quarta-feira, abril 22, 2020

Caneta azul, azul caneta - LEANDRO KARNAL

ESTADÃO - 22/04

Em 1950-60, havia o duelo entre a elegante caneta-tinteiro e a cada vez mais popular esferográfica

A humanidade usou muitas coisas para escrever. Escribas egípcios empunhavam um cálamo, um pedaço de cana ou junco afiado em uma ponta. Escreveu-se por mais séculos com cálamos do que com canetas. Muitos romanos empregavam uma pequena haste, o estilo, que acabou contaminando a palavra para denominar o jeito de cada um escrever. A pena teve longa história e batizou, muito depois do seu domínio, os muitos “pen clubs” do mundo. Quase tudo o que o padre Vieira escreveu foi com o sacrifício de gansos, patos e cisnes. Com o tempo, foram feitas pequenas peças de metal que eram molhadas na tinta e duravam mais do que as derivadas de aves. Os primeiros aparos de aço, a ponta de metal para colocar na tinta e adaptada em uma haste de madeira ou metal, foram difundidos na Inglaterra do fim do século 18. Dali foi um salto para a caneta-tinteiro, que nada mais é do que o aparo de metal com depósito de tinta próprio.

A caneta-tinteiro (e suas inovações) dominou o mundo da escrita. Chegou a virar peça de joalheria, com materiais nobres e trabalhos artísticos rebuscados. Guardava sempre alguns problemas: borrões, tinta instável, dedos sujos, etc. A caneta com tinta permanente surgiu no século 19, e o pioneiro batiza marca até hoje: Lewis Edson Waterman.

Chegamos perto da 2.ª Guerra Mundial. Um húngaro surge com uma invenção que chamou pouca atenção na Europa em crise fratricida. Trabalhando em tipografias, László Biró chegou à ideia de uma caneta com uma bolinha que, automaticamente, transferisse a tinta do corpo da caneta para o papel. Estava criada a caneta esferográfica. Ao emigrar para a Argentina, levou sua ideia e lá começou o sucesso estrondoso do novo instrumento de registro escrito. O inventor genial faleceu em Buenos Aires, em 1985.

Vamos focar no período dos anos de 1950 a 1960. Havia um duelo entre a mais cara e elegante caneta-tinteiro e a cada vez mais popular esferográfica. Uma caneta-tinteiro era um presente comum de formatura. Tal como eu, muitos herdaram as canetas dos pais, guardando a peça que poderia ser mais comum (Parker 51) até obras-primas de valor incalculável. Ter, como eu tenho, pequena coleção de canetas-tinteiro é sinal insofismável de idade.

Os bancos resistiram à inovação. Consideravam a escrita esferográfica pouco confiável. Escolas continuaram alfabetizando com canetas-tinteiro, obrigando alunos a desenhar mais a letra. Até hoje, a bela arte da caligrafia que sobrevive em sofisticados convites de casamento evitará a plebeia caneta esferográfica. A caneta-tinteiro é uma rainha destronada, majestosa e com súditos leais e cada vez mais idosos, entre eles, este cronista.

Emprestei muitas canetas-tinteiro para alunos assinarem uma lista de presença. Sendo jovens, o resultado era não conseguir ou entortar a ponta metálica da peça. É uma habilidade motora específica e, claro, implica certa motricidade que as esferográficas e os teclados erodiram.

Toda novidade causa entusiastas e luditas (quebradores de máquinas) ou, segundo o falecido Umberto Eco, apocalípticos e integrados. Na resistência técnica, está um esforço de reconstruir um mundo perfeito. A caneta-tinteiro implicava letras mais bonitas, pessoas mais educadas, um mundo de chapéus e salamaleques que a esferográfica acabaria por destruir. O instrumento de escrita simboliza o passamento, o mundo extinto e irrecuperável que, claro, sempre será mais perfeito na memória do que era ao vivo.

Sim, não precisamos de muitos estudos para perceber que escrever com uma caneta-tinteiro tem um ritmo mais lento do que digitar em um teclado do computador, como faço neste instante. O texto à mão com caneta-tinteiro deve pensar mais na palavra a seguir. A digitação segue um fluxo em que o automático quase nos possui. Mais: como tantos que estão lendo agora, quando sou obrigado a fazer minha simples assinatura, tenho imensa dificuldade, pois a técnica da escrita com caneta está fraquejando em algum lugar do meu cérebro e da minha coordenação. Tenho de tentar “imitar” minha assinatura, estelionato de mim mesmo é constrangedor. Há alguns anos, além de escrever muito à mão, ainda havia cheques, infindáveis, diários e repetitivos. Qual foi a última vez que você fez um cheque?

Após séculos de uso de instrumentos de escrita, chegamos ao ponto da música “caneta azul, azul caneta”. Qualquer julgamento musical é sempre uma expressão subjetiva que fala mais de quem escreve do que do objeto analisado. Assim, falando só do meu ponto de vista, a música é escassa em recursos sonoros e de léxico rarefeito. Se não confia no meu julgamento, escute, mas insisto: eu avisei. Eu indicaria a bela música Aquarela (Toquinho, Vinicius, Maurizio Fabrizio e Guido Morra) de linha melódica suave e letra poética. Nem sempre o momento atual é o ápice da civilização em alguns pontos.

O instrumento de escrita é menos relevante do que o ato de escrever em si. Ler e escrever são as grandes revoluções do mundo. O analfabetismo total diminui, porém resiste no Brasil. O analfabetismo funcional, com Bic ou computador, parece até crescer. De vez em quando, temos de lutar para manter a esperança.

A intriga é uma doença... - ROBERTO DAMATTA

ESTADÃO - 22/04

Como descobrir o início de um fuxico numa cidadezinha na qual todos falavam bem e mal uns dos outros?



Ele usou um outro adjetivo, mas foi isso que ouvi do professor Wagner que, como se diz, “dava” aulas de História no Ginásio de São João Nepomuceno, Minas, lá pela década de 1950...

Naquela época, a cidade viu-se enfeitiçada pelo boato de que a menina mais bonita da escola, a louríssima Sonia DeAngelo, havia perdido – e eu peço perdão pela linguagem – os “tampos”, a sua indispensável virgindade. Uma atual enfermidade que, naqueles tempos remotos, era tão ou mais falada do que os trágicos efeitos do coronavírus, da esquecida corrupção petista ou do comportamento anormal de Bolsonaro.

Esse o boato contaminador. Eu, rapazinho, o ouvi pela voz do Tulio, um interno de 17 anos que, dizia-se, era viciado em masturbação e por isso tinha o peito estufado (daí o apelido de “rinoceronte”) e uma cara esverdeada.

O delegado Ribeiro, carrancudo como mandava o seu ofício, cujo prazer era cortar as nossas preciosas bolas de futebol com um canivete afiadíssimo, pois tinha horror às peladas de rua, uniu-se imediatamente a “seu” Dino, pai da suposta ex-donzela, um italiano grandalhão e o único taxista da cidade.

O caos foi investigado, mas, como toda apuração tem um lado bíblico porque o começo é tudo, dificuldades surgiram. Como descobrir o início de um fuxico numa cidadezinha na qual todos falavam bem e mal uns dos outros?

Para o pai, era um caso de vida ou morte. Mas num boato dentro do fuxico diziam que ele próprio poderia ser o vilão, encantado pela beleza da filha. E, em paralelo, surgia o nome do Chupeta, um palhaço de circo que a jovem admirava. Toda essa boataria abarcava, conforme me lembro, “meninos” e “homens feitos” (adversários ferrenhos quando se confrontavam no time dos casados contra o dos solteiros).

Recordo que havia uma enorme inveja escondida do “bandido”. Todos faziam o jogo “político” brasileiro: em público, eram solidários ao pai, ao delegado e a eles próprios, pois muitos tinham filhas, mas no bar do Neném e quando relaxavam na barbearia do Wanderley, abriam suas fantasias especulando quem teria sido o “sortudo”.

Pouco depois, soube que o Tulio havia sido interrogado por “seu” Dino e, entre bofetadas, havia falado o nome de três dos possíveis culpados, os namoradores Valério, Levy e Arnaldinho. Todos se qualificavam como suspeitos: o primeiro era um excelente jogador de voleibol, o segundo, de futebol e o terceiro, poeta. O que pesava contra eles era serem “galãs” e terem namorado a vítima em encontros qualificados como “namoros escandalosos”. Uma expressão que ficou na minha cabeça até quando eu a vivi, namorando a Regina Pudim e, pelas 11 da noite, ao chegar em casa silencioso como um ladrão, ter sido recebido pelo olhar severo de mamãe, ao lado da rispidez de um sibilado: “Seu sem vergonha!”.

Meu pai, funcionário do Ministério da Fazenda, foi transferido para Juiz de Fora, fui vítima de mais uma mudança e jamais soube do desfecho desse caso.

Trinta anos depois, voltei a São João Nepomuceno com a desculpa de investigar o conceito de amizade na cidade e, por tabela, no Brasil. Fui com uma admirável equipe de estudantes de Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ – hoje ilustres professores e profissionais –, graças ao decisivo apoio do professor Afrânio Raul Garcia Jr.

