quarta-feira, maio 27, 2020

Fedentina vem mais da PGR do que da PF. Bolsonaro obtém seu esconde-cadáver - REINALDO AZEVEDO

UOL - 27/05


Quando as investigações começam, vaza tal volume de informações e detalhes que o público se perde. Resta-lhe apenas a constatação: "Ah, todo mundo é desonesto mesmo..." Ao que os bolsonaristas alardeiam: "Menos o Jair". Nesta terça, o senador Flávio Bolsonaro, vendo Wilson Witzel, seu desafeto, em palpos de aranha, teve a ousadia de chamar Fabrício Queiroz, o desaparecido, de "honesto e trabalhador".

Sim, há um monte de coisa que cheira muito mal nessa operação que colhe Wilson Witzel, governador do Rio, e é preciso tomar cuidado com o estado policial de Jair Bolsonaro. Há, sim, a fedentina do vazamento, mas não só. Em havendo áreas de manobras do presidente para engolfar governadores, em especial os desafetos do "capitão", a principal não é, por ora, a Polícia Federal, mas a Procuradoria Geral da República, cujo chefe é o bolsonarista Augusto Aras. É dali que emanaram os pedidos para mandados de busca e apreensão em endereços do governador e de sua mulher, Helena Witzel. Vamos ver.

FATORES ANTECEDENTES

Bolsonaro não é apenas um negacionista dos riscos da pandemia, a despeito dos números devastadores. Há muito tempo já ele vem alardeando que os governadores usam o coronavírus para alimentar esquemas de corrupção. E, sabemos, desde a Lava Jato, a palavra "corrupção" vira um anulador de quaisquer outros valores ou prioridades. Seu combate justificaria qualquer coisa.

Aras criou na PGR um grupo para acompanhar as ações dos governos estaduais durante a pandemia. Não se sabe de qualquer preocupação relacionada ao governo federal. Isso pode decorrer do fato de que este é de tal sorte incompetente e inoperante na área que pouco resta a investigar. Fato: tudo aquilo de que Bolsonaro precisava agora era de uma cortina de fumaça, ainda que exista incêndio — isto é, malfeitos — para encobrir a montanha de corpos de pobres vitimados pela doença. O órgão comandado por Aras lhe fez este favor.

ANTECEDENTES DA PLACEBO

A PGR reuniu investigações que se davam em duas frentes: Ministério Público Estadual, em parceria com a Polícia Civil, e Lava Jato do Rio, em parceria com o MPF. O primeiro grupo deflagrou a operação "Mercadores do Caos", que prendeu o subsecretário de Saúde Gabriell Neves.

Ele seria o responsável por fechar contratos que empenhariam algo em torno de R$ 1 bilhão. Desse total, R$ 836 milhões foram celebrados com a IABAS (Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde), que responde pelos hospitais de campanha. O governo prometeu nove. Só três foram inaugurados. Com plena condição de funcionamento, há apenas um. Cláudio França, presidente da entidade, também foi alvo da operação.

Gabriell está preso em Benfica, acusado de fraude na compra, sem licitação, de mil respiradores por R$ 183,5 milhões. Dos 66 contratos que ele celebrou, 44 foram cancelados. Ouvido, afirmou que obedecia ordens.

Outra frente é a Lava Jato no Rio, que desfechou a Operação Favorito, que prendeu o empresário Mário Peixoto, que mantém contratos com o governo do Estado desde Marcello Alencar. Ele é acusado de ser sócio oculto da UNIR, organização social que administra as UPAs. Ela tinha sido descredenciada por falta de prestação adequada de contas, e Witzel levantou a interdição, contrariando pareceres jurídicos.

POR QUE A AÇÃO CONTRA WITZEL?

A operação contra o governador e sua mulher foi pedida pela PGR e autorizada pelo ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça. Por que Gonçalves a autorizou?
1 - o tal Gabriell Neves, que está preso e já tinha sido demitido pelo governador, alega que seus superiores tinham o controle de suas ações;
2 - o escritório de advocacia de Helena Witzel tem um contrato de prestação de serviços com a empresa DPAAD Serviços Diagnósticos, que tem como sócios Alessandro de Araújo e Juan Elias Neves de Paula. Segundo o MPF, Peixoto é o verdadeiro dono da empresa, o que seu advogado nega.
3 - nota: o contrato de Helena com a DPAAD é de R$ 540 mil, dividido em 36 parcelas de R$ 15 mil, e o primeiro depósito foi feito em agosto do ano passado -- bem antes de o coronavírus assombrar o mundo;
4 - Peixoto já foi cliente do advogado Lucas Tristão, hoje secretário estadual de Desenvolvimento Econômico, Energia e Relações Internacionais do governo do Rio, também investigado.

ARAS NÃO APARECE

Foi a PGR que solicitou as ações contra Witzel, sua mulher e outros, mas Aras não aparece. Quem cuida do caso é a subprocuradora-geral Lindora Araújo. É de absoluta confiança do procurador-geral e responde pelos processos criminais junto ao STJ.

Outra subprocuradora-geral também trabalha em perfeita afinação com Aras: Célia Regina Delgado, do Gabinete Integrado de Acompanhamento da Covid-19, que funciona no âmbito da PGR. Há fortes indícios de que houve vazamento da Operação Placebo oriundos da Polícia Federal, mas o esparramo contra um adversário figadal de Jair Bolsonaro não partiu da PF e sim da Procuradoria-Geral da República. Vale dizer: a coisa pode ser ainda mais grave.

Os governadores que se cuidem. O risco maior não vem de uma PF, também bolsonarizada, mas da bolsonarização da PGR. Ah, sim: não se está aqui a negar que tenha havido safadeza. É preciso apurar. Ainda que tenha existido, isso não afasta o risco de manipulação política da investigação.

Ou ninguém se impressiona que, até agora, a PGR não tenha visto nada de errado na atuação do governo federal?


O mármore e a murta - LEANDRO KARNAL

ESTADÃO - 27/05

O erro é o mais sólido instrumento de aprendizado da espécie humana


A metáfora, belíssima, é do padre Antônio Vieira e não é a primeira vez que me valho dela em meus textos. No seu sermão do Espírito Santo, o jesuíta escreveu que alguns povos são difíceis de ser mudados ou convertidos a uma nova ideia. Necessitam de muito esforço e larga catequese. Seriam feitos de mármore, ou seja, duríssimos. Uma vez adquirida a forma árdua com cinzel persistente, tornam-se permanentes. Em oposição, outros povos seriam dóceis à pregação, como o arbusto chamado de murta. Nessa planta, o jardineiro pode produzir formas graciosas em poucos minutos com sua tesoura de poda. O vegetal não resiste à vontade daquele que o corta. Porém, mal o cultivador esculpiu nova forma na maleável planta, galhos rebeldes brotam. O padre Vieira achava que os indígenas do Brasil seriam como a murta. Na pena do “imperador da língua portuguesa”: “Há outras nações, pelo contrário – e estas são as do Brasil –, que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não veem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que não deem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura dos ramos”.

A partir das figuras de linguagem do inaciano, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro fez um artigo belíssimo e conhecido de todos na área sobre a “inconstância da alma selvagem”.

Não tenho a pretensão de analisar nem o padre Vieira nem Viveiros de Castro. Apenas quero falar da dificuldade em lecionar atualmente. Nosso aluno adolescente hoje não é nem mármore nem murta: não são fáceis de ser convencidos pela fala e não são permanentes na nova forma. Os jovens questionam muito (o que seria bom em si) e sempre acham que aquilo que eles sabem já é suficiente. Muitos são resistentes a quaisquer novas ideias. Instala-se o mármore no ouvido e não floresce a murta no coração. Lecionar é um exercício cada vez mais desafiador à medida que reunimos o pior dos dois mundos. O professor se vê diante do duplo desafio. O primeiro deles é o de comprovar permanentemente que aquilo que ele estuda é significativo e que pode levar a uma mudança interna que transforma para melhor. Ao mesmo tempo, com sua tesoura na mão e trabalhando em uma murta fértil, vê que a forma muda logo após o corte. Nunca foi tão difícil dar aula. Nós não temos a aparente docilidade do indígena que tudo ouve nem a suposta segurança dos outros povos que escutam com dificuldade, porém edificam de forma duradoura. Todo professor, em algum momento, já se sentiu inútil ou falando para ouvidos de “marmurta” ou “murtármore”. Em outras palavras, temos o pior dos dois mundos: a dureza de um e a inconstância do outro. Cada aula é uma conquista, um esforço diário de sedução e de convencimento. Demanda densa retórica e muitos exemplos concretos para estimular a mudança de visão ou aquisição de um novo hábito.

Para piorar, muitos pais (não todos) imaginam o filho de puro e bem lavrado ouro. Quando na infância o pimpolho entregou aquele desenho sem forma, garatujas mal-acabadas, o olhar afetivo começou a insuflar: “Que lindo!”. Sim, nada mais bonito do que algo feito com afeto e vindo da pessoa que você mais ama. Será que, em algum momento, existirá a reflexão de que é lindo para mim porque é do meu rebento, porém é menos bonito fora desse quadrado cordial? De tanto elogiar coisas assim, não acabaríamos convencendo nossos filhos e a nós de que o infante tem o talento de Leonardo da Vinci e a agudeza lógica de Isaac Newton? Quem dá aulas sabe que eu não estou inventando ou exagerando.

