Mais uma tentativa de tutela
EDITORIAL
O Estado de S.Paulo - 11/07/10
Sob a justificativa de melhorar a qualidade de vida dos brasileiros e atender a determinações da Organização Mundial da Saúde (OMS), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) baixou, no final de junho, uma resolução que obriga os produtores de bebidas não alcoólicas e alimentos industrializados a informar nas embalagens os males causados por produtos com alto teor de sal, açúcar e gordura saturada. A resolução deu prazo de seis semanas para que os fabricantes incluam frases de advertência e mensagens de alerta nos pacotes de seus produtos, e impôs várias exigências para o uso de desenhos e personagens na propaganda impressa ou televisiva.
Para os burocratas da Anvisa, a iniciativa representa um avanço na defesa da saúde da população, na medida em que poderá resultar, a médio prazo, na diminuição de doenças coronarianas, doenças renais, diabetes, obesidade e cáries dentárias. Nos meios empresariais e jurídicos, no entanto, a resolução foi recebida como mais uma tentativa de cerceamento da liberdade de escolha dos consumidores e pode acabar sendo questionada nos tribunais pela Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação, por colidir com o capítulo dos direitos e garantias fundamentais da Constituição.
O motivo da polêmica está no modo como a resolução foi editada. O consumo de alimentos industrializados com alto teor de sal, açúcar e gordura é um problema que decorre basicamente dos hábitos da população. Mas, em vez de tentar mudá-los por meio de campanhas informativas e educativas, planejadas com o objetivo de estimular os consumidores a assumir comportamentos mais saudáveis, a Anvisa optou pela estratégia intervencionista que se tornou uma das marcas do governo Lula. A exemplo do que ocorreu com as tentativas de controlar as atividades jornalísticas, os meios de comunicação e a produção cultural, a agência também levantou uma bandeira "politicamente correta", intrometendo-se na vida das pessoas e intervindo no domínio da iniciativa privada, em especial nas atividades de marketing e propaganda comercial.
O viés dos burocratas da Anvisa ficou evidente desde a apresentação da primeira minuta da resolução, há cerca de três anos. Ela era tão drástica que chegava a proibir a veiculação de propaganda de alimentos industrializados ? mesmo com frases de advertência ? pelo rádio e pela televisão entre as seis horas da manhã e as oito horas da noite. Também vedava a distribuição de brindes, a realização de promoções e até a utilização das figuras, desenhos e personagens mais admirados pelas crianças nos comerciais. Diante da flagrante inconstitucionalidade do texto, a Advocacia-Geral da União recomendou à Anvisa que o modificasse, reduzindo o alcance das proibições e escoimando o texto de suas aberrações. Mas, apesar da remoção das passagens mais radicais, o novo texto da resolução da Anvisa continua sendo inconstitucional, uma vez que, pela Carta de 88, as atividades de publicidade comercial somente podem ser disciplinadas e regulamentadas por lei devidamente aprovada pelo Congresso. E, no mérito, a resolução se destaca por uma visão autoritária, que considera os cidadãos incapazes de tomar decisões ? e, por consequência, dependentes de uma autoridade que os guie e tutele.
Exemplo disso foi dado recentemente pelo ministro da Saúde, José Gomes Temporão, numa entrevista em que comentou os resultados da Lei Seca e defendeu a necessidade de induzir a população a reduzir o consumo de bebidas alcoólicas. Em ato falho, ele afirmou aos repórteres que a sociedade americana precisou, naquele momento, "de um pai, de um limite".
Essa é a lição elementar que não só o ministro da Saúde, mas também todos os dirigentes indicados no governo Lula para a agência reguladora não aprenderam. Se, desde a redemocratização do País, os brasileiros podem exercer os mais elementares direitos civis, inclusive escolher seus dirigentes pelo voto direto, por que precisam de burocratas que lhes digam, por meio de resoluções absurdas, o que podem ou não podem comprar e o que podem ou não podem comer no dia a dia?