quinta-feira, maio 07, 2020

Onde mora o perigo - LUIZ CARLOS AZEDO

Correio Braziliense - 07/05

“Ramagem voltou à direção da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) com superpoderes, depois de indicar seu braço direito para o comando da PF”


Uma parte da oposição considera o governo Bolsonaro protofascista. Discordo do conceito por dois motivos: primeiro, porque vivemos numa ordem democrática; segundo, porque a fascistização do governo não é inexorável. Toda vez que o presidente da República faz um gesto autoritário, tipo mandar um jornalista calar a boca, ou prestigia uma manifestação a favor de uma intervenção militar, porém, a narrativa do protofascista ganha novos argumentos: “E agora, você ainda acha que não estamos caminhando para o fascismo?”, questiona um velho amigo jornalista. Diante das circunstâncias, no entanto, vejo que é melhor explicar minha avaliação.

Estou entre os que veem no governo Bolsonaro um viés bonapartista, porque se coloca acima da sociedade e busca se apoiar nas Forças Armadas, com respaldo político-ideológico de pequenos proprietários, empreendedores e corporações ligadas aos setores de transportes e segurança pública, além dos truculentos e embrutecidos de um modo geral. Mais ou menos como Luís Bonaparte, o sobrinho de Napoleão I. A diferença é que, no bonapartismo, o parlamento foi completamente subjugado pelo estamento burocrático-militar, o que não é o nosso caso, embora tenhamos um governo no qual generais da reserva e da ativa estão dando as cartas. A lógica desse processo é o aparelho burocrático-militar avançar em relação aos demais poderes, em aparente neutralidade arbitral. Na França de 1851, o golpe de estado de 2 de dezembro pôs fim ao regime parlamentar.

Aqui no Brasil, diante da maior crise sanitária que o país enfrenta, desde a epidemia de febre amarela de 1918, e de uma recessão que cavalga a pandemia, nossas instituições estão funcionando. O Congresso realiza sessões por videoconferências, em marcha batida para aprovar o chamado “Orçamento de Guerra”, que busca socorrer estados e municípios. O vai e vem da emenda constitucional sobre o assunto, entre a Câmara e o Senado, decorre da divisão do próprio governo, como ficou demonstrado ontem. Assessores do ministro da Economia, Paulo Guedes, atuavam nos bastidores para garantir a aprovação da proposta do Senado sem emendas; já o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL-GO), atuou para que houvesse modificações. Questionado, disse que agiu de mando, ou seja, recebeu orientação do Palácio do Planalto.

Ontem, Rodrigo Maia (DEM-RJ) recebeu a visita dos ministros Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) na Presidência da Câmara. Os dois generais são os mandachuvas na Esplanada e comandam as articulações para formação de uma base parlamentar com os partidos do Centrão, na base do velho toma lá dá cá, ou seja, em troca de ocupação de cargos no governo. A operação atraiu o PTB, do ex-deputado Roberto Jefferson; o Partido Progressista, do senador Ciro Nogueira; o PL, do ex-deputado Valdemar Costa Neto, e o PSD, do ex-prefeito Gilberto Kassab, figuras carimbadas da chamada “velha política”. As conversas têm uma explicação: os presidentes do DEM, prefeito ACM Neto, de Salvador (BA); do MDB, deputado Baleia Rossi (SP); e do Solidariedade, Paulinho da Força (SP), não embarcaram nas articulações para transformar Maia num pato manco. O jeito foi retomar as conversas com o presidente da Câmara.

Arapongas


A movimentação do Palácio do Planalto tem dois objetivos: a curto prazo, impedir qualquer possibilidade de instalação de um processo de impeachment e afastamento do presidente Jair Bolsonaro por crime de responsabilidade; a médio, eleger ao comando da Câmara um aliado que possa ser pautado por Bolsonaro, o que não acontece hoje. A longo prazo, ninguém sabe. Entretanto, olhando ao redor, uma maioria fisiológica no Congresso é a via mais segura para a ampliação dos poderes de um presidente da República. Essa receita foi adotada com êxito em países como o Peru de Fujimori e a Venezuela de Chávez, a Rússia de Putin e a Hungria de Viktor Orban.