Crianças e jovens devem ser estimulados sempre. Excesso de senso crítico produz efeitos devastadores na confiança e no empenho. Dosar elogios justos pelo progresso em algum campo sempre indicando que deu um passo decisivo, porém aquela redação não é o próximo prêmio Nobel de literatura e aquela resposta foi divertida e proporcional a alguém de 13 anos. Vieira analisou o material vegetal ou pétreo das almas discentes. Eu incluo o jardineiro na reflexão.

Educar é um desafio. Respeitar cada fase e saber que alguém que começou a estudar formas literárias ainda tem um longo caminho; e que as perguntas originais de um pré-adolescente em geometria nascem do desconhecimento e não do brilho genial e precoce de um novo Pitágoras. Elogiar quando existe um progresso, indicar que pode crescer mais, que houve imperfeições aqui e ali, dar perspectivas e comparações e que, acima de tudo, o erro é o mais sólido instrumento de aprendizado da espécie humana: eis alguns caminhos para andar entre mármores e murtas.

Para nós, professores, uma rota: criticar sem destruir, indicar onde existiu conhecimento, mostrar um caminho de aprendizado. Para todos os pais: seu filho é inteligente, porém, há outros na sala, igualmente ou mais brilhantes. Mantenha a esperança no mármore clássico e na murta ecológica.

Evidências da quarentena - SÉRGIO CIMERMAN

ESTADÃO - 27/05

Prática foi iniciada no século 14 pelos italianos quando os navios chegavam no porto de Veneza vindo de locais infectados e, assim, ficavam 40 dias ancorados até restarem os sobreviventes


Quarentena é uma das ferramentas mais antigas e eficazes para combater doenças transmissíveis, como apontam os doutores Smith e Freedman, em análise feita em março de 2020 em uma publicação médica, o Journal Travel Medicine. Esta prática foi iniciada no século 14 pelos italianos quando os navios chegavam no porto de Veneza vindo de locais infectados e, assim, ficavam 40 dias ancorados até restarem os sobreviventes.

Esta metodologia tem por definição a restrição de movimento de pessoas que se presume terem sido expostas a uma doença contagiosa, mas não estão doentes, porque não foram infectadas ou ainda estão no período de incubação. Os países em que a quarentena foi implementada reduziram o número exacerbado de casos e viveram situações mais confortáveis.

Para mostrar a melhor maneira de sairmos do aumento da curva de casos é preciso se basear em evidências cientificas sérias. A Cochrane, órgão internacional que tem como missão elaborar, manter e divulgar revisões sistemáticas de ensaios clínicos randomizados, o melhor nível de evidência para as decisões em saúde, nos revela em abril um artigo que inclui 29 estudos que apontam o que a maioria de médicos, órgãos de classe, sociedades científicas e governantes sérios têm dissertado: a quarentena é mais efetiva e tem menor custo quando iniciada cedo.

A questão econômica que envolve a quarentena é um obstáculo na implementação mais efetiva e todos somos sabedores desta situação. Uma nação para prosperar e seguir de modo linear precisa apresentar recursos financeiros e giro de capital. A falta de dinheiro para colocar alimento na boca da família, em famílias carentes, faz com que esta quarentena seja falseada, o que traz impacto negativo sobre o pico da curva de novos casos e uma maior possibilidade de óbitos em países em desenvolvimento, em especial no Brasil.

O diretor-geral da Organização Mundial de saúde (OMS), Tedros Adhanom, em uma de suas falas à imprensa, comenta que a curva cresce rápido, mas diminui muito mais devagar. Quer dizer que um deslize durante uma semana pode ser nocivo e perpetuar o impacto que causará. Afrouxar o processo pode refletir no colapso da rede hospitalar, sobretudo na área pública, onde já se nota lotação nas unidades de terapia intensiva beirando os 100% nas principais localidades.

Outro ponto de destaque na quarentena nestes mais de 60 dias de confinamento é o aumento de casos de obesidade tanto na população adulta quanto pediátrica. As pessoas não têm seguido regras alimentares, fazendo uso de alimentos mais calóricos. Devemos nos policiar para que o pós-pandemia não apresente danos maiores. Nesta mesma linha de pensamento, a ingestão de bebida alcoólica apresentou incremento considerável como muitos médicos têm visto, e vêm sendo feitos alertas à população para que não se intensifique este consumo.

A saúde mental também tem sido um fator importantíssimo na quarentena. Um maior consumo de ansiolíticos e até casos de suicídio têm ocorrido. A depressão que já era a patologia do século, com a pandemia, vem forte em muitas famílias. Aqui se observa especialmente nos idosos que têm certa dificuldade em aceitar este tipo de situação. Esta população de risco é a que mais tem de estar em quarentena por apresentar doenças preexistentes.

Para combater e amenizar a quarentena é permitida a realização de exercícios físicos, até porque muitas pessoas por apresentarem riscos cardiovasculares devem realizar esta atividade pelo menos 30 minutos diariamente em modo de caminhada. Isto é saudável e, portanto, não é contraindicado. O que não se permite em tempos de quarentena são aglomerações por razões óbvias de contágio e transmissibilidade. Assim se a caminhada for feita em ambiente aberto e seguindo o distanciamento de pelo menos dois metros está aprovada. O problema é que as pessoas querem sair acompanhadas para esta atividade, ir a parques públicos, ficando, assim, inviável do ponto de vista de pandemia. Outros esportes que sejam praticados em ambientes abertos também são encorajados tais como a corrida, ciclismo, golfe, dentre tantos outros. A prática de outras modalidades esportivas neste momento não deve ser permitida pelo contato físico. Infelizmente a paixão nacional, o futebol, deverá ainda demorar a retornar – a reintegração poderá ser feita quando os casos ficarem mais isolados.

A população terá de se doar um pouco mais para que possamos sair desta pandemia com número menor de óbitos e casos positivos. Uma ação coordenada e bem estruturada fará com que não sigamos o lockdown (fechamento geral) aqui na cidade de São Paulo. Nenhum governante gostaria de determinar tal ato, mas, se for necessário, os especialistas recomendarão, obviamente. Esta medida de contenção reflete situações ruins, que podem levar a multas e prisões, gerando conflitos que não queremos.

Vamos todos fazer nossa parte, nos policiando, saindo em necessidades essenciais, com máscaras caseiras para proteção, manter as medidas de lavagem adequada de mãos e uso do álcool em gel a 70% e assim vencer a covid-19, visto que não temos ainda de perto uma vacina eficaz e segura. O melhor ainda é ficar em casa e confiar nos médicos. Contamos com todos.

EX-PRESIDENTE DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE INFECTOLOGIA

Nação de empreendedores - LUIZ FELIPE D'ÁVILA

ESTADÃO - 27/05

O Estado precisa parar de infernizar a vida deles e deixá-los trabalhar


Que País queremos construir depois da crise da covid-19? Essa é a pergunta a que temos de responder com nossas escolhas e nossas ações. Não se edifica um País sem sonho, norte, coragem e determinação para enfrentarmos os reais problemas, admitir perdas de privilégios e encarar tabus que nos desafiarão a promover mudanças de comportamento e cultura. Como dizia Churchill, sem “sangue, suor, labuta e lágrimas” não se vencem guerras. Nossa guerra contra um País carcomido pelo populismo e por um Estado refém dos interesses corporativistas só será vencida se nos unirmos em torno de um projeto de nação. Meu sonho é ver o Brasil se transformar numa nação de empreendedores.

A crise da covid-19 mostrou que esse sonho pode transformar-se em realidade. Ela revelou que precisamos acreditar mais nos brasileiros como a força propulsora das mudanças transformadoras. A crise despertou o protagonismo da sociedade civil. Lideranças da sociedade civil uniram-se aos governos locais e ao setor privado para dar a agilidade necessária aos processos, à logística e entrega de recursos, alimentos e máscaras, impedindo que ficassem parados em almoxarifados e depósitos por causa dos entraves burocráticos e legais que impedem o Estado de agir com celeridade.

A união dos setores público e privado e do terceiro setor colaborou para quebrar tabus e preconceitos. O estereótipo do servidor público preguiçoso caiu por terra. Médicos, enfermeiros e demais profissionais da saúde passaram a ser tratados como heróis. Professores da rede pública tiveram de perder o medo e se adaptar aos novos tempos para aprenderem a dar aulas online. Governos estaduais e municipais trabalharam em parceria com o setor privado e o terceiro setor na implementação de políticas públicas. Aprendemos na crise que, quando derrubamos as muralhas do preconceito e unimos esforços para resolver os reais problemas da Nação, as parcerias dos setores público e privado encontram soluções práticas e o Brasil funciona melhor. Afinal, todos nós - empreendedores e governantes, ricos e pobres, trabalhadores e empresários - somos vítimas do Estado corporativista, que sufoca o setor produtivo e estrangula o setor público e sua capacidade de prestar serviço público de qualidade.

