então, a cara da esquerda no Brasil. Ao conseguir desbancá-lo, tomando para si o lugar de adversário de Collor no segundo turno, Lula capturou para si e para o PT a hegemonia esquerdista no país, espaço de que não pode abrir mão. Apoiar Ciro Gomes seria, pois, oferecer a própria cabeça à extinção.

A estratégia lulista investe na desordem porque tem base na percepção da natureza disfuncional do panorama eleitoral brasileiro. A leitura do cenário por Lula identificou a hipótese que tem dado sustentação a sua tática: se 30% dos eleitores indicam que votariam nele, um indivíduo condenado e preso, é porque 30% dos eleitores não acreditam no sistema judicial brasileiro. É com essa ferramenta que o ex-presidente opera.

Com 20% dos votos, talvez mesmo com 17%, 18%, é muito provável que um candidato avance ao segundo turno. Alguém duvida de que o representante lulista terá musculatura para tanto? Que não nos enganemos: os eventos de domingo no TRF-4 tiveram menos a ver com a liberdade de Lula do que com subsídios narrativos às pretensões eleitorais do ex-presidente. Outros virão.

Epílogo de uma fantasia - JOSÉ CASADO

Epílogo de uma fantasia - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 10/07

Principal projeto de política externa nos anos Lula, a Unasul acabou com a sede interditada no fim de semana e burocratas absolutamente sem nada para fazer


Custou R$ 220 milhões. Parece um prédio parado no ar, com vidros refletindo montanhas ao fundo e cercado por espelhos d’água. Tem 19,5 mil metros quadrados distribuídos em cinco andares e dois subsolos. Desde a inauguração, em 2008, abrigou três dezenas de diplomatas, um para cada 650 metros quadrados de construção. Em dez anos, eles quase nada tiveram para fazer, além de receber salários de R$ 60 mil por mês e desfrutar mordomias.

Era símbolo do principal projeto petista para a política externa brasileira, traçado no 1º de janeiro de 15 anos atrás em jantar no Palácio da Alvorada, quando Lula celebrou a posse na Presidência da República. Nasceu da ambição de líderes regionais que desejavam impor um contraponto à influência dos Estados Unidos na Organização dos Estados Americanos (OEA).

No fim de semana, o governo do Equador mandou a polícia interditar o edifício-sede da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), na Metade do Mundo, periferia de Quito. Quer o prédio de volta, para instalar uma universidade. Lenín Moreno, presidente equatoriano, alega razões objetivas: seu país gastou uma fortuna numa fantasia política, porque, na prática, a Unasul nunca funcionou, e há anos sobrevive em coma político.

Metade dos países associados abandonou a entidade — inclusive o Brasil, que pagou 39% das despesas na última década, o equivalente a R$ 168 milhões. “Me pergunto se algum dia a Unasul serviu para alguma coisa”, argumenta Moreno.

Dos quatro presidentes-fundadores, Lula está preso, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro; a argentina Cristina Kirchner e o equatoriano Rafael Correa têm prisão decretada, acusados de corrupção, fraudes, sequestro e associação a grupos terroristas; e o venezuelano Hugo Chávez morreu. A Unasul foi comandada por ex-presidentes com biografias turvadas por episódios de corrupção. O primeiro, Néstor Kirchner, falecido marido de Cristina, enriqueceu na Presidência argentina. Assumiu em 2003 com patrimônio de US$ 1,9 milhão, saiu cinco anos depois com fortuna 7,5 vezes maior (US$ 14,2 milhões), segundo as próprias declarações juramentadas. Kirchner morreu em 2010. A viúva gastou US$ 116 mil dos contribuintes para homenageá-lo com uma estátua de 2,2 metros de altura, plantada na entrada da sede da Unasul. O último secretário-geral da entidade foi o ex-presidente colombiano Ernesto Samper, cuja biografia está marcada por vínculos com cartéis de drogas. Em 1995, na Presidência da Colômbia, ele assistiu a confissões públicas sobre o patrocínio do narcotráfico à sua eleição. Os principais doadores foram os irmãos Miguel e Gilberto Rodríguez Orejuela, na época chefes do Cartel de Cáli. Até hoje, Samper não pode entrar nos Estados Unidos.

Se passou década e meia desde que o entusiasmado chanceler brasileiro Celso Amorim apresentou o projeto da Unasul ao venezuelano Hugo Chávez, e sorriu ao ouvi-lo dizer: “O que vocês estão propondo é uma ‘Alquita’”, referência à versão menor, regionalizada, do projeto dos EUA para uma Área de Livre Comércio das Américas (Alca). A iniciativa do governo Lula foi festejada e apropriada por Chávez e pelo casal Kirchner. Dela sobraram um prédio vazio na Metade do Mundo e dúzias de burocratas bem remunerados, absolutamente sem nada para fazer. É o epílogo melancólico de uma fantasia política chamada Unasul.