O GLOBO - 06/09
Essa lenga-lenga interminável de que precisamos de mais provas para termos certeza que o regime do ditador sírio Bashar al-Assad usou armas químicas contra seu próprio povo é uma desculpa dissimulada para não admitir o óbvio.
Quase exatamente um ano depois que o presidente americano, Barack Obama, disse que o uso de armas químicas por Assad seria uma linha vermelha cruzada que iria levar à intervenção militar na guerra civil síria — que já matou mais de 100.000 em dois anos e meio — armas químicas foram lançadas no dia 21 de agosto contra áreas controladas pelos rebeldes nos subúrbios ao leste da capital, Damasco. Fotos e vídeos horripilantes mostraram centenas de vítimas mortas sem nenhum ferimento óbvio, seus parentes sacudindo-as desesperadamente, enquanto choravam e gritavam. Estima se que 1.300 pessoas morreram neste único ataque, 300 delas crianças.
Muitos custaram a acreditar que Assad teria coragem de fazer isso, justamente quando inspetores da ONU já estavam em Damasco para investigar ataques anteriores com armas químicas. Mas foi o desespero de ver os rebeldes se aproximarem do centro de Damasco que teria levado Assad a lançar esse ataque tão mortal. Uma amiga síria minha, que mora na capital síria, me disse que somente forças do governo têm a capacidade de lançar os mísseis que levaram o gás letal, e para atingir tantos alvos ao mesmo tempo.
Pressionado a deixar os inspetores da ONU irem para as áreas atingidas para colher provas como amostras de solo e de cabelo das vítimas, Assad não deixou barato. No segundo dia de inspeções, as viaturas dos inspetores foram alvejadas e atingidas por franco-atiradores, e a mídia estatal tentou culpar os rebeldes. Depois de vários dias de colher provas e declarações de sobreviventes, os inspetores voltaram para Nova York, com seu relatório final somente a sair semanas depois. E somente vão dizer se armas químicas foram usadas, e não quem as usou!
Enquanto isso, no Reino Unido, o primeiro-ministro David Cameron teve a ideia de precipitar o debate no Parlamento sobre uma participação britânica num ataque militar contra a Síria. Depois de somente um dia de debates, o governo conservador perdeu, no dia 29 de agosto, a moção por uns meros 13 votos, certamente por causa de parlamentares receosos de entrar numa guerra com informações falsas, como aconteceu com a invasão do Iraque em 2003, liderada pelos EUA e Grã-Bretanha, depois que o presidente George W. Bush insistiu que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa. Como todos sabem, essas armas nunca foram encontradas. De qualquer jeito, com as forças britânicas enfraquecidas, sua ausência num ataque à Síria não será grande desvantagem.
Mas o caso da Síria é diferente. Todos sabem que a Síria mantém um armazém gigante de armas químicas há décadas, e que ela é uma das sete nações que não assinaram o tratado contra armas químicas. A Síria sempre se defendeu disso argumentando que tinha que ter uma arma de destruição em massa para se defender das armas nucleares do seu vizinho e inimigo Israel, que também não é signatário do tratado, bem como não é signatário do tratado sobre a não proliferação de armas nucleares. E adivinha quem dá ajuda técnica aos sírios para produzir esses gases letais? O Irã.
Ao longo de tudo isso, o presidente Obama prometeu que os EUA iam lançar um ataque militar contra alvos na Síria para punir o regime de Assad por ter ultrapassado a “linha vermelha” quando usou armas químicas. Depois da partida dos inspetores da ONU da Síria no dia 31 de agosto, todos esperavam o ataque para esta semana. Mas no dia seguinte, 1º de setembro, Obama surpreendeu todos ao anunciar que ia buscar aprovação ao ataque junto ao Congresso americano.
O secretário de Estado, John Kerry, se mostrou um locutor convincente na audiência da Comissão de Relações Exteriores do Senado, respondendo às perguntas dos senadores, muitos hesitantes em relação ao envolvimento americano em mais uma guerra no Oriente Médio. Kerry assegurou que nenhum soldado americano ia pôr os pés em solo sírio. E, em verdade, os americanos planejam atingir alvos militares e estratégicos na Síria usando pelo menos 200 mísseis Tomahawk lançados de navios e submarinos americanos estacionados no Mediterrâneo. O bombardeio de bunkers debaixo da terra poderá ser feito por bombardeiros B-2 voando de bases nos EUA. De qualquer jeito, o Senado já disse que vai autorizar ação militar por no máximo 90 dias.
Obama tem sido menos do que claro nas intenções americanas de um ataque contra Síria. Seria simplesmente para degradar o potencial sírio de lançar mais um ataque com gás venenoso, ou seria também para inclinar o campo de jogo o bastante para dar vantagem aos rebeldes? Ele tem que ter um plano bem definido antes que o ataque comece, e talvez ele esteja sendo nebuloso em público para não deixar a estratégia americana vazar antes do tempo. Tomara.
Por fim, aos que clamam por dar uma chance à diplomacia para resolver a guerra civil síria, eu acho que com os russos e iranianos obstinados a defender Assad a qualquer custo não há possibilidade ainda de negociação. Os russos e iranianos insistem em que Assad continue no poder, algo totalmente inaceitável para os rebeldes. Espero que um ataque, bem preciso, sacuda a Rússia e o Irã para admitirem que a governança sangrenta de Assad é insustentável.
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