Nosso maior ativo não é o petróleo, nem o carnaval ou o futebol, são nossos empreendedores. Eles são o motor do progresso e da inovação, da geração de empregos e de investimentos. São também os inovadores na área social e os desbravadores na área pública, trabalhando para melhorar a educação, a gestão pública, a saúde, o meio ambiente e a qualidade das políticas sociais. Os empreendedores são apaixonados pelo Brasil. Apostam todas as fichas no País, investindo recursos próprios e de terceiros nas suas iniciativas inovadoras que vêm transformando o Brasil. Empreendedores são talhados para competir e arriscar, ganhar e perder, quebrar e se reinventar.

Nos países desenvolvidos, empreendedores nascem, morrem e renascem pela ação do mercado, da concorrência e da destruição criativa. No Brasil, a maioria dos empreendedores padece por causa da mão pesada do Estado. Governos distribuem benefícios e subsídios setoriais que distorcem a competição, viciam empresários em ajuda do governo e massacram os empreendedores que lutam para vencer nos mercados nacional e global. O Brasil mergulhou na pior recessão de sua História e arruinou as finanças públicas quando a presidente Dilma tentou transformar o Estado no indutor do crescimento econômico.

O Estado não asfixia apenas os empreendedores, ele sufoca também o setor público. Governos sofrem com o excesso de regras, leis e burocracia, que vem impedindo a ação célere dos governadores e prefeitos para revolver as questões urgentes da crise. Portanto, precisamos manter essa união entre a sociedade civil e o setor público para desburocratizar processos, simplificar regras, acabar com o voluntarismo do Judiciário e as decisões monocráticas e retomar a agenda das reformas no Congresso para livrar o País da craca do corporativismo e dos feudos de privilégio, que destruíram a capacidade do Estado de prestar serviço público de qualidade.

O Estado precisa parar de infernizar a vida dos empreendedores e deixá-los trabalhar. Afinal, são eles que atuam no mercado, na área social e no setor público como agentes de inovação e de transformação no País. São os empreendedores no campo, na cidade e no terceiro setor que farão a economia voltar a crescer, criando novos negócios e empregos. Ademais, os empreendedores são os grandes defensores da democracia, do livre mercado e da igualdade de oportunidade. Essas três virtudes têm o poder de transformar o tripé da desgraça - estagnação econômica, desemprego recorde e desigualdade social - na força motora da retomada do crescimento, do emprego e da construção de um País menos desigual. Esse futuro promissor depende da nossa determinação de lutar hoje para livrar o País da pandemia política que ameaça arruinar o Brasil, a democracia e a economia.

FUNDADOR DO CENTRO DE LIDERANÇA PÚBLICA (CLP), É AUTOR DO LIVRO ‘10 MANDAMENTOS - DO PAÍS QUE SOMOS PARA O BRASIL QUE QUEREMOS’

A década em marcha à ré - NILSON TEIXEIRA

Valor Econômico - 27/05

O desempenho nesta década, com declínio da renda per capita, embute o risco de o Brasil país não estar preso na armadilha da renda média, e sim retrocedendo


O declínio da renda nesta década não tem precedentes na história contemporânea do país. Uma tragédia sob muitas métricas. O PIB no fim da década será menor do que no seu início, o país terá ficado mais pobre, as oportunidades serão mais escassas, em particular para os mais pobres, e o endividamento do setor público aumentará muito, superando o de quase todos os países emergentes.

O PIB recuará cerca de 1% nesta década, diminuindo em termos per capita em mais de 9% ante 2010. A renda mensal média por habitante aos preços de 2017 diminuirá de R$ 2.706 (US$ 940) em 2010 para R$ 2.475 (US$ 730) em 2020, assumindo taxa de câmbio no fim deste ano de R$ 5,50/US$.

Esse péssimo desempenho pode ser atribuído a diversos motivos, entre os quais: choques expressivos, em especial o associado à covid-19; má gestão das políticas públicas em várias frentes e em vários governos; e baixa produtividade dos trabalhadores, consequência principalmente da reduzida qualidade da educação no país.

A década de 1980, conhecida por “Década perdida”, teve crescimento do PIB de quase 17% ou 1,6% ao ano. O forte aumento populacional na época é o que explica o título, pois o PIB per capita diminuiu 5,5% no período. Como o resultado entre 2011 e 2020 é pior do que o dos anos 1980, uma classificação apropriada para a atual década seria “Década em marcha à ré”.

O atual cenário sugere que não é desprezível o risco de o Brasil estar preso ao que a literatura sobre desenvolvimento econômico intitula “Armadilha da renda média”. Esse processo é caracterizado por um país que, após crescer de maneira acelerada, alcança uma renda per capita superior à dos países pobres, mas não mantém uma expansão que permita alcançar um padrão próximo ao dos países desenvolvidos. Se esse quadro já é complexo, não se pode afastar a possibilidade de a situação do Brasil ser ainda pior. O seu desempenho nesta década, com declínio da renda per capita, embute o risco de o país não estar preso nessa armadilha e sim retrocedendo.

Após uma recessão que tem grande chance de superar a mediana das expectativas do Focus de 5,9% neste ano, com uma forte contração no 1º semestre seguida de uma retomada no 2º semestre, o crescimento do PIB de 2021 tende a superar a mediana das previsões do Focus de 3,5%, motivado por uma base de comparação favorável.

Todavia, a manutenção de um crescimento sustentável na próxima década superior ou próximo a 2,2% - média anual entre 1981 e 2020 - exigirá expressivas mudanças sociais, econômicas e políticas. O Executivo precisará propor e o Congresso aprovar reformas estruturantes, entre as quais a tributária, a administrativa, a política, uma nova previdenciária e, principalmente, a educacional.

Essa será uma missão complexa e dificilmente será concluída em apenas um ou dois mandatos legislativos. Dessa forma, é crucial que os próximos governos tenham o mesmo diagnóstico sobre a importância dessas reformas, pois sua aprovação e sua implementação se estenderão além da próxima década. Mesmo assim, esses ajustes contribuiriam para que os agentes antecipassem os efeitos benéficos dessas políticas, mesmo que ocorram apenas nos anos 2030.

Os governos desde o do presidente Collor, embora pertencendo a espectros políticos diferentes, adotaram medidas similares em algumas áreas importantes, conduzindo o país à estabilidade da inflação e, em menor grau, à consolidação fiscal. Ainda que quase todas incompletas, as reformas foram instrumentais para que o Brasil saísse de uma hiperinflação de mais de 366 milhões por cento na década de 1980 para uma inflação IPCA acumulada de cerca de 70% nos últimos 10 anos. A inflação IPCA média anual diminuiu de 6,6% entre 2001 e 2010 para 5,3% nesta década, sendo ainda menor entre junho de 2016 e maio de 2020, quando alcança 3,2% ao ano.

Apesar de a situação fiscal ter melhorado bastante frente aos desequilíbrios existentes até o fim da década de 1990, há muito a ser feito para reduzir os riscos nas contas públicas. O estímulo fiscal adotado como resposta às consequências da pandemia elevará o déficit primário para patamar possivelmente superior a 10% do PIB neste ano. Uma eventual decisão do governo federal de reverter esse déficit de forma paulatina pode levar a dívida pública a superar 100% do PIB em algum momento da próxima década.

Esse ambiente torna o cenário para a economia doméstica ainda mais nebuloso, com impactos deletérios em várias frentes. É provável que 2021 comece com: um número de postos de trabalho menor do que em qualquer outro momento da atual década; uma distribuição de renda, mesmo com a expansão de diversos programas sociais, pior do que a de 2010; uma incerteza sobre a solvência da dívida pública maior do que no fim de 2019; e um governo com uma taxa de aprovação mais baixa do que no seu primeiro ano de mandato e, consequentemente, com frágil apoio no Congresso para aprovar suas propostas.

Apesar da expectativa de maior expansão da atividade em 2021 frente a dos últimos anos na maioria das economias, o cenário global agregará riscos significativos para o Brasil. Por exemplo, incertezas sobre um eventual comportamento mais protecionista dos governos de vários países, notadamente dos EUA, podem promover uma disseminada guerra comercial, prejudicando, portanto, a retomada da atividade doméstica.

O desempenho econômico no próximo ano tende a ser favorável para o Brasil, com um crescimento do PIB superior ao de qualquer outro ano da década corrente, com exceção possivelmente dos 4% de 2011; e inflação em 2021 provavelmente menor do que em qualquer ano da década de 2010, com exceção do possível 1% de 2020. A esperança é que o ambiente político seja menos conflituoso, permitindo o início da aprovação no Congresso de uma agenda modernizante.

O empenho dos Três Poderes precisa ser canalizado para construir as pré-condições para a recuperação das perdas econômicas e sociais desta década. Do contrário, o Brasil pode enfrentar mais uma década perdida ou, ainda pior, mais um período em marcha à ré.

Nilson Teixeira, sócio-fundador da Macro Capital Gestão de Recursos, Ph.D. em economia pela Universidade da Pensilvânia,

A cloroquina monetária - ALEXANDRE SCHWARTSMAN

BLOG MÃO VISÍVEL - 27/05

O artigo de André Lara Resende na Folha de S. Paulo deste domingo é um belo exemplar de uma combinação peculiar: a mistura fina de obviedades com conclusões que não derivam delas.