Após nossa instalação, encontrei um companheiro daqueles velhos tempos. Falamos dos dualismos no campo esportivo – a rivalidade entre o futebol do Mangueira e do Botafogo – e no campo recreativo e carnavalesco, a adversidade entre o clube Democráticos e Trombeteiros. Naquela época, eu não atinava como a dualidade mistifica a desigualdade.

O tema nos levou ao boato do desvirginamento da Sonia, bem como ao Tulio e aos galãs – Valério, Levy e Arnaldinho –, ex-namorados e suspeitos. Que fim levou tudo aquilo, questionei.

Não deu em nada..., respondeu meu amigo. O Tulio e os velhos suspeitos se foram. O culpado foi o Arnaldinho que, após uma amigável confissão, se casou com Sonia, tiveram três filhas e hoje, felizes, esperam um neto.

Tudo o que estava no ar concretizou-se. Nascer e morrer, adoecer e sarar, mentir e falar a verdade formam o miolo da vida, terminou sabiamente Mario Roberto, meu querido e saudoso amigo e colega de ginásio, hoje também falecido.

Só Freud explica - ROSÂNGELA BITTAR

ESTADÃO - 22/04

A cada dia, uma nova insanidade do presidente. E assim se passaram 16 meses


A política brasileira está confinada pela tragédia da pandemia e já não é possível desdenhar da realidade macabra. Portanto, não é política o que pratica o presidente Jair Bolsonaro no segundo ano do seu mandato. Por mais que deboche da vida e invente movimentos para esconder sua incapacidade de liderar e enfrentar os problemas, o placar das mortes e de contaminados não permite distrações.

Espera-se sempre pela próxima atração presidencial que só não é circense porque o circo se dá ao respeito. Uma performance vai superando a outra. Já se sabe que recuará se o seu teatro do absurdo extrapolar a medida. No dia seguinte, nova insanidade. E assim se passaram 16 meses.

O presidente Jair Bolsonaro em manifestação contra o Congresso e a favor de intervenção militar em frente ao Quartel General do Exército no último domingo. Foto: Gabriela Biló/Estadão
De novo: não é política isto que se pratica, hoje, no Brasil, a partir do desempenho do presidente da República.

A negação da existência da pandemia que acha estar enxotando com seu megafone; a insistente, insolente e impune agressão aos poderes Legislativo e Judiciário; a tentativa de aliciar o Centrão na figura-símbolo de Valdemar Costa Neto, para uma pouco convincente vontade tardia de fazer base parlamentar de apoio; o recurso à velha política, condenada no palanque, se lhe serve melhor na ocasião; a escolha, a cada dia, de um inimigo forjado por temores paranoicos; o corte radical das cabeças que lhe devem o contrato, como os ministros Gustavo Bebianno, Santos Cruz, Luiz Henrique Mandetta, e a campanha permanente e irritada contra quem não pode domar, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia; a retórica autoritária; o desrespeito à condição humana, mais perfeita expressão de fascismo.

Jair Bolsonaro transcendeu a política e a crônica não pode usá-la como régua para medir a extensão do atual desastre imposto ao País.

Um presidente que funciona aos espasmos. Se o espelho lhe aponta um ministro mais popular que ele, acende o alerta vermelho da traição; se a imagem refletida é de alguém em posição constitucional de interromper sua festa, muda sem pejo a rota da cruzada.

Fura o consenso do combate à pandemia, sai trôpego e de olhos vendados na contramão do mundo todo que se harmoniza para salvar a vida. Jair Bolsonaro é tão artificial que nem quando pede golpe militar dá para crer. A manifestação do último domingo, em frente ao QG do Exército, foi a mais recente provocação de um ex-capitão aos generais da ativa e da reserva que o servem. Um prazer vingativo de demonstrar poder sobre eles.

Se passar a pandemia e Bolsonaro se mantiver vivo e no poder, o Brasil que se prepare para uma página em branco. Um grande vazio, pois ele mostra, hoje, que não faz ideia do que fará, depois. O liberalismo econômico, sustentado em reformas estruturantes, vedete de suas intenções, desmanchou-se no ar em 40 dias.

Muitos intelectuais estão expondo sua perplexidade em estudos que tentam traduzir o impacto da pandemia sobre a humanidade. O ex-deputado, professor e sociólogo Paulo Delgado, em um ensaio por enquanto definido como “psicohistória presidencial”, sobre os nove presidentes que conheceu, desde Tancredo Neves, não foge à conjuntura político-sanitária ao tratar de Jair Bolsonaro.

“Vasculhar o inconsciente ajuda a entender por que ele se identifica tanto com este vírus, a ponto de ter necessidade sádica de ridicularizá-lo, insultá-lo, desafiá-lo.”

Invocando Freud, Delgado lembra que o presidente “coloca libido” nestas manifestações públicas de que participa, provocando “aglomeração, contato, contágio”. Diz, ao argumentar sobre esta hipótese: é “um comportamento psicossocial repetitivo, estimulado pelo prazer contínuo de transgredir”.

Um irônico enquadramento da ação presidencial no ambiente psicanalítico, que “só Freud explica”. Enfatiza a hiperexcitação do presidente brasileiro que poderá, conclui ele, conduzir o País a uma “derrota” de Pirro, uma espécie de fracasso altamente dispendioso. Bem além da competência da política.

A ficção do seguro-impeachment - BRUNO BOGHOSSIAN

Folha de S. Paulo - 22/04

Presidente alimenta paranoia e vai em busca de um seguro-impeachment falsificado



Jair Bolsonaro se lançou no mercado político em busca de um seguro-impeachment falsificado. Depois de alardear que há planos malignos para tirá-lo do poder, o presidente chamou líderes do centrão para o chá da tarde. Na saída, eles passaram a negociar cargos com ministros do Palácio do Planalto.

Ainda que Bolsonaro tenha praticado barbaridades suficientes para justificar uma dezena de processos do tipo, não existe articulação real para removê-lo do cargo. O presidente sabe, mas alimenta a paranoia para tentar expandir seus poderes.

Demonizados por Bolsonaro, os partidos do centrão se tornaram uma peça desse jogo. O governo acenou a PP, PL, PRB e outras siglas com o comando de órgãos como Banco do Nordeste, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e até secretarias do Ministério da Saúde.

Junto com legendas nanicas e os bolsonaristas do PSL, o bloco somaria 190 deputados —ultrapassando os 172 votos que poderiam barrar um eventual processo de impeachment. Com 206, o Planalto ainda conseguiria impedir a Câmara de aprovar mudanças na Constituição.

Para levar o plano adiante, Bolsonaro precisaria acertar as contas com uma base que aplaude sua retórica antipolítica. Ao sugerir que o objetivo da manobra é evitar uma conspiração para tirá-lo do cargo, ele espera amenizar a própria hipocrisia.

O Planalto apresentou um mapa de cargos para Valdemar Costa Neto. Depois, Bolsonaro foi a um comício golpista, chamou políticos de patifes e disse que não queria "negociar nada". De volta para casa, assistiu a um vídeo de Roberto Jefferson, que pode ser beneficiado pela partilha.

O governo já tentou oferecer cargos para esses partidos em abril de 2019. Bolsonaro não segurou a língua, atacou as legendas e implodiu o projeto. Alguns políticos que estiveram com o presidente acreditam que o mesmo pode acontecer agora.

O melhor seguro contra o impeachment que um presidente pode ter é governar. Bolsonaro já se mostrou incapaz de desempenhar esse papel.

Montadoras perdem 80% das vendas e esperam que governo destrave crédito - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 22/04

Quase nenhuma montadora prevê reiniciar a produção de veículos antes de maio



Uma semana antes do paradão, em meados de março, no Brasil se compravam cerca de 11 mil veículos por dia. A média de abril, até dia 20, era de 2.250 veículos por dia, baixa de uns 80%. A queda em relação a abril do ano passado também anda pela casa dos 80%.

Já foi pior. Na semana final de março, os licenciamentos não passavam de 1.300 por dia.

Quase nenhuma montadora prevê reiniciar a produção de veículos antes de maio. A retomada da atividade deve ser postergada e lenta mesmo nessas mais otimistas. Várias devem voltar pouco antes do início de junho.

Sobram estoques, não se sabe o futuro da epidemia em cada região onde estão as fábricas (mais de 40% da produção é na Grande São Paulo) nem as diretrizes dos governos para o comércio, por exemplo.

Por ora, as empresas adaptam as fábricas ao mundo da epidemia. As linhas de produção ficarão mais lentas, por falta de demanda e porque precisarão ser ajustadas para evitar contaminações. Serão necessários mais ônibus para transportar trabalhadores (para evitar lotação). Será preciso repensar refeitórios que chegam a servir milhares de refeições por dia, comprar máscaras e instalar medidores de temperatura (para detectar febris), conta Luiz Carlos Moraes, presidente da Anfavea, a associação das montadoras.

No mais, a preocupação central da indústria é com o crédito: financiar capital de giro e prolongar o prazo de pagamento de empréstimos já contraídos. O caixa míngua, como no país quase inteiro. Além do mais, é preciso fazer com que o socorro chegue a toda cadeia, de fornecedores a concessionárias, afirma Moraes.

