quarta-feira, julho 03, 2019

Nós, o povo - GUSTAVO NOGY

GAZETA DO POVO - PR - 03/07


O presidente Jair Bolsonaro, durante mais uma manifestação a favor de si mesmo, disse que ele está com o povo e o povo está com ele. Ele e o povo são um só. Ponderado, garantiu que até respeita as instituições, como não respeitaria?, mas que acima das instituições está o povo, “meu patrão, a quem devo lealdade”, concluiu Hugo Chávez, minto, Jair Bolsonaro.

Declarações assim traem certo analfabetismo político e flertam com o perigo antidemocrático. O sentimento de que há inimigos e traidores por todos os lados, dentro e fora do governo, que devem ser combatidos, escorraçados, calados, deportados, isso serve para instigar ânimos que teimam em se manter exaltados. Da força de expressão à expressão da força é um pulo.

O deputado que perambulou sem norte durante longos anos nos corredores do Legislativo virou presidente, mas ainda não terminou de aprender que as tais “instituições” não são coisas que atrapalham a política, que contrariam o povo. Antes, é por meio delas, e só por meio delas, que uma política razoável é possível no complexo mundo contemporâneo.

O povo, por sua vez, é uma abstração. Quem é o povo: todos os brasileiros? A maioria dos brasileiros? Apenas os que votaram no presidente? Somente os que lhe são leais? Quem votou nele e se arrependeu ainda é povo, ou perde a condição de povo? Quem concorda com a direção da economia e da infraestrutura, mas discorda dos rumos da política ambiental e de segurança, é meio-povo?

A alternativa ao sistema representativo já foi tentada, e deu errado, em muitos países. A democracia direta, popular e populista, é a menina dos olhos de todo líder autoritário. De todo líder autoritário de esquerda, a propósito. O que nós vemos hoje na Venezuela é efeito dessa concepção política. Dessa ligação direta ao ataque, do goleiro ao centroavante, sem a troca de passes da democracia.

Revolucionários de esquerda e populistas de direita apelam ao povo, à política plebiscitária, à indistinção entre representantes e representados, à confusão entre a vontade das ruas e a vontade de quem diz representar as ruas, às demandas arbitrárias em detrimento da lei e da Constituição. Por isso, as instituições são o mecanismo contra-majoritário por excelência, ou seja, elas servem de anteparo entre as massas e os indivíduos, entre a brutalidade do coletivo e fragilidade da minoria. Minoria que pode ser você, eu, o cristão, o ateu, quem quer que seja considerado inimigo público num dado momento ou contexto. Num país comunista, minoria é o cristão. Cristo e seus doze foram minoria numa Roma idólatra e decadente.

Se tomarmos o modelo americano como paradigma, aprenderemos que lá, mais do que aqui, o que funcionam são as instituições, pessoas à parte. A começar pela Constituição, mais antiga e resiliente do mundo democrático. O que há de invejável nos EUA é a solidez e a constância de seus institutos, mesmo diante de todos os baques econômicos e geopolíticos que sofreram e fizeram sofrer. Da conquista da Independência à Secessão, da Crise de 29 ao Vietnã, da Guerra Fria ao 11 de setembro, do assassinato de Kennedy à renúncia de Nixon, muitos foram os motivos para que as instituições americanas sucumbissem ao populismo imediatista. Não, obrigado, eles disseram.

Notem que nem mesmo o processo eleitoral americano é como o nosso. O sistema proporcional filtra as distorções que o voto direto nos candidatos poderia permitir. Não é curioso que a Hillary Clinton tenha vencido no dito voto popular, mas Trump tenha levado no voto que vale, o dos colégios eleitorais? Assim é e assim fica. Eis a lição de um país que, defeitos à parte, sabe que a liberdade do povo é resultado, e não causa, da solidez das instituições e da equanimidade da lei.

Jair Bolsonaro e sua militância deveriam aprender a sério como funciona a democracia com os irmãos do Norte, em vez de apenas imitá-los no que têm de pitoresco e espalhafatoso. Não adianta nada falar como os EUA e fazer como a Venezuela."


O mito do “homem cordial” - LUIZ CARLOS AZEDO

Correio Braziliense - 03/07

“Moro construiu sua imagem pública sobre os pilares do mito do herói de Homero: a grandiosidade e a singularidade. Aspirava à imortalidade, comportava-se como um semideus da Justiça”


O “homem cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda, não é bem aquilo que o senso comum deduz à primeira vez que se depara com o conceito-chave de sua obra seminal, Raízes do Brasil. A expressão “cordial” não indica apenas bons modos e gentileza, vem de “cordis”, em latim, ou seja, relativo a coração. Para Buarque, o brasileiro não suporta o peso da própria individualidade, precisa “viver nos outros”. A apropriação afetiva do outro seria um artifício psicológico e comportamental predominante na sociedade brasileira, parte integrante do nosso processo civilizatório.

A cordialidade “pode iludir na aparência”, explica Buarque. A polidez do “homem cordial” é organização da defesa ante a sociedade. “Detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas suas sensibilidades e suas emoções.” O brasileiro dispensa as formalidades, pretende estreitar as distâncias, não suporta a indiferença, prefere ser amado ou odiado.

Em grande parte, a “fulanização” da política brasileira vem desse viés antropológico, embora nossas instituições políticas sejam surpreendentemente robustas, como destacou recentemente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao comentar a relação do presidente Jair Bolsonaro com o Legislativo: os partidos são fracos, mas o Congresso é forte. De certa maneira, as redes sociais potencializaram essas características do “homem cordial”. Num primeiro momento, nas relações interpessoais; depois, no processo político, principalmente nas disputas eleitorais.

Bolsonaro e sua antítese, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que foi condenado e está preso, exacerbam essas características da política brasileira. Ambos flertam com o populismo, buscam aproximação afetiva com aliados e eleitores, protagonizam a exacerbação das paixões políticas. Ambos se enquadram no “tipo ideal” da obra de Sérgio Buarque, se analisarmos com esse olhar o papel de cada um na vida nacional.

