terça-feira, junho 09, 2020

Será que virá ministro do Supremo "terrivelmente fascistoide"? Senado dirá! - REINALDO AZEVEDO

UOL - 09/06



O Bolsonaro deputado de primeiro mandato admirava o Hugo Chávez golpista. E golpista segue sendo. Não Chávez ? não dá mais... Mas Bolsonaro!Imagem: Reprodução



Será que teremos um ministro do Supremo "terrivelmente fascistoide"? Só se o Senado se acovardar.

Vigiemos. Já chego ao ponto.

Ao conversar com os desocupados que dão plantão às portas do Alvorada, o presidente Jair Bolsonaro se referiu aos manifestantes que pedem democracia com a conversa truculenta de sempre: seriam os que põem "a manga de fora" e querem transformar o Brasil numa Venezuela...

Venezuela?

Agora muitos esquerdistas vão estrilar, mas a coisa mais parecida com Chávez que há no Brasil é Jair Bolsonaro.

Quando o então tenente-coronel Hugo Chávez tentou dar um golpe de Estado, em 4 de fevereiro de 1992, foi elogiado pelo agora presidente e então deputado, que estava no começo de seu primeiro mandato parlamentar.

Indagado sobre o golpista Chávez, afirmou Bolsonaro:
"Chávez é uma esperança para a América Latina e gostaria muito que essa filosofia chegasse ao Brasil. Acho ele ímpar. Pretendo ir a Venezuela e tentar conhecê-lo."

Mais um pouco?
"Ele [Chávez] não é anticomunista, e eu também não sou. Na verdade, não tem nada mais próximo do comunismo do que o meio militar".

Ou ainda:
"Acho que ele [Chávez] vai fazer o que os militares fizeram no Brasil em 1964, com muito mais força. Só espero que a oposição não descambe para a guerrilha, como fez aqui".

A coisa fazia sentido. O capitão havia sido chutado do Exército brasileiro — uma passagem compulsória para a reserva — em razão de sua deslealdade com a Força, o que admitiu.

A deslealdade se traduziu num artigo que escreveu para a "Veja", em 1986, contestando o valor do soldo. Na verdade, a coisa foi mais grave, mas o Exército escondeu a verdade. Ele havia planejado explodir bombas em quarteis e mandar para os ares a adutora do Guandu, no Rio.

Eis aí o grande patriota ao qual os generais hoje batem continência. Bolsonaro, reitere-se, planejava explodir bombas em quarteis, onde estavam seus colegas de farda. Um homem leal! Mas voltemos ao portão do Alvorada.

Depois de dizer que o grande problema do Brasil são aqueles que hoje se manifestam contra o seu governo, o presidente, por conta própria, falou sobre a vaga que será aberta no Supremo em novembro, com a aposentadoria compulsória de Celso de Mello.

Referindo-se à indicação que tem a fazer, afirmou ser a oportunidade para "ir arrumando as coisas"

E depois emendou:
"A gente vai vencer essa guerra aí. O Brasil não vai para a esquerda, não vai afundar. Não vai virar uma Venezuela como alguns queriam aí".

Huuummm... Entendi: o ex-fãzoca de Chávez (um tentou dar golpe, e o outro, praticar atos terroristas) chama manifestações democráticas de "o problema" do Brasil e anuncia que vai usar a indicação ao Supremo para "arrumar as coisas" no terreno ideológico...

Pois é... Embora Chávez fosse um fascistoide de esquerda e Bolsonaro seja um fascistoide de direita, outra coincidência se alevanta, né? O tirano na Venezuela também avançou sobre a democracia — depois de ter chegado ao poder por eleições democráticas — aparelhando a Justiça com os seu cupinchas. Começou pela corte suprema.

Quando esta foi colonizada, o resto ficou mais fácil. Ele ia usando eleição após eleição para instaurar a ditadura. E sempre em guerra com a imprensa.

Caberá ao Senado decidir se aceitará uma indicação "terrivelmente fascistoide" para o Supremo.

O fascismo só avança com a conivência dos canalhas, dos tolos e dos fracos.

Reflexões sobre a violência - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 09/06

Há algo de sacrílego na ideia de que os guardiões podem ser os carrascos


1. Há imagens que são história. E que ajudam a mudar a história. Se nessas imagens existirem policiais, melhor ainda: há algo de sacrílego na ideia de que os guardiões podem ser os carrascos.

Em 1968, quando os Estados Unidos estavam envolvidos na Guerra do Vietnã, um fotógrafo da Associated Press captou o momento em que o chefe da polícia do Vietnã do Sul enfiava uma bala na cabeça de um vietcongue.

Os americanos, quando confrontados com a imagem, fizeram a pergunta óbvia: que estamos nós fazendo no meio desses selvagens?

Antes da derrota no terreno, os Estados Unidos começaram a ser derrotados em casa, aos olhos do seu próprio povo.

O vídeo de George Floyd terá um estatuto igual. Assisti, com esforço, a esse “snuff movie” cruel, pornográfico e bem real: o agente com ar de triunfo, asfixiando com o joelho um homem que implorava por oxigênio.

Se a foto no Vietnã simbolizou a insanidade da guerra, o vídeo de George Floyd simboliza o racismo letal que sobrevive na cultura americana.

Aliás, por falar em racismo, é irônico, tragicamente irônico, que um outro vídeo tenha sido esquecido por esses dias. Sim, não tem a violência aterradora do vídeo de Floyd. Mas, em termos de violência social, merece um lugar no panteão.

Aconteceu no Central Park de Nova York, em finais de maio. Uma mulher (branca), passeando o cachorro, encontra um ornitólogo (negro) entre as árvores. O homem, chamado Christian Cooper, pede para que ela ponha a guia no cão. As regras do parque assim o exigem.

Ela se recusa. É então que Cooper começa a filmar a cena com o seu celular. A mulher, indignada, avisa que vai telefonar para a polícia para comunicar que “um afro-americano” está a ameaçar a sua vida.

Christian Cooper a convida a telefonar. A mulher telefona e, em tom artificialmente histérico, repete, em choro: “um afro-americano” está a me ameaçar no Central Park.

Em breves minutos, temos o essencial de um problema profundo: uma branca que se sente acima da lei; que não tolera um reparo público de um negro; que ameaça com a polícia; e que joga o argumento racial porque sabe que isso faz a polícia salivar (e os negros tremer).

Quando assistia ao vídeo, lembrei-me de um dos livros de história mais impressionantes que li neste ano: “They Were Her Property”, da historiadora Stephanie Jones–Rogers. É um estudo sobre o papel das mulheres (brancas) como donas de escravos no sul dos Estados Unidos. E de como essas mulheres foram implacáveis na defesa da instituição.

Isso não é politicamente correto, sobretudo quando o vitimismo contemporâneo põe todas as minorias na mesma sacola (mulheres, negros etc.)? Admito que sim.

Mas, por maiores que sejam as provações das mulheres brancas na sociedade americana, é preciso lembrar que a história dos negros se escreve com outras cores. As cores do sangue.

2. Ainda sobre imagens: a internet não partilhou apenas a morte de George Floyd. Também mostrou a destruição e as pilhagens que se cometeram em seu nome.

Dizer que essa destruição e essas pilhagens são manifestações antirracistas seria um insulto à memória de George Floyd e aos milhares de manifestantes que marcham, realmente, contra o racismo.

Pior: em incontáveis vídeos, podemos ver militantes de extrema esquerda e de extrema direita que, espancando ou roubando, mostram a essência que os une. Qual é ela?

O gosto pela violência. Eu sei, eu sei: em toneladas de tratados sociológicos, a violência nunca é violência. É um grito de ajuda, um ato simbólico, uma forma de denúncia etc.