Neste momento, onde mora o perigo? Nas manobras de Bolsonaro para ter à sua disposição pessoal os órgãos de coerção do Estado. Por ora, a tentativa de utilizar a Polícia Federal como instrumento de poder fracassou. Essa intenção foi denunciada pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Isso resultou na suspensão da posse do delegado Alexandre Ramagem no cargo de diretor-geral da PF, por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, e no inquérito aberto para investigar o caso, pelo ministro do STF Celso de Mello, a pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras.

Entretanto, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, delegou boa parte de suas atribuições a Alexandre Ramagem, que voltou à diretoria-geral da Agência Brasileira de Inteligência com superpoderes, depois de indicar seu braço direito, delegado Rolando de Souza, para o comando da PF. A agência tem por missão obter informações para o presidente da República, mas agora ganhou autonomia para contratar serviços sem licitação e financiar missões de servidores, militares, empregados públicos ou colaboradores eventuais da agência, obviamente, em segredo. Ou seja, Bolsonaro está organizando um exército de “arapongas”. É um péssimo sinal.

Um 'novo' governo - WILLIAM WAACK

O Estado de S.Paulo - 07/05

Mas as pessoas só querem saber quando vão acabar a crise e a desagregação


O governo dono da plataforma com a qual foi eleito Jair Bolsonaro terminou no começo de maio, aos 16 meses de vida. Seus dois fortes apelos eram a campanha anticorrupção, associada à mudança da forma de se fazer política, e a grande reforma do Estado, ali incluída uma ambiciosa agenda de reformas econômicas de cunho estruturante e “liberal”.

O homem visto como campeão da luta anticorrupção, o ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, desceu da carruagem dizendo que o fazia por não acreditar que a campanha prosseguiria como tinha sido nos tempos da Lava Jato. Bolsonaro o chama agora de mentiroso e traidor. Em seu depoimento à Polícia Federal, Moro deixou claro como pretende seguir o roteiro: chamando Bolsonaro para a briga no campo da ética e da política – suas acusações não surgem até aqui capazes de levar o procurador-geral da República a oferecer denuncia contra o presidente.

Mas está claro que um pedação significativo da bandeira anticorrupção foi arrancado das mãos de Bolsonaro, e essa não é uma disputa que se encerra no curto prazo. Ela vai para 2022, e o motivo é como Bolsonaro decidiu fazer política agora: do mesmo jeito que seus antecessores fizeram, ou seja, oferecendo cargos em troca de apoio. Não importa como Bolsonaro justifique essa mudança de rumo a seguidores capazes de acreditar em qualquer palavra de ordem, nem se ele agiu por medo, cálculo, pressão, desespero ou burrice. O fato incontestável é o da presença ainda mais dominante da “velha” política.

É dela que passou a depender agora o outro pilar com o qual Bolsonaro foi eleito, o das reformas estruturantes e liberais. Perdeu-se tempo e o imponderável sob a forma da dupla catástrofe do coronavírus alcançou Paulo Guedes no meio da terra de ninguém – no mata burro, para usar a linguagem de quem aprecia o jogo de tênis.

A necessidade de socorro de emergência a estados e municípios arrancou a âncora fiscal, com os piores golpes vindo de dentro do Palácio do Planalto. Continua ali na gaveta o plano da gastação desenfreada em infraestrutura mas foi o sinal de abandono do congelamento dos salários do funcionalismo dado pelo próprio presidente que melhor traduziu o que sempre se intuiu: o corporativismo mora aqui.

A combinação de farra fiscal em ano eleitoral com severa recessão econômica é horrorosa para qualquer governo, mas o Bolsonaro 2.0 começa sob uma generalizada desagregação política e institucional, cuja expressão mais evidente é a forma como o STF decidiu reiterar limites à atuação do chefe do Executivo. “A judicialização da política em si já é ruim”, resumiu uma das grandes figuras do mundo do direito em Brasília, “pois o Judiciário não deveria legislar, mas o que estamos vendo é o pior dos mundos: é o Judiciário governando”.