E o ministro da Justiça, Sérgio Moro, que ontem estava sendo sabatinado na Câmara, por sua atuação heterodoxa, digamos assim, na Operação Lava-Jato? Pelas próprias características de seu trabalho como juiz federal, seu comportamento formal e circunspecto não se enquadra nesse tipo ideal do “homem cordial”. Ou melhor, não se enquadrava, até serem reveladas as conversas que mantinha com os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato.

O semideus

Moro construiu sua imagem pública sobre os pilares do mito do herói da Ilíada de Homero: a grandiosidade e a singularidade. Aspirava à imortalidade, comportava-se como um semideus da Justiça. Mas tinha uma existência verdadeira, que pressupõe também a volta para casa, a vida normal — até que a situação exigisse outro gesto glorioso e individual, de grande bravura. O herói semideus faz coisas sobre-humanas, mas não é imortal.

A filósofa Hannah Arendt, em A Condição Humana, discorrendo sobre o mito do herói, destaca que a sua coragem antecede as grandes batalhas, tem a ver com disposição de agir e falar, se inserir no mundo e começar uma história própria. O herói não é necessariamente o homem de grandes feitos, equivalente a um semideus; pode ser um indivíduo comum que se insere e se destaca no mundo por meio do discurso e da ação. O herói é sempre aquele que se move quando os outros estão paralisados. Precisa fazer aquilo que outro poderia ter feito, mas não fez; ou melhor, o que deixaram de fazer.

Moro se tornou uma personalidade nacional graças à Lava-Jato, na qual só se pronunciava nos autos. Mas era aplaudido e cumprimentado nas ruas. Representava os órgãos de controle do Estado e a ética da responsabilidade, que zelam pela legitimidade dos meios empregados na ação política. Cumpriu um papel estratégico na luta em defesa da ética na política, vetor decisivo para o resultado das eleições passadas. Contra Moro, Lula não tinha a menor chance; seria preso, como foi, pelo juiz durão.

Depois das eleições, convidado por Bolsonaro para ser ministro da Justiça, Moro manteve-se na crista da onda, mas deixou de ser o juiz “imparcial”. Esse atributo agora foi posto em xeque. As revelações do site The Intercept Brasil sobre supostas trocas de mensagens entre Moro e procuradores da Lava-Jato em Curitiba sugerem a intervenção indevida do então juiz federal na condução da operação, inclusive com a indicação de possíveis testemunhas. O cristal de seu pedestal de herói foi trincado por conversas banais nas redes sociais. O mito do herói ainda sobrevive, mas já não é a mesma coisa: Moro virou um político, sujeito a todos os ritos da luta política e do jogo democrático. A vida real está revelando a face oculta de mais um “homem cordial”.


Sem coitadismo - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 03/07

O Rio é calejado de crises e esta é apenas mais uma


O carioca não se orgulha de o atual presidente da República, paulista de origem, ter feito sua carreira política aqui —não se sabe de um só projeto de Jair Bolsonaro, em 28 anos como deputado federal, em prol do Rio. O Rio também vê sem surpresa o seu novo governador, WilsonWitzel, depois de passar a campanha posando de valente contra o crime, ainda não ter assustado nenhum bandido —que deve rir ao vê-lo com aquela faixa de governador que ele mesmo mandou bordar. Já o fato de termos Marcelo Crivella como prefeito supera todas as expectativas —é o pior da história do Rio em 130 anos de República.

Você dirá: bem feito, quem mandou elegê-los? Mas este não é um problema exclusivamente carioca. Todos os estados e cidades brasileiros já elegeram os seus jânios, malufs, pitas, e deve ter havido casos em que os outros candidatos talvez fossem até piores. Além disso, um eleitorado não se compõe somente de cidadãos esclarecidos —as grandes massas têm suas preferências, e direito a elas. E as pessoas esclarecidas também podem votar errado.

Sem falar nos candidatos capazes de tapear uma população inteira. O Rio, por exemplo, teve, de 2007 a 2014, um governador exuberantemente ativo, Sérgio Cabral, cuja administração —nem os mais bem informados percebiam— consistia em amarrar todas as pontas, empresários, vereadores, secretários e auditores, para saquear a cidade. O máximo de que se suspeitava é que sua política econômica, de atrair investimentos em troca da liberação de impostos, podia dar errado. Mas esta era também a política de Lula e Dilma, que parecia "dar certo".

Desde então, todos os dias, assistimos ao fechamento de um estabelecimento ou instituição com décadas de história no Rio e tendemos a culpar a cidade. Mas o Rio é só uma vítima do descalabro.

Digo isso sem qualquer coitadismo. O Rio é calejado de crises e esta é apenas mais uma.

Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues

Direita dividida entre defesa institucional e 'governo pelas ruas' - RODRIGO CONSTANTINO

GAZETA DO POVO - PR - 03/07


Para o deputado Kim Kataguiri, o conflito entre manifestantes bolsonaristas e integrantes do MBL nas manifestações do último domingo foi responsabilidade de radicais que não toleram divergências. Kataguiri é um dos principais líderes do MBL e ficou conhecido pela atuação favorável ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

“Eles (bolsonaristas) não querem um Congresso, querem bois de terno e gravata que atendam ao berrante do presidente”, disse ao GLOBO. Kim explicou os ataques sofridos: “Não é pelo fato de eu ter virado parlamentar. É pelo fato de eu criticar quando o presidente erra e elogiar quando acerta. Criticam o MBL por ter uma postura política, por a gente ser liberal politicamente, por defender a existência da imprensa. Essa ala do governo, que tem certa representação popular, não acredita nisso”.

De fato, parece haver cada vez mais uma divisão entre uma direita mais liberal e defensora das instituições republicanas e outra mais populista e autoritária, que gostaria de ver o Congresso se dobrando diante da “vontade geral” incorporada supostamente na figura do presidente. Nessa ala há um desprezo muito grande em relação ao papel parlamentar, e a desculpa é que “esse Congresso” não presta. Mas algum presta, já prestou ou é perfeito?