Há um tom sofisticado quando afirma que “a moeda contemporânea, como também a dívida pública, é apenas um registro contábil eletrônico”, ecoando a tese de Yuval Hariri em Sapiens, para quem a capacidade de abstração foi a pedra fundamental para o desenvolvimento humano como o conhecemos. Inteligente, sem dúvida, ainda que irrelevante para sua tese, a saber, que o governo brasileiro pode partir sem medo para o financiamento monetário de seus déficits, sem o menor risco de inflação à frente.

A começar pela confusão em torno das operações compromissadas. Como se sabe (ou deveríamos saber), tais operações são vendas (ou compras) de títulos públicos (registros contábeis no Selic – Sistema Especial de Liquidação e Custódia) com compromisso de recompra (ou revenda), usadas pelo BC para garantir que a taxa a que os bancos trocam reservas bancárias no Selic (a taxa Selic!) fique próxima àquela definida como meta pelo Copom a cada reunião.

Se há excesso de reservas bancárias, a taxa Selic tende a ficar abaixo da meta; se há falta, acima dela. No caso brasileiro, há muitos anos, as reservas bancárias são excessivas, o que requer do BC a venda (com compromisso de recompra) de títulos. Bancos tornam-se detentores (temporários) de papéis do Tesouro; em contrapartida, há redução de reservas bancárias, o principal componente da base monetária.

Para Lara Resende, porém, afirma que as compromissadas “nada mais são do que emissão de reservas, base monetária, para o sistema bancário”, precisamente o oposto da realidade. Para um artigo que se propõe a superar equívocos, nada como começar com um deles.

Aproveitando o gancho, propõe que, ao invés de controlar a liquidez e, portanto, taxas de juros por meio das compromissadas, passe a um sistema de “reservas remuneradas”, isto é, como alternativa à venda de títulos do Tesouro, o BC permita que bancos depositem no Banco Central, com remuneração pela taxa Selic, seu excesso de reservas bancárias. Isto faria, segundo ele, desaparecer 40% da dívida pública, que cairia de 75% para 45% do PIB.

Para entender a mágica, é preciso dar um passo atrás. No Brasil, ao contrário do que ocorre em outros países, o Banco Central é como que “consolidado” dentro do governo geral. Como o Tesouro é seu único acionista, os títulos emitidos pelo Tesouro para o BC não são contabilizados na dívida bruta, já que o Tesouro deve para si mesmo. Por outro lado, os títulos usados nas compromissadas, que estão fora do balanço do BC (portanto fora do balanço “consolidado” do governo geral) são contabilizados na dívida.

Se, argumenta Lara Resende, o BC passasse a usar depósitos remunerados no lugar de compromissadas, estas sumiriam das estatísticas e, voilá, a dívida deixaria de ser um problema, exceto pelo fato de continuar a sê-lo.

De uma forma (compromissada), ou de outra (depósitos remunerados), o BC seguiria pagando juros aos detentores de títulos ou depósitos. Para quem argumenta tão eloquentemente sobre a similaridade intrínseca a ativos que nada mais são que registros eletrônicos contábeis, Lara Resende parece não ver que essas modalidades são rigorosamente a mesma coisa. Chamá-las por nomes diferentes não muda esta simples verdade, nem faz 40% da dívida bruta se desfazer no ar.

Nos demais países, como os bancos centrais tipicamente não são consolidados com o Tesouro, não se faz esta distinção: a dívida já contabiliza títulos em poder dos bancos centrais e também não é necessário incluir depósitos remunerados.

Caso seguíssemos o critério da maioria dos países (que, diga-se, era o que fazíamos até 2007), nossa dívida já estaria próxima a 90% do PIB, como ilustrado abaixo. Todavia, como sempre ressalto, mais importante do que o nível da dívida é sua trajetória e nesse sentido o gráfico é claro: independente-mente da metodologia adotada, o crescimento da dívida relativamente ao PIB tem sido extraordina-riamente rápido e será ainda mais veloz no futuro próximo. Nenhuma mágica contábil há de mudar este fato.



Fonte: BCB


O que nos leva a outro argumento de Lara Resende, qual seja, que a dívida do governo brasileiro não é um problema. Para não haver dúvidas cito:

“Quando a dívida é interna e denominada em moeda nacional, como é o caso da dívida brasileira hoje, o problema não existe. O serviço da dívida interna denominada na moeda nacional não exige transferência de recursos para o exterior.

O Estado deve para os seus próprios cidadãos. É uma dívida de brasileiros com brasileiros, ou de ‘Zé com Zé’, para usar um velho jargão do mercado financeiro. O Estado pode sempre refinanciar a dívida e emitir, se necessário, para cobrir o seu serviço.”

Se a dívida não fosse um problema, apenas uma operação “Zé com Zé”, o corolário disso seria que um eventual calote não deveria gerar qualquer impacto real sobre a economia: “Zé”, que devia para “Zé”, simplesmente não se pagaria: o ganho de um “Zé” é a perda de um “Zé” e o efeito líquido seria zero.

Bom, aproveitando a efeméride (30 anos) e o recente pedido de desculpas do ex-presidente Fernando Collor, basta lembrar do efeito da calote promovido pelo Plano Collor em 1990: uma das três maiores recessões da história recente do país (ainda sem contar a atual). O PIB caiu, de pico para vale, 8,6% (um pouco mais do que na recessão 2014-16, 8,2%), ao longo de 11 trimestres (o mesmo que em 2014-16) e precisou de 7 trimestres para recuperar o nível pré-crise (mais rápido que em 2014-16).

Se alguém acredita que a dívida não é um problema, porque devemos para nós mesmos, deve também arrumar um jeito de explicar porque não seu não pagamento teve efeitos tão severos num passado não tão distante.

A dívida é uma máquina do tempo: permite anteciparmos consumo de amanhã para hoje, mas alguém terá que pagar pelo consumo de amanhã. Nossos “eus” futuros, nossos filhos, netos, etc., terão em algum grau que consumir menos no futuro para compensar o tanto que foi consumido agora.

Ah, mas podemos pagar a dívida com moeda, que, conforme notado no início, é também uma ficção contábil, não muito distinta da dívida. A prova disso seria a experiência mundial com QE (afrouxamento quantitativo), quando BCs em vários países compraram títulos públicos, ampliando em muito a base monetária sem efeitos inflacionários.

O que Lara Resende não conta, porém, é que BCs só se engajaram no QE quando não foi mais possível reduzir a taxa de juros de curto prazo. De fato, como moeda tem rendimento zero, ao menos numa primeira aproximação não seria possível trazer a remuneração dos títulos de curto prazo abaixo de zero. Sabemos agora que isso não é exatamente verdade por força de regulações e custos de se manter moeda corrente, mas, ainda assim, se não precisamente zero, sabemos haver limitações para reduzir a taxa de juros abaixo de algum patamar não muito distante dele.

O mecanismo de expansão quantitativa permite aos BCs atuar sobre outras taxas de juros além daquela de curto prazo. Trata-se de extensão da forma de atuação descrita acima, mas além do mercado de reservas bancárias. Um estudo do time econômico da Goldman Sachs em 2010 (“QE2: How Much is Needed?”) sugere que cada US$ 1 trilhão de expansão quantitativa corresponda a um corte de 1% da taxa básica de juros.

BCs calibram sua resposta de política monetária para manter a inflação na meta: caso esteja acima, elevam a taxa de juros; se abaixo, a reduzem. Nenhum economista que conheça esta dinâmica diria, de olhos arregalados, “o BC reduziu a taxa de juros e a inflação caiu!”, mas sim “o BC reduziu a taxa de juros porque espera que a inflação vá ficar abaixo da meta”. Por essa mesma ótica, a expansão quantitativa não causa inflação porque se trata de resposta à baixa inflação, similar a por o pé mais fundo no acelerador quanto o carro sobe a ladeira para manter a mesma velocidade.

No caso do Brasil, não chegamos lá, ao menos não ainda. Com argumentei semana passada, parece haver espaço adicional para a redução de juro (além do que o BC sugere, mas não voltarei a essa questão), que, todavia, permanece acima de zero. Recorrer, portanto, à expansão quantitativa agora implicaria permitir que a Selic ficasse abaixo do nível consistente com a inflação na meta em seu horizonte relevante ou seja, seria sim inflacionário.

Alquimistas buscavam a pedra filosofal, substância capaz de transformar metais ordinários em ouro ou prata, que se tornou assim um símbolo de soluções mágicas para problemas difíceis.

Vivemos hoje busca semelhante por uma “bala de prata” contra a pandemia, que muitos, de Nicolas Maduro a Jair Bolsonaro, passando por Donald Trump (e outros de calibre similar), acreditam ser a cloroquina.

Lara Resende se coloca nessa nobre companhia, na sua busca alquímica pela cloroquina monetária (agradecimentos especiais a Rodrigo Azevedo pela sugestão da analogia e do título do artigo).

