domingo, julho 21, 2019

Política, sexo e religião - LUIZ CARLOS AZEDO

CORREIO BRAZILIENSE - 21/07


“Não há força no mundo capaz de mudar a realidade das famílias policêntricas e multiétnicas, nem a complexidade das identidades de gênero no estilo de vida contemporâneo”


Clássico da sociologia brasileira, Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, é uma obra polêmica desde sua primeira edição, em 1933, pois desnudou aspectos da formação da sociedade que a elite da época se recusava a considerar. Teve mais ou menos o mesmo impacto de Os Sertões, de Euclides da Cunha, lançado em 1902, a maior e mais importante reportagem já escrita no Brasil. Seu autor descreveu com riqueza de detalhes as características do sertão nordestino e de seus habitantes, além de narrar, como testemunha ocular, a Guerra de Canudos, no interior da Bahia, uma tragédia nacional.

Nas palavras de Antônio Cândido, o lançamento de Casa-Grande & Senzala “foi um verdadeiro terremoto”. À época, houve mais críticas à direita do que à esquerda; com o passar do tempo, porém, Freyre passou a ser atacado por seu conservadorismo. Essa é uma interpretação errônea da obra, por desconsiderar o papel radical que desempenhou para desmistificar preconceitos e ultrapassar valores desconectados da nossa realidade: “É uma obra surpreendente e esclarecedora sobre a formação do povo brasileiro — com todas as qualidades e seus vícios”, avalia Cândido. Consagrou “a importância do indígena — e principalmente do negro — no desenvolvimento racial e cultural do Brasil, que é um dos mais complexos do mundo.”

O presidente Jair Bolsonaro talvez tenha lido Os Sertões, de Euclides da Cunha, porque a Guerra de Canudos faz parte dos currículos das academias militares. Esse foi o livro de cabeceira dos jovens oficiais que protagonizaram o movimento tenentista, servindo de referência para toda a movimentação tática da Coluna Prestes (1924-1927), que percorreu 25 mil quilômetros pelo interior do país. Certamente, porém, não leu Gilberto Freyre, obra seminal sobre a formação da cultura brasileira, traduzida em diversos países. Se o fizesse, talvez conhecesse melhor e respeitasse mais os “paraíbas”, como são chamados os nordestinos por aquela parcela dos cariocas que se acha melhor do que os outros. Ser paraibano é naturalidade, não é pejorativo.

Mas voltemos ao leito antropológico do sociólogo pernambucano. A ideia de que o livro defende a existência de uma “democracia racial” no Brasil, disseminada pelos críticos de Freyre, é reducionista. Casa-Grande & Senzala exalta a formação de nosso povo, mas não esconde as mazelas de uma sociedade patriarcal, ignorante e violenta. A origem dessa crítica é o fato de que o autor destaca a especificidade de nossa escravidão, menos segregacionista do que a espanhola e a inglesa. O colonizador português não era um fanático religioso católico como o espanhol nem um racista puritano como os protestantes ingleses.

Família unicelular
Tanto que Casa-Grande & Senzala escandalizou o país por causa dos capítulos sobre a sexualidade do brasileiro. Entretanto, não foram os indígenas nem os negros africanos que criaram a fama de promíscuo sexual do brasileiro. Foi o sistema escravocrata e patriarcal da colonização portuguesa, que serviu para criar um ambiente de precocidade e permissividade sexuais. Tanto os índios quanto os negros eram povos que viam o sexo com naturalidade, sem a malícia sensual dos europeus.

Freyre lutou como um gigante contra o racismo “científico”, que atribuía aos indígenas e ao africano as origens de nossas mazelas sociais. Há muito mais o que dizer sobre a sua obra, mas o que a torna mais atual é a agenda de costumes do presidente Jair Bolsonaro, que reproduz, em muitos aspectos, características atrasadas e perversas do patriarcado brasileiro, que estão na raiz da violência, da ignorância e do preconceito contra os índios, os negros e as mulheres.

Bolsonaro estabeleceu com eixo de sua atuação a defesa da fé, da ordem e da família. Há um forte ingrediente eleitoral nessa estratégia, mas não é somente isso. Há convicções de natureza “terrivelmente” religiosas e ideológicas, que não têm correspondência com o modo de vida e o imaginário da maioria da sociedade brasileira, com os nossos costumes e tradições, pautados pelo sincretismo e pela miscigenação. No Brasil, tudo é mitigado e misturado, não existe pureza absoluta. Além disso, não se pode fazer a roda da História andar para trás. A família unicelular patriarcal, por exemplo, é minoritária, nem o clã presidencial manteve esse padrão; não há força no mundo capaz de mudar a realidade das famílias policêntricas e multiétnicas, nem a complexidade das identidades de gênero no estilo de vida contemporâneo.

Um dos equívocos de Bolsonaro é acreditar que pode aprisionar a cultura nacional no âmbito dos seus dogmas. Quando investe contra o cinema nacional, a pretexto de que obras como Bruna Sufistinha, um blockbuster da nossa indústria cinematográfica, são mera pornografia e não um retrato da prostituição no Brasil, sua motivação é mais política do que religiosa. Na verdade, deve estar mais incomodado com filmes como Marighella e Democracia em vertigem, que glamoriza a luta armada e enaltece o ex-presidente Luiz Inácio Lula das Silva, respectivamente. Uma coisa é a crítica à obra cinematográfica, outra é o dirigismo oficial à produção cinematográfica, numa ótica que lembra o cinema produzido durante a II Guerra Mundial.

Pura perda de tempo. Com “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, o Cinema Novo emergiu como resposta à falta de recursos técnicos e financeiros. O que temos hoje no cinema brasileiro resulta da centralidade dada por Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e outros cineastas à discussão dos problemas e questões ligadas à “realidade nacional” e a uma linguagem inspirada na nossa própria cultura. “Domesticar” a cultura popular é uma tarefa tão inglória como foi a censura à música popular no regime militar, tanto quanto obrigar os jovens a manter a virgindade até o casamento e mandar os gays de volta para dentro dos armários.

A velha e a nova esquerda - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 21/07

A esquerda tradicional levanta-se da mesa e diz não; a nova faz o acordo e diz sim


O caso dos 19 deputados dissidentes do PDT e do PSB, com destaques para os jovens Tabata Amaral, pelo PDT de São Paulo, e Felipe Rigoni, do PSB do Espírito Santo, tem causado na imprensa.

O governo envia uma proposta de reforma da Previdência. A esquerda tem diversos reparos. A esquerda tem outra proposta. Governo, esquerda e, principalmente, o centrão negociam. Diversos pontos criticados pela esquerda são retirados por intervenção do centrão.

A esquerda tradicional levanta-se da mesa e diz não. A nova esquerda faz o acordo e diz sim.
Em 1985, o PT expulsou os deputados Airton Soares, Bete Mendes e José Eudes por votarem no Colégio Eleitoral na chapa Tancredo Neves e José Sarney contra Maluf, candidato dos militares.

Em 1994, o PT foi contra o Plano Real. Segundo Guido Mantega, em artigo nesta Folha em 16 de agosto de 1994, “essa estratégia neoliberal de controle da inflação, além de ser burra e ineficiente, é socialmente perversa”.

Nossa hiperinflação foi fruto do desequilíbrio fiscal dos estados após a redemocratização. Somente superamos a hiperinflação com a renegociação da dívida dos estados com a União, lei 9.496 de 1997, e com a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal). O PT votou contra ambos.

O PT também votou contra o Fundef, instituído pela emenda constitucional nº 14, de setembro de 1996. O Fundef aumentou muito a eficiência do gasto com educação e permitiu a universalização do ensino fundamental.

Qual é a justificativa para um partido que se preocupa com a melhora da vida dos mais vulneráveis ser contra medidas que eliminam a inflação e melhoram a eficiência do gasto em educação, para ficar em apenas dois exemplos?

Há duas velhas esquerdas. A primeira aposta no quanto pior, melhor. Simplesmente porque apenas deseja a melhora do país se estiver no governo. Caso contrário, é melhor que o país se afunde ainda mais.