Só pessoas que vivem na Lua (ou em muitos departamentos de humanidades, o que é a mesma coisa) levam a sério esse lero-lero.

Para elas, recomendo uma obra fundamental. Não, não é um livro. É o extraordinário filme de Danny Boyle, “Trainspotting”.

Falo, sobretudo, daquela sequência em que o personagem de Robert Carlyle joga uma caneca de cerveja sobre a multidão do bar, o vidro arrebenta a cabeça de uma moça e ele, indignado, proclama aos gritos: “Ninguém sai daqui enquanto não encontrarmos o responsável!”. E o festival de brutalidade começa.

Se eu, um homem pacífico, sinto com essa cena uma vontade quase irreprimível de me juntar à festa (a natureza humana é um abismo...), que dizer de delinquentes profissionais que vivem para esses momentos?

Para eles, a morte de George Floyd não foi uma tragédia; foi um presente.

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Bolsonaro dá caixão e enterro - JOSÉ CASADO

O Globo - 09/06

Governos em realidade paralela são casos clássicos na política


Jair Bolsonaro resolveu torturar estatísticas sobre as mortes de brasileiros pela Covid-19 até que confessem só uma “gripezinha”. Liquida a própria credibilidade, pois se não é possível confiar nos dados oficiais sobre a vida e a morte, por que se deveria acreditar nos números da economia?

Governos em realidade paralela são casos clássicos na política.

George III, rei da Inglaterra, derrotou Napoleão e impôs a hegemonia britânica. No 4 de julho de 1776, registrou em diário: “Nada de importante aconteceu”. Nada, só a declaração de independência dos EUA. Morreu cego, surdo e louco, depois de falar horas sem parar aos cortesãos — a reunião ministerial da época.

Luis XVI, marido de Maria Antonieta, era obcecado pela morte. Também anotou um “nada aconteceu” no 11 de julho de 1789, ao demitir o ministro da Fazenda, Jacques Necker, fiador da estabilidade do reino. Três dias depois deu-se a Revolução Francesa. Ele perdeu a cabeça, literalmente.

A psicopatia de Bolsonaro com mortes merece estudo, mas obedece a uma lógica peculiar de luta pelo poder. Ele nega porque não admite seu desgoverno na pandemia.

A ruína é visível na Saúde. E é notável a inépcia no socorro a micros, pequenas e médias empresas, donas de 52% dos empregos no país onde 54 milhões estão sem renda.

O presidente-candidato teme a conta política dos mortos. Os 37 mil já superam a população somada das quatro cidades paulistas onde viveu (Glicério, Ribeira, Sete Barras e Eldorado) antes de ser premiado com a inscrição na Aman, em Resende (RJ). Terá de lidar com esse mundo real se chegar ao fim do mandato e tentar a reeleição.

Bolsonaro renega a pandemia, mas Onyx Lorenzoni, operador da sua campanha em 2018, acaba de abrir um guichê para ajudar prefeitos a “cobrir despesas” dos funerais da Covid-19. Está no Diário Oficial. O governo não reconhece a mortandade, mas, numa cortesia pré-eleitoral, topa pagar caixões e enterros.

A hora do acerto de contas - CRISTINA SERRA

Folha de S. Paulo - 09/06

Momento recomenda paciência, mas manifestações mostraram que as ruas não têm dono



A cena tem a força de um acerto de contas com a história, ainda que tardio. Neste domingo, em Bristol, na Inglaterra, a estátua de Edward Colston, um traficante de escravos que viveu no século 17, foi derrubada de seu pedestal por manifestantes e lançada para seu destino inglório, o fundo de um rio. O ato resumiu o sentimento antirracista que tem movido protestos em todo o planeta nas duas últimas semanas, em plena pandemia, desde o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos.

Aqui, o racismo à brasileira nos dá motivos de sobra para protestar. Bastaria o caso do menino Miguel Otávio, de 5 anos, no Recife, largado à própria sorte num elevador pela sinhá impaciente porque queria pintar as unhas.

O lema “Vidas negras importam” acabou encorpando a ânsia por protestos também aqui e fez muita gente sair de casa no fim de semana passado. Esse movimento pôs em relevo um debate que vem dividindo as oposições ao governo Bolsonaro. Ir ou não às ruas no momento em que a pandemia mata um brasileiro por minuto?

As quarentenas não foram suficientes para frear o vírus, ainda não alcançamos o pico da contaminação e o presidente dificulta o combate à doença ao esconder o número de pessoas infectadas. Tenta, na verdade, mascarar sua inépcia e incompetência ao lidar com a crise sanitária. Iguala-se a um moleque com medo de mostrar aos pais o boletim cheio de notas baixas.

Diante das projeções dos cientistas, setores da oposição tomaram uma decisão de altíssimo risco ao manter a convocação para os atos, mesmo com os cuidados necessários. Um sinal importante, porém, foi dado. Para os valentões bolsonaristas que vinham se achando os donos da rua, os protestos do fim de semana deram seu recado: as ruas não têm dono. Contudo, o pico da pandemia que ora se aproxima recomenda paciência e espera. Até porque acertos de contas tardam, mas não falham.

Cristina Serra é jornalista.

Democracia e manifestações de rua - MICHEL TEMER

O Estado de S. Paulo - 09/06

A manifestação contra o governo ou a seu favor deriva do ‘pluralismo político’. É exercício democrárico


Logo de saída, no artigo 1.º da Constituição Federal, o Brasil é definido como “Estado Democrático de Direito”. Esta dicção tem especial significado. É que na ciência política Estado Democrático e Estado de Direito se equivalem. Aliás, quando se abandonou o Estado Absolutista, surgiu o Estado de Direito. Por que faço esta afirmação? Precisamente para revelar a ênfase na democracia.

Saímos, em 5 de outubro de 1988, data da nova Constituição, de um sistema centralizador e autoritário. Quisemos, e demos, relevo à democracia, que, com licença para a obviedade, significa “governo do povo”. Daí termos usado a expressão que abre a Constituição Federal logo no seu primeiro artigo.

Impõe-se verificar quais são os desdobramentos desse dispositivo para verificar se efetivamente vive-se na democracia.

De logo se registra que o inciso V do mesmo artigo 1.º sustenta que um dos fundamentos do Estado é “o pluralismo político”. Portanto, a pluralidade de opiniões é marca do nosso sistema, já que política (do grego polis) é a arte de governar. Plural, como é, enseja o debate de opiniões. De ideias e posições programáticas. E, naturalmente, de manifestações.

De onde vem o direito à manifestação? Do artigo 5.º, inciso XVI, que preceitua “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

O que ressai desse preceito é que manifestações podem dar-se “nas ruas” já que alude a “locais abertos”. Apenas é preciso manter a ordem. Daí a necessidade de prévio aviso e com pessoas desarmadas. E desde que não impeçam outra reunião no mesmo local que fora anteriormente comunicada à autoridade. Especialmente por tratar-se de movimento “pacífico”, a lei e a prudência administrativas recomendam que não se deve e não se pode autorizar a reunião de grupos divergentes no mesmo espaço. Aliás, quando os governos determinam e autorizam as reuniões em locais diversos não estão fazendo mais do que cumprir a Constituição.

Assim, ao lado da liberdade de manifestação do pensamento (artigo 5.º, inciso IV), da liberdade de consciência e de crença, a liberdade dos cultos religiosos (art. 5º, VI), a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5.º, VIII), a estas somada a liberdade de manifestação nas ruas, revela-se concretamente a democracia.