O problema com o crédito vai além. Aumentou o custo de captação dos bancos das montadoras, instituições que financiavam 45% dos veículos vendidos antes da epidemia _isto é, o crédito pode ficar mais caro.

Dinheiro há, o Banco Central aumentou a liquidez. Mas os bancos estão na retranca porque a perspectiva de inadimplência é enorme, em geral. Faltam, pois garantias. De algum modo, isso pode vir do governo, que assumiria parte do risco.

Segundo Moraes, há conversas avançadas entre ministério da Economia, BNDES, bancos privados e montadoras, caso a caso, e com a Anfavea. As empresas precisam da solução “para ontem”; Moraes acredita em algum acordo até o final desta semana. As suspensões de contrato, reduções de salário e outras medidas do gênero já começaram.

As montadoras de veículos e máquinas agrícolas empregam diretamente 123 mil trabalhadores em 10 estados e 40 cidades. Têm peso de 10% na indústria, atrás apenas da indústria de alimentos e do setor de petróleo e combustíveis, mas são o ramo que, para cima ou para baixo, arrasta consigo a cadeia produtiva mais longa e extensa. No geral, a indústria de transformação como um todo “puxa” mais o PIB do que qualquer outro setor da economia.

O governo ainda anda devagar no planejamento das medidas contra a ruína. Ainda não tem medidas para microempresas, para empresas que faturam mais de R$ 10 milhões e para grandes empresas especialmente abaladas pelo paradão.

Decerto não se pode fazer favor para graúdos bem de vida. Mas a desgraça é geral, em micro, pequenas, médias e grandes. A redução do consumo do desempregado da grande ou da pequena afeta a economia da mesma maneira.

A destruição de empresas e poupanças tornará a retomada ainda mais difícil. Acreditar que, num distante “depois da crise”, basta voltar a “reformas e ajuste fiscal” é mistura de loucura e incompetência.​

Vinicius Torres Freire é jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

Hora de crise, hora de agir - MARIA SILVIA BASTOS MARQUES

Valor Econômico - 22/04

É preciso um pipeline de projetos, que atrairão recursos, criarão empregos e aumentarão a produtividade



O Brasil sempre avança a passos mais largos nos momentos de dificuldade. Assim, além das iniciativas urgentes para atravessar a pandemia, cabe refletir como avançar rumo a uma economia mais produtiva e eficiente, condição necessária para a retomada sustentada do crescimento.

Ressalto a importância das reformas e medidas micro e macroeconômicas dos anos recentes. Sem as reformas trabalhista e da previdência, o teto constitucional de gastos, a mudança da taxa de juros do BNDES, a desregulamentação do setor financeiro - e seus impactos no mercado de trabalho, na solvência da dívida pública, nas taxas de inflação e de juros, no florescimento do mercado de capitais e das fintechs - a pandemia teria atingido o Brasil em situação frágil, dificultando ou impossibilitando a necessária resposta das políticas monetária e fiscal.

As medidas que vem sendo anunciadas pelo BC e Ministério da Economia buscam amenizar o impacto da abrupta e aguda interrupção na atividade econômica, mas resta comprovar se os recursos atingirão, a tempo e a hora, os pequenos e médios empresários. A questão crítica desse segmento é a do risco de crédito, o que torna premente a disponibilização de instrumentos públicos de garantias como fundos garantidores e/ou a assunção, pelo Tesouro, de um percentual da primeira perda.

Por outro lado, o remédio deve ser na dose necessária, mas precisa ser temporário. Não podemos correr o risco de retroagirmos à situação de 2015/17, com descontrole fiscal agudo, altas taxas de juros e de inflação, recessão e desemprego, resultado do prolongamento das medidas de contenção à crise de 2008. Solvência e solidez fiscal são essenciais para o Estado ser capaz de prover serviços públicos essenciais.

A crise também trouxe aspectos positivos. O mais relevante tem sido o aprendizado de que é preciso cooperação entre os indivíduos, empatia e solidariedade. Estamos desenvolvendo o senso de coletividade, que tem propiciado intensa cooperação público-privada na área da saúde e suporte aos que estão em situação de maior fragilidade, com doações de empresas e indivíduos em montante expressivo.

Outro desdobramento positivo é a mudança de percepção a respeito do SUS, sempre criticado. Temos um sistema de saúde público descentralizado e universal, único em países de dimensões comparáveis às do Brasil. Precisamos focar ações e recursos para fortalecê-lo e ampliar seu alcance e eficiência. Também estamos percebendo a importância de instituições centenárias e de referência internacional, como Fiocruz e Instituto Butantã, centros de inteligência e de pesquisa no setor de saúde.

Relevante ainda o fato de não ter ocorrido desabastecimento de alimentos e da logística do país ter continuado a funcionar, a despeito da alta dependência do transporte rodoviário, impactado pelas restrições de deslocamento. Tudo isso tem mostrado que somos capazes de planejar e executar ações indispensáveis à manutenção da segurança alimentar, mesmo em uma grave situação.

Por fim, a resiliência do sistema de telecomunicações (privatizado há duas décadas), com milhões de pessoas em home office e ensino à distância, e o rápido avanço rumo a uma economia mais digital. Medidas que possibilitam o uso da telemedicina, assembleias virtuais de acionistas, assinaturas eletrônicas, inscrição por e-mail para obtenção de CPF, etc, contribuem para aumentar a produtividade e reduzir custos de transação, melhorando o ambiente de negócios.

Tão grande quanto a incerteza em relação à evolução da pandemia é de como se dará a flexibilização gradativa da mobilidade social que permitirá à economia se reaquecer. A resposta virá com o tempo e o acompanhamento dos outros países, mas podemos agir agora para alavancar o processo de saída da crise.

Um tema que precisa avançar rapidamente é o do saneamento. A crise atual tem relação direta com a questão sanitária e hábitos de higiene, e a inaceitável realidade é que o Brasil, em 2011, ocupava a 112ª posição em um ranking de saneamento que engloba 200 países. Infelizmente, não há razão para supor que nossa posição relativa tenha melhorado.

Em 2017, segundo o Instituto Trata Brasil (ITB), havia 35 milhões de pessoas sem água tratada e praticamente metade da população brasileira sem coleta de esgotos. Mais grave ainda, apenas 46% dos esgotos coletados são tratados, a maior parte despejada in natura, poluindo as praias e lençóis hídricos e condenando milhões a viverem indignamente.

Recentemente, a cidade do Rio de Janeiro e sua região metropolitana viveram a inaceitável situação de fornecimento de água contaminada, consequência de anos de sub-investimento e falta de manutenção. Uma crise que atingiu gravemente a população carente, sem recursos para adquirir água mineral.

Em 2016, no início do governo Temer, o saneamento foi definido como uma das prioridades do Programa de Parcerias de Investimentos, o PPI. Em 2018, foi encaminhada uma MP ao Congresso para dar segurança regulatória e jurídica aos investimentos necessários para mudar o quadro do setor.

Saneamento significa economia com saúde pública, aumento na produtividade, turismo, emprego, renda, valorização imobiliária, arrecadação de tributos. Por que não conseguirmos aprovar essa nova regulamentação?

Uma das razões, a meu ver, é a sobreposição do interesse coletivo pelo corporativo. O sistema atual permite os chamados “contratos de programa”, em que as empresas estaduais de saneamento podem ser contratadas sem licitação, impossibilitando a concorrência, em igualdade de condições, das empresas privadas. A última versão da MP que tramita no Congresso prevê que, sob condições, tais contratos possam ser prorrogados por até 30 anos, o que fará com que parcela relevante dos brasileiros continue carente de saneamento, pela insuficiência de investimentos.

No contexto de uma pandemia que impõe padrões sanitários essenciais à população e o interesse coletivo precisa se sobrepor ao individual, faz-se urgente a aprovação de legislação que dê respaldo ao setor privado para competir em igualdade de condições pelos serviços de saneamento, alavancando recursos nacionais e internacionais.

Além do saneamento, o setor de infraestrutura possui muito potencial para atrair investimentos, com concessões e parcerias público-privadas. Com as taxas de juros em níveis historicamente baixos e cadentes, nosso portfólio de investimentos fica mais atrativo em um mundo com excesso de liquidez.

Para concretizar essa oportunidade é preciso definir um pipeline de projetos bem formulados, que atrairão recursos, criarão empregos e aumentarão a produtividade de todos os setores da economia. Hora de crise, hora de agir.

Maria Silvia Bastos Marques é doutora em economia, presidente do Conselho Consultivo do Goldman Sachs no Brasil, ex presidente da CSN, Icatu Seguros, Empresa Olímpica e BNDES.