O segundo tipo de velha esquerda é a esquerda autoritária. É aquela esquerda que diz que fez a crítica do socialismo real, mas é mentira.

São autoritários. Têm alma autoritária. Acreditam que o sofrimento produzido pelo capitalismo justifica a violência. É essa esquerda que não consegue se desapegar de Cuba ou da Venezuela. Vergonhosamente se silencia diante do relatório contundente da ONU produzido por Michelle Bachelet, ex-presidenta do Chile.

Recentemente, o site de esquerda The Intercept Brasil publicou texto de Amanda Audi (bit.ly/2YRHAER) sobre Tabata. Era para ser um texto crítico à jovem deputada e aos movimentos cívicos que têm contribuído com a preparação de uma nova geração de políticos.

Tabata é contra a agenda de maior presença privada no ensino público, certamente é favorável à maior progressividade dos impostos e, após os inúmeros ajustes feitos, foi favorável à reforma da Previdência. Pelo bem do país.

A maior crítica do texto de Audi ao grupo do qual Tabata participa é que eles se preocupam “que a escola prepare os alunos para servir ao capitalismo”.

Para essa esquerda pobre, tacanha e mesquinha, um pobre que, em razão de uma boa educação, progride e tem elevada renda no setor privado serve ao capitalismo. Esse pensamento é intrinsecamente autoritário.

Temos a nova esquerda. E temos a velha esquerda. Esta ou é oportunista, jogando no quanto pior, melhor, para garantir seu emprego no aparelho do Estado, ou é a velha esquerda que não foi civilizada pela queda do muro.

Que venha a nova esquerda. A velha certamente morrerá de morte morrida.

Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.

Na vida e no futebol, interpretação não é fato - TOSTÃO

FOLHA DE SP - 21/07

VAR, que deveria apenas corrigir erros dos árbitros de campo e auxiliares, atrapalha o jogo


Nessa semana, foram comemorados os 50 anos da chegada do homem à Lua. Eu assisti, emocionado, pela TV, em um hotel de Bogotá, onde a seleção se preparou, durante 20 dias, por causa da altitude, para enfrentar a Colômbia, em 1969, no primeiro jogo das eliminatórias para a Copa de 1970. Ganhamos por 2 a 0. Fiz os dois gols. Entre um e outro, recebi alguns pontos no supercílio esquerdo, por causa de uma cotovelada.

Dois meses depois, tive um descolamento da retina no mesmo olho, no jogo entre Cruzeiro e Corinthians, no Pacaembu. Fui operado nos Estados Unidos e quase fiquei fora do Mundial. Na época, falaram muito sobre a relação entre uma contusão e a outra, o que foi desmentido pelos médicos.

Na época, muitos diziam que a chegada do homem à lua era mentira, um truque. Falam até hoje. Combinava com a paranoia que havia no Brasil, em que muitas pessoas temiam ser denunciadas e presas pela ditadura militar. Essa situação foi magistralmente retratada por Ziraldo, com o famoso personagem Ubaldo, o paranoico.

O mundo mudou, mas muitas coisas não são tão diferentes. Neste país polarizado, as pessoas, cada vez mais, costumam desconfiar uma das outras, tratar a verdade como mentira e vice-versa, além de interpretar os acontecimentos de acordo com seus conceitos, interesses e ideologias.

Interpretação não é fato. Existe hoje, no futebol brasileiro, um excesso de interpretação. Os árbitros de vídeo, que deveriam apenas corrigir os erros e as limitações dos árbitros de campo e dos auxiliares, em lances decisivos, não param de interpretar. Atrapalham o jogo. O VAR está muito chato e demorado.

Antes dos jogos dessa semana, pela Copa do Brasil, havia muitas interpretações e opiniões de que Palmeiras e Flamengo, os dois times mais ricos do país, se tornariam o Real Madrid e o Barcelona do Brasil. Os dois foram eliminados. Não houve surpresa. O Internacional, em casa, se agiganta, e o Athletico, mesmo com campanhas fracas fora de casa, é hoje um dos grandes do futebol brasileiro.

Palmeiras e Flamengo possuem melhores elencos, mas as equipes que entram em campo estão mais ou menos no mesmo nível de outras grandes. No Brasileiro, é diferente, por ser um campeonato longo e por pontos corridos.

O que surpreende no Palmeiras é o fato de ficar tanto tempo sem perder, pois, na maioria das vitórias que conquista, não existe um amplo domínio do jogo, um massacre sobre os adversários.

O Atlético teve mais chance de fazer gols, na vitória por 2 a 0, do que o Cruzeiro, quando ganhou por 3 a 0. Foi um sufoco para o torcedor do Cruzeiro. Fábio e Dedé foram decisivos para a classificação. Um cruzeirense me disse que Mano Menezes é tão metódico, racional, que, como o time podia perder por dois gols de diferença, ele fez questão de perder por 2 a 0. Nas conquistas das duas últimas Copas do Brasil, foi sempre assim, no limite.

O Bahia, mesmo em casa, repetiu a estratégia que deu certo em outros jogos, de marcar atrás, com nove jogadores, para contra-atacar. Deu errado. A bola ficou com o Grêmio, com Maicon, e ele tomou conta do jogo.

Pena que Inter, Cruzeiro, Grêmio e Athletico, os quatro classificados para as semifinais da Copa do Brasil e que continuam na Libertadores, não se dediquem ao Brasileiro, pois teriam chance de lutar por mais um título. A CBF contribui para isso, ao supervalorizar a Copa do Brasil e desvalorizar o Brasileiro, o campeonato mais importante do país.

Tostão
Cronista esportivo, participou como jogador das Copas de 1966 e 1970. É formado em medicina

O Brasil e o multilateralismo - CELSO LAFER

O Estado de S.Paulo - 21/07

Não é o que está ao alcance com a crítica ao ‘globalismo’ e seletivas preferências ideológicas



O multilateralismo começou a tomar forma no século 20. Este se caracterizou pela unidade do campo diplomático-estratégico resultante dos processos técnicos, econômicos e intelectuais que unificaram, para o bem e para o mal, a humanidade, tornando o mundo finito. Foi o que passou a exigir mecanismos de cooperação entre os Estados.

Foram momentos inaugurais da diplomacia multilateral a Segunda Conferência de Paz de Haia, de 1907, e a Conferência de Paris, de 1919, que ao fim da 1.ª Guerra Mundial levou à criação da Sociedade das Nações. De ambas o Brasil participou, nelas identificando caminhos para a ação diplomática nacional, tendo em vista também as experiências do regionalismo multilateral interamericano.

Assim, nosso país mesclou, com consistência e os ajustes necessários provenientes das mudanças de circunstâncias, bilateralismo e multilateralismo na sua política externa. Essa mescla, favorecida pelo bom trânsito do Brasil no mundo, integrou a perspectiva organizadora da nossa inserção internacional na lida com a agenda de temas de interesse nacional, e no trato das simetrias e assimetrias do poder prevalecentes na ordem mundial.

É a importância dessa tradição que quero destacar aqui, fazendo um contraponto à diplomacia da Presidência Bolsonaro. Esta a ela se opõe. Parte do princípio de que a História começa do zero. Por isso se assume como uma discutível ruptura com o que veio antes, movida por seletivas e autorreferidas preferências axiológicas, desconhecedoras tanto da complexidade do mundo contemporâneo quanto das “forças profundas”, históricas e geográficas que têm caracterizado o modo de ser da diplomacia brasileira.

O multilateralismo se diferencia do bilateralismo e do unilateralismo. Nas relações bilaterais cada Estado negocia, à luz da lógica da reciprocidade específica dos seus interesses, com cada um dos seus parceiros, um a um. É um ingrediente indispensável da política externa de um Estado, à luz dos seus objetivos particulares, que favorecem em maior ou menor grau a tradução de necessidades internas em possibilidades externas. Por maior que seja a rede de relações bilaterais de um país, elas nunca dão conta dos desafios de sua inserção num mundo finito e de interdependências. É, evidentemente, o caso de um país complexo, de escala continental, situado na América do Sul e com múltiplos interesses como o Brasil.

