quinta-feira, julho 11, 2019

Milagre brasileiro - FERNANDO SCHÜLER

FOLHA DE SP - 11/07

A reforma é quase um milagre porque nosso sistema político é disfuncional

A reforma da Previdência é quase um milagre. O Brasil, aliás, é uma espécie de milagre. Nos últimos anos, aprovamos reformas improváveis, como a PEC do Teto, a reforma trabalhista, a lei das terceirizações, e agora estamos perto de emplacar a reforma previdenciária.

A reforma é quase um milagre porque nosso sistema político é disfuncional. Nesta quarta-feira, 26 partidos votaram na reforma. Catorze deles com dez votos ou mais. Isto é, partidos relevantes, de tamanho médio, incapazes de resolver qualquer coisa, no Congresso, mas capazes de obstaculizar, complicar o jogo, cobrar fatura.

É isso que faz do Brasil a democracia mais fragmentada do planeta, com baixa efetividade institucional e alto custo político na tomada de decisões estratégicas. Mesmo dizendo que não iria fazer esse jogo, o governo liberou alguns bilhões em emendas e recursos para viabilizar a reforma. Alguns acham normal. Ouvi de um deputado que esta era uma forma de “democratizar” o Orçamento. Analistas dizem que o varejo político é um fato normal das democracias, que nosso presidencialismo de coalizão exige isso. De minha parte, só observo. Vejo isso mais como deformação do que uma virtude. Apenas uma deformação com a qual nos acostumamos.

A reforma também é um milagre pelo imenso peso das corporações no jogo político. Vamos lá: por que cargas d'agua o vigia do supermercado, que vira e mexe enfrenta a bandidagem na periferia de nossas cidades, vai se aposentar com 65 anos, e o segurança do Congresso com 53? Não discuto aqui o mérito do trabalho de ninguém, mas por quê? Acertou na mosca o Carlos Góes, quando provocou: para todas as categorias que pedem aposentadoria mais cedo por causa de “circunstâncias especiais”, tenho uma pergunta: sua categoria tem uma condição mais difícil que a de um pedreiro?

Uma explicação para o milagre da reforma é a mudança de mentalidade ocorrida no Brasil nos últimos anos. A última pesquisa Datafolha deu um sinal claro nessa direção: 47% da população agora apoia a reforma, e 44% são contra. Há pouco mais de dois anos, quando o ex-presidente Temer colocou esta pauta na ordem do dia, 71% eram contra. Nunca canso da frase de Weber: a política é o lento perfurar de tábuas duras.

Essa mudança não veio de graça. A reforma não se mostrou auto-evidente, como me sugeriu um amigo professor tempos atrás. Não há nada muito auto-evidente, em política. Houve um trabalho duro de centenas de economistas, think tanks, lideranças da sociedade e da política que colocaram esse tema na pauta, disputaram ideias, em especial no mundo digital, e souberam virar o jogo.

O milagre também parece ir acontecendo porque vivemos um período especial na nossa história política, de maior autonomia do Congressofrente ao Executivo. Algo que tenho chamado, na falta de uma expressão melhor, de modelo de corresponsabilidade. Acho graça da turma que fica discutindo sobre a paternidade da reforma. É do governo? Do Congresso? Do Rodrigo Maia? Daria para espichar muito essa lista. A reforma é fruto de uma aliança não explícita entre os liberais de Paulo Guedes e o centro político do Congresso. Se quiserem, os sociais-democratas ainda girando em torno do PSDB, de Samuel Moreira, e outros partidos. O que apenas corrobora uma velha provocação que gosto de fazer: é tanta a irracionalidade do Estado brasileiro, que por muito tempo não haverá muita distância entre a agenda do bom liberalismo e da boa social-democracia

Por fim, uma intuição: milagres não acontecem indefinidamente. Vinícius Torres Freire tocou nisso em sua coluna de ontem. O atual arranjo institucional brasileiro é precário. Meu ponto é apenas dizer que não se irá criar um novo ciclo virtuoso, no plano político, sem um ajuste nas regras do jogo.