A essa altura podemos indagar: podem ser apontados como terroristas os que se manifestam na rua? Vejamos o que é “terrorismo” no texto constitucional. De logo, é crime inafiançável, dentre outros, o terrorismo. Está ao lado dos crimes: prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, assim como os crimes hediondos. Por que são crimes? Porque agridem o sistema normativo e, por isso, são apenáveis. Adicione-se a essa concepção o artigo 4.º, inciso VIII, da Constituição que repudia “o terrorismo e o racismo”.

Qual pode ser o crime de manifestação pública autorizada no Texto Magno que cumpriu os requisitos que o próprio texto exige? Nenhum. A manifestação contra o governo ou a seu favor deriva do “pluralismo político” a que antes aludimos. É exercício democrático. Pode, sim, ser sancionado se houver desordem deliberadamente praticada, conflitos que gerem ferimentos. Mas aí são outras hipóteses delitivas, puníveis por outras razões legais. Ou seja, não é a manifestação em si que é crime, nem pode ser classificada como terrorista. O que pode haver é apuração de eventual penalidade sobre “a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” nos dizeres do artigo 5.º, inciso XLIV. Daí porque inadequados juridicamente os movimentos que pregam o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.

Convém anotar, ainda, que o terrorismo pressupõe clandestinidade, movimento subterrâneo, às escondidas. Nada que diga respeito a manifestações públicas, a céu aberto.

A tranquilidade do País depende do cumprimento rigoroso da Constituição. E esta prega a paz e harmonia entre as pessoas e as instituições.

Michel Temer, ex-presidente da República

A Amazônia em tempos de globalização - RUBENS BARBOSA

O Estado de S.Paulo - 09/06

Em ambiente e clima, o Brasil perdeu a voz e a visibilidade no mundo que teve desde a Rio-92


Destravando a Agenda da Bioeconomia na Amazônia foi tema do encontro live organizado pelo Instituto Escolhas e pelo Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), na semana passada. Tivemos a oportunidade de tratar da questão da bioeconomia e da proteção da Floresta Amazônica como fator de projeção do Brasil no cenário internacional. Questões mais que nunca atuais e relevantes em vista da percepção externa do País extremamente negativa.

É indubitável que o meio ambiente entrou definitivamente na agenda global e um dos focos principais é a preservação da Floresta Amazônica. As imagens relacionadas a desmatamento, queimadas e garimpo ilegal na Amazônia em 2019 ganharam repercussão mundial. A retórica e algumas medidas e políticas governamentais contribuíram para a escalada da opinião pública internacional contra o Brasil, agravada agora pela maneira como é vista a condução das políticas em relação à pandemia e à confrontação política interna.

As preocupações com a preservação do meio ambiente e com a mudança do clima passaram a ter um impacto que vai além das sanções políticas, como no passado. Agora, com a entrada em cena da figura do consumidor e com a inclusão de políticas ambientais nas negociações de acordos comerciais, as consequências são econômicas e comerciais. Atraem restrições às exportações, boicotes e a inclusão de cláusulas específicas de desenvolvimento sustentável nos acordos comerciais, como ocorreu nas negociações do Mercosul com a União Europeia (UE). E Parlamentos europeus já estão votando moções contra o acordo com o Mercosul. O plano de recuperação da UE, depois da covid-19, inclui uma política industrial e uma política ambiental (Green Deal), que preveem punição a empresas que importarem produtos provenientes de áreas de desmatamento florestal.

Desde a conferência sobre meio ambiente realizada no Rio em 1992 o Brasil se tornara um ator relevante, com grande influência nas discussões e na implementação de políticas de meio ambiente e mudança de clima, como resultado do trabalho coordenado do Itamaraty e do Ministério do Meio Ambiente. O cenário atual mudou e o Brasil perdeu voz e a posição de visibilidade no mundo que ocupou nessa área nos últimos quase 30 anos.

O que fazer para transformar a percepção negativa do Brasil no exterior e evitar consequências contrárias aos interesses concretos do setor do agronegócio, o mais visado e prejudicado pela crescente importância que as exportações de produtos primários adquiriram no comércio exterior brasileiro? Nos primeiros cinco meses de 2020 mais de 65% das exportações brasileiras foram de commodities.

Restabelecer a credibilidade externa com o reconhecimento dos erros cometidos, recuperar a narrativa com resultados concretos de medidas e políticas adotadas e voltar a participar ativamente das discussões nos fóruns internacionais sobre a agenda de meio ambiente e mudança de clima são algumas das atitudes a tomar para que Brasil possa reverter essa percepção externa.

Vão na direção correta as recentes medidas do governo relacionadas ao restabelecimento em novas bases do Conselho da Amazônia, sob a coordenação do vice-presidente Hamilton Mourão, a abertura de negociações com a Noruega e a Alemanha para a volta da governança e do funcionamento original do Fundo Amazônia e a decisão de enviar o Exército para apoio ao Ibama e ao ICMbio no combate a ações ilegais de desmatamento, queimadas e garimpo ilegal na região. O Ministério da Economia está estudando um plano para o desenvolvimento econômico da região com o objetivo de discutir o regime de incentivos fiscais da União, inclusive no contexto da reforma tributária. A proposta de associar a Zona Franca de Manaus à biodiversidade da Floresta Amazônica poderia inicialmente complementar as atividades industriais hoje existentes.

De parte da sociedade civil, foi encaminhada ao governo, via presidência do Conselho da Amazônia, proposta do Instituto Escolhas e do Irice de um plano integrado da bioeconomia na Amazônia visando a utilizar os recursos naturais e humanos da região para estimular a economia e o emprego. O plano abre a possibilidade concreta de uma política consistente em curto, médio e longo prazos, com apoio de empresas nacionais e estrangeiras, além de governos e instituições financeiras internacionais. Estudo da OCDE mostra que até 2030 a contribuição da biotecnologia pode subir a mais de US$ 1 trilhão, distribuído entre os setores de saúde, produção primária e industrial. Por outro lado, a iniciativa da diplomacia ambiental que o Irice está desenvolvendo vai produzir um levantamento objetivo e transparente dos compromissos assumidos pelo Brasil em todos os acordos incluídos no capítulo de desenvolvimento sustentável do acordo Mercosul-União Europeia e o grau de cumprimento deles.

A defesa do interesse nacional aconselha, como defende o vice-presidente Mourão, uma narrativa transparente com a apresentação de resultados concretos e uma mudança de postura, com o abandono da atitude defensiva e com políticas e medidas para a defesa da Floresta Amazônica, acima de ideologias e partidos.

O Exército é a 1ª estatal privatizada por Bolsonaro: vendida aos Bolsonaros - REINALDO AZEVEDO

UOL - 09/06



Eduardo Bolsonaro recebe Marcelo Costa, representante da SIG Sauer no Brasil (esq.), acompanhado de representante do PSL. O deputado testa pistola da marca em clube de tiro. E fuzil de assalto 7.62, liberado para civisImagem: Reprodução


Aos poucos, o Exército Brasileiro vai se transformando num puxadinho dos interesses da família Bolsonaro. Antes que o presidente faça qualquer privatização de relevo, parece que uma das três Forças já está em franco processo de privatização.

Não se esqueçam: na reunião ministerial do dia 22 de abril, o capitão reformado Jair Bolsonaro afirmou, entre dois generais (Braga Netto e Hamilton Mourão), e com outro também a compor o lado principal do retângulo da mesa, que ele atua de forma deliberada para armar a população para que esta possa resistir, na base da bala, a decisões de governantes. O nome disso é guerra civil.

Essa é uma questão importante porque as organizações em defesa da vida e dos direitos humanos no Brasil têm agora a tarefa de fazer chegar a organismos internacionais que atuam na área a seguinte informação: o governo, por intermédio do Exército e de uma empresa americana, quer incrementar a produção e venda de armamentos para indivíduos.