No unilateralismo, um Estado conduz a sua política externa afastando-se das instâncias de concertação e desconsiderando o ponto de vista de outros Estados. A ação unilateral põe em questão, no sistema internacional, a função estabilizadora das normas do Direito Internacional, criadas no seu âmbito, que informa sobre os ingredientes da previsibilidade da conduta estatal e o padrão de legitimidade do aceitável.

O unilateralismo como prática esbarra na resistência que outros Estados são capazes de oferecer à sua ação. Depende, em distintos conjunturas e temas, dos recursos de poder de um Estado. Não é uma opção desejável nem viável para um país como o Brasil, que não possui “excedentes de poder”, como dizia o chanceler Saraiva Guerreiro. Mas é sempre uma tentação de grandes potências. É o caso, no momento atual, que não é unipolar, dos EUA na Presidência Trump pelo bullying unilateral das sanções econômicas, da elevação das tarifas e das ameaças militares. Daí os cuidados que cabe ter com o imprevisível do America first.

O multilateralismo não é a expressão ideológica de um “globalismo”. É a procura de soluções para a convivência internacional. Objetiva a elaboração e a aplicação de normas e pautas de conduta, elaboradas coletivamente pelos Estados para reger suas recíprocas relações num mundo interdependente. Cria, no âmbito institucional de múltiplas organizações internacionais, que operam, como um terceiro entre as partes, tabuleiros diplomáticos. Estes são um espaço para o potencial de articulação interestatal necessária para lidar com os desafios da sociedade internacional contemporânea, que alcança a todos na era digital.

O que sustenta a manutenção no tempo desses tabuleiros, como os da ONU e da OMC, é uma reciprocidade difusa, voltada para trabalhar, em distintos contextos e matérias, o possível da cooperação internacional, em muitas questões do interesse dos países e de suas sociedades.

É no âmbito de tabuleiros multilaterais que se torna viável dar sequência aos princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil (artigo 4.º da Constituição). Entre eles destaco a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, a defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos, a prevalência dos direitos humanos, o repúdio ao terrorismo e ao racismo, a cercania com as nações latino-americanas; e também a efetivação do direito a um meio ambiente equilibrado e sentável, contemplado no artigo 225 da Carta Magna.
ust
Uma das características da vida internacional é a distribuição individual, mas desigual, do poder entre os Estados. É por conta dessas desigualdades que as grandes potências tendem a atribuir-se um papel de gestão de ordem mundial.

No multilateralismo, a situação do poder “de fora” pesa, mas não se transfere automaticamente para o seu âmbito interno. É o que dá espaço para um país como o Brasil articular os seus válidos interesses gerais na gestão e dinâmica, que o afeta, do funcionamento do sistema internacional. É o que enseja a presença da voz do Brasil no mundo.

Para a efetividade dessa voz, que se lastreia no bom trânsito do Brasil, é preciso que seja consistente, universalizadora e tenha alcance geral. Não é o que está ao alcance da imprevisível intransitividade solipsista da crítica ao “globalismo” e de seletivas preferências ideológicas. Dizia o padre Antonio Vieira, “perdem-se as repúblicas porque os seus olhos veem o que não é, não veem o que é”.

Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)

Bolsonaro como pensador moral - GUSTAVO NOGY

GAZETA DO POVO - PR - 21/07


Houve tempo em que o financiamento estatal de cultura – exposições, cinema, teatro – me parecia absolutamente errado. Partindo da premissa de uma filosofia política liberal (e mesmo libertária; tenho meus momentos), eu defendia que os produtos culturais têm de se vender como quaisquer outros produtos no mercado: se um filme não consegue financiamento, se uma peça não tem público, não se faça o filme, suspenda-se a peça. Assim com o livro, com a exposição, com a ópera, com o carnaval.

Pois a certeza envelheceu e virou dúvida. Quando hoje me perguntam, “Deve o Estado financiar ou investir em cultura?”, já não sei o que responder. Coloquei em epoché e fui cuidar da vida. O que me terá feito mudar de ideia ou arrefecer o ânimo dogmático? A experiência e a observação. Considerem um dos projetos de imenso sucesso artístico no Brasil, a OSESP, instalada na belíssima Sala São Paulo. Eis um exemplo de dinheiro público bem usado; se lhe cortassem essa fonte, talvez não sobrevivesse. Nossa elite endinheirada é mesquinha, ou pelo menos tem sido, para bancar tudo. Poderia, mas não faz.

A verdade é que em países mais civilizados que o nosso o Estado sustenta ou é parceiro de instituições, museus, óperas, teatro, feiras literárias, cinema, universidades. Continuo a não ter certeza de nada, mas não posso ser ingênuo a ponto de acreditar numa possibilidade imediata – repito e grifo: imediata – de financiamento privado de tudo o que importa na cultura. É o ideal, eu gostaria que fosse, mas não está perto de acontecer. Portanto, minha costela libertária é obrigada a conviver, ainda que a contragosto, com a irmãzinha mais feia, aquela que admite que, afinal de contas, o Estado existe e, se existe, que seja bem usado.

Então chegamos aos critérios.

O que, quem, quando, quanto – financiar? É um problema, de fato, mas não impossível de se resolver. As exigências têm de ser maximamente objetivas e impessoais. Existem, presumo, métricas e normas que sirvam para avaliar, aprovar ou negar dinheiro a este ou àquele projeto. Quais são? Eu não sei, não estudo o assunto, há quem estude. Existem modelos. Se nos países cultos o Estado participa em alguma medida do orçamento da cultura, com transferência direta de recursos ou isenção fiscal, isso me ensina que é possível fazê-lo sem o desleixo ético com que é feito por aqui. O problema, então, é do Estado (e do povo, e do artista) brasileiro. O pior do Brasil é o brasileiro.

Pois bem.

O presidente Jair Bolsonaro fez declarações (ele faz outra coisa?) controversas em mais uma comunicação com seus eleitores. Sim, porque ele fala aos eleitores e somente a eles. Toda a sua postura, suas tiradas, sua impostação, seus pressupostos remetem ao eleitorado cativo, à militância raivosa, não ao cidadão comum que, goste ele ou não, continua a ser o maior interessado nos atos e desatinos presidenciais.

Dentre as opiniões do presidente, uma se destaca: a de que o dinheiro público não deve servir a obras imorais como o filme que conta a história de Raquel Pacheco, a Bruna Surfistinha. Dos motivos, esse é o pior – e, sobretudo, o mais perigoso: o coeficiente de moralidade da obra. Primeiro, porque os valores morais são em parte subjetivos. Existe um núcleo ético-moral objetivo, acredito nele, mas além desses princípios mais estritos, reconhecíveis por toda gente, em toda parte, existem outros mandamentos ou interdições que variam de cultura a cultura, de época a época, até de indivíduo a indivíduo.

Eu considero imoral que um presidente, sob o pretexto de denunciar imoralidades, divulgue manifestações de escabrosas parafilias em sua página social. Ele o fez e acreditou estar fazendo bem. Segundo, porque não é a régua do presidente que saberá medir o que é moral ou imoral. Senão por outro motivo, por este: quem disse que ele sabe o que é moral ou imoral? Eu considero imoral que um presidente privilegie o próprio filho com honrarias e cargos públicos. Ele privilegia e lhe parece muito moral.

A propósito, o filme em questão é, de fato, imoral? Nem por um momento passou pela cabeça do improvisado crítico que o filme pode ser a denúncia daquela imoralidade, ou a discussão daquele modo de vida, no exato sentido que o próprio presidente quis dar à discussão do já histórico – e para sempre anedótico – golden shower? O presidente fez denúncia ou propaganda da “chuva dourada”, ao divulgá-la? E a imoralidade humana, mesmo quando patente e escandalosa, não deve e não pode ser discutida ou representada?