Insensatez em moto-contínuo - ROSÂNGELA BITTAR


O Estado de S.Paulo - 27/05

Primeiro escalão do Executivo não pode ignorar que Estado é Estado e governo é governo



Jair Bolsonaro e os militares que integram o governo civil, eleito pelo povo, estão a uma distância de 55 anos da ditadura em que exerceram o poder em função de um golpe. Eles têm muito a aprender com Anitta. Cansada de pedidos para opinar sobre política, sem nada entender do assunto, a cantora resolveu estudar e simplesmente contratou um professor de história contemporânea.

O primeiro escalão do Executivo não pode mais ignorar que Estado é Estado, governo é governo, justiça é justiça, crime é crime, e despacho de juiz não se discute, se cumpre. Tudo está muito bem definido desde que, com o estado de direito, o Brasil trocou o apelo às rupturas pelas práticas civilizadas de democracia.

Instalados no Palácio do Planalto e em milhares de cargos governo afora, os militares são hoje responsáveis por ações e decisões que afetam a vida das pessoas deste mundo normal. Ações e decisões das quais, aí está a diferença do seu outro tempo, a sociedade, os partidos, as instituições, sentindo-se agredidos e impotentes, podem recorrer à Justiça.

No cerne do agravamento das relações da Presidência com o Supremo Tribunal Federal, elevado ao paroxismo no último fim de semana, está a incompreensão brutal dos limites das atribuições constitucionais dos poderes, das leis, dos regulamentos e até dos dicionários. Esta distorção está na base do alerta e da ameaça implícitos nas notas de demarcação de território, da ativa e da reserva, que publicaram contra decisões judiciais. A animosidade vem de antes quando, em outros governos, tornaram agudas, pela intimidação, tensões políticas em vésperas de votações importantes pelo Supremo. No mandato Bolsonaro, porém, em que ocupam em grande número os postos executivos, as estocadas se multiplicam. O governo é agressivo e conflituoso e a sociedade tende a buscar mais o discernimento da Justiça.

O decano do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, relator do caso Moro versus Bolsonaro, intimou os ministros do Planalto, pertencentes à corporação militar, a deporem no inquérito e, para convocá-los, deu dois elásticos prazos avisando que, se ainda assim não explicassem a ausência, teriam que comparecer sob vara. Acharam o mero jargão um acinte. O relator encaminhou ao procurador-geral, como manda a formalidade, o pedido de partidos políticos para examinar o celular do presidente da República: outro acinte. Queixam-se até da celeridade que o decano imprimiu ao inquérito, esquecendo-se que é um caso relevante na carreira de um ministro que se aposentará em novembro próximo.

Até agora, na opinião dos que leem nos reflexos do prédio espelhado da Procuradoria Geral, a tendência de Augusto Aras seria determinar o arquivamento do processo. Com base em dois argumentos, correntes entre os defensores: o presidente da República poderia, sim, nomear um diretor da Polícia Federal. O segundo: é quase impossível separar as provas do crime.

No lusco-fusco daquela babel que foi a reunião ministerial de 22 de abril, seria possível ver embaralhados polícia judiciária, informações estratégicas e a segurança pessoal da família do presidente. A questão é que a colheita de provas não se esgotou. Faltam as revelações de Paulo Marinho, o conteúdo do celular de Gustavo Bebianno, o inquérito de fake news, a decisão anunciada de armar o povo como milícias guerrilheiras, e mais a capacidade inesgotável do presidente de se autoincriminar, em moto-contínuo.

Os militares consideram excessiva a judicialização e mais de uma vez reclamaram que o Supremo não deixa o presidente governar. Este é o ponto: Bolsonaro ainda se acha engasgado por decisões do STF, como a que reconheceu aos Estados e municípios a atribuição de decidir sobre o isolamento social na pandemia. Governar já foi “abrir estradas”. Para Bolsonaro, governar é abrir salão de beleza.

Tudo dominado - VERA MAGALHÃES

O Estado de S.Paulo - 27/05

Após reunião, Bolsonaro interferiu na PF e ‘escancarou' política armamentista


Não se pode dizer que Jair Bolsonaro não logrou êxito na pauta que levou à dantesca reunião ministerial de 22 de abril. A partir dali ele de fato:

* interveio na Polícia Federal;

* “escancarou” a política armamentista de seu governo em várias medidas;

* está sendo informado, e informando seus aliados, sobre passos de investigações;

* degolou o ministro da Justiça, como ameaçou fazer,

* E fez os ministros se exporem, e muito.

Agora só falta “prender" governadores e prefeitos, como pregou a diligente Damares Alves, mas não parece estar distante o dia em que ele tentará essa jogada.

De todas as agendas que explicitou no encontro, a das armas acima de tudo é uma das mais avançadas.

O presidente revogou, e anunciou no Twitter, portarias editadas pelo Exército que previam a marcação e o rastreamento de armas e munições.

Mais: o general Eugenio Pacelli, que havia assinado as portarias estabelecendo a necessidade de rastrear armas e munições, depois revogadas, foi exonerado da função e saiu dizendo que houve pressão por parte da indústria armamentista.

Em seguida, Bolsonaro editou, com a assinatura de Sergio Moro, a portaria da qual falava na fatídica reunião, aumentando o número de munições que podem ser compradas por civis e militares.

Por que a sanha armamentista? O próprio presidente desenhou: armada, a população poderá resistir a ordens consideradas abusivas de governadores e prefeitos. Para isso, deu como exemplo as regras de distanciamento social ditadas pela necessidade de combater a pandemia do novo coronavírus.

Ao investir claramente para criar grupos armados e dispostos a defender o governo a qualquer preço, como fica patente nos posts nas redes sociais e no incentivo a atos semanais de conformação golpista em Brasília, o presidente dá a senha para a criação de milícias paramilitares no Brasil, nos moldes da Milícia Nacional Bolivariana da Venezuela, criada por Hugo Chávez em 2007, e que hoje conta com mais de 1 milhão de cadastrados. Nicolás Maduro, o ditador que sucedeu Chávez, quer chegar a 2 milhões de homens armados, que, juntamente com o Exército amplamente inflado pelo chavismo são as duas forças que mantêm o regime de pé.

Escrevi a esse respeito na coluna intitulada “Bolsochavismo”, ainda em fevereiro, quando o apoio dos bolsonaristas ao criminoso motim de policiais militares em vários Estados já era o ovo da serpente do que se quer criar.

Não é coincidência o fato de pulularem nas redes sociais vídeos de policiais militares de todo o País se colocando à “disposição" para defender Bolsonaro do STF, do Congresso e de governadores (aos quais as PMs estão subordinadas).

Aliada à investida sem disfarces sobre a Polícia Federal e seu uso como polícia política, inclusive perseguindo adversários políticos do presidente, a urdidura de milícias fortemente armadas e dispostas e matar e morrer por Bolsonaro é a gestação de um projeto autocrático de poder que, se não for parado agora pelos demais Poderes, aos quais a Constituição delegou a tarefa de exercerem o controle sobre os arreganhos do Executivo, será difícil de deter no pós-pandemia.

Não é à toa o uso do verbo “aproveitar" a covid-19 para “passar a boiada”, feito por Ricardo Salles na reunião dos círculos do Inferno. Não é só no Meio Ambiente que o presidente aproveita a confusão que ele mesmo cria diariamente no combate à peste para avançar com o arbítrio.

Isso está sendo feito sobre a liberdade de imprensa, sobre os direitos fundamentais e trabalhistas e também no sentido de um Estado policial e paramilitar que garanta a Bolsonaro não ser admoestado. E talvez nem fosse precisar, dada a tibieza da resposta das instituições.

Bolsonaro segue a receita de Mussolini - RUY CASTRO


Folha de S. Paulo - 27/05

Para o líder fascista deu certo por muitos anos. Mas ele terminou com a cabeça para baixo



Se há um insulto que, de tão abusado, sofreu enorme desvalorização é o de fascista. No começo, designava as milícias do italiano Benito Mussolini, que marcharam sobre Roma em 1919 e o levaram ao poder. Aos poucos, tornou-se sinônimo de regime totalitário e, com o nazismo, chegou ao máximo da brutalidade. Durante o século 20, no entanto, o epíteto se generalizou e passou a designar qualquer pessoa que não seja "de esquerda". É um leque que abrange dos hidrófobos de direita assumidos aos vagamente reacionários, conservadores, centristas, liberais, neoliberais e até social-democratas.

Todo mundo já foi um dia chamado de fascista, tanto o PM que abre a pontapés a porta de um barraco na favela quanto o guarda que nos multa no trânsito. Deixou de ser insulto. Com isso, os fascistas de verdade —que professam com fervor e devoção os princípios do fascismo— ficaram num limbo que lhes permite operar com desembaraço. Talvez seja hora de defini-los mais tecnicamente.

O fascista é nacionalista. Acredita numa conspiração global contra os valores e riquezas de seu país. Por isso, e por não confiar no mercado, que é internacionalista, apoia uma pesada intervenção do Estado na economia. Combate ferozmente os políticos e juristas, para eles um bando de corruptos, exceto os que servem ao seu líder —este sempre um político e/ou militar carismático, com um discurso "patriota", messiânico, moralizante e escorado em valores imprecisos, como "Deus" e "família". Os que não seguem tais linhas são comunistas.

O fascista pratica o culto da ação e da agressão e prega o armamento do "povo" (suas falanges) contra uma hipotética ditadura. Na verdade, visa à tomada de um poder acima da lei e até do Exército —a própria ditadura.