Isso se dá num contexto muito particular: o chefe da nação assume que armar a população é uma questão política, não uma medida de autodefesa. Vale dizer: o eventual acordo se torna peça relevante num cenário que tem como horizonte a luta de brasileiros contra brasileiros. Leiam o que informa a Folha. Volto em seguida.
*
Após intenso lobby do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o Exército está prestes a fechar uma parceria para a fabricação de pistolas da marca americana SIG Sauer no Brasil. O filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é entusiasta de armas, e é visto no mercado como uma espécie de garoto-propaganda da SIG. Sua insistência em promover a empresa gerou desconforto em setores do Exército, já incomodados pela revogação de portarias de controle de armas e munições por ordem do presidente. No seu canal no YouTube e em sua conta no Facebook, Eduardo aparece testando pistolas da marca em um clube de tiro em março deste ano.

Em 16 de abril do ano passado, postou no Twitter a foto de uma reunião com representantes da empresa, prometendo ajudá-los: "Falta a garantia política de que o lobby não atochará tantas burocracias para emperrar a instalação" de uma fábrica no país. Em janeiro, o deputado disse que havia sido procurado pela SIG e que acreditava no interesse de outras empresas no Brasil, como a Beretta --a legendária forja italiana dá nome à sua cachorra. Há duas semanas, visitou o general Alexandre Porto, que assumiu a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército em substituição a Eugênio Pacelli, cujas portarias foram derrubadas.
(...)
O Exército informa que as duas empresas só precisam agora do aval dos respectivos governos para firmar um acordo de produção conjunta no Brasil. Ainda não há detalhes sobre metas e investimento.
(...)

COMENTO

Isso não é mais um governo, mas um grande lobby em favor da indústria armamentista.

Desde que assumiu a Presidência, esse é o setor em que presidente é mais buliçosamente legiferante — e sempre para relaxar posse e porte de arma, além de facilitar a compra de munição.

Na reunião ministerial do dia 22 de abril, Bolsonaro se refere a uma portaria que foi, de fato, baixada no dia seguinte, que elevou de 200 por POR ANO para 550 POR MÊS a quantidade de munição que pode ser comprada por civis: foi multiplicada 33 vezes.

Já a Portaria 62 extinguiu três outras — 46, 60 e 61 — e pôs fim ao rastreamento de armas e munições. Para tanto, Bolsonaro interveio pessoalmente no Comando de Logística do Exército e cavou a exoneração do general Eugênio Pacelli da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados. Era ele o responsável pelas portarias extintas, que garantiam a rastreamento. Há uma ação do PSOL no Supremo contra a Portaria 62.

Na semana passada, em mais uma intervenção no setor, Bolsonaro permitiu que civis comprem os fuzis de assalto fuzis 5.56 e 7.62 fabricados pela Imbel, a empresa fabricante de armas do Exército, que faria, então, a parceria com SIG Sauer, em favor da qual Eduardo Bolsonaro faz lobby.

Quem sai ganhando com a generalização de posse e porte de armas, incluindo fuzis de assalto, sem rastreamento? Não é preciso ser muito bidu: as milícias e o narcotráfico. Isso nada tem a ver com autodefesa. E, claro!, há a aposta do presidente na guerra civil. Relembro sua fala do dia 22 de abril:

"O que esses filha de uma égua quer, ô Weintraub, é a nossa liberdade. Olha, eu tô, como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. (...) Eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta! Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não dá pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais. (...) É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado".

ENCERRO

E pensar que um dos filhos de Lula é réu, com o pai, num inquérito por suposto lobby em favor do caças Gripen, da Suécia, comprados pela Aeronáutica.

É a mais alucinada de todas as acusações contra o petista. A compra dos caças só se deu em 2013. A decisão foi inteiramente da Aeronáutica, sem interferência do governo. COMO SABE A AERONÁUTICA.

Lula está sendo investigado porque recebeu uma carta do então sindicalista e presidente do Partido Social Democrata sueco, Stefan Löfven, defendendo o Gripen. Pedia que ela fosse endereçada ao governo. Löfven é o atual primeiro-ministro da Suécia.

Tal carta bastou para que o Ministério Público Federal fabricasse uma teoria mirabolante sobre a suposta influência do petista na escolha dos caças. A única evidência de que dispõem é essa.

Comparem com a atuação desabrida de Eduardo, que se comporta abertamente como lobista, com a devida, digamos, documentação na Internet.

Se o acordo sair, vamos ver o que vai fazer o Ministério Público Federal.

Eis aí! O Exército e a primeira estatal privatizada por Bolsonaro. Em favor da família Bolsonaro.

Vírus tatuou os mortos na biografia de Bolsonaro - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 09/06


Ao ordenar que o Ministério da Saúde conte a verdade ao país sobre os mortos do coronavírus, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, liberou Jair Bolsonaro para cometer seu próximo erro na crise sanitária. Ele virá, é questão de tempo.

É como se a sequência de erros tivesse surtido o efeito de uma vacina às avessas. Cada dose de equívoco reforçou os anticorpos que tornaram o presidente imune ao acerto. A desfaçatez e a insensibilidade encontraram o equilíbrio em suas veias.

Há algo de sádico no comportamento de Bolsonaro. Houve um momento em que ele poderia ter abandonado o negacionismo. Foi no instante em que manuseou, no início de abril, uma pesquisa do Datafolha.

A sondagem revelava que 76% dos brasileiros aprovavam a maneira como o Ministério da Saúde, sob Henrique Mandetta, lidava com a pandemia. Entre os eleitores bolsonaristas, a aprovação explodia para notáveis 82%.

Bastaria a Bolsonaro encostar sua imagem na gestão de Mandetta, jactar-se da qualidade de sua equipe, e credenciá-la para realizar uma coordenação da crise desde Brasília.

O esforço poderia resultar em nada. Mas revelaria a presença no Planalto de um presidente disposto a presidir a crise. Bolsonaro preferiu ser presidido pela pandemia. Permitiu que o vírus influenciasse o rumo do seu governo.

Com a pasta da Saúde transformada em unidade militar com um par de puxadinhos do centrão, Bolsonaro deixou-se infectar por um germe oportunista. O germe da ocultação. O presidente quis maquiar a pilha de cadáveres. Não colou.

O Brasil está prestes a ultrapassar a barreira dos 40 mil corpos. Há na praça previsões que empurram o número de cadáveres para as fronteiras do inimaginável.

Mais tarde, dentro de uns 100 anos, quando a posteridade puder falar sobre esse período da história sem usar máscara, surpreenderá os brasileiros do futuro com o relato fantástico de uma história de amor: a trajetória do vírus que tatuou centenas de milhares de corpos na biografia de um presidente que se apaixonou pelo erro, sendo plenamente correspondido.

'Ensaio sobre a cegueira' - ANA CARLA ABRÃO

ESTADÃO - 09/06

A história tem inúmeros casos em que mudar os fatos foi uma saída vergonhosa


O isolamento imposto pela pandemia da covid-19 tem motivado várias reflexões. Numa dimensão individual, a necessidade de distanciamento físico nos obrigou a reorganizar os métodos de trabalho, trouxe as famílias de volta ao convívio e nos provocou no sentido de rever prioridades. Nesse processo, muitos resgataram uma leitura (ou quem sabe várias) relacionada a alguma grande peste que assolou o mundo – na realidade ou na ficção. Relemos Gabriel Garcia Marques, Albert Camus, José Saramago e tantos outros.