Sendo mais específico: o mesmo trabalho de convencimento que se fez em torno da reforma da Previdência terá que ser feito em torno da reforma política. Rodrigo Maia não permanecerá eternamente na presidência da Câmara e há uma agenda difícil de reformas à frente. É ingênuo pensar que voltar alegremente ao velho modelo da coalizão majoritária, sob a batuta do executivo, enterrado nas últimas eleições. Precisamos de novas regras, e é bom que quem tem a cabeça no lugar comece a pensar logo sobre isso.

Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo

Uma boa reforma - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 11/07

Texto da Previdência é um avanço rumo à racionalidade orçamentária e à justiça social


O texto da reforma da Previdência aprovado em primeiro turno pela Câmara dos Deputados prevê a mais ampla alteração já feita nas aposentadorias do país.

Marco histórico à parte, mais importante é assinalar que, embora contenha falhas, a reforma significa inegável avanço rumo à racionalidade orçamentária e à justiça social —e merece ter seus dispositivos centrais preservados nas próximas etapas da tramitação.

Sua inovação mais importante, a fixação de idades mínimas para a obtenção dos benefícios, constitui prática corriqueira no mundo. Segundo estudo publicado pelo Ipea há dois anos, 164 de 177 países pesquisados aplicam tal exigência.

Em grande parte deles, aliás, o piso etário tem subido para acompanhar a tendência de aumento da longevidade da população, também observada no Brasil.

O texto votado pela Câmara estabelece como norma geral idade mínima de 65 anos para homens e 62 para mulheres —melhor seria se não houvesse diferenciação. O tempo mínimo de contribuição, hoje de 15 anos no setor privado, sobe a 20 apenas para os homens.

Ressalve-se, porém, que na prática esses limites mínimos não vigorarão de imediato para todos. Há regras de transição para alguns trabalhadores hoje na ativa, entre elas a que permite, em 2020, aposentadorias aos 61 (homens) e 56 (mulheres) —os números serão elevados gradualmente.

Também relevante para desestimular as aposentadorias precoces e racionalizar despesas é a adoção de critérios mais rigorosos para o cálculo dos benefícios e a concessão de pensões por morte.

A oposição tem atacado, em particular, a necessidade de 40 anos de contribuição para que o segurado obtenha um valor equivalente à média dos salários da ativa. Tal imposição, todavia, não afeta a maioria que se aposenta pelo salário mínimo, dado não serem permitidos benefícios de valor inferior.

O terceiro eixo fundamental da proposta é igualar, com algumas exceções, os regimes previdenciários dos setores público e privado, o que já se desenhava na reforma promovida em 2003. Em contrapartida pelos privilégios da carreira, o funcionalismo arcará com alíquotas maiores de contribuição, proporcionais ao salário.

Há omissões no texto, a mais grave delas a exclusão de estados e municípios. Corporações de servidores se mobilizam para obter normas mais favoráveis; as pensões militares serão definidas em outro projeto, de tramitação difícil.

No geral, entretanto, é razoável a distribuição dos sacrifícios inevitáveis para um país que destina hoje excessivos 13% de sua renda total à Previdência —percentual que crescerá e tomará espaço crescente da educação, da saúde e de outras prioridades se nada for feito.

A Política levou a reforma à vitória - MIRIAM LEITÃO

O Globo - 11/07

Reforma da Previdência foi aprovada com amplo apoio. Economia estimada pela Instituição Fiscal Independente será de R$ 714 bilhões


A reforma aprovada é ampla e terá impacto importante nas contas públicas, mas será menor do que o governo previa. Segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), ficou em R$ 714 bilhões a economia em 10 anos, sem contar outras possíveis mudanças. Ela cria uma espécie de lei de responsabilidade previdenciária para todos os entes da Federação. Portanto, os estados e municípios estão fora do projeto, na definição dos benefícios, mas eles terão que se esforçar para controlar suas despesas na área. A reforma introduz a idade mínima que o Brasil tenta ter há mais de 20 anos. O texto foi aperfeiçoado em alguns pontos ao tramitar no Congresso, mas manteve desigualdades. Na defesa de determinados privilégios, juntaram-se a esquerda e o bolsonarismo, uma realidade que só não é bizarra porque o Brasil sempre foi assim.