Se tal descrição lhe parece um déjà vu, essa era a receita de Mussolini. Deu certo por muitos anos. Mas terminou com ele de cabeça para baixo.

Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Bolsonaro já desmoralizou a PF - BRUNO BOGHOSSIAN

Folha de S. Paulo - 27/05

Há um mês, presidente disse que 'minha PF' investigaria uso do dinheiro para o coronavírus



Jair Bolsonaro mudou de ideia. Há pouco mais de um mês, o presidente batia na mesa ao esbravejar contra a Polícia Federal. Enviava mensagens ao ministro da Justiça para reclamar de apurações contra seus aliados e reclamava da lentidão do órgão em atender a seus interesses. Agora, ele sorri por trás da máscara e parabeniza a corporação por investigar um de seus rivais.

A alegria seletiva reforça a visão torta que o presidente tem das instituições. Quando a PF se aproxima de seu grupo político, Bolsonaro se diz perseguido e sabota o órgão, em busca de proteção. Quando a corporação bate à porta de seus adversários, a reação é mais generosa.

O próprio presidente faz questão de demarcar essa diferença. Em 24 de abril, Bolsonaro se queixou: “A PF de Sergio Moro mais se preocupou com Marielle do que com seu chefe supremo”. Depois de trocar o ministro da Justiça, lançou um pronome possessivo. “A minha PF vai para cima de quem estiver fazendo besteira com essa grana, hein?”, afirmou Bolsonaro, em referência ao dinheiro para o combate ao coronavírus.

Nesta terça (26), o presidente acordou satisfeito. Investigadores amanheceram na residência oficial do governador do Rio, Wilson Witzel, arqui-inimigo de Bolsonaro. Eles dizem ter provas de que uma organização criminosa desviou parte do dinheiro contra a pandemia e fraudou até o orçamento das caixas d’água dos hospitais de campanha do estado.

Em sua campanha obsessiva pelo controle da PF, Bolsonaro conseguiu desmoralizar a corporação em tempo recorde e alimentar desconfianças sobre a atuação do órgão contra críticos do presidente. As investigações acumulam indícios e se aproximam do governador, mas Witzel ganhou de presente a chance de apontar o dedo para Brasília.

Na saída do Palácio da Alvorada, Bolsonaro se limitou a dar “parabéns à Polícia Federal”. Como se sabe, o episódio só mereceria uma intromissão presidencial caso Witzel se encaixasse nas categorias “a minha família toda” ou “amigos meus”.

Crime ou interferência - HÉLIO SCHWARTSMAN

Folha de S. Paulo - 27/05

Mesmo perdido, um presidente tão pequeno promove desgastes institucionais


A PF fez buscas na residência do governador Wilson Witzel porque as suspeitas contra ele são sólidas ou para agradar a Jair Bolsonaro? Não me sinto ainda em condições de cravar nenhuma das opções.

Pandemias são o sonho de consumo dos corruptos. Da noite para o dia, processos licitatórios são dispensados e equipamentos médicos passam a ser disputados ferozmente por vários países, fazendo com que os próprios preços deixem de funcionar como valor de referência. Quanto se pode pagar por um ventilador nessas condições? Seria uma surpresa se as quadrilhas que sempre fraudaram as compras públicas não procurassem tirar vantagem dessa conjuntura.

Witzel está envolvido nisso? Não sei. Mas sei que, assim como ninguém deve ser considerado culpado antes de um julgamento, ninguém deve ser considerado acima de qualquer suspeita e blindado contra investigações —viu, general Heleno?

Isso significa que a operação da PF é legítima? É provável, mas há elementos que fazem soar sinais de alarme, a começar da própria existência de uma enorme polêmica em torno da interferência do presidente sobre a PF. É também estranho que uma deputada bolsonarista tenha praticamente anunciado a operação na véspera de sua realização.

E isso nos leva ao ponto central desta coluna. Muitos temiam que, no poder, Bolsonaro deflagraria um autogolpe. Nunca acreditei muito nisso. Faltam-lhe as condições políticas e a competência para fazê-lo. Raras vezes tivemos um governo tão fraco.

O problema é que, mesmo perdido, dedicando-se a questiúnculas pessoais e dando vazão a manias e paranoias, Bolsonaro promove desgastes institucionais. Sua fixação com a cloroquina minou a respeitabilidade técnica do Ministério da Saúde; suas dedadas na PF fazem com que duvidemos das motivações de uma instituição que vinha ganhando credibilidade. E a lista não acaba aí. É um belo estrago para um presidente tão pequeno.

A diplomacia da inépcia - ELIO GASPARI

O GLOBO - 27/05

Erro de Weintraub estava em julgar-se superior aos chineses


Com a exposição das falas tétricas da reunião ministerial de Bolsonaro, saem do Planalto sinais de preocupação diante de um eventual estrago que possa ocorrer nas relações do Brasil com a China.

Se um ministro chinês dissesse que o Brasil “é aquele cara que cê sabe que cê tem de aguentar”, porque eles nos vendem proteínas de que precisamos, e outro acrescentasse que a “globalização cega” levou o país a comprar alimentos de quem espalhou o “comunavírus”, a milícia bolsonarista estaria com a faca nos dentes. Bizarrices desse tipo partiram dos ministros Paulo Guedes, na reunião, e Ernesto Araújo, num artigo.

O professor Delfim Netto já ensinou que os governos precisam abrir a quitanda pela manhã, com berinjelas para vender e troco para a freguesia. O governo de Jair Bolsonaro só abre à noite, não tem troco nem legumes, e briga com as freguesas. À primeira vista faz isso movido por estranhas convicções, mas as encrencas que ele cria com a China são produto da inépcia.

Durante a existência do capitão, a diplomacia brasileira cuidou de grandes questões que envolviam o interesse nacional. Assim foi com o estranhamento ocorrido no século passado com a Argentina em torno da construção da hidrelétrica de Itaipu, ou mesmo com os Estados Unidos durante o governo de Jimmy Carter em torno do Acordo Nuclear assinado com a Alemanha. Nesses dois casos, existiam contenciosos. Com a China não há contencioso algum, salvo recônditos sentimentos racistas. No limite, o Império do Meio acaba mal falado porque compra berinjelas brasileiras. O doutor Guedes diz que “tem que aguentar” o chinês e orgulha-se de ter lido obras do economista John Maynard Keynes “três vezes, no original”. Ler o inglês no original é motivo de orgulho, vender soja para o chinês chega a ser um desconforto.

O povo chinês viveu o que ele mesmo chama de “século da humilhação”. O palácio de verão dos imperadores foi saqueado por uma tropa anglo-francesa em 1860 e no início do século passado um parque localizado no enclave internacional de Xangai tinha um cartaz que avisava: “Proibida a entrada de cachorros e de chineses”. Quando o ministro da Educassão Abraham Weintraub fez graça brincando com a fala do Cebolinha para sugerir que a China seria a beneficiária da ruína provocada pela pandemia, sabia que lidava com um preconceito. Seu erro estava em julgar-se superior aos chineses, e muita gente pensa assim.

Em 1979, quando o poderoso Deng Xiaoping visitou Nova York, precisou pedir dinheiro a um amigo para comprar um presente para sua neta, uma boneca que chorava e fazia xixi. Hoje as crianças americanas brincam com bonecas chinesas.

Na transcrição liberada com embargos pelo ministro Celso de Mello, Bolsonaro disse que “não queremos brigar com XXXXXX, zero briga com a XXXXX.” A XXXXX não briga, espera.

Fica aqui o registro de que o ministro zombou da curiosidade alheia nos embargos que impôs ao texto da fatídica reunião de 22 de abril. Alguns cortes são risíveis, pois basta medir o trecho suprimido para se perceber o que está escrito ali.

A milícia anunciada por um governo com gângsteres - JOSÉ NÊUMANNE

ESTADÃO - 27/05

Em reunião mafiosa, Bolsonaro avisa que armará bandos contra seus ‘inimigos’ eleitos


Quando o vídeo da reunião do Conselho de Governo de 22 de abril teve o sigilo levantado, inocentes inúteis adotaram a definição do gabinete do ódio bolsonarista de que a bala de prata teria virado traque junino: “Ufa, a prova material da interferência política de Jair Bolsonaro na Polícia Federal, denunciada por Sergio Moro, não foi exibida!”.

Nenhum figurão da República deu importância a uma personagem relevante do inquérito, a deputada Carla Zambelli, que havia oferecido uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) ao então ministro da Justiça. Antes de ser divulgado o vídeo, ela definiu: “Moro caiu porque é desarmamentista”. Nem sequer lhe foi dedicado um muxoxo de “tolinha”. Pois não é que a atual pomba-correio do presidente da República na Câmara dos Deputados e na Secretaria Especial de Cultura tinha razão? Meninos, eu vi. Basta ver e ouvir o que seu “mito” que mente disse.