No cinema, revimos O Sétimo Selo ou, para os que são mais novos, Contágio ou algum outro filme que nos remeta a essa situação inesperada e surreal que vivenciamos hoje. Mas nem mesmo as obras mais perturbadoras conseguem refletir a nossa atual situação, que teima diariamente em ir além de várias dessas trágicas descrições ficcionais.

Nossas mazelas são maiores e mais profundas e se expõem agora como nunca. A primeira delas se refere à nossa inaceitável condição social, onde a desigualdade de renda se escancara na assimetria dos impactos econômico, social e de saúde a depender da classe de renda. Isso gerou, felizmente, uma mobilização filantrópica sem precedentes da sociedade civil e questionamentos sobre a eficácia da nossa rede de proteção social. Esperemos que também se reflita em foco naquele que é o nosso principal problema estrutural e ganhe prioridade na elaboração de políticas públicas – e não só as de complementação de renda.

Pelo lado dos orçamentos públicos, quedas inéditas de arrecadação e mudanças nas prioridades – com os gastos de saúde assumindo protagonismo – impõem um desafio adicional onde o desequilíbrio já era grande. Receitas e despesas terão de ser revistas à luz de uma nova realidade econômica, mas também com base nessas novas prioridades e no aprofundamento da crise. Não deixa de ser uma oportunidade para corrigir problemas estruturais. Mas só para os gestores que se dispuserem a abraçá-la.

Mas é no atendimento de saúde que ainda estará, por algum tempo, o principal foco. Afinal, a epidemia no Brasil já deixa um rastro trágico de cerca de 700 mil casos de contaminação e mais de 36 mil óbitos e ainda continua a se expandir. Embora tenha se espalhado de forma heterogênea pelo território brasileiro, é sabido que o avanço ainda está acelerado em algumas regiões e a atual subnotificação deve multiplicar esses números por muito. Ou seja, a realidade é muito pior. Por isso, e por alguns outros motivos, o mundo nos observa com um misto de pena e temor. Deveriam reconhecer o controle conquistado e as vidas poupadas até aqui por Estados como São Paulo e distinguir a falta de coordenação do governo federal, do esforço e planejamento de vários governadores e prefeitos.

Mas o Brasil é um só aos olhos do mundo. E quem fala pelo País é o presidente da República, que ainda hoje não reconhece a gravidade da pandemia, se recusa a seguir as orientações de higiene mundialmente consagradas, insiste na cura milagrosa de um medicamento sem comprovação científica de eficácia e manda, diariamente, sinais contrários às recomendações de distanciamento social. Ou seja, ao contrário de outros líderes que em algum momento reviram seu ceticismo, movidos que foram pelas evidências, o presidente Jair Bolsonaro continua negando os fatos. E agora ameaça mudá-los.

A história tem inúmeros casos em que mudar os fatos foi uma saída vergonhosa para quem não quer reconhecê-los para evitar o constrangimento do erro. Aqui no Brasil estamos a viver essa triste repetição. Desde a semana passada, por uma determinação do presidente da República, os dados referentes à covid-19 tiveram sua divulgação atrasada para evitar que fossem notícia. Agora, sob o pretexto de que há fraudes ou manipulação dos dados, as informações estão sendo revistas. Tivesse o governo federal exercido o seu papel de organizar o processo de coleta, dar transparência às informações, garantir uma política ampla de testagem e coordenado ações nacionais de combate à pandemia, teríamos mais clareza em relação aos dados e menor incerteza sobre o número correto de contaminados e mortos. Mas, bem sabem os que lidam com as ações de resposta, se há problemas com os dados eles estão no campo da subnotificação – e não o contrário.

De toda a literatura que ressurge agora nos tempos de isolamento, a que mais nos reflete talvez seja Ensaio sobre a Cegueira e seu mar de pessoas vulneráveis, contaminadas por uma cegueira branca. Numa triste alusão à epidemia, à nossa condição social e à cegueira a que querem nos condenar, peço licença aqui para reproduzir Saramago e finalizar afirmando que “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem. Cegos que, vendo, não veem”.

Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman.

Cada um conta - MERVAL PEREIRA

O Globo - 09/06

Brigar com os números é uma tendência de todo governo autoritário ou populista, controlar a narrativa também


Seria uma grande notícia se o presidente Bolsonaro tivesse tomado a decisão de que não aceita mil mortes todos os dias, em consequência da Covid-19 e, ordenasse uma reunião de emergência para analisar que medidas teriam que ser tomadas na área da Saúde para evitar que esse número trágico se repetisse.

Sim, ele decidiu que não queria mais ver o anúncio de mais de mil mortos por dia, ou um morto por minuto. Mas não tomou medidas na área sanitária. Simplesmente decidiu maquiar as estatísticas para nunca mais ouvir o Papa Francisco lamentar no Angelus o fato “terrível” de morrerem mil pessoas por dia no Brasil.

Brigar com os números é uma tendência de todo governo autoritário ou populista, controlar a narrativa também. Stálin mandava apagar das fotos seus antigos aliados caídos em desgraça. O mais incrível é que o governo tem um ponto importante nessa discussão.

Se o número de mortes em 24 horas inclui as mortes ocorridas anteriormente, cujo diagnóstico de Covid-19 só agora foi confirmado, o total de mortes diárias está distorcido, embora o que importa, a soma total de mortos não mude. Se houvesse a separação das mortes nas 24 horas, e as confirmadas entre as que estavam na fila de suposição, a informação seria também correta, e a estatística mais esclarecedora.

Não está acontecendo, mas as mortes diárias podem, teoricamente, estar caindo, e as confirmadas crescendo, pois não temos testagem para determinar a Covid-19 em todos os pacientes.
O ministério da Saúde está uma confusão só.Agora prometem que vão dar as mortes notificadas no dia junto com a data em que ocorreram. Sem explicar como.

Acontece que o padrão é internacional, embora alguns Estados brasileiros separem os dados. O que importa é que o número de mortos anunciado naquele dia seja a soma dos mortos nas últimas 24 horas com a das mortes confirmadas. Mas o governo não faz a soma, nem apresenta os dois números separados. Simplesmente some com parte dos dados.

O que revela mais uma vez a insensibilidade de Bolsonaro é que o presidente só se mexe para esconder fatos, nunca para solucionar problemas que aparecem no decorrer dessa trágica pandemia. Usa a desculpa de que o Supremo Tribunal Federal (STF) delegou aos Estados e Municípios o combate à Covid-19, o que não é verdade.

Se quisesse, o governo federal poderia combinar com governadores e prefeitos conceitos de uma política comum, e cada um adaptaria as orientações às características de sua localidade. Políticas de compra de material médico, por exemplo, são típicas de uma ação governamental centralizada.

O fato é que, manipulando ou não os dados, o Brasil caminha para se tornar o segundo país com mais mortes no mundo. Como chegamos ontem a 37.312 mortes, segundo o consórcio da imprensa, provavelmente ultrapassaremos o Reino Unido, que tem cerca de 40 mil mortos, nessa trágica disputa.

Mesmo na contagem proporcional, por milhão de habitantes, o Brasil não está tão bem como querem os apoiadores de Bolsonaro. Em relação à América do Sul, por exemplo, o número de mortos pela Covid-19 é quase três vezes maior que o registrado nos demais países somados, cerca de 70% do total, embora o país tenha perto da metade da população total da região.

Em relação à Europa, o Brasil está em melhores condições do que a Espanha, que tem 597 mortos a cada milhão de habitantes, seguido pelo Reino Unido com 587, Itália com 557, França com 445 e Estados Unidos com 326. Temos 160 mortes a cada milhão de habitantes, mas há diferenças preocupantes.