O centrão votou em peso na reforma, mas um placar de 379 a 131 mostra um movimento amplo de apoio. No eloquente discurso do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, houve várias indiretas ao próprio governo: “as soluções passam pela política. Não haverá investimento no país se não houver democracia. Eu não saí do meu objetivo nem quando fui atacado.” Todo mundo entendeu a quem ele se referia, e ao episódio em si. Mas o Planalto o elogiou. Era a hora da comemoração. Ontem foi o dia da festa para Rodrigo Maia, que nasceu no Chile, no exílio, filho de político, que tem entre seus nomes, além dos conhecidos, Felinto, Ibarra e Epitácio.

Um dos grandes saltos do projeto está no artigo 40, que deixa claro que estados e municípios terão que buscar equilíbrio financeiro e atuarial. O parágrafo 22º cria uma série de obrigações. Os estados e municípios não podem criar novos regimes próprios e para os que existem haverá lei federal estabelecendo as normas de funcionamento e responsabilidade em sua gestão. Diz ainda como eles vão migrar para o Regime Geral e serão fiscalizados pela União e o controle externo.

O que saiu, por erro do Congresso, foi a presença dos estados e dos municípios nos parâmetros das aposentadorias e pensões. Isso faz com que servidores tenham regras diferentes dependendo do ente federativo. Vai gerar mais confusão. O Congresso derrubou também o gatilho demográfico que permitiria, como em outros países, que a idade mínima fosse subindo, com o aumento da expectativa de vida.

Nessa reforma, como em todas as outras, as que foram aprovadas e as que fracassaram, a verdadeira clivagem nunca foi entre esquerda e direita. É entre quem defende ou não os interesses corporativos. O projeto, que começou tendo como um dos objetivos reduzir desigualdades, teve na reta final a esdrúxula militância corporativista do presidente Jair Bolsonaro.

Em alguns pontos o projeto melhorou no Congresso. Um deles foi o fim da tentativa de mudar o Benefício de Prestação Continuada (BPC). O grande problema com o BPC não é o benefício dado a quem chegou aos 65 anos com um quarto de salário mínimo de renda real per capita. Mas o fato de que a Justiça passou a dar o mesmo direito a quem tem uma renda maior do que essa. Pelo projeto, haverá agora uma definição clara sobre o limite dessa renda.

O principal problema com a reforma aprovada é que ela não cria um novo sistema que seja sustentável. Faz uma correção no atual regime, não ataca as desigualdades de tratamento e cristaliza injustiças. As regras de transição para os servidores que entraram antes de 2003 no serviço público ficaram mais brandas. Eles têm as vantagens da integralidade e da paridade e por isso a reforma tinha incluído a idade mínima para eles.

Pelo acordo que está sendo negociado, policiais federais, legislativos ou rodoviários poderão se aposentar aos 52 anos, as mulheres, e aos 53 anos, os homens. Enquanto isso, o Brasil está caminhando para a idade mínima de 62 e 65 anos. A não ser os professores, que ficarão com 57 e 60 anos. O policial da União sai o grande privilegiado dessa reforma.

A Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado refez as contas ontem e projetou uma economia de R$ 714 bilhões com a reforma em 10 anos. Inicialmente, a IFI já estimava um número menor do que o calculado pelo governo, de R$ 995 bi. Todas as contas terão que ser refeitas após as votações dos destaques. O risco é que as regras fiquem ainda mais leves, para alguns, após essas votações.

Avança a reforma do Estado - MERVAL PEREIRA

O Globo - 11/07

Rodrigo Maia foi o grande artífice da união em torno do substitutivo aprovado na Comissão Especial


A relevância da Câmara, como parte de um dos poderes da República, foi o destaque da sessão de ontem, quando a reforma da Previdência foi aprovada em primeiro turno por uma votação surpreendente pelo número de votos bem acima do necessário. Ao final, o presidente Rodrigo Maia já puxou para a Câmara duas novas reformas: a tributária e a reorganização do serviço público, mantendo o protagonismo na reforma do Estado brasileiro.

Há muito tempo não se viam deputados federais tendo o entendimento de que participavam de um momento histórico, sem receio de assumir suas posições.