Segue transcrição oficial: “Como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura”, esbravejou o chefão. E frisou: “Eu peço ao Fernando (Azevedo e Silva, ministro da Defesa) e ao Moro que, por favor, assine(m) essa portaria hoje”, disse o “senhor Constituição” na reunião em que, ao contrário do agendado, não se discutiu a reconstrução da economia pós-pandemia. A não ser por discursos “kaftianos” (apud Weintraub) do “posto Ipiranga” da economia. Tudo numa linguagem que não foi de prostíbulo de porto nem de botequim pé-sujo, mais respeitáveis, mas das reuniões da Máfia de Chicago, sob o taco de beisebol de Al Capone, durante a Lei Seca nos Estados Unidos.

O “capitão cloroquina” fez aí referências explícitas a dois ministros e sobre elas o advogado-geral da União, José Levi do Amaral Júnior, nem se importou em inventar a mentira deslavada do pito na segurança pessoal, assumida pelos generais palacianos, de que tratava, em linguagem de chulé, de crimes que o procurador-geral da República, Augusto Aras, nem sequer se quis dar ao luxo de ver e ouvir na sessão prévia para as partes. No dicionário limitado de um, União, que inclui o Legislativo e o Judiciário federais, é sinônimo exclusivo de “meu chefe” (que o chama de “meu advogado”). O que é algo de pouca relevância, de vez que este se diz dono da voz do povo. E o outro, ao que parece, não se esforça para investigar algum eventual crime do usuário da caneta BIC capaz de alçá-lo ao “pretório excelso”.

Em 23 de abril, um dia depois, a portaria que Bolsonaro cobrou, e para a qual Zambelli chamou a atenção, foi publicada. O volume autorizado, que era de 200 cartuchos por ano, passou a ser de até 300 unidades por mês, a depender do calibre do armamento. A nobre parlamentar deve estar bem informada sobre o assunto, pois é casada com o coronel da PM cearense Aginaldo de Oliveira, egresso da corporação que pode ter lembrado ao capitão de milícias seus tempos de terrorista condenado e depois absolvido pela Justiça Militar. Então, foi-lhe permitido pelo Exército alterar provas do atentado a bomba que preparava contra quartéis e a adutora do Rio Guandu em sua luta obsessiva para melhorar o próprio soldo. Isso levou o ex-presidente Ernesto Geisel a chamá-lo de “mau militar”. Por sinal, a simpatia do chefe da famiglia Bolsonaro pelo motim recente da corporação do marido da devota fã ficou patente.

É claro que também confessou crime de interferência política, que levou os generais palacianos e o advogado-geral da União a agirem de má-fé, os três primeiros em depoimento no inquérito aberto pelo procurador-geral da República com autorização do STF e o último na defesa oficial do chefe do Executivo nessa mesma investigação.

A confissão de querer armar bandos contra o Estado de Direito foi adicionada à de interferir na polícia judiciária para ajudar o filho 01 e um amigo (Fabrício Queiroz) e à da existência de um serviço clandestino de informação pessoal. Os atos lembram os fasci di combattimento (grupos de combate) do fascismo do italiano Benito Mussolini. Mas pela linguagem usada e pelo passado de quem os comete têm mais que ver com as milícias da periferia do Rio, com as quais o idealizador do armamentismo cobrado de Moro se identifica. Ele saudou o tenente Adriano da Nóbrega, do Escritório do Crime, como herói do Bope, quando este já tinha sido condenado por homicídio. E mandou o filho 01 condecorá-lo com a medalha mais importante do Legislativo fluminense. A esse respeito comentou o citado ministro da Defesa, em abril de 2019: “A milícia começou numa intenção de proteger as comunidades. Na boa intenção. Começou com uma intenção de ajudar, mas desvirtuou. Desvirtuou e são bandos armados”. Que flor de ingenuidade!

Mas mais grave do que isso é que nossos falsos pais da Pátria passam ao largo de óbvias ameaças ao Estado de Direito. Incluindo-se aí as vítimas da milícia chavista de direita: João Doria, Wilson Witzel e Bruno Covas, ungidos da mesma consagração pelo voto popular em que se justifica o capo di tutti capi.

JORNALISTA, POETA E ESCRITOR

Resistir é preciso - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 27/05

Jair Bolsonaro sente-se cada vez mais à vontade para revelar suas intenções autoritárias. Desafortunadamente, o Brasil hoje tem de lutar pela vida e pela liberdade. Mas se é assim, à luta, pois


O presidente Jair Bolsonaro sente-se cada vez mais à vontade para revelar à Nação suas intenções autoritárias. A bem da verdade, decoro e respeito à ordem constitucional jamais foram traços do caráter do mau militar e do deputado medíocre. Por que haveriam de ser do presidente da República? O elevado cargo que ora ocupa não mudou a personalidade de Bolsonaro; foi ele quem rebaixou a Presidência para acomodá-la à sua estreiteza moral, cívica e intelectual. Como se vê em suas palavras e atitudes, se Bolsonaro tem na cabeça alguma ideia de como conduzir o País, é certo que não o levará a bom porto. E basta assistir à inacreditável reunião ministerial trazida a público por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) para perceber que a eventual ilegalidade dos meios para a consecução de seus fins não passa de desprezível detalhe.

O melhor que pode acontecer ao País nesta encruzilhada da História é que as perigosas intenções do presidente permaneçam onde estão, ou seja, no plano das intenções. Isto só será possível se as instituições se mantiverem firmes e resistirem com coragem e espírito público às desabridas pressões do atual chefe do Poder Executivo. É hora de as Forças Armadas, o Congresso, o STF, a Procuradoria-Geral da República (PGR) e a imprensa profissional exercerem suas atribuições republicanas sem desviar um milímetro das prerrogativas que a Constituição lhes confere. Não é fácil, mas resistir é preciso.

Contando com o estímulo de Jair Bolsonaro, o bando de celerados que o apoiam e batem ponto nas redondezas dos Palácios do Planalto e da Alvorada recrudesceu os ataques aos jornalistas que cobrem a Presidência. Tão virulentos foram esses ataques que os mais importantes veículos de comunicação do País decidiram suspender a cobertura jornalística naqueles locais. Longe de se tratar de “recuo” ou de simples “manifesto” da imprensa contra o governo, a decisão visa à proteção da integridade física dos jornalistas, que só está sob risco porque o cidadão Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), não exerce a contento o seu dever de garantir a incolumidade de todos os que estão em áreas de segurança nacional. As agressões sofridas pelo fotógrafo Dida Sampaio, do Estado, e por jornalistas da Folha de S.Paulo e da TV Bandeirantes ilustram bem do que os camisas pardas do bolsonarismo são capazes.

Mas as ameaças à liberdade de imprensa não se dão apenas pela coação física e pelo assédio moral praticados contra os jornalistas de campo. William Bonner, editor-chefe e apresentador do Jornal Nacional, da Rede Globo, tem sido vítima de chantagens e fraudes por meio do uso de dados pessoais de seu filho. De um número telefônico com prefixo 61 (Brasília), o jornalista recebeu mensagens com dados fiscais sigilosos seus e de sua família. O objetivo dessas ações, obviamente, é tolher o livre exercício da profissão. Não se sabe a autoria dos crimes, mas não se ouviu uma só palavra de repúdio de Jair Bolsonaro ou de qualquer membro de seu governo ao ato vergonhoso e covarde. É com tais vícios morais que os bolsonaristas e seus inocentes úteis se associam?

Como a imprensa, o Congresso, a PGR e o STF, entre outras instituições de Estado, têm sido constrangidos por Bolsonaro a afrouxar a independência e os controles constitucionais que regem o sistema de freios e contrapesos. O desassombro dos avanços autocráticos do presidente é tal que faz crer que ele realmente se vê como um ungido para governar o País como melhor lhe aprouver, devendo satisfações apenas a seus caprichos. Não é hora de tibieza. A resposta das instituições deve ser à altura das ameaças. Ao tomar posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral, o ministro Luís Roberto Barroso afirmou que “não há volta no caminho da estabilidade institucional e democrática”. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, disse que “prudência não pode ser confundida com hesitação”, enfatizando que a “preservação da democracia” não será descuidada pela Casa das Leis.

As forças vitais do País deveriam estar inteiramente voltadas para a tarefa de salvar o maior número de vidas possível em meio à pandemia. Desafortunadamente, o Brasil hoje tem de lutar pela vida e pela liberdade a um só tempo. Mas se é assim, à luta, pois.

Sinais de alerta - MERVAL PEREIRA

O Globo - 27/05

É preciso decifrar em que pé está a interferência de Bolsonaro diretamente na Polícia Federal, especialmente no Rio


A operação policial no Palácio Laranjeiras, residência oficial dos governadores do Rio, faz parte de um amplo mosaico de combate à corrupção que é bem-vindo, mas traz consigo a desconfiança de que a Polícia Federal esteja sendo usada para objetivos políticos depois da mudança de chefia recente.

O fato de que esta é a segunda vez em pouco tempo que um governador do Rio recebe a visita da Polícia Federal em sua casa — o outro, Pezão, foi levado preso de lá —diz muito sobre a deterioração da política do estado, onde milicianos e trambiqueiros de diversos naipes dominam os serviços terceirizados, especialmente os da Saúde, numa perversão que não parou no governo Sérgio Cabral.

Os trambiqueiros são os mesmos. Mário Peixoto tinha ligação antiga com o governo anterior, e já na campanha sua presença no entorno de Witzel foi denunciada pelo também candidato Romário. Milícias disputam os poderes entre si, federal e estadual.