Uma taxa de idosos, acima de 65 anos, os mais frágeis diante do vírus, de menos de 10%, enquanto na Europa o índice médio é de 20%, e ainda não chegamos ao pico da epidemia, enquanto na Europa ela já está decadente. Além do mais, pesquisadores do Portal Covid-19 Brasil, união da Universidade de São Paulo (USP) com a Universidade de Brasília (UnB), calculam que o número real de infectados no Brasil chega a ser 10 vezes maior do que o divulgado, variando entre 4,6 e 6,5 milhões, o que significa que devemos ter muito mais mortes em decorrência da Covid-19, com subnotificações. As mortes oficialmente por problemas respiratórios cresceram assustadoramente.

Sobretudo, é preciso entender que os mortos não são apenas números estatísticos. São seres humanos, e cada um conta.

O crime da desinformação - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 09/06

Ao tentar brigar com números da pandemia, tudo o que o governo conseguiu foi mais desgaste e exposição negativa


Quando os absurdos se tornam frequentes, o risco é perdermos a noção da gravidade. Sonegar informações de mortos e contaminados numa pandemia é crime. Tudo o que o governo Bolsonaro já fez nos últimos dias no Ministério da Saúde — tirar site do ar, divulgar números conflitantes, acusar governos estaduais de superfaturar a morte, desinformar deliberadamente — é abuso de autoridade. É também inútil. Os órgãos de imprensa anunciaram uma parceria inédita, e o Congresso, uma comissão mista especial de acompanhamento do coronavírus. No final do dia, o governo ensaiou um recuo, mas ainda deixou muitas dúvidas no ar. Divulgou dados incompletos, com menos mortes e casos em relação ao que foi apurado pelo consórcio dos jornais.

Democracia busca sempre maior transparência. Ditaduras escondem informações, brigam com os números, quebram termômetros, ameaçam quem informa, mudam metodologias para ver se conseguem fazer os dados corresponderem à versão que lhes convém. Numa pandemia, a falta de informação desorienta pessoas e administradores públicos e pode levar a decisões temerárias.

Numa crise, a comunicação confiável é uma arma poderosa na mão de governantes esclarecidos para ajudar na solução. É parte do tratamento. O Ministério de Saúde comandado por Luiz Henrique Mandetta entendeu isso. Aquelas entrevistas diárias ajudavam a esclarecer e informar. No início da pandemia, com tanto desconhecimento sobre o assunto, foi fundamental e sem dúvida salvou vidas por transmitir o senso de urgência e gravidade. No curto período Nelson Teich, a comunicação ficou mais opaca e o Ministério da Saúde se enfraqueceu. No interinato do general Pazuello, o Ministério da Saúde está sendo desmontado. A briga com os números é parte dessa conspiração.

A ideia que eles tentaram emplacar nos últimos dias no Ministério, de anunciar apenas as mortes confirmadas no dia, tinha vários defeitos. Primeiro e mais importante, deixaria alguns óbitos num limbo, dado que eles também tinham sumido com os dados consolidados. Segundo, interromperia o critério que vinha sendo usado e que era compreendido por todos já. Terceiro, eles mesmos se atrapalharam, como ficou claro na divulgação de dois números totalmente díspares anunciados para as mortes de domingo. Era de 1.382 e caiu para 525. Com manobras assim perde-se credibilidade. Ontem, eles avisaram que haverá novo site, prometeram divulgação de todos os números. O das mortes do dia, o das mortes consolidados no dia, e os dados gerais, acumulados. Tudo isso foi anunciado pelo secretário-executivo substituto, Élcio Franco. Ele ostentava uma caveira na lapela. Alguém deveria avisá-lo que, dadas as atuais circunstâncias, não deveria exibir tal medalha em uma entrevista no Ministério da Saúde.

O recuo de ontem pode não encerrar essa brincadeira trágica com as estatísticas. Foram dias atrasando deliberadamente a divulgação para tentar atingir — como explicou o presidente Bolsonaro — o Jornal Nacional. Tudo o que conseguiu com suas idas e vindas foi mais desgaste e exposição negativa. Há uma velha lei implacável: quem briga com os números acaba sempre perdendo.

É um espanto que o presidente consiga militares dispostos a incendiar o próprio currículo para seguir ordens estúpidas, como as que foram inspiradas em um notório e caricato áulico. O general Pazuello e seus coronéis, que militarizaram o Ministério da Saúde, fazem mal também à imagem da própria corporação à qual integram ou integraram. Sem traço de espinha dorsal se submetem a ordens esdrúxulas desprovidas de qualquer respaldo técnico. Quando a situação melhorar, quando chegar o dia em que vencermos o vírus, graças a quem agiu certo durante essa pandemia e graças sobretudo aos heróis da saúde, nós jornalistas seremos os primeiros a querer noticiar. E desta vez com alegria.

A confusão pode ser só sobre dados, mas não percamos a visão do todo. O que Bolsonaro tem feito durante esta pandemia é terrivelmente desumano. Desde o começo, negar a gravidade da doença, não ser solidário, derrubar ministros da Saúde, prescrever remédios como se médico fosse, atacar governadores e prefeitos, adiar a transferência de recursos para estados e municípios e impor a maquiagem do número de mortes. Bolsonaro sabota a saúde do povo brasileiro, estimula comportamentos temerários e perturba a ordem pública. Ele é o pior governante que poderíamos ter numa crise desta dimensão.

Cortando as asinhas - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 09/06

‘Grande problema’ não são atos pró-democracia, mas falta de governo, de estatísticas, de pudor


À deriva, o governo faz água por todo lado. O presidente Jair Bolsonaro continua fora de órbita, em outro planeta, Moro caiu, Mandetta foi demitido, Nelson Teich desistiu, Paulo Guedes sumiu, o Ministério da Saúde acabou e o da Economia submergiu, enquanto outras pastas pintam e bordam, sem rumo, sob aplausos do presidente. Ou o rumo é romper com a China, estorricar a Amazônia, prender ministros do Supremo e governadores? Uma situação melancólica, ou desesperadora.

Nem a exposição da reunião de 22 de abril, uma síntese do governo, que gerou ou alimentou investigações no Supremo, conteve Bolsonaro. Conforme o Estadão, foi ele quem deu, pessoalmente, a ordem para o Ministério da Saúde divulgar “menos de mil mortes por dia” e “acabar com matéria do Jornal Nacional”. Pois entrou plantão extraordinário na novela, o Congresso está criando uma central própria e Estadão, G1, O Globo, UOL, Folha e Extra fecharam parceria para prestar as informações que o governo sonega ou manipula.

O dr. Jair, epidemiologista, assumiu desde o início uma cruzada particular contra o isolamento social adotado no mundo todo. O dr. Jair, cientista, determinou o uso indiscriminado da cloroquina sem qualquer aval internacional ou nacional. Agora, o deus Jair decide quantos são os mortos do coronavírus. Danem-se os fatos e as mortes. O que importa é a versão do dr. Jair, o Messias Bolsonaro.

É triste, e preocupante, o desmanche do Ministério da Saúde – um antro de esquerdistas, segundo Damares. E é igualmente triste, e preocupante, que generais e coronéis se disponham a assumir o jogo sujo, sem nunca terem visto uma curva epidemiológica, mas prontos para a “missão”: bater continência e cumprir as ordens do presidente que nenhum médico decente cumpriria. “Às favas os escrúpulos de consciência” – e a condenação da história. Por que a prioridade para a “mudança de metodologia” na contagem de vítimas a esta altura? A quem enganam?

Com os mortos passando de 37 mil, as empresas e os empregos derretendo e a previsão de queda de 8% do PIB, o presidente declara, sem o menor pudor, que “o grande problema” do momento são as manifestações de domingo pró-democracia, contra o racismo e o próprio Bolsonaro. “Estão botando as manguinhas de fora”, acusou.