Por que Bolsonaro gesticula tanto? - CRISTIANO ROMEIRO

Valor Econômico - 22/04

Presidente, à medida que se revela, perde apoiadores à direita e no grupo dos eleitores “móveis”



Se a chegada de Jair Bolsonaro ao posto máximo da República foi uma surpresa, mais surpreendente tem sido a maneira como ele governa o país. É desnecessário lembrar em pormenores a estratégia vitoriosa que o levou a Brasília contra os prognósticos da maioria dos analistas da cena política, inclusive, o titular desta coluna - alguns ainda insistem no equívoco ao atribuir a vitória à facada que o então candidato sofreu em Minas Gerais, a poucas semanas do pleito; acreditar nisso é fazer calundu e desrespeitar a escolha do povo, revivendo a máxima atribuída a Pelé, segundo a qual, “brasileiro não sabe votar”. Como em toda eleição, deu a lógica simples e acachapante: Bolsonaro apresentou-se bem cedo como a opção anti-PT (não como o anti-Lula porque, se tivesse feito isso, teria fracassado) e anti-establishment, em meio a um cenário econômico aterrador: um triênio de recessão (2014-2016), em que o PIB encolheu quase 7%, seguido da recuperação mais lenta da história (alta de 1,1% em 2017 e de 1,3% em 2018). Passados quase 16 meses de mandato, o presidente, o primeiro extremista da história da Ilha de Vera Cruz a chegar lá, nos sobressalta cotidianamente.

Bolsonaro assumiu o poder a bordo de uma agenda liberal que não é sua. O fracasso retumbante do governo Dilma Rousseff não foi provocado por um fenômeno inesperado. Simples assim: a então presidente tomou decisões para alterar o arcabouço macroeconômico que vigorava havia 11 anos (desde o início do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso) e as mudanças, em vez de acelerar o crescimento do PIB, abalaram a confiança de empresários e consumidores; diante disso, temendo não se reeleger, Dilma fez intervenções em preços administrados e adotou, em vão, inúmeras medidas para estimular consumo e investimento; nada deu certo e os resultados foram a escalada da inflação (11% em 2015), dos gastos e da dívida pública.

Na campanha de 2014, Dilma adotou discurso populista que não combinava sequer com sua reputação - o que mais chamou atenção foi o vídeo em que se mostrou comida desaparecendo da mesa das famílias, caso o Banco Central se tornasse independente. O fato é que a presidente se reelegeu “raspando”, sob a promessa de fazer mais do mesmo. Ao assumir, cometeu estelionato ao nomear o liberal Joaquim Levy para fazer duro ajuste na economia.

Estelionato enfraquece sobremaneira quem promete uma coisa e faz outra. No início de FHC 2, o real sofreu forte desvalorização. A população, que no ano anterior reelegeu o presidente no primeiro turno graças à promessa de manter o real forte, entendeu a depreciação como um estelionato - do lançamento, em julho de 1994, a outubro de 1998, data da eleição, a moeda pouco se movera.

Dilma logo se arrependeu da guinada liberal e, sem avisar a ninguém, começou a fritar Levy. A fritura foi a mais longa da história porque a Faria Lima não aceitava de forma alguma a saída do ministro. Como o mercado funciona com um olho no amanhã, as condições financeiras (bolsa, juros e câmbio) se deterioraram imediatamente. Em setembro de 2015, o Brasil perdeu o selo de bom pagador de dívidas, a crise se aprofundou e, em novembro, depois de 11 meses no cargo, Levy caiu.

O substituto, Nelson Barbosa, um habilidoso e talentoso economista político, não deu o giro de 180 graus esperado, antes, pelo contrário: propôs a reforma da Previdência e a adoção de um teto para os gastos, além de ações para reanimar a economia no curto prazo _ mumunhas típicas de Brasília: uma mesma agenda pode prosperar, a depender de quem seja o mensageiro. Mas, naquele caso, não deu tempo porque Dilma esgarçara de tal forma a relação com seus aliados que, em maio de 2016, não resistiu ao impeachment.

Michel Temer, o vice, assumiu, abraçou a agenda liberal e começou a suceder no Congresso. Um ano depois, porém, perdeu força após a divulgação de diálogo embaraçoso com um empresário. Naquela crise, Brasília mandou recado importante aos setores produtivo e financeiro: a 19 meses de concluir o mandato, Temer não aprovaria mais nada de relevante, ainda que a economia estivesse anêmica e necessitando de reformas; a mensagem é a de que presidentes fracos, acusados de fatos desabonadores, não têm legitimidade para aprovar mudanças institucionais importantes.

Bolsonaro não teria chegado a lugar algum se sua retórica fosse anti-liberal. Mas, como na fábula, logo revelar-se-ia escorpião _ sapos, no caso, são os eleitores “móveis”, os que escolhem sempre de acordo com a lógica do momento, aqueles que votaram nele por acreditar que ele seria uma espécie de anti-Dilma encarnado, liberalizante até as últimas consequências, e políticos à direita no espectro partidário, como o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, a deputada estadual Janaína Paschoal e todos os que viram na República do Paraná o marco zero da moralização dos costumes.

Bolsonaro passou 28 anos na Câmara defendendo apenas uma bandeira: os direitos e as vantagens da carreira militar, e por extensão dos funcionários públicos em geral. Isso foi suficiente para que sempre se reelegesse. Essa agenda é incompatível com a agenda liberal que a maioria dos brasileiros, neste momento, apoia. A reforma da Previdência proposta pela equipe econômica confrontava os direitos dos militares defendidos historicamente pelo presidente e, foi por essa razão, que levou tanto tempo para ser aprovada, e só o foi porque Bolsonaro livrou os ex-colegas de corporação com uma PEC paralela que anula os efeitos da reforma geral.

Quando a turma de Paulo Guedes elaborou a proposta de reforma administrativa, o escorpião deu sua picada mortal antes de ela chegar ao Congresso. Essa reforma é, na visão desta coluna, mais ou tão importante quanto a da Previdência, não pelo que possa gerar em termos de economia fiscal, mas, pela necessidade de se reformar o Estado brasileiro, de forma que ele passe a trabalhar para o cidadão, principalmente os mais pobres, e deixe de ser autóctone e patrimonialista.

O presidente, à medida que se revela, perde apoiadores à direita e no grupo dos eleitores “móveis”. Essa perda de apoio tem feito com que Bolsonaro se fie em sua base social, uma gama minoritária de brasileiros um tanto fanática e inconsequente. Defende a volta dos militares, sendo que esses estão no Palácio do Planalto justamente para evitar perturbações desse tipo.

E a África, gente? - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 22/04

Muitos países africanos que têm mais ministérios do que leitos de UTI


Sem uma vacina que possa ser aplicada em larga escala, essa pandemia só vai acabar depois que a maioria dos terrestres tiver sido contaminada pelo Sars-Cov-2 e tornar-se imune a ele. Não vou considerar aqui a hipótese mais trágica, mas que não pode ser inteiramente descartada, de que infecções prévias não confiram proteção pelo menos parcial ao paciente.

Isso significa que, a menos que sua confiança na chegada relativamente rápida da vacina seja de 100%, as políticas de isolamento social que a grande maioria dos países abraçou precisam ser fortes o suficiente para evitar o colapso dos sistemas de saúde, mas não tão draconianas que impeçam o aparecimento gradual da chamada imunidade de rebanho.

O ritmo em que devem ocorrer tanto o isolamento como a retomada só pode ser calculado em nível local, levando em consideração itens tão variados como a capacidade da rede hospitalar e da realização de testes, a adesão da população às recomendações sanitárias, perfil demográfico, densidade urbana, hábitos de interação social etc.

Se tem lógica para a Suécia, onde mais da metade das residências é ocupada por apenas um morador, adotar uma forma mais relaxada de distanciamento —grande parte das infecções ocorre dentro de
casa—, essa mesma abordagem pode revelar-se desastrosa numa favela brasileira, onde quatro ou mais pessoas vivem num único cômodo, sem água corrente para a lavagem das mãos.

E a coisa pode ficar ainda pior. O que fazer no caso dos muitos países africanos que têm mais ministérios do que leitos de UTI? Não estou exagerando. Dez países africanos não têm nenhum ventilador; outros quatro contam com não mais que meia dúzia. Neste caso, a carência é tamanha que o próprio objetivo de proteger o sistema de saúde perde parte do sentido. Pode-se ainda defender o isolamento na esperança de que surja a vacina ou um remédio eficaz, mas aí já vira mais aposta do que gestão.

Hélio Schwartsman é jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.

Fio da meada - VERA MAGALHÂES

ESTADÃO - 22/04

O inquérito aberto no ano passado, para apurar inicialmente fake news e ameaças a ministros do STF, pode levar a que o novo já comece adiantado


Quis o destino da distribuição do Supremo Tribunal Federal que o ministro Alexandre de Moraes ficasse incumbido de relatar o inquérito aberto nesta terça-feira para apurar se foram cometidos crimes nos atos em prol de intervenção militar e fechamento do Congresso realizados no último domingo.

O Ministério Público Federal pediu para que seja apurada a responsabilidade pela convocação dos atos, que tiveram vários pontos em comum: convocação por meio de grupos de WhatsApp e redes sociais, faixas e cartazes com confecção padronizada e dizeres coincidentes, e, em todos, os mesmos alvos, notadamente o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, com quem Bolsonaro trocara farpas dois dias antes.

E por que o destino? Porque é Moraes o relator de várias ações recentes questionando aspectos institucionalmente relevantes, antes e durante a pandemia do novo coronavírus.