Kamala Harris, uma das várias pré-candidatas democratas de 2020, disse que quando (não se) ela for eleita presidente, vai dar ao Congresso cem dias para colocar um projeto banindo armas em sua mesa para assinatura, e que se não fizer isso ela vai usar uma ordem executiva (decreto). O conservador Ben Shapiro rebateu: “Então se você for eleita presidente será uma ditadora. Ok, entendi”.

Conservadores e liberais entendem a importância das instituições, da divisão de poderes, do mecanismo de pesos e contrapesos, dos riscos da centralização de poder no Executivo. A esquerda americana, cada vez mais radical e populista, quer até acabar com o Colégio Eleitoral e partir para uma “democracia direta”, ou seja, a tirania da maioria simples que os “pais fundadores” sempre tentaram evitar.

É triste ver no Brasil uma ala da dita direita defendendo coisas tão parecidas. Não parecem se dar conta de que amanhã todo esse poder poderá ser usado pelo lado de lá. Imaginem um Boulos da vida com todo esse poder concentrado atropelando o Congresso: Deus nos livre!

A pressão popular das ruas pode ter seu papel numa democracia, mas como “tática de governabilidade” parece fadada ao fracasso. Foi o tema da coluna de Joel Pinheiro na Folha hoje. O evento pode estar se tornando numa banalidade:

A ideia era que Bolsonaro não precisava negociar com o Congresso porque a força da pressão popular sobre os parlamentares os obrigaria a seguir as ordens do Executivo. Na prática, contudo, o Congresso vê os manifestantes entoando cantigas de amor ao presidente e seus ministros e não sente medo nenhum. Não vemos nas ruas as multidões a perder de vista. E como elas não apresentam grandes riscos de partir para a violência, invadir o Congresso, parar a cidade (até o dia dos atos é escolhido para não interferir no trânsito) ou algo do tipo, perdem o potencial intimidatório. O domingo de manifestação virou o dia do lazer bolsonarista.

Assim, deputados e senadores sentem-se à vontade para inviabilizar o decreto que liberava o porte de armas, propõem mudanças várias à reforma da Previdência sem se pautar pelo número mágico do R$ 1 trilhão em dez anos e já se preparam para tocar uma agenda econômica própria assim que a página da Previdência tenha sido virada. E ao fazê-lo criarão uma situação difícil para a militância bolsonarista: se o Congresso toma a dianteira nas reformas econômicas do Brasil, o governo não poderá acusá-lo de sabotar seu trabalho.

A pressão popular, para ter algum efeito, precisa ser rara e impactante. E ela o será tanto mais quanto mais parecer que o Congresso —para defender interesses próprios— se coloca contra mudanças importantes do país. Se ele for o motor dessa mudança, a grande crítica do bolsonarismo à “velha política” estará desarmada.

[…]

A cada nova intriga que vaza para a mídia, a cada nova humilhação pública e demissão sumária imposta a um ministro ou funcionário do alto escalão (como no caso de Joaquim Levy e do general Santos Cruz), o governo perde a confiança e a boa fé de todos aqueles que poderiam colaborar com ele, tornando mais difícil fazer um trabalho sério. Os domingueiros de verde-amarelo gostam, festejam cada novo ato intempestivo do “Mito”. Mas a ideia de que eles possam carregar o governo nas costas nunca pareceu tão distante.

O músico Lobão também criticou “esse afã de ir para as ruas toda hora”, que estaria “ficando bobo” segundo ele. Para o compositor, que apoiou o presidente em sua campanha, as manifestações estão ficando repetitivas e se esvaziando. “Há um turbilhão de propostas, e não conseguimos definir muito bem do que está se falando”, afirmou.

Ele acredita que o governo incita o povo a ir às ruas para passar uma visão de que a direita está unida, quando na verdade não está. “A direita já não se comporta dentro da própria direita, já há grupos que são irreconciliáveis”, afirmou. E acrescentou:

Isso é um sinal muito sério de que estamos caminhando para uma situação irreconciliável mesmo dentro do pacto social. Acho que o governo é responsável por isso. Ao mesmo tempo, prefiro torcer para que o governo consiga pelo menos cumprir o rito da democracia, se possível respeitar as instituições democráticas, ter vitórias na economia, já que áreas como educação e cultura estão completamente ou abandonadas ou retaliadas.

Talvez o pessimismo de Lobão seja prematuro, talvez seja profético. Como ele lembra, a vitória de Bolsonaro teve muito de antipetismo, ou seja, ocorreu uma espécie de plebiscito sobre o PT e isso o ajudou muito. Mas bolsonaristas apenas jamais seriam capazes de leva-lo à vitória, e falta essa percepção por parte do presidente e seu núcleo duro. O sucesso pode ter subido à cabeça, alimentado pelo barulho das redes sociais.

Enquanto os bolsonaristas demonizam o Congresso e o MBL, é o próprio PSL que ameaça desidratar a reforma previdenciária, prioridade do governo, em defesa de corporativismo. O mesmo Kim Kataguiri, citado acima, tem feito mais sozinho pelas reformas do que todos os olavistas juntos. Mas a militância engajada do bolsonarismo, com o apoio dos filhos do presidente, investe pesado contra esses liberais. Faz sentido?

O Congresso prevê uma temporada de atritos com o Planalto após a esperada aprovação da reforma da Previdência, no segundo semestre, se o presidente Jair Bolsonaro não mudar o jogo com os parlamentares. Alvo de ataques em redes sociais bolsonaristas e em manifestações de rua, como as de domingo, políticos de vários partidos avaliam que o governo não terá votos suficientes para tirar do papel os seus projetos e só não enfrentará um “apagão legislativo” porque há uma agenda pós-Previdência construída pela cúpula da Câmara e do Senado.

Os primeiros seis meses do governo Jair Bolsonaro foram marcados, na avaliação do ex-deputado federal e escritor Fernando Gabeira, por um erro de avaliação na relação do Executivo com o Congresso Nacional. Está em jogo nesse modelo presidencialista sem base majoritária formal no Parlamento a própria eficácia da atual gestão, afirma Gabeira. “Não houve inexperiência, houve erro de avaliação. Do jeito que está se comportando, perde todas (as votações) e acaba virando um governo ineficaz”.