Definitivamente, o grande problema do Brasil não são as novas manifestações, é a gritante falta de governo, que choca o País e o mundo. Como explicar que o presidente brasileiro não apenas guerreia com a realidade como passa a assassinar as estatísticas da pandemia? Fraudar ou dourar o número de mortos e contaminados não é próprio de democracias.

Estamos em más companhias – Venezuela, Coreia do Norte e Arábia Saudita – e até por isso, apesar das dúvidas e das críticas legítimas que cercam a realização de manifestações neste momento, a resistência das instituições, das entidades, da mídia e das ruas vai encorpando e encorajando as pessoas a gritarem “basta!”.

Quem “botou as manguinhas de fora” primeiro? Não foram os que foram às ruas só no último domingo, mas, sim, os bolsonaristas que afrontaram as recomendações da OMS e de quase todos os países para fazer aglomerações em atos contrários ao STF e ao Congresso, usando até o QG do Exército como fundo. E o que dizer dos 30 alucinados que se dizem 300 e se plantam armados na Praça dos Três Poderes?

Os vários manifestos, os atos pró-democracia e a união nacional proposta por Fernando Henrique, Marina Silva e Ciro Gomes não são ataque, são movimentos de defesa. Exatamente para “cortar as asinhas” do “gabinete do ódio” do Planalto e dos golpistas estimulados pelo presidente da República e pelas redes sociais, com o beneplácito das Forças Armadas.

Estripulia estatística é mais um crime de responsabilidade de Bolsonaro - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 09/06

Presidente não poderia anular tão completamente o Ministério da Saúde


O plano do governo federal de quebrar o termômetro em vez de atuar contra a Covid-19 é infantil e ineficaz. Mesmo que o Ministério da Saúde deixasse em definitivo de publicar os dados sobre a evolução da epidemia no país ou inventasse fórmulas para falseá-los, a sociedade não seria privada da informação real.

O Ministério da Saúde nunca foi o produtor original dos números. Ele só consolidava dados fornecidos pelas secretarias de Saúde, que, ao que tudo indica, continuarão a gerá-los. O trabalho de juntar tudo diariamente pode ser executado sem maiores problemas por uma infinidade de atores, públicos e privados.

Tudo o que Bolsonaro consegue com suas estripulias estatísticas é cometer mais um crime de responsabilidade para adicionar à longa lista dos já perpetrados e criar números fraudulentos que sua claque vai usar para seguir lutando contra a realidade.

Bolsonaro não é, porém, o único responsável pelo escândalo das tabelas. Nós, como sociedade, mas em especial a chamada “intelligentsia”, somos copartícipes dessa impostura. É que temos tolerado por tempo demais ataques contra a ciência e as boas práticas administrativas.

Não deveria ser possível, por exemplo, que um presidente tivesse poder para anular tão completamente o Ministério da Saúde. A burocracia estável da pasta deveria estar protegida de influências políticas na execução de certas tarefas eminentemente técnicas, que incluem a divulgação de boletins epidemiológicos.

E há muito mais. É escandaloso, para citar outro exemplo, que o Conselho Nacional de Saúde tenha recomendado o uso complementar de homeopatia, fitoterapia, florais e reiki para tratamento da Covid-19 e que isso tenha passado sem gerar uma onda de protestos. Ora, quando o SUS aceita água com açúcar e passes de magia como terapias, a cloroquina de Bolsonaro e o desinfetante sistêmico de Trump soam quase como hipóteses científicas.

Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

Pedaladas funerárias - CARLOS ANDREAZZA

O Globo - 09/06

Temos um governo que, oficial e criminosamente, descaracteriza números de doentes e mortos pela peste, prática fascistoide que compõe a gramática golpista


Não deveria haver gente protestando nas ruas. Há uma pandemia; a sanha de um vírus traiçoeiro. Há também, no entanto, o vírus do bolsonarismo; a forma agressiva como, explorando a janela de oportunidades escancarada pelo enfrentamento à Covid-19, Jair Bolsonaro e seu projeto autocrático de poder aceleram o programa de radicalização para infeccionar a democracia liberal. Crise é chance. Crise é pretexto.

Agora, por exemplo, temos um governo que, oficial e criminosamente, descaracteriza números de doentes e mortos pela peste — prática fascistoide que compõe a gramática golpista. A ideia: que não haja fatos; que tudo seja controvérsia e sirva a formulações conspirativas. É a peste dentro da peste. As pestes dentro da peste. Uma delas: um militar, general, à frente do Ministério da Saúde, prestando-se ao papel de ser cavalo da vontade do presidente — que sobre toda a superfície do Estado tenta expandir a natureza meramente narrativa do fenômeno reacionário que encarna.

O que interessa: em campanha contínua, fabricar constantemente inimigos. A lógica é simples e influente. Como o establishment, sinônimo de “forças nada ocultas”, trabalharia para derrubar Bolsonaro, tudo quanto originário do sistema — da própria estrutura republicana — teria o fim de destruí-lo. Por exemplo, a consolidação e a exposição dos números de vítimas da Covid-19: ação para desestabilizá-lo.

Bolsonarismo é jogo de versões; investimento em dissonâncias, guerra cultural permanente — para isto, com a cumplicidade de militares, foi capturado o Ministério da Saúde. A multiplicação de helenos no governo — tragando o Exército — é muito mais perniciosa que os três ou quatro weintraubs que há.

Para defender este projeto de poder, com a adesão frequente do próprio Augusto Heleno, temos — há semanas — centenas de pessoas nas ruas; todas mui à vontade, sem a vigília policial, como merecem os patriotas ordeiros da ucranização. Manifestações governistas — não raro com a presença do mito — que pedem, a cada vez com maior desinibição, intervenção militar; mas com a ressalva de que para manter Bolsonaro no comando. O presidente presente convida aos atos e lhes chancela pauta e tom. Tão pacíficos — à parte um ou outro taco — quanto serão sempre encontros de democratas que demandam, pregações criminosas, os fechamentos de Congresso e Supremo.

O presidente presente chama às ruas e avaliza o tom também de seus opositores. Aí está. Outro grupo disposto a tomar riscos — e colocar em risco — por motivo político. Questionados sobre a irresponsabilidade de protestarem sob o bafo da praga, esses manifestantes dirão que têm pressa, que o bolsonarismo avança em seus propósitos golpistas — e que um vírus, o coronavírus, não pode servir de blindagem para que outro vírus, o bolsonarista, prospere. São argumentos poderosos, que abastecem um ciclo perigoso, cujo impulso original tem músculo num cálculo pessoal sobre a morte. Vale? A resposta é individual. Mas pergunto: quanto desse ímpeto — desse desejo por se medir contra o designado mal — terá matriz no ressentimento? O ressentimento, o veneno: a própria essência do bolsonarismo — daquilo que se quer vencer.

A mentalidade que nos dirige é a autoritária. Há um clima de revanchismo. É difícil falar em protesto pacífico. Seria simplificador. Estamos na mais baixa cavidade de uma depressão política aguda — e a linguagem que se normalizou é a da violência. De modo que, sim, a manifestação contra Bolsonaro foi pacífica na maior parte do tempo — e pacífico foi o comportamento da maioria de seus participantes, com o necessário destaque à centralidade da bandeira antirracismo.