Méritos artísticos e estéticos à parte, basta que miremos a história. Madame Bovary? Pedagogia do adultério. Os Sofrimentos do Jovem Werther? Provocou ondas de suicídios muito antes de 13 Reasons Why. Ulysses foi proibido em mais de um país e a culpa é do orgasmo de Molly Bloom. Lolita é apologia ou anatomia de uma perversão? E os livros racistas de Monteiro Lobato? E as violências em Homero e Shakespeare? E o antissemitismo em Céline? E a poesia da depravação em Jean Genet? E a prisão de Oscar Wilde? E a obra teatral do reacionário Nelson Rodrigues? A lista é interminável. A depender de como se vê, da sensibilidade tocada, do nervo exposto, dois terços da alta cultura são a representação, discussão e estilização de problemas morais. A imaginação moral se desenha também nos limites da imoralidade.

No fim das contas, quem decide o quê?

Não deixa de ser curioso – e, mais do que curioso, deliciosamente engraçado – que o realismo socialista, com sua estética abominável, no cinema e na literatura principalmente, tenha pregado e defendido ideias parecidas e espírito semelhante ao do nosso profundíssimo dublê de pensador da cultura. Para os soviéticos, tudo o que não era realismo proletário era imoralidade, decadentismo, valores pequeno-burgueses. Tudo o que não justificava a revolução ou o homem da revolução não interessava ao Estado. Ninguém podia torcer contra a União Soviética.

Confesso que não sei quais seriam as condições técnicas ideais para o investimento público em cultura, nem é dos meus assuntos prediletos. Tendo a gostar de artes e artistas que se fazem à margem, ainda que fracassem; o fracasso comercial, muitas vezes, é sinal de mérito artístico. E, muito cá entre nós, se o Estado decidir mesmo não financiar coisa nenhuma, não financie; minha costela libertária sorri. Acho até justo, existem argumentos a favor.

No entanto, reconheço que algum tipo de colaboração entre Estado, empresas e fundações é possível, de fato acontece mundo afora e pode fazer bem à cultura, ainda que pontualmente. Inventem ou copiem métricas, leis e parâmetros de países em que isso é bem estudado e funciona a contento. Nem todo mundo faz errado como nós. Porém, se tivermos mesmo de escolher, entre o gosto de Bolsonaro e a extinção da Ancine, fiquemos com a última opção. Para a cultura, antes só do que mal acompanhada.

Contradição no processo? - ALBERT FISHLOW

ESTADÃO - 21/07

A chave para a volta do crescimento é o renascimento da iniciativa privada


Políticas para acelerar o desenvolvimento econômico são um grande atrativo para os políticos. No mundo de hoje, há uma superabundância de estatísticas para serem estudadas. E em todos os países, dos mais pobres aos mais ricos, e até mesmo naqueles cujas eleições são fraudulentas, exibir resultados econômicos positivos é uma maneira quase certa de se obter e manter apoio popular.

Tais políticas não são novidade. Já mudar seus nomes é uma ótima maneira de se fingir que elas são originais e trazem benefícios únicos. Novos esforços, diferentemente daqueles já experimentados, vão supostamente proporcionar o ímpeto necessário para assegurar uma futura expansão sustentável.

Essas políticas econômicas costumam ser basicamente de duas espécies. Uma prevê o aumento da demanda. A outra está na abordagem da economia pelo lado da oferta: redução de impostos para assegurar mais participação do setor privado e pleno uso do trabalho qualificado. Poucos países, porém, se adaptam a tais extremos.

O Brasil, hoje no caminho de reduzir gradualmente os gastos com aposentadoria na próxima década, é um caso emblemático. Esse tem sido um passo necessário que consta virtualmente de todas as listas de iniciativas políticas. Mas a maioria vê essa iniciativa menos como uma fonte significativa de estímulo no curto prazo que como um sinal de que o Congresso pode ser um aliado positivo. O Brasil tem um alto índice de gastos com aposentadorias, predominantemente com o funcionalismo público. Para tal, o País usa uma porcentagem do PIB equivalente à de países da OCDE, mais ricos. Tal cenário, sob as atuais projeções demográficas, é simplesmente inviável no longo prazo.

Após a reforma da Previdência ser aprovada, é provável que haja outra tentativa de se simplificar o sistema tributário. A sobreposição de impostos é hoje abundante, consequência de sucessivos esforços para se aumentar a receita e conter a inflação. Mas é improvável que ocorra uma resolução nesse sentido abrangendo governo federal, Estados e municípios. E certamente teria poucos efeitos imediatos sobre o total da receita, ou mesmo que traga ganhos imediatos de eficiência.

Vale mais comemorar o acordo final entre o Mercosul e a União Europeia. As tentativas vinham se arrastando havia mais de um quarto de século. Elas surgiram para conter planos dos EUA de dominar o comércio continental. Uma vez afastada essa ameaça, a variedade de negociações passou a níveis mais baixos, especialmente com o surgimento das recorrentes diferenças entre Brasil e Argentina.

O Brasil está mais que pronto para avançar buscando o estímulo à expansão. Futuros investimentos virão não de políticas econômicas antiquadas, mas do estímulo ao consumo. A redução do passivo do FGTS de trabalhadores na ativa, bem como dos aposentados, será a fonte. Uma vez ocorrendo o aumento do consumo, o investimento seguramente se seguirá.

O Brasil tem se esforçado repetidamente para aumentar o crescimento. Encorajar a demanda interna é a fórmula usual. Como isso vai se coadunar com os supostos esforços para privatizar o ainda significativo setor público? Contribuições modestas de fontes estrangeiras e governamentais devem ser encorajadas, mas a chave é o renascimento da iniciativa privada.

O Brasil se arrisca a viver uma inconsistência fundamental. Com um regime de orçamento fixo, áreas importantes ficarão descobertas. E reduzir gastos em educação, saúde e saneamento terá efeito negativo para um futuro crescimento. A pretendida redução no programa Minha Casa Minha Vida está desagradando ao setor de construção civil.

O setor privado tem de abrir o caminho. Uma redução no tamanho do setor público será uma contrapartida inevitável. Mas, pelo lado político, a conversão total é impossível. Atrair mais investimentos estrangeiros pode ir contra os interesses de pequenas e inovadoras empresas domésticas. A redução de impostos e o aumento dos gastos públicos levará a uma maior produtividade econômica no longo prazo? Essa é a pergunta-chave com a qual a abordagem da economia pelo lado da oferta terá de se confrontar. /TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

ECONOMISTA E CIENTISTA POLÍTICO, PROFESSOR EMÉRITO NAS UNIVERSIDADES DE COLUMBIA E DA CALIFÓRNIA EM BERKELEY

Desenvolvimento não dá manchete - GUILHERME FIUZA

GAZETA DO POVO - PR - 21/07

O escândalo do DNIT foi um dos casos de corrupção mais intrigantes da história recente do Brasil. Por duas razões: sua dimensão gigantesca e a facilidade com que foi abafado. Ao coquetel se soma agora o ingrediente mais intrigante de todos: esse antigo antro de bandalheiras está sendo transformado em modelo de gestão — e isso não é manchete no Brasil.

DNIT é a sigla para Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes e foi um dos grandes focos da roubalheira no império petista. A CPI do DNIT foi barrada no Congresso (2011) porque na época a população ainda estava inebriada com o mito de Luiz Inácio da Silva, o santo dos pobres. O mensalão já tinha sido esfregado na cara do Brasil, mas assim mesmo ele elegeu Dilma Rousseff, ungida por Lula como a Mãe do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). E a rainha do PAC era a construtora Delta, que estava no centro do escândalo do DNIT.

A grande imprensa se encontrava num momento bem mais saudável que o atual – ainda não tinha caído na tentação da panfletagem politicamente correta para concorrer (estupidamente) com as redes sociais. Os principais veículos se revezavam em reportagens contundentes sobre a máfia que tinha dominado as grandes obras viárias sob o manto protetor de Dilma, Lula e almas honestas associadas. As cifras milionárias dos superfaturamentos eram publicadas diariamente — naquele que foi o petrolão dos transportes e teve na mídia a sua Lava Jato.