O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, foi feliz ao definir as relações equilibradas entre o Legislativo e o Executivo como necessárias para uma democracia forte, chamando a atenção de que investidores, além das questões fiscais controladas, que indicam futuro mais seguro para seus investimentos, também olham para a qualidade da democracia praticada no país.

Raramente se viu no plenário da Câmara uma concordância tamanha. Todos eram favoráveis a uma reforma da Previdência. Um avanço diante da posição de anos atrás, quando muitos insistiam em que não havia déficit no sistema.

O que a oposição alegou é que esta reforma não era a correta para o país. Houve também outra aproximação de posições, no sentido de admitir, com maior ou menor ênfase, que a reforma impõe um sacrifício à população.

O dissenso ficou por contada visão política de cada um, a oposição batendo na tecla de que os menos favorecidos serão atingidos. Os favoráveis à reforma, e não apenas os deputados governistas, defendendo atese de que ela ataca os privilégios do atual sistema previdenciário.

Outra unanimidade ontem na Câmara foi abandeira nacional. Trazida ao plenário pelos favoráveis à reforma, foi também abraçada pela oposição, cada grupo ideológico transformando-a em um símbolo de sua luta.

Nossa bandeira jamais será vermelha, gritaram líderes departidos do centro-direita e liberais. Abandeira nacional não pode ser usada contra os mais pobres, devolveram os líderes da oposição.

A deputada Jandira Feghali, do PCdoB, chegou a dizer que era líder da minoria dentro da Câmara, mas que a oposição representava a maioria do povo brasileiro. Não foi isso o que as urnas mostraram nas últimas eleições, mesmo que o governo não tenha conseguido montar uma base parlamentar.

A maioria do plenário formou-se em torno não do governo, que não tem base majoritária, mas a favor de uma visão liberal da economia. A tendência conservadora da maioria dos eleitos para a Câmara parecia favorecera criação de uma base parlamentar sólida, mas a negociação política foi conduzida de maneira desastrada pelo novo governo.

A definição de um relacionamento não promíscuo com o Congresso foi um ponto positivo do governo Bolsonaro. Até mesmo a liberação das emendas parlamentares e de bancadas às vésperas da votação é do jogo democrático, pois os parlamentares vivem do que podem beneficiar suas bases eleitorais.

O que não é admissível é compra de votos por baixo do pano, através da corrupção, como vinha acontecendo desde o mensalão, chegando ao petrolão.

Mas Bolsonaro não entendeu que a falta de promiscuidade não significa, por si só, um tratamento republicano. O novo Palácio do Planalto não conseguiu manter um relacionamento profícuo com o Congresso, e gerou uma disputa de poder que foi prejudicial à democracia brasileira.

A reforma só saiu porque a Câmara foi convencida da sua necessidade, mesmo que potencialmente impopular, e decidiu encarar o desafio. À medida que as discussões foram se desenrolando, a opinião pública foi também evoluindo no entendimento dessa necessidade.

A tal ponto que ontem muitos deputados de diversos partidos fizeram questão de aparecer em conjunto na tribuna do plenário. Um ambiente hostil à reforma da Previdência transformou-se em favorável ao longo do debate, e pesquisas de opinião mostram que a maioria já a apoia.

Sem dúvida o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, foi o grande artífice da união em torno do substitutivo aprovado na Comissão Especial. E pelo ambiente tranquilo em que transcorreu a votação, já que tem uma relação muito boa com os partidos de oposição —chegou a brincar dizendo que o DEM poderia apoiar o deputado Marcelo Freixo para a prefeitura do Rio — e conseguiu manter o plenário em desarmonia controlada.

A marcha da complacência - WILLIAM WAACK

O Estado de S. Paulo - 11/07

Bolsonaro está diante da oportunidade de tirar o País da estagnação


A tramitação da reforma da Previdência foi um exemplo de marcha da complacência. A provável aprovação se dá no limite do insustentável, quando as contas públicas já estão há tempos no alarme vermelho, o Estado perdeu qualquer capacidade de investimento e nem mais sustenta o próprio custeio.