Os indícios contra o governador do Rio, Wilson Witzel, sempre foram muito fortes desde o início, quando desmontou o sistema unificado de polícias do Rio na Secretaria de Segurança organizado pelos militares durante a intervenção, e voltou a aceitar indicações políticas para o comando de batalhões, segundo informações das autoridades da época. O interventor foi o general Braga Netto, que hoje ocupa o Gabinete Civil da Presidência de Bolsonaro.

Mas o presidente Bolsonaro festejar com risadas e dar os parabéns à operação da Polícia Federal tem o mesmo efeito dos cumprimentos e elogios ao procurador-geral da República, Augusto Aras, ao visitá-lo de surpresa para elogiar de corpo presente o “colegiado maravilhoso” do Ministério Público.

Com atitudes como essas, Bolsonaro pressiona publicamente órgãos de Estado que são autônomos e precisam demonstrar essa condição em situações delicadas, como, por exemplo, recolher o celular de uma autoridade. Ontem, os celulares e computadores do governador do Rio, Wilson Witzel, foram confiscados pela PF com a autorização do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Por que então é considerado pelo governo federal uma ofensa a simples menção à possibilidade de confiscar o celular do presidente da República, a ponto de o general Augusto Heleno dar-se ao desplante de soltar nota oficial, respaldada pelo Ministro da Defesa, ameaçando com uma crise institucional “de consequências imprevisíveis”?

O mesmo general, juntamente com seus colegas de farda Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos, sentiu-se ofendido quando o mesmo ministro Celso de Mello convocou-os para deporem como testemunhas e, no documento de convocação, havia o aviso de praxe de que se não comparecessem no dia marcado, poderiam ser levados a depor coercitivamente debaixo de vara.

Todo cidadão brasileiro recebe intimações nesses termos, por que os generais não poderiam também serem tratados como cidadãos comuns? Sentem-se “mais iguais que os outros”, lembrando George Orwell na “Revolução dos bichos”? Essas suspeitas tornam nubladas operações que podem ser corretas, no meio de uma confusão política enorme.

Que o Palácio do Planalto sabia da operação no fim de semana parece não haver mais dúvidas, e não apenas porque a deputada Carla Zambelli deu com a língua nos dentes e antecipou em entrevista operações contra governadores.

Assessores próximos do presidente da República comentaram com amigos a possibilidade de prisão de Witzel no sábado. A suspeita de que a nova direção da Polícia Federal está satisfazendo a “curiosidade” do presidente Bolsonaro, especialmente no Rio de Janeiro, é o efeito colateral dessa ação, o que pode ser mortal para a nossa democracia.

O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, soltou ontem uma nota oficial sóbria mas enérgica, cujo núcleo é a defesa da tese democrática de que ordem judicial se cumpre, e que a relação entre os poderes não pode estar ameaçada por sentimentos espúrios.

É preciso decifrar em que pé está a interferência de Bolsonaro diretamente na Polícia Federal, especialmente no Rio. Muita coincidência que tudo em primeiro lugar aconteça no Rio. A primeira decisão do novo diretor da PF foi a troca do superintendente do Rio, a primeira operação foi aqui também. É preocupante imaginar que o presidente esteja constrangendo Polícia Federal, Procuradoria-Geral da República e Ministério Público. Pode ser perigoso para a democracia.

Procurador em xeque - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 27/05

Pressão de Bolsonaro sobre Aras mostra necessidade de formalizar lista tríplice


Diante do avanço das investigações sobre suas tentativas de intromissão nos assuntos da Polícia Federal, o presidente Jair Bolsonaro se mostra a cada dia mais empenhado em tumultuar o processo.

No domingo (24), dois dias após a divulgação do vídeo da reunião ministerial em que manifestou o desejo de intervir na PF, o mandatário foi a uma rede social provocar o ministro Celso de Mello, que conduz o inquérito no Supremo Tribunal Federal e liberou o material.

Sem mencionar seu nome, Bolsonaro reproduziu artigo da Lei de Abuso de Autoridade que pune a divulgação indevida de gravações, forçando uma acintosa associação do dispositivo com a límpida decisão do decano do STF.

Na segunda (25), o chefe do Executivo investiu contra a credibilidade do procurador-geral da República, Augusto Aras, responsável por acompanhar apurações, avaliar as provas colhidas pelos investigadores e denunciar à Justiça os que tiverem seus crimes demonstrados.

Ao participar de um evento da Procuradoria por videoconferência, Bolsonaro disse que gostaria de ir até Aras para cumprimentá-lo pessoalmente. O procurador aceitou recebê-lo em seu gabinete, onde posaram para fotos e conversaram por alguns minutos.

Como não havia assunto sério que devesse ser tratado ali, ficou evidente que o objetivo da encenação era intimidar o chefe do Ministério Público, como Bolsonaro tinha feito semanas antes com o presidente do Supremo, Dias Toffoli, ao marchar com empresários até o tribunal para uma visita surpresa.

Nomeado por Bolsonaro para um mandato de dois anos, Aras só foi indicado após demonstrar seu alinhamento com o presidente. Ele sabe que sua recondução ao cargo em 2021 dependerá do que fizer durante as investigações em curso.

O constrangimento é o resultado previsível do processo que levou à escolha de Aras no ano passado, quando Bolsonaro buscou um nome fora da lista tríplice indicada pelos membros do Ministério Público após sua eleição interna, desprezando a tradição respeitada por seus antecessores.

Caberá ao procurador-geral demonstrar que é capaz de exercer suas funções com independência e deixar em segundo plano suas conveniências pessoais, examinando com rigor a conduta de Bolsonaro quando o inquérito em andamento chegar a um desfecho.

Melhor ainda seria uma resposta legislativa às provocações de Bolsonaro, que reforçasse a autonomia conferida pela Constituição ao Ministério Público. Tornar a lista tríplice uma norma formal, restringindo a liberdade de escolha —e a possibilidade de pressão posterior— dos mandatários, representaria um valioso avanço institucional.

Suspeitas voltam com operação da PF contra Witzel - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 27/05

Há sólidas evidências de corrupção na área da saúde, mas vazamento da operação causa preocupações


No encadeamento de crises que caracteriza o governo, a vertente da Polícia Federal e sua vinculação ao Planalto é um foco que volta a chamar a atenção desde o final da madrugada de ontem, quando viaturas da Polícia Federal entraram nos jardins do Palácio Laranjeiras, residência oficial do governador do Rio de Janeiro, cargo ocupado por Wilson Witzel, adversário político do presidente Bolsonaro. Em um momento de normalidade política, seria mais uma demonstração de seriedade e independência da PF, como aconteceu nestes últimos anos no ciclo de combate à corrupção.

Mas o presidente acabou de substituir o ministro da Justiça Sergio Moro por André Mendonça, que, com o aval de Bolsonaro, colocou Rolando Alexandre de Souza na direção-geral da PF, o que faz supor que os clamores do presidente para ter gente na polícia com quem possa “interagir” foram atendidos. Por “interagir” pode-se entender tudo, considerando-se o estilo pessoal do presidente e seu perfil centralizador e autoritário. Porém, não se tem dúvida de que o mandado de busca e apreensão concedido pelo ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cumprido no Laranjeiras, e não só nele, esteja bem fundamentado.

Mas a conjugação das mudanças na pasta da Justiça e Segurança Pública, e por decorrência na PF, com a deflagração da Operação Placebo contra Witzel, chamado de “estrume” por Bolsonaro na reunião ministerial do vídeo, é preocupante, porque pode ser o sinal de que a PF começa a se converter em braço armado do poderoso de turno, como acontece em republiquetas.

Para reforçar o temor de que a PF passa mesmo à órbita de Bolsonaro, um presidente que se preocupa em proteger família e amigos, a deputada Carla Zambelli (PSL-SP), próxima do presidente, frequentadora do Planalto e do Alvorada, com fácil trânsito na PF, adiantara à Rádio Gaúcha que a Polícia investigava governadores. Arriscou um nome para a operação: “Covidão”. Nisso errou. Este caso tem vários aspectos, e todos parecem verdadeiros. Não se discutem fartas evidências de grossa corrupção nos gastos do governo do estado em hospitais de campanha e na compra de equipamentos para aparelhá-los, a fim de acolher vítimas da Covid-19. Há negócios escusos com organizações sociais. Por R$ 180 milhões, por exemplo, compraram-se mil ventiladores pulmonares junto a empresas inidôneas; foram entregues 52, mas não serviram. E desapareceram quase integralmente R$ 36 milhões.

O ex-secretário de Saúde, Edmar Santos e o seu sub, Gabriell Neves, são processados, e este foi preso. Antes, em outra operação, terminou encarcerado o empresário Mário Peixoto, deste ramo de negócios com governos. A primeira dama do estado, a advogada Helena Witzel, também é citada nas investigações. Se tudo for provado, depois de Sérgio Cabral e Adriana Ancelmo será o segundo casal a passar pelo Laranjeiras que cairá nas redes da Justiça, em mais um estágio na degradação ética da política carioca e fluminense. Mas nada justifica a PF ser de governos.