Onde está o escândalo do DNIT na história? Sumiu. O então ministro dos Transportes foi demitido e Dilma terminou o ano de 2011 com popularidade recorde — ela era a “gerentona” da faxina contra a corrupção. Contando ninguém acredita.

Tempos depois o bicheiro Carlinhos Cachoeira foi preso pela PF por seu envolvimento em negociatas da Delta — a campeã do PAC de mamãe Dilma e rainha do DNIT. Cachoeira já tinha protagonizado o pré-mensalão — primeiro escândalo da Era Lula com o despachante Waldomiro Diniz, depois substituído pelo famoso Marcos Valério. A usina de crimes sob a fachada do governo popular já tinha seu grande elenco.

Só bem depois, com as investigações sobre o esquema de Cabral no Rio, o dono da Delta foi apanhado pela polícia. E as almas honestas de Lula e Dilma atravessaram incólumes todos os capítulos do escândalo do DNIT e seus desdobramentos.

Agora o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas — que não é filiado nem ligado a partido nenhum — está dando um choque de gestão na área dos transportes. Desfazendo a duras penas a aparelhagem e abrindo o setor para investimentos com dezenas de leilões/concessões para empreendimentos viários e portuários. Parece ser o início de uma revolução nessa área essencial ao desenvolvimento do país — e tragicamente acostumada a estar no foco da bandalheira.

Por que esse tema não é dominante no noticiário sobre política e governo no Brasil em 2019?

Qual a importância desse assunto — política e governo — para as pessoas que não vivem disso? O falatório que fermenta polêmicas em redes sociais ou as ações que irão melhorar a vida delas?

A resposta é óbvia, e é muito fácil perceber que, se temas como este e as medidas de Liberdade Econômica, de contenção de fraudes no INSS e de contenção da criminalidade somem no meio das crises digitais, o senso comum não pode estar muito bem de saúde.

Pondo de forma mais direta: se Tarcísio de Freitas, Sergio Moro e Paulo Guedes emplacarem para valer suas agendas positivas, o Brasil decola de vez e a vida vai ficar difícil para os contadores de história triste (fantasiados de resistência democrática). São esses que fazem questão de não ver nada do exposto acima e não tiram o “bolsonarismo” da boca."

Autoengano 3 - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 21/07

Atraso do Brasil é obra de muito oportunismo e pouco estudo


Os defensores de um imposto sobre movimentações financeiras (IMF) afirmam que não há evidência de que as cadeias mais longas de produção serão proporcionalmente mais oneradas do que as cadeias curtas.

Um simples exemplo mostra o equívoco da afirmação. Suponha que a alíquota seja de 2,5% para quem vende e de 2,5% para quem compra.

Caso um setor gaste R$ 100 para produzir um bem, o preço mínimo para cobrir os custos e o imposto devido será de R$ 102,5. O consumidor, por sua vez, vai gastar R$ 105,06, quando se adiciona o imposto do comprador.

Suponha, porém, que o produtor venda o bem para o varejo, que então vai vendê-lo para o consumidor. O varejista terá gasto R$ 105,06 para adquirir o bem. Para que não tenha prejuízo, terá que vendê-lo por R$ 107,69. Já o custo total para o consumidor ficará em R$ 110,38.

Dessa forma, a introdução de uma etapa de comercialização entre o produtor e o consumidor aumenta de 5% para mais de 10% a carga tributária sobre o bem final. O problema se agrava nas cadeias com mais etapas de produção, como as da indústria.

O minério de ferro é extraído por meio de homens e máquinas, incidindo imposto sobre a compra desses insumos. Ao vender o minério para as siderúrgicas, será cobrada mais uma rodada de imposto.

O mesmo vai ocorrer quando a siderurgia vender o aço. O imposto vai incidir sobre todo o valor faturado, implicando mais uma cobrança de tributo sobre o ferro utilizado, que já pagou imposto ao ser extraído das minas e, mais uma vez, ao ser vendido para a siderurgia.

Com o IMF, a carga tributária passa a depender de como se organiza a produção. Considere duas empresas que produzem o mesmo bem, só que uma produz todos os seus insumos, enquanto a outra tem maior produtividade porque compra de fornecedores especializados. Pois bem, o bem produzido pela empresa mais eficiente terá maior carga tributária.

Os bens de capital modernos, que utilizam peças compradas de muitos fornecedores, passarão a pagar mais tributos do que os serviços de consultoria.

Por essa razão, muitos países optam pelo imposto sobre valor adicionado, que permite aos vendedores descontar do imposto devido o que já foi pago pelos seus fornecedores. Nesse caso, todos os bens e serviços têm a mesma carga tributária.

Felipe Restrepo analisou a evidência empírica sobre a adoção do IMF em países da América Latina. Seu trabalho, publicado este ano no Journal of International Money and Finance, conclui que houve aumento das transações em papel moeda, redução do crédito e queda do crescimento da indústria.

O atraso do Brasil é obra de muito oportunismo e pouco estudo.

Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

Por uma verdadeira reforma tributária - AFFONSO CELSO PASTORE

ESTADÃO - 21/07

Um passo decisivo para retomar o crescimento é uma reforma que transforme os impostos sobre bens e serviços em um verdadeiro IVA cobrado no destino, que coloque um fim à guerra fiscal e elimine distorções que penalizam exportações


Vencida a batalha da Previdência, é preciso encarar o desafio de retomar o crescimento econômico, que não se faz com estímulos à demanda e com ações que favoreçam os grupos de pressão, e sim com reformas que deem os incentivos econômicos corretos e elevem a produtividade. Um passo decisivo nessa direção é aprovarmos uma reforma tributária que transforme os impostos sobre bens e serviços, englobando ICMS, IPI, PIS e Cofins, em um verdadeiro IVA cobrado no destino, que coloque um fim à guerra fiscal entre os Estados e elimine uma enorme distorção que penaliza as exportações.

Um IVA com essas características é idêntico a imposto incidindo apenas sobre a última operação, que é a venda do produto a um consumidor final, ou a sua exportação para outro país. Nos EUA não há um IVA, e sim um imposto sobre a venda ao consumidor final, com plena isenção sobre a exportação. Na Europa, o que existe é precisamente o IVA acima descrito, que, devido à sua equivalência a um imposto sobre a última operação, permite que seja isentado em uma exportação. Não é por acaso que na Europa cada país exporte (e importe) em torno de 40% ou mais de seu PIB.

É surpreendente, diante dessas evidências, que ainda haja defensores de um imposto incidindo sobre todas as transações financeiras. O argumento é que seria um imposto "moderno", e como sua alíquota é pequena, não geraria distorções. No entanto, quem usa esses argumentos esquece (ou deliberadamente omite) que a receita por ele gerada terá de ser igual à que é produzida pelo conjunto dos impostos sobre bens e serviços, e como incide em cascata terá de gerar até que se chegue à última operação, enorme efeito sobre o preço final, cuja eliminação nas exportações torna-se impossível.

Retórica e adjetivos bombásticos não tornam corretos argumentos errados. EUA e países da Europa não são propriamente pequenos e ineficientes e, no entanto, ao adotarem o regime tributário que estou defendendo neste artigo são vistos pelos defensores da nova versão da CPMF brasileira como praticantes de um regime "retrógrado". Em The New Industrial State, Galbraith define um "homem do saber convencional". É aquele que não se preocupa com a correção do argumento, mas simplesmente com a sua aceitação por outros "homens do saber convencional", que apesar do respeito que granjeiam em rodas de networking, nada têm a contribuir na solução dos problemas do País.

Infelizmente, no Brasil, por vezes entramos no bom caminho, mas logo nos desviamos. Quando em 1966 Campos e Bulhões criaram o ICM e o IPI em substituição ao IVC e ao Imposto sobre o Consumo, o definiram como um verdadeiro IVA. A Lei 4.502 de 1964 isentou de IPI toda exportação, assegurando o ressarcimento do imposto relativo a matérias-primas e produtos intermediários, e sua isenção transformou-se em imunidade constitucional pela Emenda 18, de 1965. O artigo 24 da Constituição de 1967 estendeu a imunidade constitucional do ICM nas exportações de manufaturas, que após sucessivas reformulações passaram a ser definidos pelo Confaz.