Essa erosão está sendo acelerada pelas mortes diárias, pela apreensão das pessoas com seu futuro imediato, pela perda de confiança de consumidores e empresários, pelo medo do desemprego, da doença e da morte. São fatores “subjetivos” e “emocionais” de enorme e imprevisível peso na política, diante dos quais Bolsonaro tem insistido em aumentar a comoção. Exatamente como tudo isso vai se desdobrar é impossível dizer neste momento. Como também é difícil fugir à constatação de que a tripla crise – de saúde pública, economia e política – só tornou tudo ainda pior.

Aos 16 meses, Bolsonaro reinaugura seu governo num ambiente de angústia profunda e prolongada, com as pessoas se perguntando, aflitas, quando tudo isso vai acabar.

Bolsonaro passa rasteira em Guedes no Congresso - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 07/05


Durou menos de dez dias o vale-gás que Jair Bolsonaro concedeu ao seu Posto Ipiranga. "O homem que decide economia no Brasil é um só, e chama-se Paulo Guedes", dissera o presidente em 27 de abril. Era lorota.

Bolsonaro passou a perna em Guedes. A rasteira foi consumada na votação do projeto que socorre estados e municípios com R$ 60 bilhões da União para compensar perdas de arrecadação tributária que a crise do coronavírus impõe.

Guedes negociara com os senadores uma contrapartida. Em troca da ajuda, estados e municípios teriam de congelar os reajustes dos servidores até o final de 2021. Os senadores excluíram do congelamento os profissionais da saúde, que molham o jaleco no combate ao vírus.

Na Câmara, espremidos por corporações, os deputados ampliaram o rol das exceções. Além de médicos e enfermeiros, livraram-se do congelamento salarial de policiais militares a policiais legislativos; de policiais rodoviários a membros das Forças Armadas; de policiais federais a bombeiros; de assistentes sociais a...

Em contato com o deputado Major Vitor Hugo, líder do governo na Câmara, Bolsonaro avalizou a pernada em Guedes. Antes da rasteira, a pasta da Economia estimava que o envio das folhas federais, estaduais e municiais para o freezer resultaria numa economia de R$ 130 bilhões. Depois do tombo, R$ 43 bilhões.

A posição de Bolsonaro infectou os parlamentares com o vírus da generosidade. Vitor Hugo, o líder do Planalto, deu à jogada uma transparência de cristal: "Deste plenário, eu liguei para o presidente da República e me certifiquei de que essa era a melhor solução."

O deputado prosseguiu: "O presidente, dez horas da noite de ontem, falou: 'Vitor Hugo, faça dessa maneira e vamos acompanhar para privilegiar esses profissionais que estão efetivamente na ponta da linha. E assim aconteceu (...)."

O deputado arrematou: "...Foi uma determinação do presidente da República, cumprida pelo líder do governo na Câmara, uma vez que eu sou líder do governo e não líder de qualquer ministério."

Devolvido ao Senado, o projeto foi referendado por unanimidade. Como a porteira já estava aberta, o presidente da Casa, Davi Alcolumbre, empurrou os professores para dentro da lista de exceções ao congelamento.

Bolsonaro é um presidente que desconfia da própria alma. Guedes vai acabar percebendo que não convém confiar em quem não confia em ninguém. Para apressar o processo, o ministro talvez devesse levar Bob Dylan à vitrola: "Se você precisa de alguém para confiar, confie em você mesmo."

Política monetária sob tensão - MARIO MESQUITA

Valor Econômico - 07/05

No caso do Brasil, é plausível que a deterioração da situação fiscal acabe pressionando as expectativas de inflação



O choque da pandemia da covid-19 tem apresentado grandes desafios aos responsáveis pela política econômica pelo mundo afora. Em linhas gerais, temos assistido um forte movimento de expansão fiscal e, também, monetária. As economias do G-20 terão déficits expressivos e, assim, crescimento significativo da dívida pública - cerca de 15 pontos percentuais do PIB, em média, somente em 2020.