Entre o confronto direto com a “velha política”, rotulando quase todo o Congresso de corrupto e contando com o apoio das ruas, e o antigo toma-lá-dá-cá imoral, precisa haver algum meio-termo, algum ponto de convergência, de articulação propositiva e dentro da lei.

O resumo da ópera é que o presidente precisa se afastar da ala mais radical e buscar agir mais como um estadista agregador do que um candidato em eterna campanha e palanque, atirando em inimigos o tempo todo. Contar somente com o peso das ruas parece uma péssima estratégia.

Rodrigo Constantino

Lições da história para os mercados - HELIO BELTRÃO

FOLHA DE SP - 03/07

Com juro negativo em países ricos e riscos geopolíticos, todo cuidado é pouco


A economia americana está oficialmente no mais longo período ininterrupto de crescimento de sua história, com inimagináveis 121 meses consecutivos de expansão do PIB. A Bolsa americana atingiu na segunda-feira (1º) a máxima histórica, com alta de 18% em 2019.

No entanto, as previsões de crescimento para a economia mundial estão cada vez mais fracas, e o comércio internacional está estagnando. Estará o mercado demasiado sereno e complacente? É uma pergunta crítica, pois, quando os EUA e os países desenvolvidos espirram, os países periféricos como o Brasil pegam gripe.

As taxas de juros dos títulos de dez anos emitidos pelos seguintes governos estão negativas: Japão, Alemanha, Suíça e França. Essa anomalia significa que o investidor espera receber após dez anos menos do que investiu. É pior do que guardar o dinheiro debaixo do colchão, onde pelo menos não se perde.

A aberração revela uma perspectiva alarmante quanto à saúde da economia mundial, a riscos geopolíticos ou a eventual espiral deflacionária.

Mais de US$ 12 trilhões em títulos amargam hoje juros negativos. A título de comparação, a dívida líquida total do governo brasileiro, uma das dez maiores do mundo, é de cerca de US$ 1 trilhão.

A Parábola dos Talentos, do Evangelho de Mateus, aponta uma preciosa lição sobre investimentos, juros, risco e empreendedorismo.

Um senhor rico confia sua poupança aos cuidados de três assessores enquanto viajava durante um ano. Os dois primeiros dobraram o investimento ao aplicá-lo em empreendimentos. O terceiro, que enterrou o dinheiro em segurança, foi repreendido. Seu mestre o considerou arruinador de sua poupança, pois, houvera aplicado no banco, auferiria ao menos um rendimento, com menos trabalho. No mundo de hoje, o investidor em títulos com juros negativos mereceria reprimenda ainda mais veemente que a do assessor!

Juros negativos desafiam 5.000 anos de mercado financeiro, que sempre premiou a espera e a postergação do consumo. A poupança tem sido impiedosamente corroída pela inflação no mundo desenvolvido devido aos juros negativos. Estão em xeque a viabilidade dos fundos de pensão e dos sistemas de previdência e a rentabilidade dos bancos.

A intervenção dos bancos centrais por juros cada vez mais baixos força a alta de ativos como ações, imóveis, commodities e os já mencionados títulos de dívida. Afinal, quando se pode tomar empréstimos longos a juros zero, até a compra de bilhetes de loteria se torna atrativa. Mas isso não pode continuar indefinidamente.

Finalmente, há um risco que não me parece bem apreçado: o geopolítico.

O ex-agente da KGB Putin, há 20 anos no poder e que certa vez disse que a dissolução da União Soviética foi o maior desastre do século, continua expansionista.

A Rússia permanece na Ucrânia e está desenvolvendo mísseis de médio alcance, em descumprimento ao tratado com os EUA, que o denunciou.

Já a meteórica ascensão da China intensificou a rivalidade com os EUA, que pode sair do controle. A denominada armadilha de Tucídides sugere que, quando uma nova potência ameaça destronar uma reinante, a guerra é quase sempre o desfecho, como foi o caso na Guerra do Peloponeso, entre
Esparta e a novata Atenas.

A guerra não precisa ser bélica para causar consequências severas nos mercados, como se constata na questão da guerra comercial e nas hostilidades contra a Huawei, líder do 5G. De seu lado, a China desafia o direito internacional ao construir ilhas militares artificiais no mar da China Setentrional.

Todo cuidado é pouco nos investimentos. 

Helio Beltrão
Engenheiro com especialização em finanças e MBA na universidade Columbia, é presidente do instituto Mises Brasil.

Uma sensação amarga - FABIO GIAMBIAGI

O Estado de S.Paulo - 03/07

Reforma previdenciária precisa ser aprovada. Problema é vir com mais de 20 anos de atraso



Tenho 57 anos. Confesso o sentimento de fracasso com que chego a esta idade. Não no sentido pessoal, uma vez que, ao fazer um balanço, reconheço que a vida foi muito generosa comigo, dando-me saúde, uma boa família, bons amigos e boas condições de vida. Minha frustração é pelo Brasil.

Recentemente estive na Comissão Especial da Reforma Previdenciária, à qual fui convidado a participar de uma das suas seções. Ali tive a oportunidade de compartilhar algumas das questões que trato aqui. Meu primeiro artigo sobre previdência é de 1993, abordando questões atuariais. Cinco anos depois comecei a escrever sobre o crescimento acelerado das despesas previdenciárias sob a ótica fiscal. Desde então publiquei quase uma dezena de artigos acadêmicos sobre o tema em revistas especializadas, além de ter escrito ou coorganizado quatro livros sobre o tema e publicado dezenas e dezenas de artigos jornalísticos sobre o assunto durante anos e anos. No prefácio de um desses livros, Sonia Racy escreveu que “o próximo Presidente da República dificilmente poderá empurrar a problemática com a barriga, como vem se fazendo há anos... O papel aceita tudo, mas a realidade um dia chega”.