Em todo aquele arcabouço legal, a cujo espírito busca-se retornar, foram cometidos erros que levaram à enorme desorganização que atinge o ápice no ICMS. O primeiro pecado foi adotar na incidência do ICM o princípio do destino, que deixou a porta aberta à guerra fiscal entre os Estados. O segundo foi quando em 1969 o governo federal criou um programa com o objetivo correto de estimular as exportações, mas usou instrumentos errados, como o crédito prêmio do ICM. Para colaborar com o governo federal na tarefa de promover as exportações de produtos manufaturados, os Estados foram docemente constrangidos a renunciar a parte de sua receita para subsidiar as exportações. Em porteira aberta passa boi e passa boiada. Por que os Estados, munidos do poder que tinham no Confaz, não deveriam usar isenções do ICM para atrair indústrias localizadas em outros Estados? Afinal, como o ICM era cobrado no princípio de origem, não teriam uma perda de receita, que se concentraria apenas no Estado perdedor.

É esse conjunto de distorções que precisamos eliminar, sem o que dificilmente teremos uma economia aberta ao comércio internacional, pois precisamos que as empresas brasileiras elevem a sua eficiência. E isso não se faz com berros e adjetivos, e sim com sólido entendimento do funcionamento da economia.

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS

Ora, esses paraísos fiscais - CELSO MING

ESTADÃO - 21/07

Se é para começar a taxar as 'Big Techs' e ter um mínimo controle fiscal sobre o comércio eletrônico, então é preciso começar por esses paraísos fiscais


Questão com resposta de múltipla escolha: que atitude os governos dos países ricos têm em relação aos paraísos fiscais? (A) uma atitude ambígua; (B) interesseira; (C) hipócrita; (D) as três anteriores. Leia até o fim este texto e responda.

Paraísos fiscais e territórios isentos de impostos existem desde tempos imemoriais. Na Idade Média, até mesmo uma ordem religiosa, a dos Templários, foi criada para administrar fortunas dos endinheirados que partiram para as Cruzadas.

Mas foi a partir do ataque às torres gêmeas, em Nova York, em 2001, que as principais potências entenderam que passou a ser preciso acabar com esses refúgios de riquezas, já que terroristas vinham se valendo das salvaguardas proporcionadas pelos paraísos fiscais para lavar dinheiro e financiar suas atividades ao redor do mundo.

A OCDE e o Grupo dos 20 países mais ricos, em paralelo com o FMI, foram convocados para estudar o tema dos paraísos fiscais e para propor soluções aos Estados Foto: Public Domain

Não é o único imperativo que empurra as grandes potências para enquadrar os paraísos fiscais. Talvez com até mais premência, passaram a colocá-los sob mira porque também são grandes centros de sonegação fiscal.

A maioria das gigantes da tecnologia digital transferiu sua sede para um território livre desses. É o caso do Google, que fincou sua sede europeia em Dublin, Irlanda, para pagar muito menos Imposto de Renda. Ou seja, se é para começar a taxar as Big Techs e se é para ter um mínimo de controle fiscal sobre o comércio eletrônico, então é preciso passar a controlar os paraísos fiscais.

Na prática, a teoria é outra. É preciso começar por definir um paraíso fiscal. Na concepção da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico(OCDE, o clube dos países avançados no qual o Brasil espera ser acolhido), paraísos fiscais são regiões que cobram impostos com alíquotas baixas ou mesmo nulas e, além disso, operam com pouca ou nenhuma transparência em relação à qualidade das transações ali realizadas. O objetivo é atrair investimentos aos quais asseguram as vantagens especiais já mencionadas, além do sigilo dos negócios.

Os principais centros de análise e consultoria do mundo, como os staffs do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da OCDE, foram mobilizados para buscar saídas para uma definitiva intervenção nos paraísos fiscais.

Estudo do National Bureau of Economic Research (NBER) calcula que cerca de US$ 600 bilhões foram transferidos para paraísos fiscais em 2015. É quase dez vezes mais do que o Brasil conseguiu atrair em investimentos estrangeiros neste ano.

A própria OCDE e o G-20 (Grupo dos 20 países mais ricos), em paralelo com o FMI, foram convocados para estudar o tema a fundo e para propor soluções. Foi por conta disso que saiu o Beps (Base Erosion Profit Shifting, ou Erosão de Base e Transferência de Lucros, em tradução livre do inglês), que tenta reduzir a evasão tributária, “garantindo que os lucros sejam tributados onde as atividades econômicas que os geram são realizadas e onde o valor é criado”, como está no site da OCDE.

A União Europeia (UE) também correu atrás e, em 2017, elaborou uma lista de paraísos fiscais (chamadas de países com “jurisdições fiscais não cooperantes”). A ideia é instituir sanções econômicas do bloco europeu a entidades que não se enquadrarem às exigências feitas pelo bloco. A versão mais recente dessa lista, de março de 2019, inclui os Emirados Árabes Unidos, as Ilhas Fiji, as Ilhas Virgens Americanas e Trinidad e Tobago. Coreia, Hong Kong, Montserrat, Peru, Taiwan e Uruguai constavam em listas anteriores. No entanto, como cumpriram as exigências impostas pela UE, foram retirados.

E eis a esquisitice: a UE “esqueceu” de listar seus próprios paraísos fiscais. Como aponta o relatório da ONG Oxfam, os mesmos critérios usados para identificar e impor sanções a paraísos fiscais cabem à Irlanda, Luxemburgo, Holanda, Chipre e Malta, bem como dois outros países “grandes demais para serem listados”, supostamente Suíça e Estados Unidos (aí, especialmente, o Estado de Delaware e as Ilhas Virgens). O Reino Unido também tem lá suas ilhas, como Cayman, as Ilhas Virgens Britânicas, as Bermudas, Jersey e Man.

O principal obstáculo para enquadrá-los e, até mesmo, para classificá-los é político. É como diz o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel: “Cada uma dessas potências tem os paraísos fiscais que considera seus. E avisam: intervenção nos paraísos fiscais, sim, mas não nos meus”.

Agora, que você chegou até esse ponto, responda à pergunta que encabeça este texto.


Bolsonaro tem muito tambor e pouco violino - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP - 21/07

Capitão Bolsonaro é um mestre do ilusionismo. A cada semana agita o país com tolices, impropriedades ou mesmo irrelevâncias


Em julho de 2017 o procurador Deltan Dallagnol foi convidado para fazer uma palestra no Ceará, pediu cachê de uns R$ 30 mil, mais passagens para ele, a mulher, os filhos e estadia no Beach Park (“as crianças adoraram”). Em junho passado o ministro de Economia baixou a Portaria 309, que reduzia os impostos de importação de bens de capital, informática e tecnologia. Dezoito dias depois, suspendeu-a. Nada ver uma coisa com a outra? Elas mostram como a mão invisível do atraso leva o leão a miar.

Quem pagou a villeggiatura do doutor Dallagnol foi a Federação das Indústrias do Ceará, uma das estrelas do Sistema S, aquele em cuja caixa de R$ 20 bilhões arrecadados compulsoriamente nas veias das empresas o doutor Paulo Guedes prometeu “meter uma faca”.

Passaram-se seis meses sem que Guedes voltasse a falar no Sistema S, mas quando ele assinou a portaria 309 cumpriu uma das maiores promessas de campanha do capitão Bolsonaro. Baixando os impostos de importação de bens de capital e de equipamentos de informática, baratearia os preços de computadores, celulares e produtos eletrônicos. A alegria durou pouco pois recolheu-a prometendo revê-la.

A mão invisível de uma parte do patronato da indústria ganhou a parada mostrando ao governo que poderia bloquear seus projetos no Congresso. Ela já conseguira o arquivamento do projeto de abertura comercial deixado por Michel Temer. Esse jogo tem quase um século. Houve época em que era mais fácil comprar cocaína do que importar computador.