Analogias marciais têm sido utilizadas com frequência nesta crise, e, do lado fiscal, parecem apropriadas: tamanho crescimento sincronizado das dívidas públicas de tantos países remonta aos conflitos mundiais da primeira metade do século passado. Se existem sérios desafios fiscais, as perspectivas para a política monetária também são pouco triviais.

À época da grande crise financeira (GCF) de 2008-9, o endividamento do setor público também cresceu muito: de 65% do PIB em 2007 para 95% em 2010 nos EUA, de 42% para 75% no Reino Unido, de 64% para 82% na Alemanha, por exemplo. Com taxas de juros atingindo o limite nulo, os bancos centrais tiveram que recorrer, também, a medidas de expansão quantitativa que aumentaram consideravelmente seus balanços. Diante desse quadro, muitos analistas começaram a alertar para o risco de elevação da inflação, o que acabou se mostrando um alarme falso. Para ser mais preciso, houve, sim, inflação de preços de ativos, mas não dos preços de bens e serviços.

As razões para a ausência de inflação de preços de bens e serviços, mesmo diante de políticas fiscais e monetárias muito acomodativas, ainda são objeto de estudo. Várias conjecturas têm sido levantadas. Uma é que a inflação estaria sendo contida pela ausência de choques de oferta persistentes. Outras explicações estão relacionadas à hipótese de fraqueza estrutural da demanda privada, não plenamente compensada pela expansão fiscal. Outra refere-se à própria efetividade da condução da política monetária. Nos EUA, o crescimento da produtividade do trabalho pode ter sido tal que compensou os ganhos salariais.

Na Europa, as margens observadas em diversos setores podem ter permitido que as empresas acomodassem elevações de salários sem fazer repasses ao preço final. Outra observação, com a qual simpatizo, é que a inflação baixa tem se tornado mais persistente por causa do seu efeito sobre as expectativas de inflação, em um processo que se retroalimenta.

O mundo, especialmente o mundo desenvolvido, teria se deslocado para um ambiente inflacionário mais baixo. Nesse novo contexto, a piora da trajetória do endividamento do setor público e o risco, longínquo, de eventual monetização da dívida, com as devidas consequências inflacionárias, estariam sendo compensados pelos fatores acima citados. A tensão entre a deterioração fiscal e o ambiente macroeconômico de curto prazo teria sido resolvida, pelo menos por ora, a favor do segundo.

Se esse predomínio dos fatores macroeconômicos de curto prazo e da persistência da inflação baixa tem caracterizado o período pós-GCF nas economias maduras, o mesmo ainda não pode ser dito, de forma conclusiva, sobre as economias emergentes. Isto porque, em economias maduras, com classificação de risco favorável e histórico de inflação baixa, a deterioração fiscal tem impacto limitado sobre outras variáveis-chave, como a taxa de câmbio e, assim, sobre as perspectivas inflacionárias.

No caso das economias emergentes, notadamente aquelas com histórico inflacionário ruim, como é o caso do Brasil, é plausível que a deterioração da situação fiscal acabe pressionando as expectativas de inflação. Em certa classe de modelos macroeconômicos, a simples piora da trajetória fiscal esperada já pode induzir aumento da inflação (por meio da perspectiva de monetização da dívida).

Na prática, as expectativas de inflação no horizonte de 1 ou 2 anos tendem a ser altamente correlacionadas com a trajetória inflacionária recente. Em geral, o processo de desancoragem de expectativas passa por um choque, que eleva a inflação corrente. Diante do aumento da inflação corrente, os analistas e investidores têm uma decisão a fazer: acreditam ou não que o banco central (BC) estará disposto e será capaz de fazer o necessário para trazer a inflação de volta à trajetória das metas? Se existir a visão de que o BC pode sofrer ingerência política, então a resposta tende a ser negativa, e as expectativas de inflação sobem.