Essas palavras foram escritas em 2006 e refletiam uma situação em que o Brasil já estava atrasado na matéria pelo menos uma década em relação ao que deveria ter sido feito. Infelizmente, Sônia estava errada: mais 12 anos se passaram e continuamos sem fazer grandes reformas no sistema. A problemática foi empurrada com a barriga até agora. Para quê? Para chegarmos a um País que estimula a saída precoce dos indivíduos, onde quem se aposenta por tempo de contribuição pode fazê-lo muito cedo – e onde a qualidade das políticas públicas de saúde, de educação e de segurança, para citar as que mais afetam a vida do cidadão comum, dispensa comentários.

É impossível olhar para trás e não associar à situação do País à frustração pessoal – e provavelmente também à de colegas como Paulo Tafner, Leonardo Rolim, Marcelo Caetano, José Cechin, Hélio Zylberstajn, Luis Afonso, Francisco Oliveira, Kaizô Beltrão, José Márcio Camargo e outros que defenderam a realização de uma reforma previdenciária, passando alguns o bastão para outros, ao longo desses anos todos – em não termos sido bem-sucedidos no convencimento dos agentes políticos. Para a geração a que eu pertenço (ali pelos 55 a 60 anos) e que tinha em torno de 20 anos quando os sonhos da juventude coincidiram no tempo com a redemocratização do Brasil, o País fracassou. Tivemos avanços importantes – no combate à miséria extrema e na estabilização dos preços –, mas o contraste entre o que poderíamos ser e o que somos é enorme.

A Lei Orgânica da Assistência Social de 1960 exigia uma idade mínima de 55 anos para a pessoa se aposentar. Essa exigência não foi acolhida na Constituição de 1988. Cinco anos depois, em 1993, com sua ironia habitual, Roberto Campos afirmava que, “com a aposentadoria por tempo de serviço e os privilégios da aposentadoria precoce, mais da metade dos aposentados está na faixa dos 50 anos. A imagem do aposentado como um velhinho simpático, trôpego e quase gagá como eu, esperando na fila, falseia a realidade. Há atléticos latagões e simpáticas balzaquianas gozando às vezes de aposentadorias múltiplas”. Mais de 25 anos depois desse comentário de Roberto Campos, a situação legal é muito parecida – noves fora pequenas modificações –, com a agravante de que a conta previdenciária é várias vezes maior. Para que o leitor tenha uma ideia de como o Brasil tem sido de uma imprevidência aberrante – não me ocorre outra palavra – no trato da questão, cabe ressaltar que a própria Lei Eloy Chaves, de 1923 – a “lei mãe” da Previdência no Brasil –, estabelecia uma idade mínima de 50 anos de idade para a pessoa poder se aposentar. Hoje, quase cem anos depois e com uma expectativa de vida muito maior, 29% das aposentadorias femininas por tempo de contribuição são concedidas até os 50 anos de idade. O Brasil assassinou o seu futuro.

Em maio de 1998, uma proposta de emenda constitucional (PEC) estabelecendo limites mínimos de idade para a aposentadoria (60 anos para os homens e 55 para a mulheres) obteve apenas 307 votos na votação de um destaque para votação em separado, deixando assim, por um voto, de ser aprovada na Câmara de Deputados, três anos depois de ter sido apresentada. Na ocasião, um dos líderes do governo sentenciou: “A reforma da Previdência acabou”. No dia 17 de maio de 2017 alguém poderia ter dito a mesma coisa quando da divulgação dos famigerados “áudios do Joesley”. A falta do sentimento de urgência do País diante de um dos seus maiores desafios, ao longo de todo esse período, constitui um case de irresponsabilidade coletiva.

A reforma previdenciária precisa ser aprovada. Seu único problema é vir com mais de 20 anos de atraso. Na apresentação feita na Comissão Especial da Reforma da Previdência tive a oportunidade de expor alguns slides com o contraste entre “antes” e “depois” de alguns lugares como Xangai ou Cingapura, mostrando fotografias de como eram nos anos 1990 e no que se transformaram atualmente. Diante disso, assistir à disputa de algumas categorias para tentar “pegar uma carona” nas “regras especiais” de aposentadoria da PEC da Previdência só pode levar o analista a verter o que Nelson Rodrigues denominava de “lágrimas de esguicho”: a sensação de termos perdido o “bonde da História” não poderia ser mais palpável. Enquanto o mundo discute inteligência artificial, Big Data, indústria 4.0, robótica de alta precisão, etc., e procura avaliar qual a melhor forma de o ambiente institucional estimular o progresso, nós, aqui, ficamos lutando para ver que grupo pode aposentar-se com 55 anos, recebendo seus benefícios de um Estado exaurido. É de doer.

Governadores de esquerda e bolsonaristas ameaçam reforma das aposentadorias - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 03/07

Governadores sabotam reforma previdenciária nos estados; PSL ameaça negar votos


É provável que a reforma da Previdência chegue com poucas amputações ao plenário da Câmara. Isto é, no que diz respeito à contenção de despesas no governo federal, o projeto que deve ser em breve votado pelos deputados chega quase inteirinho, segundo as contas do ministério da Economia. A contenção prevista de gastos é de R$ 1 trilhão, em dez anos. Caso assim seja aprovada, será um espanto.

A questão maior, difícil de apurar na confusão dos últimos dias, é saber o quanto dos acordos costurados até agora, na Comissão Especial da Câmara, vale para o conjunto dos deputados. Sabe-se que pelo menos os deputados governistas ameaçam sabotagem. Sim, governistas. Sem os votos do indizível PSL de Jair Bolsonaro, a reforma não passa.

Quanto à Previdência de Estados e de parte dos municípios, a gente toda deveria anotar o nome de governadores que por ora conseguem sabotar a reforma, com a conivência de certos deputados. É para eles que se deve mandar a conta quando hospitais estiverem em ruínas; quando faltar equipamento para as polícias, merenda e dinheiro para pagar salários. Fora da reforma, alguns estados começam a explodir no ano que vem.

Esses governadores, a maioria do Norte e do Nordeste, a maioria de esquerda, serão os responsáveis pelo cenário “Rio 2016” em certos estados. Como se recorda, chegou então ao auge a olimpíada do calote e da miséria, quando o governo fluminense subiu ao topo do pódio da destruição das contas públicas, deixando de pagar salários e de colocar gasolina e pneu em carro de polícia.