Quando a economia nacional começou a se abrir, o agronegócio foi à luta, modernizou-se e hoje é internacionalmente competitivo. A indústria blindou-se atrás de federações (alimentadas pelo Sistema S), aliada a “piratas privados e criaturas do pântano político” (palavras de Guedes). Poderosa, preserva-se com leis protecionistas. Resultado: os piratas prosperaram, a indústria definhou e seus produtos custam caro. Já as federações nadam em dinheiro, custeando palestras que poucos empresários sérios custeiam.

O capitão Bolsonaro é um mestre do ilusionismo. A cada semana agita o país com tolices (“ golden shower ”), impropriedades (o conforto de um trabalho infantil que não conheceu) ou mesmo irrelevâncias (a nomeação do filho para a embaixada em Washington; ganha um almoço de lagosta no Supremo Tribunal quem souber os nomes dos três últimos embaixadores nos Estados Unidos).

Quando um assunto relevante como a abertura da economia vai para o pano verde, o leão revoga a Portaria 309 no escurinho de Brasília, prometendo revisá-la em agosto. A ver, pois essa orquestra tem muitos tambores e poucos violinos.


A trava de Toffoli
A trava do ministro José Antonio Toffoli que congelou as investigações relacionadas com as contas do senador Flávio Bolsonaro mostra que a Justiça é cega e lenta para o andar de baixo. Para o de cima, a história é outra.

A ideia segundo a qual movimentações financeiras estranhas só podem ser compartilhadas depois de uma decisão judicial transforma o Coaf e a Receita Federal em sucursais do Arquivo Nacional. (Cadê o Queiroz?) Olhada de outro jeito, essas informações não deveriam ser usadas, sem ordem de um juiz, por procuradores voluntariosos, capazes de destruir reputações na busca de 15 minutos de fama.

Os advogados de Flávio Bolsonaro foram brilhantes ao engatar seu argumento a um litígio que nasceu em 2003 num posto de gasolina do interior de São Paulo. Os sócios do posto foram autuados pela Receita Federal, tiveram a conta bancária da empresa bloqueada pela Receita e passaram mover o dinheiro como pessoas físicas. A Receita voltou a autuá-los, e o Ministério Público enfiou-lhes uma ação penal. O advogado do posto de gasolina contestou a legalidade do compartilhamento de informações da Receita com o MP, perdeu na primeira instância e ganhou na segunda. O MP recorreu ao Supremo Tribunal, onde o processo entrou e ficou sonolento.

O caso foi para o gabinete do ministro Toffoli. Em abril do ano passado o STF entendeu que esse litígio deveria ter repercussão geral, ou seja, valeria para qualquer caso semelhante. O julgamento foi marcado para 21 de março deste ano e depois foi transferido para o próximo dia 21 de novembro.

Estavam assim as coisas, quando os advogados de Flávio Bolsonaro tinham um habeas corpus para ser apreciado no Rio de Janeiro e decidiram engatar seu caso ao do posto de gasolina de Americana, pedindo uma liminar. Como o Supremo está em férias e seu presidente torna-se plantonista, coube a Toffoli tomar a decisão, com repercussão geral, congelando a essência da investigação das contas de Flávio Bolsonaro.

A briga do posto de gasolina de Americana com a Receita começou em 2003 e estava no STF há mais de um ano. A Justiça é lenta, mas às vezes não tarda.


O terrível Maklouf
Vem aí o livro “O cadete e o capitão”, do repórter Luiz Maklouf Carvalho. Ele conta a carreira militar de Jair Bolsonaro e revisita o episódio dos anos 80 do século passado em que o jovem oficial foi submetido a um Conselho de Justificação que considerou “seu comportamento aético e incompatível com o pundonor militar”. O caso foi para o Superior Tribunal Militar e lá ele foi considerado “não culpado” das acusações do Conselho. O capitão deixou o Exército e elegeu-se vereador no Rio.

Bolsonaro era um jovem ativista crítico da política salarial dos militares, havia tomado 15 dias de cadeia por indisciplina. Ele era acusado de ter desenhado um croquis com um plano de explosão da adutora do Guandu.

Pela sua documentação, o livro de Maklouf é encrenca da boa. Assim como foi encrenca da boa sua reportagem mostrando que a presidente Dilma Rousseff nunca concluíra o doutorado pela Unicamp que enfeitava sua biografia oficial.

O tesouro da UFRJ
O projeto “Viva UFRJ” sugere que a universidade pode arrecadar milhões vendendo seus terrenos na Praia Vermelha e na Ilha do Fundão.

A área da Praia Vermelha pode valer bastante. No caso das terras do Fundão, a “vocação imobiliária” deixou de ser o sonho de um campus e foi noutra direção. Os interessados nos terrenos gostariam de construir galpões para apoiar a logística do aeroporto do Galeão.

Terreno baldio
De uma víbora que já viu de tudo e ouviu Bolsonaro e Paulo Guedes festejando o Mercosul que eles tanto atacavam:

“Campanha eleitoral é que nem terreno baldio, as pessoas passam por ele, jogam de tudo, de pneu velho a sofá quebrado.”

Dificuldade
O pessoal do palácio do Planalto sabe que a reforma da Previdência chegou ao Congresso azeitada pela iniciativa tomada no governo de Temer e com relativo apoio na opinião pública. Um projeto de reforma tributária não terá uma coisa nem a outra.

Nonsense - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 21/07

Bolsonaro se suplantou com uma série de erros e declarações chocantes


Por onde começar? A fome no Brasil é uma "grande mentira", a tortura da Miriam Leitão também, o desmatamento idem. E temos "filtro cultural", o "programa" do FGTS, a multa de 40%, os governadores "paraíba", "vou beneficiar meu filho, sim", a embaixada nos EUA como filé mignon e, além da fritura de hambúrguer, a entrega de pizza... Ufa! Sempre muito inspirado, o presidente Jair Bolsonaro se suplantou na semana passada. O Brasil amanheceu no sábado de ressaca.

Segundo o presidente da República, brasileiros passando fome é "uma grande mentira": "Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas, com o físico esquelético como se vê em outros países". Foi tão chocante quanto a defesa do trabalho infantil e, novamente, foi o próprio presidente quem tentou se corrigir mais tarde, admitindo, a contragosto, que "uma pequena parte" da população passa fome.

Ele, porém, não corrigiu os ataques à produção audiovisual no Brasil.

O governo vai parar de financiar "filmes pornográficos", instituir "filtros" na cultura e enaltecer "heróis nacionais". Ai, que medo! Bolsonaro vai assumir pessoalmente o controle da produção cultural, trocando o que considera "pornográfico" por seus próprios valores - talvez, quem sabe, por filmes evangélicos... E o que entende como "herói"? Brilhante Ustra, como Pinochet e Stroessner? Do outro lado, estão os "mentirosos", como a brilhante jornalista Miriam Leitão, torturada aos 19 anos, grávida.

E a mania do presidente de desqualificar as pesquisas dos nossos melhores institutos e fundações? Depois do IBGE, da Fiocruz, do ICMBio, do Ibama, entre outros, é a vez do Inpe, pelos dados do desmatamento: "Parece até que está a serviço de alguma ONG", acusou, e logo para jornalistas estrangeiros. Lá vem punição! As ONGs, aliás, são outro alvo permanente dos Bolsonaro.

Milhares, ou milhões, se frustraram com o "adiamento" da liberação de contas ativas do FGTS, mas a história é simples.

Bolsonaro achou a ideia bacana (é mesmo) e jogou no ar. Casa Civil, Economia, CEF, empreiteiros, todos levaram um susto. Dessa vez, foi Onyx Lorenzoni o destacado para consertar o erro do presidente e avisar, antes da solenidade dos 200 dias de governo, que não ia ter anúncio nenhum sobre o FGTS.