Se, mesmo na ausência de tais ingerências ou expectativa das mesmas, que é o quadro que geralmente observamos no Brasil (certamente no momento atual), existirem dúvidas sobre a sustentabilidade da dívida, o espectro da dominância fiscal pode levar os agentes à conclusão de que o BC não terá como subir a taxa de juros sem incorrer no risco de desestabilizar ainda mais a trajetória da dívida pública. No limite, quando as contas públicas estão suficientemente debilitadas, uma alta da taxa de juros pode até, em tese, ser contraproducente. Em tal ambiente, independente da intenção e compromisso anti-inflacionário da autoridade monetária, o risco de perder a âncora das expectativas é real.

O Brasil vem experimentando, desde 2016, um novo ambiente, com taxas de juros em patamares internacionais, taxa de câmbio menos apreciada, e maior diversificação dos investimentos, além dos títulos públicos, sem prejuízo algum do controle inflacionário. Tal configuração pode se mostrar efêmera se a expansão fiscal, evidentemente necessária em 2020, se estender indefinidamente no futuro. E a política monetária deve levar essa possibilidade em consideração.

Mario Mesquita é economista-chefe do Itaú Unibanco

Juro real deve ir a zero até junho - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 07/05

Dúvida é saber se BC vai tomar alguma atitude com as taxas mais longas


O Banco Central disse na prática que a taxa real de juros básica vai a zero até junho, mês da próxima decisão sobre a Selic, afora a hipótese de novos choques dentro deste choque terrível da pandemia.

No atacadão do mercado de dinheiro, já está em 0,3% ao ano (taxa para negócios de um ano, descontada a inflação esperada nos próximos 12 meses). Ainda é muito.

Nesta quarta-feira (6), o BC reduziu a Selic de 3,75% para 3% ao ano. Afirmou em comunicado que, em junho, pode reduzi-la em outro tanto, no máximo, para até 2,25%, parando por aí, excetuada a hipótese de novos desastres.

E daí?

Nada disso vai mudar de modo notável a taxa de juros nos bancos. Não é disso que se trata, obviamente. A dúvida é saber se o BC vai enveredar pela grande novidade, no caso brasileiro, de comprar títulos do Tesouro a fim de achatar as taxas de juros de prazo mais longo, o que estará autorizado a fazer em breve, pelo Congresso.

Na teoria mais ou menos padrão, o BC poderia fazê-lo caso a Selic fosse a zero (em termos nominais, não a taxa real). Por ora, como visto, parece que não vai a zero. As taxas ditas longas, no entanto, deram um salto desde meados de março, com o pânico pandêmico.

Essas taxas balizam o custo de o governo financiar seus déficits e dívida. Definem também o piso do custo do dinheiro para negócios de prazo mais longo, o financiamento do investimento privado, por ainda vários meses um assunto congelado. Em suma, a dúvida é saber se o BC quis esses novos poderes apenas para ter uma arma na prateleira, em caso de ruína extra, ou se pretende tomar alguma atitude antes disso.

No mais, no curto prazo, a decisão do BC desta quarta-feira não era surpresa, ao menos para negociantes de dinheiro, embora seus colegas analistas ainda sugerissem queda de 0,5 ponto percentual, na maioria, em vez do 0,75. Francamente, é como discutir, dentro de um incêndio, se o fogo já torrou a carne ou se chegou no osso.

Muito analista argumentava que a redução adicional da diferença de juros entre o Brasil e os EUA provocaria ainda maior desvalorização do dólar. Mas a redução dessa diferença é quase nula. O dinheiro vai embora por puro medo, fuga de risco.

Essa discussão de décimos parece influenciada pelo fato de que a média dos ditos analistas parece otimista com a volta do crescimento em 2021 (e também da inflação).

Na mediana, esperam queda do PIB de 3,8% neste ano e alta de 3,2% em 2021 —tomara que estejam certos. Esperam inflação em 3,3% em 2021. Refizeram mesmo as contas ou simplesmente acreditam em IPCA perto da meta por inércia?

Economistas de bancões brasileiros acreditam que a taxa real de juros fica negativa até o fim de 2021, ao contrário da mediana dos seus colegas do mercado.