Caíram as poucas referências que haviam restado a estados e municípios no projeto emendado pelo relator da reforma, Samuel Moreira (PSDB-SP), por pressão de certos governadores e deputados. Se os estados quiserem reforma, vão ter de aprová-la inteirinha nas Assembleias ou vão ter de pedir a deputados para que emendem a reforma quando o projeto tramitar no plenário da Câmara.

Os governadores só pediriam votos pela reforma, do interesse deles, caso recebessem mais dinheiro federal. Como se sabe, querem posar de bonitinhos, inimigos da mudança ou de qualquer outra solução para a ruína, ou querem, pelo menos, compensação por pararem de fazer a pose populista.

Há risco de dar chabu na reforma da Previdência bancada pelo governo federal? Sim, vários. A maior ameaça nova vem justamente do partido de Bolsonaro.

Cerca de metade da bancada do PSL ameaça negar votos ao projeto enviado pelo governo do mesmo Bolsonaro caso não seja atendido um lobby que representa. Querem manter aposentadorias melhores para policiais e de trabalhadores da área de segurança. A presidência do PSL reafirma que fechou questão pelo voto na reforma, mas os deputados policiais e militares do partido continuam pregando emendas na tramitação da reforma no plenário. Caso o lobby não cole, pregam abstenção ou voto contra.

Vai haver manifestação de camisas amarelas na avenida Paulista ou em Copacabana contra os PSL? Tuitaço?

Os economistas-chefe do governo estão satisfeitos? Não. O ministério da Economia queria aprovar a revolução incerta e ainda desconhecida do regime de capitalização, que foi jogada para as calendas, ainda bem. Esses economistas talvez chorem de barriga cheia e sejam felizes mas não saibam. Se a reforma ficar do tamanho em que está a esta altura da tramitação na Comissão Especial, já será uma reviravolta considerável nas contas previdenciárias.
Vinicius Torres Freire

Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

Na boa direção - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 03/07


Governo terá condições financeiras para retomar a proposta de capitalização num futuro próximo


A proposta da reforma da Previdência que sairá da Comissão Especial, se aprovada no plenário, abre caminho para uma futura capitalização do sistema previdenciário, embora o tema não faça parte do texto oficial.

Mas, com uma economia prevista de R$ 1 trilhão, está indicado no subtexto que o governo terá condições financeiras para retomar a proposta num futuro próximo.
A capitalização poderá ser explicada com mais detalhamento ao Congresso nos meses posteriores à aprovação da reforma. Outro tema que ainda vai levar tempo para ser resolvido é a participação dos Estados e Municípios.


Pode ser que se demorar mais a aprovação, passando para o segundo semestre, haja mais tempo para convencer os governadores. Com a triste certeza de que a situação de Estados, de maneira geral, se deteriorará, e da economia nacional como um todo, à medida que a reforma não seja aprovada

Uma reforma menor que R$ 900 bilhões não daria condições de formar o fundo para a capitalização, e tornaria a economia obtida em objeto de consumo de todo o governo, invertendo a lógica própria da reforma, a de poupar para as futuras gerações.

Fugia dessa lógica, por exemplo, a retirada do PIS do BNDES que financia o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Ele serve para pagar o seguro-desemprego e também, agora sobretudo, para a requalificação dos trabalhadores desempregados.

Se não fosse retirada do texto, a medida confrontaria o sentido de preparar o sistema previdenciário para proteger o futuro trabalhador, inclusive preparando-o para as mudanças tecnológicas que surgem todos os dias, muitas vezes de maneira disruptiva, acabando com funções e criando outras.

O que permaneceu no texto da reforma, que não corresponde ao objetivo original proposto pelo ministério da Economia foi o aumento de impostos. Os bancos, por exemplo, serão taxados com um imposto que ficará na Constituição, muito mais difícil de ser retirado da legislação.

O aumento de 15% para 20% sobre a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) só foi retirado da Bolsa de Valores, e reduzido para as cooperativas, que terão aumento para 17%. Houve também uma reoneração, acabando com a isenção dada às contribuições previdenciárias dos produtores rurais que exportam.

A idéia original do ministro Paulo Guedes não era conseguir essa economia, que originalmente seria de R$ 1,2 trilhão, com aumento de impostos, mas foi impossível manter a margem mínima de R$ 900 bilhões, pois houve negociação para flexibilizar a transição para servidores públicos, que acabou sendo estendida para todo o sistema.

Do texto original, foram retiradas pela Câmara as regras para o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e da aposentadoria rural, o que já era esperado pelo governo. No texto final apresentado ontem há regras rígidas para evitar fraudes no BPC, que podem economizar cerca de R$ 33 bilhões em 10 anos. Para se ter uma idéia, há cerca de 30% dos pedidos em disputa judicial.

Sem sentido

Do jeito que foi feita a argüição na Comissão da Câmara ao ministro Sérgio Moro, nada de útil se teria. Os deputados da oposição gastaram o tempo defendendo o ex-presidente Lula e atacando Moro, o que evidencia que o objetivo principal nesse caso é a libertação do ex-presidente, e não as supostas ilegalidades detectadas no contato de Moro com o procurador Deltan Dallagnol.

Da mesma maneira, os deputados de esquerda se empenham em periciar o celular de Moro, e não se importam com a origem ilegal das mensagens hackeadas.

Quanto mais grosseiros fossem, melhor para Moro, que podia se negar a responder naquele tumulto generalizado. Os deputados não conseguiram alcançar o objetivo de inculpar Moro. Só falaram para os convertidos.

O peixe não vê a água - BOLÍVAR LAMOUNIER

O Estado de S. Paulo - 03/07

A Constituição pode ser incapaz de reger os destinos da sociedade em momentos de má-fé...



Há quem singelamente acredite que certas mazelas que assolam países comparáveis ao Brasil – corrupção, violência, crime organizado – diminuem automaticamente à medida que o crescimento econômico avança e a sociedade enriquece. Que bom se o mundo fosse tão simples!