A começar do inquérito aberto no ano passado, a pedido do presidente da Corte, José Antonio Dias Toffoli, para apurar inicialmente fake news e ameaças a ministros do STF, mas cujo estofo foi sendo expandido e a validade é indefinida.

É nesse inquérito que está o fio da meada que pode levar a que o novo já comece adiantado. Procuradores e ministros têm informações de que empresários que financiaram os ataques de 2019 às instituições também estão à frente das manifestações realizadas domingo e incentivadas por Bolsonaro.

Ninguém arrisca dizer se o presidente será levado ao epicentro da investigação, mas deputados de sua base deixaram digitais nas convocações dos protestos, e, pelo fato de a investigação ser conduzida pelo STF, podem, sim, ser indiciados.

Eles vão tentar evocar, é claro, a imunidade parlamentar que lhes resguarda o direito a opinião, mas juristas lembram que atentar contra a democracia e a independência dos Poderes, resguardada pela Constituição, é crime tipificado e não conduta coberta pela imunidade.

É por saber que existem conexões claras que aliados de Bolsonaro estão agitados querendo encerrar a CPMI das Fake News. E não gostaram nada de ver Gilmar Mendes sorteado para relatar a ação do filho 03, Eduardo, com esse fim.Gilmar deverá assegurar o seguimento da CPMI, e ela e os inquéritos do Supremo funcionarão como advertências bem concretas a Bolsonaro para que não ouse fazer mais nenhum arreganho autoritário como o de domingo, pois as instituições estão alertas e têm instrumentos já acionados para detê-lo.

Imagem de Bolsonaro corroída entre os profissionais de saúde
A facada que sofreu em setembro de 2018, a devoção com que agradeceu a médicos e a enfermeiros e a aversão da classe médica ao PT levaram a que Jair Bolsonaro fosse adotado como candidato por profissionais de saúde. A aprovação do presidente no meio aumentou após a posse, com decisões como a de não renovar o contrato com cubanos no programa Mais Médicos, que era malvisto por não exigir validação dos diplomas.

Mas o comportamento do presidente diante da pandemia corroeu esse apoio, como mostram pesquisas específicas feitas com médicos, enfermeiros, psicólogos e dentistas em todo o País. O boicote ao isolamento social, a relativização do risco da covid-19 e a falta de reconhecimento do trabalho desses profissionais são os principais fatores apontados, ao lado da insistência em prescrever remédios e questionar dados científicos. O estrago, mostram os levantamentos, equipara a rejeição a Bolsonaro à do PT junto aos de jaleco.

O que o preço negativo do petróleo está nos dizendo - NEIL IRWIN

THE NEW YORK TIMES/ESTADÃO - 22/05

Crise decorrente da Covid-19 é choque deflacionário extraordinário para a economia



A pandemia do coronavírus provocou uma série de distorções alucinantes em todos os mercados financeiros do mundo, mas na segunda-feira vimos a mais bizarra delas até o momento: a queda no preço do petróleo nos Estados Unidos para US$ 37,63 negativos.

Isso significa que, se você tivesse de entregar um volume de mil barris de petróleo em Cushing, Oklahoma, em maio, você receberia US$ 37.630 para isso (o que equivale a cinco caminhões tanque, de modo que qualquer piada sobre armazenar petróleo no seu porão terá de continuar sendo uma piada).

Há duas maneiras de examinar a situação. Primeiramente, verificar o que ocorreu num sentido técnico. O colapso dos contratos futuros para maio, no caso do petróleo West Texas Intermediate (WTI) mostra como o choque da crise vem tendo um efeito cascata em todos os mercados e fazendo com que eles se comportem estranhamente.

Mas a mensagem mais abrangente é de que a crise da Covid-19 é um choque deflacionário extraordinário para a economia, causando a paralisação de uma vasta parcela de recursos produtivos do mundo. Não permita que a escassez de alguns produtos, como máscaras faciais ou papel higiênico, confundam a questão. As consequências certamente persistirão além do período de confinamentos.

Nas últimas seis semanas, a demanda por produtos derivados do petróleo entrou em colapso. Com muito menos aviões no ar, as empresas aéreas gastam menos combustível. As pessoas não estão dirigindo, de maneira que precisam de menos gasolina.

Mas os produtores de petróleo demoraram para cortar sua produção, o que significa que há um excesso do produto. Todos os lugares costumeiros para armazená-lo estão cheios, daí os preços futuros negativos para desobstruir o mercado.

Os preços futuros sugerem que o mercado de petróleo funcionará assim, com os produtores suspendendo a produção. O contrato de futuros para junho era negociado a US$ 21,41 na última segunda-feira e os contratos para setembro a mais de US$ 30. Os negociantes de commodities chamam a isto uma “situação de contango”, com preços extremamente mais altos num futuro próximo do que hoje.

O resultado econômico da pandemia é, mais do que qualquer outra coisa, uma interrupção repentina da demanda. Há poucos produtos em que a escassez é um problema, como os equipamentos médicos, material de proteção pessoal e lenços desinfetantes. Mas o quadro geral mostra que uma imensa parcela da produção econômica potencial simplesmente está suspensa.

Isso inclui restaurantes, linhas aéreas e estádios esportivos, que estão vazios. E os 22 milhões de trabalhadores que já se candidataram aos benefícios de seguro-desemprego nos EUA, com muitos mais que virão. E inclui outros, como o setor automotivo, que temporariamente fechou suas fábricas. E agora estamos vendo o setor de energia, com mais capacidade de bombeamento do petróleo do que a demanda presente, e uma capacidade de armazenamento inadequada.

Tudo isso aponta para um colapso deflacionário – uma superabundância do lado da oferta de produtos e serviços, e consequentemente preços em queda – que excede qualquer coisa vista na vida de muitas pessoas. O petróleo não é a única commodity cujo preço vem despencando. Os contratos futuros de milho registraram queda de 19% desde fevereiro. O valor dos títulos do governo protegidos da inflação indica que a inflação será de apenas 0,56% ao ano nos próximos cinco anos, com o IPC (Índice de Preços ao Consumidor) caindo 0,4% em março.

A boa notícia é que a capacidade não vai desaparecer da noite para o dia. O petróleo ainda estará pronto para exploração quando a economia começar a se recuperar; os desempregados estarão ansiosos para retornar ao trabalho; os estádios e restaurantes reabrirão. Mas quanto mais tempo a paralisação da economia continuar, mais graves os riscos de algum dano permanente.

No mercado do petróleo, mesmo achando que os preços negativos no caso dos contratos futuros para maio são uma aberração bizarra, a lição é mais profunda. Um aumento abrupto na produção energética americana durante a última década tem superado as necessidades mundiais de energia, especialmente se as muitas mudanças resultantes da pandemia, como menos viagens aéreas, persistirem por meses ou anos.

Economia tem a ver com oferta e procura, produção e consumo. A questão na economia pós-pandemia é se este equilíbrio, uma vez perdido, poderá ser rapidamente restaurado. E isto será muito mais complicado do que encontrar mais lugares para armazenar petróleo.

Tradução de Terezinha Martino

Distopia no presente - LUIZ CARLOS AZEDO

CORREIO BRAZILIENSE - 22/04

“Nos tornamos seres perigosos, suspeitos. Qualquer aproximação menor que dois metros é uma ameaça e provoca uma reação de legítima defesa”


A pergunta de meu amigo Carlos Alberto Jr., jornalista e cidadão do mundo, numa live, inspirou a coluna de hoje: “Estamos vivendo uma distopia no presente?”. Normalmente, a distopia está associada ao futuro, porque é a negação da utopia, ou seja, da sociedade desejada, uma projeção pessimista do futuro. De certa forma, sim, estamos vivendo uma realidade distópica, como as que aparecem no cinema. A série inglesa Black Mirror (Espelho Negro), lançada há quase 10 anos, por exemplo, em cada um de seus episódios, que são independentes, nos deixa em situação muito desconfortável em relação à tecnologia, à globalização, ao poder e à “sociedade do espetáculo”.

Qual é a grande distopia que estamos vivendo aqui no Brasil? Uma pandemia de coronavírus ameaça sair do controle e seu combate começa a ser militarizado, com a substituição de uma política de saúde pública participativa por estratégias militares que se baseiam em grandes manobras, controle de informações e saídas racionais para situações fora do controle, como criar mais vagas nos cemitérios para evitar que o aumento do número de mortos gere outro grave problema sanitário: cadáveres insepultos. É uma hipótese sinistra, mas faz sentido, porque a concepção do combate à epidemia é a de que se trata de uma guerra. Em tese, militares estariam mais preparados para isso do que civis, o que, obviamente, é um equívoco em se tratando de saúde pública.

O inimigo invisível entre nós, no trabalho, no supermercado, na fila da lotérica, dentro de casa. Todos nos tornamos seres perigosos, suspeitos. Qualquer aproximação menor que dois metros é uma ameaça e provoca uma reação de legítima defesa, nem sempre um educado “por favor, chegue mais para lá”. Os mais aptos a conviver com o novo coronavírus — os contaminados assintomáticos —, hoje são a maior ameaça, não importa se é um antigo colega de trabalho, um parente querido, um amigo de infância, a pessoa amada; amanhã, porém, poderão ser os salvadores da pátria, portadores de anticorpos e perpetuadores da espécie, os primeiros a voltar ao trabalho.