Liberar os saques é só uma ideia. Para uma ideia virar programa, é preciso fazer contas, traçar metas, porcentuais, cronograma e os detalhes operacionais, além de combinar com os "russos": o setor de construção, que depende das linhas de financiamento da CEF para casa própria, inclusive o Minha Casa, Minha Vida. Segundo Onyx, o anúncio será na próxima quarta-feira. Será mesmo?

No embalo, o presidente também manteve o desequilíbrio: sempre protege o empregador, coitado, mas desdenha do trabalhador, esse ganancioso. Assim, criticou a multa de 40% do FGTS para as demissões sem justa causa. Em seguida, como quem se flagra falando demais, ressalvou que "a ideia ainda está em estudo". Desse conserto, Onyx se livrou.

O que dizer das declarações sobre Eduardo Bolsonaro - que, além de fritar hambúrguer, também entregou pizza - para Washington? "Pretendo beneficiar meu filho, sim. Se eu puder dar um filé mignon para meu filho, eu dou." Alguém precisa ensinar ao presidente uma diferença: qualquer um pode comprar filé para a família, mas um presidente não tem o direito de nomear o próprio filho, e só por ser seu filho, para a mais importante embaixada no mundo. Família é família, Estado é Estado. Elementar, meu caro Watson!

Quanto aos governadores "paraíba", por favor: ideologia, ideologia; questões institucionais à parte. E mais: toda a solidariedade e admiração ao lindo Nordeste e ao querido, acolhedor e batalhador povo nordestino. Dúvida: o general Augusto Heleno acha mesmo tudo isso normal?


O esgarçamento do tecido social - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 21/07


O que ocorre hoje no País é continuidade do que se fez nos anos petistas, nos quais foi instalada e promovida a lógica antidemocrática do “nós” contra “eles”.


São cada vez mais frequentes as análises apontando os efeitos daninhos que o governo do presidente Jair Bolsonaro causa sobre a sociedade. Seus discursos, seus posts nas redes sociais, seus silêncios diante de determinadas situações sociais, suas intromissões em searas que não lhe competem – tudo isso estaria produzindo um perigoso esgarçamento do tecido social e político.

O comportamento de Jair Bolsonaro – essa é uma das principais críticas que lhe são feitas – estaria, de alguma forma, autorizando a disseminação de fake news, a polarização, a intolerância, a discriminação contra grupos minoritários, a diminuição das liberdades e tantos outros retrocessos civilizatórios. Muito além de eventuais erros em áreas específicas, estaria havendo um exercício do poder frontalmente contrário ao primeiro objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, tal como expressa a Constituição Federal de 1988: “Construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3.º, I).

Não resta dúvida de que várias das ações do presidente Jair Bolsonaro e de membros do governo têm um nítido caráter desagregador, fomentando explicitamente a polarização e a divisão do País. Não deixa de ser estranho, no entanto, que muitos dos atuais críticos desse desmoronamento do tecido social e político operado pelo governo Bolsonaro tratem tal fenômeno como algo novo. Quem inaugurou, na história recente do País, esse modo perverso de governar foi o sr. Luiz Inácio Lula da Silva.

Não foi Jair Bolsonaro quem inventou o governo do “nós” contra “eles”. Ele simplesmente copiou o modelo petista, trocando o sinal. O que antes era dedicado aos “neoliberais” – tratados como se fossem a antítese de toda e qualquer preocupação com o interesse público, fomentadores da ganância privada e cúmplices de todas as injustiças sociais – foi agora dirigido aos “comunistas”, quando muito aos “socialistas” – que passaram a ser os grandes destruidores da moral, da economia e dos bons costumes do País.

O desrespeito com o lado oposto e a intolerância com a divergência política não nasceram com as recentes passeatas que pedem intervenção militar e fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). A rejeição da convivência pacífica diante do pluralismo ideológico e político vem sendo pregada e alimentada pelo sr. Luiz Inácio Lula da Silva, o PT e os ditos movimentos sociais, pelegos do partido, há muito tempo.

Alerta-se agora para o risco – real, deve-se reconhecer – da “normalização da violência” contra grupos minoritários. Mas a tolerância com a violência, como se ela fosse consequência inexorável do atuar político, também não é coisa criada por bolsonaristas. O PT e os movimentos sociais aliados que o digam. Por exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tratado e alimentado cordialmente pelos governos petistas, nunca se dispôs a abandonar a violência, assumindo exclusivamente a negociação pacífica. Tão incorporada essa obsessão pelo recurso à violência, que os movimentos sociais sempre combateram toda e qualquer mudança legislativa tendente a consolidar a paz social e a ordem pública, alegando que o objetivo de fundo era, ao contrário, criminalizar a militância social e política. Ou seja, eles mesmos reconheciam que não estavam do lado da tolerância, do diálogo e da não violência.

O que o PT fez não justifica, de forma alguma, os equívocos do atual governo. O presidente Jair Bolsonaro é única e integralmente responsável pelos seus atos. Se o sr. Lula da Silva não cumpriu sua promessa de respeitar a Constituição – de promover uma sociedade livre, justa e solidária –, isso não é pretexto para que o sr. Jair Bolsonaro se sinta menos obrigado a cumprir o solene compromisso assumido no dia 1º. de janeiro deste ano.

De toda forma, o que ocorre hoje no País é continuidade do que se fez nos anos petistas, nos quais deliberadamente foi instalada e promovida a lógica antidemocrática do “nós” contra “eles”. Talvez seja essa a grande decepção do atual governo. Eleito para que a lógica petista não mais estivesse presente no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro a reproduz com sinal trocado.


Debata-se - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 21/07

Plano do MEC para universidades acerta na meta de atrair setor privado, mas precisa de discussão


Em seu principal movimento na área da educação até aqui, o governo Jair Bolsonaro (PSL) lançou um programa destinado a ampliar a captação de recursos privados por universidades federais.

Batizada de Future-se, a iniciativa acerta em seus objetivos. Como demonstra à farta a experiência internacional, instituições de ensino superior que aspiram à excelência não devem depender exclusivamente de dinheiro público.

Há, no entanto, um otimismo que parece exagerado acerca da potencialidade dos meios aventados.

Incentiva-se que as universidades busquem patrocínios, receitas de aluguéis e parcerias para diversificar fontes de verbas.

O plano também prevê um fundo de natureza privada, formado a partir da venda de imóveis ociosos da União. Os rendimentos seriam revertidos para os estabelecimentos, que competiriam, ainda não se sabe como, pelos recursos.

Mesmo a Lei Rouanet poderia ser utilizada para bancar, por exemplo, museus e bibliotecas.

Cabe considerar, de início, as diferentes realidades das 63 universidades federais ativas no país.

Parcerias com setor produtivo tendem a funcionar melhor nas chamadas áreas duras do conhecimento e em grandes centros urbanos —cursos de engenharia da Federal do Rio, por exemplo.

O cenário é muito diferente na maioria das instituições, sobretudo nas criadas fora das capitais, no Norte e no Nordeste do país.

Cumpridas as etapas de consulta pública (até o dia 15 de agosto) e de tramitação no Congresso, a adesão ao programa pelas universidades será voluntária.

As que optarem por integrar o Future-se deverão contratar uma organização social (OS) para administrar suas atividades de ensino, pesquisa e extensão. Pretende-se com isso profissionalizar a gestão, que o governo considera —com razão— ineficiente.

Não é difícil imaginar as resistências que propostas do gênero despertam nas universidades, onde o corporativismo e a politização se notam em doses exageradas. O MEC, ademais, cometeu erros de origem ao adotar um discurso revanchista ao tratar do setor.

Provavelmente com o intuito de reduzir o atrito político em torno do novo programa, a pasta deixou de lado a necessária discussão sobre o início de cobrança de mensalidades de estudantes mais abonados. Trata-se de um equívoco.

O tema já mereceu estudos e projetos, aqui e no exterior, com diferentes opções de implementação que deveriam ser examinadas.

Felizmente há pela frente o período de consulta pública e o escrutínio pelo Legislativo, oportunidade para um já tardio debate em torno da educação superior no Brasil.