Na verdade, a relação é curvilínea. É certo que, na origem, os dois fatos coincidem. No nível mais baixo de desenvolvimento, todas essas mazelas (vou usar esse termo como abreviação) permanecem contidas. Baixo crescimento, baixa incidência de tais mazelas. Mas, com o avanço do crescimento, elas aumentam de maneira acentuada e se mantêm por muito tempo em níveis muito elevados. Só começam a declinar quando a sociedade atinge níveis muito altos de renda por habitante e bem-estar.

Por que a corrupção, a criminalidade e a violência são baixas quando o nível de riqueza econômica é baixo? Por várias razões. Primeiro, porque a riqueza móvel é diminuta e a riqueza imóvel (terra, gado...) é difícil de roubar ou de tomar pela força. Segundo, porque a maioria da população se encontra dispersa em grandes extensões geográficas, com baixa capacidade de organização e comunicação e pouca instrução. É pouco adestrada no manejo de armas – quando possui armas, fator crucial que as elites dominantes controlam sem muita dificuldade. Ou seja, tudo o que as camadas majoritárias de baixa renda não possuem as camadas dominantes têm de sobra.

Quando tem início, o processo de crescimento econômico tende a ser muito rápido, uma vez que se vale principalmente da incorporação de mão de obra de baixa qualificação e em tecnologias assaz modestas. Acelerando-se, ele transfere a referida mão de obra para indústrias e outras atividades urbanas, incidindo poderosamente sobre a distribuição da população, que rapidamente se concentra em grandes cidades. Essa população passa então a pressionar por habitação, alimentação e serviços, e a nutrir expectativas mais altas. Apesar de sua pouca instrução, seus contatos horizontais e sua capacidade de agir coletivamente aumentam.

O conflito distributivo aumenta tremendamente, uma vez que as camadas de baixa renda não dispõem de reservas que lhes permitam sobreviver mais que uns poucos dias. Vivem da mão para a boca.

Não menos importante, as normas e os valores que antes reduziam a propensão ao conflito perdem força; no Brasil, nem precisamos lembrar isso, pois a base escravista de nossa pirâmide social não permitiu o desenvolvimento de uma estrutura normativa capaz de exercer tal restrição. Teoricamente, a Igreja Católica poderia ter retardado os conflitos, mas isso é um mito; entre nós, a Igreja foi também muito fraca em termos organizacionais e quase nula no tocante à formação de valores interiorizáveis como normas de conduta.

Eis o ponto-chave: não é por acaso que estamos onde estamos, no olho do furacão. Situado num nível relativamente alto de crescimento e falhando continuamente em suas tentativas de superar a “armadilha da baixa renda”, o Brasil parece impotente diante do agigantamento dos conflitos. Nossa renda anual por habitante é baixa e vai continuar baixa por um bom tempo. E repito, aqui estou falando da renda anual média; os que sobrevivem na parte de baixo da pirâmide vivem nas imediações do inferno.

Os grandes processos econômicos e sociais a que fiz menção não contam toda a história. De tempos em tempos, o inesperado traz uma surpresa. Certos fatores políticos negativos se abatem sobre a sociedade de uma forma que ela às vezes nem chega a perceber. Dou um exemplo. No período dos governos militares, a discussão sobre as causas da violência ficou praticamente fora da discussão pública. Os militares queriam liquidar os movimentos armados, a oposição política queria questionar as débeis políticas sociais dos militares. Inexistia, evidentemente, um centro moderado capaz de identificar as nuvens negras que começavam a se formar. O que tivemos foi um arremedo de Hobbes contra Rousseau: Maluf dizendo que bandido bom é bandido morto e Montoro replicando que políticas sociais vigorosas seriam o único antídoto para a crescente violência. Nesse quadro, o narcotráfico entrou sem dificuldade, assoviando e chupando cana ao mesmo tempo.

No momento atual, não é impossível que outra megadesgraça esteja em gestação. Estamos ainda saboreando o rescaldo amargo da eleição presidencial: uma polarização política estúpida, que pode dar ensejo a episódios de violência ou, de forma menos visível, provocar uma deterioração irreversível em nossa capacidade de conviver em paz. A radioatividade liberada pelo confronto entre bolsonaristas e antibolsonaristas poderá tornar inviável por muito tempo a formação de um ambiente de negócios saudável.

Temos acreditado – e isso não me parece inteiramente falso – que temos instituições robustas. Mas o conceito de instituições não deve ser compreendido numa acepção formal estreita, como se dissesse respeito apenas à Constituição, à repartição dos Poderes, etc. Sua robustez depende de um acolchoado pouco visível, formado por atitudes e disposições de espírito positivas, externas a ela: daquilo que Émile Durkheim agudamente designou como “os elementos não contratuais do contrato”. A Constituição formal é um contrato de todos com todos, mas, por melhor que seja, por mais bem elaborada que haja sido, ela pode tornar-se incapaz de reger os destinos da sociedade em momentos de má-fé e desconfiança mútuas entre os cidadãos ou entre parcelas relevantes da sociedade.

Esta reflexão me traz à memória um episódio recente: o do general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, comparecendo a um movimento de rua e manifestando-se na linguagem de uma das seitas em confronto. Não me parece que tal conduta tenha sido, naquele momento, a mais apropriada a um general e ministro de governo.


SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Quem precisa de oposição? - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 03/07


Deputados do PSL, partido de Jair Bolsonaro, assumiram de vez o papel de porta-vozes dos interesses corporativos dos policiais na reforma da Previdência.

A negociação com vista à aprovação da reforma da Previdência, naturalmente difícil, tornou-se ainda mais complicada em razão de exigências feitas pelos próprios governistas, em especial pelo PSL, o partido do presidente Jair Bolsonaro.

Deputados do PSL assumiram de vez o papel de porta-vozes dos interesses corporativos dos policiais na discussão sobre a reforma. Parte da bancada ameaça rejeitar a mudança no sistema de aposentadorias caso não sejam atendidas as exigências dessa categoria profissional. Para esses parlamentares, pouco importa que o governo, a quem supostamente apoiam, considera esse projeto sua maior prioridade.