A salvação virá dos mais fortes e do Estado Levitã, que pode tudo? Qual será o custo de tudo isso? Na lógica do presidente Jair Bolsonaro, é preferível um maior número de mortos do que o colapso da economia; é preciso salvar o comércio, a indústria, os pequenos negócios e os biscates. No fundo, seu raciocínio antecipa a escolha de Sofia do intensivista que seria obrigado a escolher quem vai ter acesso ao respirador na UTI quando o sistema de saúde entrar em colapso.

A República, de Platão, citada pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta numa alusão irônica ao famoso Mito da Caverna (metáfora criada pelo filósofo grego para explicar a condição de ignorância em que vivem os seres humanos e o que seria necessário para atingir o verdadeiro “mundo real”), inspirou Thomas Morus (1478-1535) a escrever Utopia. Publicada na Basiléia, em 1516, na época dos Descobrimentos, criticou a tirania e descreveu a sociedade ideal, prontamente associada ao Novo Mundo. Na Inglaterra, seu livro só viria a ser publicado em 1551, 17 anos após a morte do filósofo e estadista católico executado por ordem de Henrique VIII, da Inglaterra.

Tirania

Coube a outro inglês cunhar a expressão “distopia”, o liberal progressista John Stuart Mill, o primeiro a defender o direito ao dissenso e as prerrogativas das minorias, num famoso discurso no Parlamento britânico, em 1868, ao invocar os valores defendidos por Thomas Morus em confronto com a realidade do proletariado da Inglaterra durante a Revolução Industrial. O tema da distopia foi retomado no Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, e em 1984, de George Orwell. Na primeira obra, a sociedade é domina por uma casta, que a submete a um condicionamento biológico e psicológico; no segundo, numa alegoria do burocratismo stalinista, um ditador muda a língua do povo, controla a vida dos cidadãos e manipula a imprensa.

Na literatura, portanto, a distopia é a denúncia da sociedade indesejada, autocrática, submetida à tirania e à ordem unida. Na vida real, voltando à pergunta inquietante do amigo, é uma ameaça latente, seria quase uma distopia do presente. Estamos vivendo uma situação inimaginável, num mundo globalizado, conectado em rede, onde todos acompanham tudo em tempo real. Trata-se de um colapso da economia mundial, provocado por um fenômeno da natureza que tem a ver com o “grande encontro” da teoria da evolução, a associação entre o vírus mutante e uma bactéria, que se reproduz em velocidade igual ou maior do que a moderna transmissão de dados.

A ficção distópica dos filmes de catástrofes vira realidade, com centenas de milhares de mortos. Ontem, o presidente Donald Trump anunciou que os Estados Unidos vão suspender a imigração legal por dois meses. O “sonho americano”, inspirado na Utopia de Thomas Morus, entrou em colapso. Aqui no Brasil, a grande distopia seria o colapso do nosso regime democrático.

Golpe frustrado - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 22/04


O presidente Bolsonaro tentou dar ares de apoio dos militares à sua presença na manifestação antidemocrática que avalizou no domingo em Brasília, mas soube, antecipadamente, que a área militar se incomodava com a escolha como moldura de uma ação política o Forte Apache, como é conhecido o Quartel-General do Exército.

Ele convidou para acompanha-lo os ministros da Defesa, General Fernando Azevedo e Silva e o ministro-chefe da Secretaria de Governo, General Luiz Eduardo Ramos, que recusaram, por considerarem que a presença deles sugeriria que o Exército avalizava a manifestação.

Por ser político, os generais consideram que Bolsonaro tem o direito de participar de manifestações políticas, mas, diante da repercussão negativa, avaliaram que o presidente deu um passo em falso ao convalidar as reivindicações antidemocráticas.

Por isso, tiveram uma reunião com ele na noite do mesmo domingo, onde ficou combinado que Bolsonaro falaria no dia seguinte para desfazer o clima político tenso, e à noite o ministério da Defesa deu uma nota oficial garantindo que as Forças Armadas obedecem à Constituição.

A frase proferida por Bolsonaro na manhã de segunda feira – “Já estou no poder, por que daria um golpe?” – foi dita a ele na reunião de domingo.

A investigação já em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as fake news cruzará inevitavelmente com o novo inquérito aberto sobre as manifestações antidemocráticas, pois tudo indica que os mesmos que orquestram as notícias falsas contra os que consideram adversários políticos são os que organizam e financiam essas manifestações que pedem a intervenção militar e o fechamento do Supremo e do Congresso.

A piada do dia entre os parlamentares é que os sorteios no Supremo Tribunal Federal (STF) estão sendo feitos pela mão de Deus, como o gol do Maradona. O inquérito sobre as manifestações antidemocráticas caiu, no sorteio eletrônico, para o ministro Alexandre de Moraes, o mesmo que já preside o inquérito sobre as fake news contra o STF. E o pedido do deputado Eduardo Bolsonaro para impedir a prorrogação da CPI das Fake News no Congresso foi para o ministro Gilmar Mendes, um dos mais ferrenhos combatentes das fake news, e que tem assumido publicamente posições vigorosas contra as reivindicações ilegais de intervenção militar. A tal ponto que retuitou uma declaração de outro ministro do STF, Luis Roberto Barroso, não exatamente seu amigo, repudiando os que pedem a volta do AI-5 e da ditadura militar.

O inquérito das fake news já existe há um ano no Supremo, e recebeu muitas críticas pela maneira como foi criado, em regime de sigilo como o de agora, e sem a participação da Procuradoria-Geral da República. Está mais avançado do que o Procurador-Geral atual, Augusto Aras, gostaria.

Ele pediu a abertura de um inquérito para investigar os atos antidemocráticos, mas excluiu o presidente Bolsonaro do rol de suspeitos de os incentivarem, provavelmente para cacifar-se à vaga do Supremo que se abre em novembro com a aposentadoria do ministro Celso de Mello.

Mas bastará um parlamentar, ou associação da sociedade civil, requisitar ao ministro Alexandre de Moraes que inclua Bolsonaro no inquérito que o pedido será encaminhado pelo Supremo à PGR, criando um constrangimento que possivelmente impedirá a não aceitação.

O inquérito do ministro Alexandre de Moraes já tem uma relação de 10 a 12 de deputados bolsonaristas, mais empresários, que tiveram o sigilo quebrado, e a Polícia Federal estava a ponto de fazer busca e apreensão em seus endereços quando veio a quarentena.

Com o novo inquérito, dificilmente vai dar para parar a investigação, que já teria identificado o chamado “gabinete do ódio” que funciona no Palácio do Planalto como a origem das fake news, e poderão surgir dados que liguem esse grupo palaciano, coordenado pelo vereador Carlos Bolsonaro, à organização dessas manifestações ilegais.

O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, conversou ontem com o ministro Alexandre de Moraes e deverá receber um relatório sobre as investigações das fake news no início da próxima semana.

A investigação original é sobre o STF, mas há indícios de que está tudo ligado. A Polícia Federal deve manter os mesmos policiais que já estão trabalhando no inquérito das fake news, para dar mais agilidade às investigações.

Verdadeiras e falsas lideranças - LUIZ FELIPE D'ÁVILA

ESTADÃO - 22/04

Toneladas diárias de decisões e declarações irresponsáveis agravam a situação do País


A crise nos permite distinguir entre as verdadeiras e as falsas lideranças. A verdadeira liderança mobiliza as pessoas para enfrentar os reais problemas e não minimiza os sacrifícios e as perdas que a sociedade terá de enfrentar para construir um futuro melhor. O verdadeiro líder usa a sua influência para fomentar a cooperação entre os setores público e privado e orquestra o esforço coletivo do governo e da sociedade civil na busca de soluções concretas para superar os desafios da crise.

As falsas lideranças minimizam os reais problemas e sufocam as iniciativas dos seus liderados porque não querem perder o protagonismo. Elas se preocupam em cultivar o aplauso dos seus seguidores, em vez de desafiarem as pessoas a se engajar na resolução dos reais problemas. Infelizmente, a crise produziu uma supersafra de falsas lideranças. São toneladas diárias de decisões e declarações irresponsáveis que agravam a já debilitada situação econômica e social de um país dilapidado pelo populismo de esquerda e de direita. Mas a crise revelou também verdadeiras lideranças, como o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite.

Discreto, Leite evitou os holofotes das contendas nacionais com o governo federal e focou sua atenção e seu esforço em seu Estado. Enquanto o governador do Rio de Janeiro aprovou um aumento salarial do funcionalismo público, o governador do Rio Grande do Sul cortou o próprio salário em 30% e pediu a seu secretariado que lhe seguisse o exemplo. Enquanto o presidente da República polemizava com o seu ex-ministro da Saúde e os governadores, na imprensa, e tornava inviáveis as ações coordenadas dos governos federal e estaduais, Eduardo Leite buscou o diálogo e a união entre o governo estadual, o setor privado e as lideranças da sociedade civil.