Pacífica, majoritariamente pacífica, quase sempre em defesa da atividade política como forma de mediação — mas não só pacífica e nem sempre dentro das regras do trânsito político. Há nuances. Manifestações dentro da manifestação. Não examiná-las — ou tratá-las como irrelevantes — será fazer militância. Havia muitos sentimentos reunidos ali; entre os quais o ódio, ódio à burguesia, ódio à polícia, ódio bradado, costela da qual se desgarrou, como produto marginal do protesto, a falange para o choque, para o confronto, para a depredação. Talvez seja derivação inevitável. Mas não indomável; sendo possivelmente controlada, diluída essa franja, pela evolução madura do movimento — a ver — para pautas que, ao estabelecerem vínculos institucionais, sejam capazes de seduzir a sociedade. A do impeachment, por exemplo.

Ninguém se junta a uma manifestação, em meio a uma pandemia, para brincar. São sujeitos no limite. O caráter difuso dos atos atrai agendas várias. Circunstância também propícia à operação de oportunistas e infiltrados. Eu sei. De todo modo: a engrenagem perfeita para um circuito temerário; que — acercando-se da desobediência civil — arma gatilho para as intenções golpistas.

Não dou conselho a corajosos. Mas — importando imagem recente — não se vencerá Bolsonaro depredando Churchill.

Coragem moral - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 09/06

Tivesse alguma coragem moral, o general Eduardo Pazuello teria pedido demissão ao receber a ordem para esconder os números da covid-19


Tivesse alguma coragem moral, o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, teria pedido demissão ao receber a ordem para esconder os números relativos à pandemia de covid-19. Ao permanecer no cargo e cumprir a absurda determinação, Pazuello não apenas colaborou para desmoralizar ainda mais o Ministério da Saúde, como danificou a imagem das Forças Armadas, já que é militar da ativa e apresentado pelo presidente Bolsonaro como um dos sustentáculos militares de seu governo. Se não é, deveria deixar isso claro.

Não é de hoje que o presidente Jair Bolsonaro vem colocando em dúvida o número de mortos na pandemia. Mais de uma vez, acusou os governadores de Estado, seus desafetos, de inflar as estatísticas para justificar a quarentena e, assim, criar uma crise com o objetivo de prejudicar o governo.

Foi necessário afastar dois titulares da Saúde para que Bolsonaro finalmente encontrasse um ministro subserviente o bastante para transformar essa teoria da conspiração em política de governo.

Em perfeita sintonia, o empresário Carlos Wizard, convidado para ocupar uma Secretaria no Ministério da Saúde, deu o tom da presepada ao dizer que os dados produzidos até aqui eram “fantasiosos ou manipulados” e que uma “equipe de inteligência militar” identificou sinais de fraude nas informações prestadas pelos Estados. Em resposta, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde divulgou nota em que diz que Wizard, “além de revelar sua profunda ignorância sobre o tema, insulta a memória de todas aquelas vítimas indefesas desta terrível pandemia e suas famílias”. Quando já estava claro que suas declarações prejudicariam a imagem de suas empresas, Wizard pediu desculpas e declinou do convite – mas a lembrança da ofensa que praticou será perene.

Ao maquiar os dados, o presidente Bolsonaro e seus serviçais no Ministério da Saúde atentam contra as regras básicas de transparência da administração pública. Sem a publicidade ampla e integral de informações produzidas pelo Estado, a democracia não se realiza, pois a manipulação de dados compromete a capacidade dos cidadãos de exercer o controle público da administração. Além disso, informações distorcidas certamente resultam em decisões equivocadas, tanto por parte dos cidadãos como por parte do governo.

Na hipótese de que a ardilosa revisão dos números da pandemia desenhe um quadro menos grave do que o atual, seria natural que os cidadãos desafiassem as regras de isolamento social impostas pelas autoridades estaduais e municipais – exatamente como deseja o presidente Bolsonaro. Ou seja, tomariam uma decisão temerária baseados em estatísticas falsas ou adulteradas, colocando em risco ainda maior a saúde pública em meio à pandemia.

Como bem lembrou o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, “a manipulação de estatísticas é manobra de regimes totalitários” e, portanto, é preciso “parar de brincar de ditadura” no Brasil. Na Venezuela chavista, que o presidente Bolsonaro tanto critica, os dados oficiais foram tão manipulados que perderam completamente a credibilidade, obrigando a sociedade civil a apurar as informações por conta própria.

Há um movimento semelhante aqui no Brasil. Logo depois que o País tomou conhecimento da iniciativa do governo de esconder os dados da pandemia, veículos de comunicação – entre os quais o Estado – decidiram trabalhar de forma colaborativa para obter as informações nas Secretarias de Saúde de todos os Estados. Além disso, o Tribunal de Contas da União ofereceu-se para fazer a consolidação dos números. Por fim, partidos de oposição entraram na Justiça para exigir a divulgação correta e ágil das estatísticas.

A firme reação da sociedade ante as patranhas do governo Bolsonaro em relação à pandemia coincide com o início de um movimento de defesa da democracia, que no domingo passado, a despeito da necessidade de manter o isolamento social, levou milhares de pessoas às ruas, em protestos pacíficos. Para o governo, esses cidadãos cansados do embuste bolsonarista são “terroristas”.

Um governo que vive de enganar os cidadãos e de criminalizar a oposição não é democrático e deve ser denunciado com o maior vigor, mesmo diante das limitações sanitárias impostas pela pandemia. A coragem moral que falta a alguns no governo sobra entre os brasileiros de bem – maioria absoluta da população.

Novo ingrediente - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 09/06

Temerários na pandemia, protestos de rua agravam o isolamento de Bolsonaro


A despeito de passos iniciais promissores, os movimentos que procuram articular a sociedade contra os rompantes autoritários de Jair Bolsonaro ainda têm muito chão a percorrer. Assim o indicam os protestos realizados no domingo (7) em diversas cidades do país.

Se o objetivo era uma demonstração de força e coesão, os resultados são ambíguos. Começa-se, claro, pela decisão controversa —e sem dúvida temerária— de estimular pessoas a ocuparem as ruas em plena pandemia que não atingiu seu pico em território nacional.

Questionada abertamente por partidos de oposição, autoridades e entidades, a estratégia decerto mobilizou menos gente do que poderia em outras circunstâncias. Embora longe de desprezíveis, os contingentes visíveis nas capitais não se comparam, por exemplo, aos das manifestações em defesa da educação no ano passado.

Louve-se, de todo modo, a índole pacífica de praticamente todos os atos. Mal se pode listar como exceção o confronto de um pequeno grupo exaltado com a Polícia Militar na cidade de São Paulo, quando as vias já esvaziavam.

O governo Bolsonaro, tudo indica, pretende carimbar nos movimentos os rótulos da baderna e da perseguição política —o que serve tanto para atiçar suas hostes mais fanáticas quanto para buscar aliados entre militares e policiais.

Na semana passada o presidente chegou mesmo a chamar de “terroristas” os organizadores dos protestos, e o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, achou tempo na noite de domingo para atacar os “vândalos” dispersados pela PM paulista, a seu ver antidemocráticos.

O que de fato ameaça o mandatário, contudo, é a contínua desmoralização de seu governo e o acúmulo de questionamentos cada vez mais graves a sua conduta.

Alvo de inquérito no Supremo Tribunal Federal devido à escandalosa interferência na Polícia Federal, entre outros percalços judiciais, e com sustentação precária no Congresso Nacional, Bolsonaro já experimentou o primeiro aumento importante de sua reprovação com os impactos iniciais da pandemia de Codiv-19 no país.

Ainda terá de gerir uma economia em frangalhos, com desemprego em alta e contas públicas mais ruinosas a demandar ajustes amargos. As perspectivas para o que resta de seu mandato se afiguram, pois, sombrias.

Os movimentos da sociedade mostram a vitalidade da democracia —o que só é má notícia para um presidente em conflito com as instituições, se não com as ruas.