Não está em questão aqui a justiça das reivindicações desta ou daquela categoria profissional; numa democracia, todos têm o direito de apresentar suas demandas, e sempre haverá argumentos para defender esta ou aquela exceção. No entanto, o governo, que deve trabalhar para todos, e não apenas para aqueles que dizem apoiá-lo, precisa esforçar-se para que a reforma da Previdência seja a mais abrangente possível, sem permitir que objetivos privados se sobreponham aos interesses do conjunto da sociedade.

Assim, em situação normal, caberia em primeiro lugar ao partido do próprio presidente da República o exemplo de empenho na aprovação da reforma. É dessa base que deveria partir a sinalização mais firme de apoio à intenção do governo de sanear a Previdência – e esse saneamento só será possível se todos os beneficiados forem submetidos às mesmas regras, acabando com privilégios que contribuem decisivamente para o insustentável déficit do sistema.

No entanto, o PSL nunca agiu como base do governo. Nanico até pouco tempo atrás, o partido, graças à sua ligação com Jair Bolsonaro, multiplicou por 50 sua presença na Câmara na eleição do ano passado, transformando-se de uma hora para outra na segunda maior bancada da Casa, mas seus deputados não parecem ter o menor respeito pelas decisões da cúpula partidária, tampouco pelas demandas do próprio governo.

Ao contrário, vários de seus deputados deixam claro que seu único propósito na Câmara é defender as corporações que julgam representar, em especial a dos profissionais de segurança pública. Para muitos desses políticos, o gesto com as mãos a sinalizar uma arma, que consagrou Bolsonaro na campanha eleitoral, era o cartão de visitas sindical dos policiais.

A ameaça de deputados governistas de sabotar a reforma da Previdência caso esta não seja desidratada para atender a suas reivindicações classistas é consequência direta da desarticulação do governo no Congresso. Como se sabe, Bolsonaro não só se ausentou deliberadamente das negociações em favor da reforma, por considerá-las sinônimo de corrupção, como deixou de orientar a frágil base governista sobre como atuar neste momento crucial para o País. Não se pode condenar quem veja nessa atitude do presidente a mensagem de que, no plenário, será cada um por si.

Assim, parece que a decisão do PSL de fechar questão em favor da reforma da Previdência, tomada em março passado, tornou-se letra morta. Na ocasião, o líder da bancada na Câmara, Delegado Waldir (GO), disse que o partido do presidente Bolsonaro estava “dando o exemplo” ao obrigar todos os seus 54 parlamentares a aprovarem a reforma, sob risco de expulsão em caso de rebeldia. Agora, o discurso já mudou. “Apesar de o PSL ter fechado questão, podemos reabrir a discussão e liberar a bancada na votação no plenário”, informou o deputado Alexandre Frota (SP).

Assim, à medida que a reforma da Previdência avança no Congresso, vai ficando cada vez mais claro que o maior obstáculo à sua aprovação nos melhores termos possíveis não está na oposição, que não soma nem 150 votos, e sim nos partidos supostamente governistas. Nada surpreendente, se lembrarmos que o próprio presidente Bolsonaro pautou toda a sua carreira parlamentar como adversário ferrenho da reforma que ele ora defende e como porta-voz muitas vezes virulento de interesses corporativos que ora a atravancam. É em razão desse passado não tão distante – aliás tão próximo que nem passado é – que a conversão de Bolsonaro e dos bolsonaristas ao credo reformista, que alguns dizem ser liberal, soa tão inverossímil.

Aposta liberal - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 03/07

Colapso do setor público restringe opções para reverter prostração da economia

Crises internas e embates ideológicos à parte, um dos fenômenos mais marcantes dos primeiros seis meses do governo Jair Bolsonaro (PSL) é, sem dúvida, o contraste entre o otimismo da Bolsa de Valores e a prostração da economia real.

Enquanto os preços das ações mais negociadas bateram recordesnominais, a produção e a renda do país ficaram estagnadas em patamares já deprimidos —e em flerte com uma recaída recessiva.

Entre grandes empresários e investidores nota-se ampla aprovação à agenda liberal e aos quadros da equipe econômica de Brasília, além de prognósticos favoráveis quanto à urgente reforma da Previdência. Entretanto essa boa impressão não se traduz em investimentos e contratações.

Como resultado, as projeções para o crescimento do Produto Interno Bruto neste 2019 estão em queda contínua e hoje rondam 0,85%, abaixo até da taxa pífia de 1,1% verificada nos dois anos anteriores.

À falta de um entendimento mais completo, uma hipótese usual para explicar o mau desempenho é a cautela do setor produtivo —que estaria a aguardar um desfecho mais palpável da mudança no sistema de aposentadorias ou, quem sabe, sinais mais convincentes de estabilidade no cenário político.

Em entrevista a esta Folha, o secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues, previu um “ganho de expectativas gigantesco” com a aprovação da reforma previdenciária. A isso seriam somados os efeitos de outras medidas liberalizantes, da abertura do mercado de gás à redução da participação dos bancos públicos no setor de crédito.

Essa agenda, diga-se, está em curso desde 2016, na chegada de Michel Temer (MDB) ao Planalto, com feitos relevantes —como o teto para o gasto federal, a reforma trabalhista e a quebra do monopólio da Petrobras no pré-sal, além da redução expressiva da inflação e dos juros do Banco Central.

O governo Bolsonaro teve, até agora, o mérito de aproveitar iniciativas que encontrou em andamento, casos do projeto que busca ampliar o cadastro positivo e mesmo do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia.

A resposta da economia a esses avanços tem sido frustrante, decerto. Como mostraram trabalhos recentes da Fundação Getulio Vargas e do Bradesco, a taxa de investimento do país caiu, na recessão, ao menor nível das últimas décadas, de meros 15% do PIB —e pouco se alterou desde então.

Nada parece recomendar, porém, movimentos na direção oposta. Não se trata aqui de purismo liberal, mas do incontornável esgotamento dos meios para elevação do gasto público, dos incentivos tributários ou do crédito oficial. Neste cenário ainda pouco compreendido, ainda estão por serem corrigidos erros e excessos do passado.