Complacência é uma característica da sociedade brasileira. Foi assim com a inflação, tolerada até o limite do insustentável – a hiperinflação. Depois de duas décadas a resposta veio com o Plano Real, resultante do consenso de que a inflação corrói mais do que a moeda, corrói o tecido social.

Outro exemplo notável de complacência tem a ver com a corrupção. Ela nunca foi novidade. Mas o já conhecido pântano de roubalheira precisou de mais de uma década de aprofundamento e abrangência durante sobretudo (mas não só) governos do PT até provocar a onda de indignação e revolta populares conhecida como Lava Jato.

Vem daí a capacidade dos principais expoentes da Lava Jato de sobreviver com até certa facilidade às denúncias (não são a menor novidade para advogados de defesa) de que violaram as normas do direito ao combater os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Para ser bem entendida nas suas origens, alcance e significados presentes, a Lava Jato precisa ser vista como um símbolo político de enorme relevância. É o símbolo de um enorme “basta” – do fim da complacência com a corrupção (se ela realmente acabou é outro capítulo).

A questão da Previdência repetiu a mesma trajetória. Especialistas como Fabio Giambiagi vinham alertando há DUAS DÉCADAS para o caminho insustentável das contas públicas brasileiras, devastadas sobretudo pelo crescimento real de gastos sociais, com destaque para o sistema de aposentadorias. Sem desmerecer o trabalho do especialista, os parâmetros fundamentais para esse tipo de previsão não eram segredo algum. Bastava considerar as taxas de crescimento da economia brasileira (incapaz de sustentar o nível de gastos sociais) e o fechamento da janela demográfica (a população brasileira ficando notadamente mais velha).

O fim da complacência com a miséria das contas públicas já estava desenhado na saída do impeachment de Dilma e foi claramente um foco central do governo Temer. Mas os acidentes da política agravaram a conta que a sociedade inteira está apenas começando a pagar. Em vez de lidar com a Previdência, o governo Temer usou o que restava de energia política para sobreviver a uma inepta denúncia de corrupção (talvez o maior gol contra da Lava Jato), sustentada em parte pela postura de grandes grupos de comunicação.

Qual é o “pai” da atual reforma da Previdência é uma discussão que serve apenas aos objetivos de curtíssimo prazo de diversas correntes políticas. Executivo como Legislativo tiveram igualmente seus méritos e defeitos ao tratar da reforma, com o Legislativo impondo uma agenda própria. A mentalidade e o cacoete corporativo continuam partes integrantes dos dois Poderes, e são condicionantes relevantes das ações de indivíduos e grupos político-partidários (cada um pensando só no seu).

Mas o fato histórico a ser registrado é o surgimento no Brasil de razoável consenso social e político sobre uma reforma que é necessária, mas, de forma alguma, suficiente. Jair Bolsonaro é o presidente quando ocorre fato que pode encaminhar uma fase capaz de tirar o Brasil da estagnação. Na esteira do mais recente período de bonança – o do superciclo das commodities e a descoberta do pré-sal – o então presidente Lula comportou-se de forma que muito contribuiu para transformá-lo num desastre do qual o País ainda não saiu. Vamos ver que uso Bolsonaro fará da sua oportunidade.

O semipresidencialismo - MICHEL TEMER

O Estado de S.Paulo - 11/07

Esse sistema seria um obstáculo às crises institucionais causadas pelo presidencialismo


Os fatos determinam o nascimento da lei. Muitas vezes demora. Os fatos repetem-se, exigindo nova realidade normativa. É da repetição, da reiteração, que o Legislativo se sensibiliza e muda o panorama normativo. Nas democracias é assim. A lei surge das realidades sociais retratadas pelos anseios populares.

Recordo o professor Miguel Reale, que lançou a didática e consistente teoria tridimensional do Direito: fato, valor e norma. Ou seja, em ocorrendo o fato, é ele valorado e, se valioso socialmente, nasce a norma. Nas democracias é assim para diferenciar os sistemas autoritários, em que a norma nasce muitas vezes da mente, da “cabeça” dos que comandam centralizadoramente. Para ficar na primeira hipótese, foi assim quando se convocou a Constituinte de 87/88. Quantas vezes delitos, ou seja, fatos cometidos com inaudita violência passam a ser catalogados como crimes hediondos. Foi assim quando os consumidores pleitearem proteção mais acentuada: fez-se o Código de Defesa do Consumidor. E outras centenas de exemplos.