Essa união foi vital para o Estado enfrentar a crise. O governador criou o Conselho da Sociedade, para dar respaldo ao gabinete de crise do governo. Falsas lideranças criam conselhos para fazer propaganda de seus feitos e pedir dinheiro ao setor privado. Verdadeiras lideranças concebem esses fóruns para escutar as demandas e preocupações da sociedade e explicar as ações do governo. O Conselho da Sociedade reuniu informações, conhecimento, recursos para ajudar o governador a tomar decisões importantes.

A diferença entre o verdadeiro e o falso líder é que o primeiro toma decisões com base em dados, fatos e evidências, enquanto o segundo se baseia nas sondagens da opinião pública, no termômetro das redes sociais e no seu feeling pessoal. No Rio Grande do Sul foi realizada uma pesquisa coordenada pela Universidade Federal de Pelotas para averiguar o número de gaúchos infectados pela covid-19. Foram testadas 4.189 pessoas em diversas cidades; apenas duas delas deram positivo. Com esses dados, estima-se que existam 5.560 pessoas infectadas num Estado de 11 milhões de habitantes. Criou-se também um painel de controle com os principais indicadores de saúde, segurança, econômico e social do Estado para balizar as decisões do governo. Esses indicadores servirão de base para o governador promover a abertura controlada do Estado a partir de 1.º de maio.

Essa relação de confiança, transparência e diálogo franco do governador com o poder público e a sociedade civil nasceu muito antes da crise. Assim que assumiu o governo do Estado, Eduardo Leite enviou à Assembleia Legislativa um orçamento deficitário, que abriu um debate importante sobre as necessidades, prioridades e os cortes orçamentários que teriam de ser feitos para conciliar o desejo dos deputados com a realidade dramática das finanças estaduais. Com firmeza, paciência e muito diálogo com os parlamentares e diversos segmentos da sociedade, Eduardo Leite construiu consenso político em torno do corte de despesas e da aprovação das reformas previdenciária e administrativa no Estado.

O governo gaúcho incluiu todas as categorias do funcionalismo público na reforma previdenciária, os militares incluídos. A reforma administrativa determinou um novo estatuto dos servidores públicos que acaba com privilégios, como as gratificações por incorporação, os acréscimos dos anuênios e reajustes automáticos de salários. Além disso, alterou o estatuto do magistério, permitindo estancar o aumento em cascata do salário-base para toda a categoria - inclusive os inativos - e oferecer um salário melhor para os professores entrantes na carreira. As reformas do Rio Grande do Sul foram as mais profundas e ousadas de todos os Estados brasileiros.

Exemplos como o governador Eduardo Leite revelam que as verdadeiras lideranças do País emergirão dos governos locais e da sociedade civil. São líderes que estão na ponta, enfrentando os reais problemas, inspirando as pessoas com suas ações e seus exemplos, mobilizando a sociedade civil em torno de soluções inovadoras. As verdadeiras lideranças renovam a esperança de sairmos da crise mais confiantes na democracia e na nossa capacidade de sepultar as falsas lideranças pelo voto.

FUNDADOR DO CENTRO DE LIDERANÇA PÚBLICA (CLP), É AUTOR DO LIVRO ‘10 MANDAMENTOS - DO PAÍS QUE SOMOS PARA O BRASIL QUE QUEREMOS’

O colapso do petróleo - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 22/04

Com redução da demanda na pandemia, setor enfrenta desordem inédita de preços


Os danos econômicos provocados pela pandemia de Covid-19 seguem em espiral ascendente no mundo. A operar com uma fração de sua capacidade, setores inteiros, como aviação, turismo e entretenimento, têm sua sobrevivência ameaçada.

Outra vítima notável, por sua dimensão e importância, é o segmento de energia, notadamente a produção de petróleo. O mercado, que já operava com excesso de oferta e preços cadentes mesmo antes da crise, agora enfrenta talvez o seu maior desafio histórico.

A queda da demanda estimada para o segundo trimestre chega a 30 milhões de barris por dia, cerca de 30% da produção mundial.

Paliativos recentes, como o corte de produção de 10 milhões de barris acordado pelos membros da Opep (organização de países exportadores) e pela Rússia, com inédito beneplácito dos Estados Unidos, mostram-se insuficientes contra o derretimento dos preços.

O tamanho do desajuste se revelou plenamente nos últimos dias, quando os preços dos contratos para entrega em maio de óleo da categoria WTI (West Texas Intermediate), que serve de referência no mercado americano, caíram abaixo de zero pela primeira vez.

O fenômeno desafia a intuição e decorre da aproximação dos limites de estocagem no ponto central de entrega e distribuição, no estado americano de Oklahoma. Sem lugar de armazenamento, ninguém quer receber o produto —daí os preços negativos, que não deixam opção que não seja cortar de forma radical sua produção.

Embora o fenômeno por ora esteja restrito ao mercado americano, a referência internacional, o Brent, também poderá ter destino parecido. Em todo o mundo os tanques de armazenamento estão sendo ocupados, e a Agência Internacional de Energia estima que os limites estejam a poucas semanas.

Os preços do Brent também caíram abaixo de US$ 20 nesta semana, patamar insuficiente para cobrir os custos de boa parte da indústria. A situação poderá levar à redução desordenada da produção, com risco de uma avalanche de insolvências de empresas menores.

A destruição da capacidade, por sua vez, ameaça resultar em altas abruptas de preços adiante, com a recuperação da economia mundial.

O cenário exige máxima cautela do setor, portanto. A Petrobras já tomou providências, como o corte de 200 mil barris por dia de sua produção e a redução do plano de investimentos e custos administrativos. Felizmente o esforço de redução de dívidas dos últimos anos evita agora um mal maior, mas novos ajustes podem ser necessários.

O presidente virou vivandeira - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP - 22/04

Nem todos os eleitores de Bolsonaro eram golpistas, mas todos os golpistas votaram nele



Vivandeira é uma palavra bonita que designa coisa feia. A expressão foi usada em agosto de 1964 pelo marechal-presidente Humberto Castello Branco, numa memorável lição:

“Há mesmo críticas tendenciosas e sem fundamento na opinião pública de que o poder militar se desmanda em incursões militaristas. Mas quem as faz são sempre os que se amoitaram em meios militares. Felizmente nunca rondaram os portões das organizações do Exército que chefiei. Mas eu os identifico a todos. E são muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar”.

O presidente Jair Bolsonaro amoitou-se diante do quartel-general do Exército, onde havia uma aglomeração de vivandeiras que pediam extravagâncias do poder militar. No dia seguinte, disse que não tinha nada a ver com as faixas que pediam o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e uma volta à ditadura escancarada do Ato Institucional nº 5.

O capitão disse também que “eu sou, realmente, a Constituição”. Não é. Dias antes, falou em “minhas Forças Armadas”. Minhas?

Deve-se voltar ao marechal Castello Branco. Como chefe do Estado-Maior do Exército, no dia 20 de março de 1964, uma semana depois do comício do João Goulart ao lado do quartel-general enfeitado por tanques, ele assinou uma circular reservada para os comandos. Disse que “os meios militares nacionais e permanentes não são propriamente para defender programas de governo, muito menos a sua propaganda, mas para garantir os Poderes constitucionais, o seu funcionamento e a aplicação da lei”.

Mais: “Não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos”.
Castello Branco era um general francês. Já o seu colega Aurélio de Lyra Tavares, subchefe do Estado-Maior do Exército, era qualquer outra coisa. No dia seguinte, mandou-lhe uma carta na qual dizia que havia lido a circular depois de sua expedição. (Portanto não tinha nada a ver com aquilo). Informou que percebia um clima de apreensão “pela leitura dos jornais”. (Maldita imprensa.)

Em qualquer corporação há Castellos e há Lyras. O general viria a ser o desastroso ministro do Exército do presidente Costa e Silva e integrante da patética junta militar de 1969. Deu no que deu.

Nem todos os eleitores de Jair Bolsonaro eram golpistas, mas todos os golpistas votaram no capitão. Em janeiro de 2019, quando ele entrou no Planalto com seus 58 milhões de votos, poderia haver o sonho de um emparedamento do Congresso. Passado um ano, o Executivo ficou menor que o Parlamento. Atingido pela pandemia, o capitão meteu-se num negacionismo pueril e viu-se atirado ao olho de uma crise econômica que não provocou e que não mostra competência para administrar. Nas suas palavras: “Se acabar economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta de poder”. Não é uma luta de poder, nem acaba qualquer governo e o dele deve continuar até 31 de dezembro de 2022.

Se o presidente nada teve a ver com a vivandagem, torna-se impossível encaixar o Bolsonaro de domingo (19) no Bolsonaro da segunda-feira (20). Do alto da caçamba de uma camionete ele disse que “não queremos negociar nada. (...) É agora o povo no poder”.

Sem golpe, não haverá como.

Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

O poder que Bolsonaro quer - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 22/04

O poder que Bolsonaro almeja é aquele exercido sem que tenha de prestar conta às instituições democráticas, como o ditador Hugo Chávez


Em meio ao repúdio unânime das instituições à sua participação num comício de caráter golpista em Brasília no domingo passado, o presidente Jair Bolsonaro defendeu-se dizendo que “falta um pouco de inteligência para aqueles que me acusam de ser ditatorial”. Segundo Bolsonaro, “o pessoal geralmente conspira para chegar ao poder”, mas “eu já estou no poder, eu já sou presidente”. E concluiu: “Então eu estou conspirando contra quem, meu Deus do céu?”.

De fato, Bolsonaro já está no poder, conferido a ele pelos eleitores no pleito de 2018. A questão é que esse poder Bolsonaro não quer, não só porque, no fundo, sabe que não tem a menor ideia de como exercê-lo, tamanho é seu despreparo, mas principalmente porque é um poder regulado pela Constituição e limitado pelos freios e contrapesos institucionais. Um presidente “pode muito, mas não pode tudo”, como disse o ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, ao criticar a convocação, feita por Bolsonaro, de protestos contra o Congresso, em fevereiro. Ou seja, já naquela ocasião, o presidente deixava explícito que não pretendia se submeter aos controles constitucionais, pois, em sua visão, sua Presidência é “o povo no poder”, como bradou aos seus seguidores no domingo passado. Depreende-se que Bolsonaro almeja presidir um regime plebiscitário, em que a voz do que ele chama de “povo” se impõe como a lei, tendo o presidente como zeloso intérprete, submetendo todos os demais Poderes a seu tacão.

Nesse regime dos sonhos bolsonaristas, nem o tal “povo” nem o presidente da República são responsáveis pelos problemas do País; estes são sempre fruto das tramoias dos demais Poderes, que se recusam a satisfazer a vontade do “povo” e são vistos como inimigos que tramam para usurpar o poder conferido ao presidente nas urnas. Não à toa, Bolsonaro vive a invocar a possibilidade de sofrer impeachment, quase como se estivesse a desejá-lo, para servir como “prova” da tal conspiração.

O poder que Bolsonaro almeja, portanto, é aquele exercido sem que tenha de prestar conta às demais instituições democráticas - que permanecem em funcionamento, mas sem condições objetivas de cumprirem suas funções. Nem é preciso ir muito longe no tempo para encontrar exemplos desse tipo de regime - a Venezuela do ditador Hugo Chávez é o caso mais bem acabado de uma autocracia construída sem a necessidade de um golpe formal. Não deve ser mero acaso que em 1999 o então deputado Bolsonaro tenha rasgado elogios ao caudilho venezuelano, dizendo que Chávez, “uma esperança para a América Latina”, faria “o que os militares fizeram no Brasil em 1964, com muito mais força”.

Como ensinou Chávez, a construção do poder discricionário demanda uma democracia de fachada, com eleições regulares e Parlamento em funcionamento, enquanto as estruturas democráticas vão sendo carcomidas. A imprensa livre é sufocada e a oposição é constrangida pela máquina de destruição de reputações. Já o Judiciário é tomado por governistas, transformando-se em pesadelo dos dissidentes do regime. Assim, estão dadas as condições para que a Constituição se torne letra morta.

É evidente que tal empreendimento deve ser contido já em seus primórdios. O Congresso faz sua parte quando impede Bolsonaro de aprovar medidas inconstitucionais e quando investiga a militância virtual bolsonarista que atua febrilmente para constranger os opositores do presidente.

Do mesmo modo, é alentador observar que o Supremo Tribunal Federal também está vigilante. Agora mesmo, por meio do ministro Alexandre de Moraes, atendeu ao pedido da Procuradoria-Geral da República e mandou abrir inquérito para saber quem organizou o ato antidemocrático do qual o presidente Bolsonaro participou animadamente no fim de semana. O ministro teve que lembrar que a Constituição “não permite o financiamento e a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado democrático, nem tampouco a realização de manifestações visando o rompimento do Estado de Direito”. Essa investigação deve ir até o fim, dando nome e sobrenome aos liberticidas - seja qual for o cargo que ocupem ou o poder que tenham - e estes devem ser punidos de acordo com a lei.

A marcha para o colapso em algumas regiões - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 22/04

A epidemia pressiona os sistemas de saúde e testa a qualidade das medidas de prevenção adotadas

Hospitais superlotados, com as UTIs sem vagas, era o pior cenário traçado pelos especialistas desde que o Sars-CoV-2 teria saltado de um animal silvestre para uma pessoa em um mercado de carnes exóticas em Wuhan, na China, e começou a se alastrar pelo planeta com uma enorme capacidade de infeccionar pulmões antes de invadir todo o organismo.

Sem vacina e algum antivirótico eficaz, a Covid-19, a partir do início do ano, começou a se tornar a maior pandemia em cem anos.

Nos últimos dias, o país tem começado a pagar o preço da imprevidência, mas também a colher resultados relativamente positivos por precauções tomadas.

No quadro de falência de sistemas de saúde em estados e municípios, em maior ou menor grau, as regiões Norte e Nordeste já começam a enfrentar as situações mais dramáticas. Com a capacidade de seus hospitais públicos ocupada em mais de 90%, Amazonas (91%), Pará (97%) e Pernambuco (99%) estavam ontem em virtual colapso. O que significa sem condições de atender os doentes mais graves, que necessitam de assistência em Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) equipadas com respiradores mecânicos, em falta no mundo.

Há dias, foram registrados corpos ao lado de pacientes no Hospital João Lúcio, em Manaus. Um contêiner frigorífico passou a receber cadáveres no local. Cena já observada em Nova York, cuja renda per capita é algumas vezes superior à dos moradores da capital do Amazonas. A Covid-19 tem nivelado por baixo sistemas de saúde.

Mas não há fatalismos nesta guerra real. No Brasil, morreram até ontem 2.757 pessoas, e os infectados pelo novo coronavírus somavam 43.114. Cabe sempre lembrar que existe grande subnotificação nos registros.

Em alguns locais, como Manaus e outros, a tragédia poderia ter sido evitada, ou reduzida, se o isolamento social houvesse acontecido mais cedo. À medida que os dramas evoluem isso vai ficando mais evidente, apesar da resistência do Palácio do Planalto em aceitar o que está sendo demonstrado em diversos países.

A Alemanha, com mais de 80 milhões de habitantes, não chega a ter 5 mil mortos, e a Itália, com cerca de 60 milhões, já enterrou mais de 23 mil, porque agiram de forma diferente.

Há grande pressão em hospitais de São Paulo e Rio. Mas se os governadores fluminense e paulista, Wilson Witzel e João Doria, não houvessem agido para reduzir a movimentação nos estados e nas capitais — o prefeito paulistano, Bruno Covas, participa das entrevistas diárias de Doria —, é certo que a gestão da área de saúde nos dois estados e nas duas capitais estaria ainda mais difícil.

Os erros e acertos do poder público como um todo e da própria sociedade nesta crise histórica já estão sendo contabilizados em número de caixões e de covas abertas em cemitérios lotados.

Resposta a Bolsonaro - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 22/04

Em boa hora, STF autoriza inquérito sobre ato pró-golpe apoiado pelo presidente


Fez bem o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, em autorizar a abertura de inquérito para apurar a ocorrência de crimes contra a segurança nacional durante manifestação em que se defendeu intervenção militar no domingo (19), em Brasília.

O ato, que contava com a participação de não mais que algumas centenas de energúmenos, ganhou repercussão porque o presidente Jair Bolsonaro aproveitou a ocasião para, em frente ao quartel-general do Exército, fazer um discurso de sotaque golpista com insinuações contra o Congresso.

A investigação é oportuna. Mesmo que não resulte em processo, o que ora parece mais provável, demonstra ao presidente e a seus acólitos que as instituições estão prontas a reagir com destemor a investidas autoritárias.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, evitou citar Bolsonaro no pedido de investigação. Limitou-se a mencionar “atos contra o regime da democracia brasileira por vários cidadãos, inclusive deputados federais, o que justifica a competência do STF”.

A ausência do nome do chefe de Estado, cuja presença na manifestação foi ostensiva, é eloquente.

O fato de a conduta do mandatário não constar do documento não significa que ele esteja imune à apuração. Se for constatada sua participação em delitos, o inquérito poderá dar origem a um processo por crime comum —além de servir de subsídio a um eventual pedido de impeachment.

Em ambas as hipóteses, para que os processos avancem, é necessária a autorização da Câmara dos Deputados, por maioria de dois terços de seus membros. Em caso de impeachment, o julgamento cabe ao Senado; tratando-se de infração penal comum, ao Supremo.

Em tese, o inquérito vai averiguar se houve violações a dispositivos de defesa do Estado que constam da famigerada Lei de Segurança Nacional, por meio da qual o regime militar processou opositores.

Merecem destaque o artigo 17, que coíbe tentativas de “mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”, e o 23, que criminaliza o incitamento à subversão da ordem política.

Aqui cabe, decerto, uma interminável discussão sobre se as ações de Bolsonaro efetivamente se encaixam nesses dispositivos e se eles próprios não são inconstitucionais, ao limitar demasiadamente o princípio da liberdade de expressão.

Não deixa de ser irônico, de todo modo, que um notório admirador da ditadura agora se veja às voltas com a lei dos tempos de arbítrio.