Faço essas preliminares para tratar da modificação do sistema de governo. Não para já, porque o presidente, o vice-presidente e os eleitos do Legislativo o foram debaixo da ordem constitucional vigente. Portanto, deve-se pensar em 2022. E por que a proposta de modificação?

Porque os fatos estão se impondo naturalmente. Creio até que contribuí com eles. No meu governo trouxe o Congresso para governar com o Executivo. Alardeei que exercia um semipresidencialismo.

Foi essa fórmula, aliás, que me permitiu exercitar o governo com grandes e ousadas inovações, como a reforma trabalhista, a do teto dos gastos públicos, a reforma do ensino médio, a recuperação das estatais, a queda da inflação e dos juros a patamares civilizados. Ainda: com boa inserção internacional sustentando a tese do multilateralismo, que tem como exemplo positivo o recente acordo da União Europeia com o Mercosul. Revelando a integração Legislativo-Executivo,

não foi pequena a participação dos presidentes Rodrigo Maia e Eunício Oliveira nos temas que acabei de apontar. Rodrigo trabalhou arduamente para buscar a aprovação, ainda em 2017, da reforma da Previdência. Que só não se deu, quando tínhamos os votos necessários, em razão de conluio entre um agente privado e um agente público. Agora verifica-se dificuldade na relação entre Executivo e Legislativo a ponto de este último registrar que fará por conta própria as reformas da Previdência e tributária, naquilo que a imprensa tem chamado de “parlamentarismo branco”. Tudo indica, portanto, que está chegando a hora de entregar ao Legislativo participação expressa, transparente na execução das decisões governamentais. Não legislar apenas, mas executar. Partilhar com o Executivo a responsabilidade pela execução. E isso só é possível com a adoção do semipresidencialismo, em que o presidente da República tem funções relevantes, como a chefia das Forças Armadas, o comando da diplomacia, a indicação do primeiro-ministro e mesmo o veto ou a sanção de certas matérias governamentais.

Devo comentar as vantagens políticas desse sistema de governo, que seria obstáculo às crises institucionais como as causadas pelo presidencialismo, em que os impedimentos presidenciais acarretam traumas políticos que prejudicam o País. Vivi esses momentos.

Saliente-se, como escrevi no meu Democracia e Cidadania(Ed. Malheiros, p. 43), que no Brasil o presidente é eleito pela maioria do povo, mas por uma minoria partidária. Depois é preciso costurar o apoio político congressual, o que acarreta inúmeras críticas aos partidos políticos e ao Legislativo. Diria, sem medo de errar, que o Executivo e o Legislativo praticamente se antagonizam, na medida em que, de um lado, se exige a independência absoluta do Legislativo, como se este também não fosse “governo”, e, de outro, quando o presidente consegue montar sua base de apoio, ele o faz sob a acusação de fisiologismo e outras práticas condenáveis. Esquecem-se os que cobram independência integral do Legislativo que a Constituição também determina a harmonia entre os Poderes, o que significa trato institucional respeitoso e integrativo. Ainda, nunca é suficientemente respeitosa a relação dos partidos políticos e do Legislativo com o presidente e deste com aqueles. Mesmo quando a relação é com sua base de apoio. As intrigas vicejam, as brigas por espaços de poder são constantes, os partidos criticam o presidente e este crítica os partidos.

Veja-se que no presidencialismo se impõe a figura do articulador político, que deve fazer a interlocução do Executivo com o Congresso. Ora bem, no semipresidencialismo o primeiro-ministro, como chefe de governo, com sede no Parlamento, faz, naturalmente, essa articulação. Quando lhe falta a confiança do Parlamento, põe-se em pauta um “voto de desconfiança”. E se ele cai, naturalmente as forças políticas, com a participação do presidente da República, compõem um novo Ministério. Sem traumas. E sempre formando, naturalmente, maioria política.

Dir-se-á que já se tentou votar em plebiscito a adoção do parlamentarismo, por determinação de disposição transitória da Constituição. Não foi aprovada. Mas isso porque se levou à apreciação popular apenas a pergunta: você é a favor do parlamentarismo ou do presidencialismo? O eleitor não sabia de que parlamentarismo se tratava. Seria o inglês, em que o rei reina, mas não governa? Não. Um projeto integral seria submetido a referendo em que se verificaria que tanto o presidente da República como o primeiro-ministro têm funções relevantes, ao modelo português ou francês. No passado, quando o ministro Gilmar Mendes era presidente do TSE, estudamos esse assunto e chegamos até a formatar um anteprojeto. Sei que a matéria é delicada, mas não se pode deixar de discuti-la, já que, a nosso ver, aperfeiçoa o sistema.

Bolsonaro tem a dimensão de Collor - ASCÂNIO SELEME

O GLOBO - 11/07

Todos os movimentos do presidente na reforma foram para oferecer privilégios

Não seria difícil para Jair Bolsonaro ampliar ou manter estável ao invés de ver diminuir o respaldo que recebe do cidadão brasileiro. Depois de seis meses de governo, o apoio incondicional ao presidente limita-se a 33%, um ponto percentual a menos do que tinha no mesmo período o ex-presidente Collor, o mais odiado do Brasil (Temer não aparece na pesquisa DataFolha). Bolsonaro foi eleito no auge de um ciclo de desgaste da esquerda brasileira. Capitalizar essa desilusão política deixada pelo PT de Dilma e Lula seria possível se ele conseguisse sedimentar uma posição de centro direita ou de direita, sem radicalismo.

O que se viu foi o contrário. Penso que erram os que dizem que Bolsonaro está fazendo o que o seu eleitor esperava dele. Ele fez uma campanha com um discurso radical, é verdade, mas foi eleito por um eleitorado bem mais equilibrado. Os radicais estão com ele, mas para ter 55,13% das urnas, o presidente recebeu votos que pertenciam ao PSDB, ao MDB, ao DEM e a outros partidos que gravitam no centro e em seus arredores. Todo o centro estava ávido para apoiar Bolsonaro e com ele governar.

E os eleitores de centro e centro direita também queriam acreditar que o capitão se estabilizaria depois de eleito. Qualquer um com mais de uma dúzia de neurônios poderia apontar este como o melhor caminho. Ninguém, além da turma raiz de Bolsonaro, esperava que o discurso radical virasse forma de governo. Não se pode, contudo, acusar o presidente de estelionato eleitoral. Ele disse que era isso mesmo o que faria, embora a maioria não acreditasse porque a alternativa era muito mais óbvia e inteligente.

Há quem afirme que Bolsonaro radicaliza para reduzir sua constante perda de popularidade e guardar pelo menos o apoio de parcela da população que se identifica com esse radicalismo. Desconfio ser o contrário. O presidente nunca tirou o pé do pedal que impulsiona e alimenta seu discurso radical. É com o pé embaixo, e por causa dele, que Bolsonaro perde seguidamente apoio e vai se isolando. E o pior para qualquer um nessa posição é que o círculo mais próximo, formado por parentes, amigos e o cordão dos puxa-sacos não o deixa ver o cerco se fechando.

Todo mundo sabe como começa um processo de isolamento. O seu desfecho também é conhecido, com o apequenamento da imagem e a deterioração da credibilidade do protagonista. Bolsonaro não precisaria ser prolixo ou caprichar na oratória para evitar o isolamento. Mesmo sendo tosco (o brasileiro não se incomoda com isso, como se viu no passado recente; tem gente que até prefere um presidente com a sua cara e seu jeito), Bolsonaro conseguiria manter-se em patamar alto em qualquer pesquisa se tivesse maleabilidade política, mesmo mantendo sua pauta conservadora. Não falo em aceitar jogo sujo ou deixar roubar. Me refiro ao nobre fazer político, vital para qualquer democracia.

Diante de um quadro em que a cada dia fica mais limitado, o presidente joga para a sua plateia de fiéis e de certa forma governa pensando exclusivamente nela. Alguém pode dizer que a reforma da Previdência atinge a todos e não mira nenhum grupo específico. Sim, mas a reforma em curso foi capturada pelo Legislativo e hoje é muito mais de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre do que de Jair Bolsonaro. Além disso, Bolsonaro tem mais atrapalhado do que ajudado. Todos os movimentos do presidente na reforma foram para oferecer privilégios. Foi assim com os militares, com PMs e bombeiros, e agora com policiais federais, rodoviários e agente penitenciários.

O presidente ganharia muito mais se parasse de jogar para a sua galera. Mostraria grandeza se tentasse ser justo. Se, por exemplo, e apenas por exemplo, ao pedir privilégios aos policiais, mencionasse também professores, garis e motoristas de ônibus. Ou se ignorasse todas as pressões e jogasse para o Brasil, trabalhando para aprovar a reforma necessária, incondicionalmente. Aliás, grandeza é a marca dos maiores presidentes do Brasil. Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva foram grandes. Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek foram grandes. Jair Bolsonaro, por ora, tem a dimensão de Fernando Collor.

Avanços e perda de oportunidade na reforma - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 11/07

Se idade mínima para a aposentadoria é positiva, redução de desníveis esbarrou nas corporações


Os 331 votos contrários à retirada da reforma da Previdência da pauta, proposta pela oposição, dados na noite de terça-feira, foram um indicador de que o projeto das mudanças ultrapassaria com alguma folga o apoio mínimo de 308 deputados, exigido para a aprovação de emendas à Constituição. O que ficou comprovado pelos 379 votos a favor da reforma, contra 131. Aprovado em primeiro turno, o projeto de emenda Constitucional (PEC) segue para a apreciação em segundo, com chances sólidas de ser referendado. O que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, deseja que ocorra ainda até domingo, a fim de que a PEC seja logo remetida ao Senado.

Caso não haja emendas que levem a que partes do projeto retornem à Câmara, a PEC da reforma, da maneira como está, traz avanços num sistema previdenciário que há tempos caducou, deixando de refletir a realidade demográfica do país, além de ser causa do agravamento de desigualdades.

A fixação, afinal, de uma idade mínima para a obtenção da aposentadoria (65 anos, homens; 62, mulheres) — nas Américas, apenas Brasil e Equador não seguem este parâmetro — é essencial para que seja contida a tendência de aposentados terem baixa idade média (no INSS, aquém dos 60 anos), quando a sobrevida das pessoas com mais de 60 anos chega aos 80, mesmo em regiões mais pobres. Tem lógica aritmética o crescimento descontrolado dos déficits previdenciários.

Também é um aperfeiçoamento a contribuição progressiva à Previdência — salários mais altos contribuem mais. No caso dos servidores, mais bem remunerados, em média, que os empregados na iniciativa privada, o desconto poderá chegar a 22%. Nada desmesurado, se for levado em conta que a alíquota mais elevada do Imposto de Renda é 27,5%. A reforma, porém, pressionada por corporações, principalmente de servidores, perde a oportunidade de corrigir distorções sociais no sistema, como prometido pelo Ministério da Economia. O próprio presidente Bolsonaro passou a trabalhar às claras para elevar privilégios de policiais federais, agentes rodoviários federais e polícia legislativa, que não aceitavam o limite de idade de 55 anos para aposentarem-se. Terminaram concordando ontem com os limites de 53 para homens e 52 para mulheres, e o estabelecimento de 15 anos de carreira, no caso da mulher, e do homens, 20. Para os novos policiais, admitidos depois da promulgação da PEC, valerão 20 anos e o limite de 55. Mais: os agentes na carreira terão garantidas a integralidade (ter o último salário como aposentadoria e a paridade (receber os mesmos reajustes do servidor ativo). Esta é uma das causas da enorme desigualdade entre aposentados, em favor dos servidores.

Nas perdas, inclui-se, ainda, a provocada pelo lobby das 77 deputadas, que conseguiram fixar em apenas 15 anos de contribuição a exigência para a aposentadoria do gênero.

Contas precisarão ser feitas, para se estimar quanto do trilhão de economia previsto em 10 anos será conseguido. Que não avance a desidratação da reforma.