O comunicado do BC afirma também, como de costume, que a Selic baixa depende de reformas e de contenção da dívida pública: "A trajetória fiscal ao longo do próximo ano" e "a percepção sobre sua sustentabilidade", "serão decisivas para determinar o prolongamento do estímulo".

Hum. Não vamos saber quase nada das contas públicas antes do final do ano, excetuadas maluquices. Mal vamos saber do tamanho da recessão deste 2020 antes da primavera, sendo otimista de modo solar. Não temos ainda nem a menor ideia a respeito do controle do ritmo da epidemia.

O risco de esperar para ver, de modo convencional, é que a ação pode vir tarde demais. Não é o caso de agir à louca e às cegas, mas é preciso inventar maneiras novas para medir este desastre e seus efeitos.

A pergunta - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 07/05

Bolsonaro deve melhores explicações para ter causado tanto tumulto só para fazer troca na PF


Por que o presidente Jair Bolsonaro queria tanto trocar o superintendente da Polícia Federal (PF) no Rio de Janeiro, como informou, em depoimento, o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro?

Essa pergunta, que agora consta oficialmente em inquérito policial, terá de ser respondida pelo presidente Bolsonaro mais cedo ou mais tarde. Melhor para o País que seja mais cedo, para que fiquem logo afastadas as suspeitas de que o presidente pretendia interferir na estrutura da PF, em especial no Rio de Janeiro, Estado que concentra seus interesses políticos e familiares, ora expostos em investigações constrangedoras para o clã presidencial.

A Polícia Federal é órgão subordinado ao Ministério da Justiça, que por sua vez responde à Presidência da República. Isso significa, em outras palavras, que o presidente tem total liberdade para escolher o diretor da PF, mas isso não quer dizer que ele ou qualquer outra autoridade do Executivo possa se imiscuir no trabalho do órgão – cuja autonomia, garantida pela Constituição, é essencial para conduzir suas investigações, em especial quando dizem respeito, ainda que indiretamente, às autoridades do Executivo. Seria intolerável, além de ilegal, que um presidente da República colocasse na chefia ou em qualquer Superintendência da PF um preposto para influenciar o trabalho policial, para obter informações sigilosas ou, pior, para fazer dela uma polícia privada.

A julgar pelo depoimento do ex-ministro Sérgio Moro à PF, contudo, abundam razões para supor que era precisamente isso o que o presidente Bolsonaro pretendia fazer quando pressionou Moro a trocar o superintendente do Rio de Janeiro. “Moro, você tem 27 Superintendências, eu quero apenas uma, a do Rio de Janeiro”, disse o presidente Bolsonaro a seu então ministro da Justiça em uma das tantas mensagens de texto apresentadas por Moro à PF. Ou seja, o interesse do presidente era especificamente o Rio de Janeiro.

Segundo seu depoimento, Sérgio Moro teve que esclarecer ao presidente que a escolha dos superintendentes cabe ao diretor-geral da PF, em respeito à autonomia do órgão para fazer seu trabalho. Então, para Bolsonaro, a solução era simples: substituir o próprio diretor-geral por alguém que fizesse o que ele queria. O ex-ministro qualificou tal interferência de “arbitrária”, o que, a ser verdadeiro o depoimento, é evidente para qualquer pessoa de bom senso.

Mais do que isso: Sérgio Moro informou à polícia que Bolsonaro lhe cobrou diversas vezes a entrega de “relatórios de inteligência da PF”, embora, conforme disse o ex-ministro, o presidente recebesse regularmente esses relatórios; logo, deduz-se que Bolsonaro estivesse interessado em informes de outra natureza, sabe Deus a respeito de quê. Em uma reunião ministerial, depois que Bolsonaro tornou a cobrar de Moro os tais relatórios, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, teria dito, segundo Sérgio Moro, que “o tipo de relatório que o presidente queria não tinha como ser fornecido”. O general Heleno terá a oportunidade de esclarecer esses fatos quando for chamado a testemunhar.

Em todo caso, a interrogação mais delicada permanece em aberto, e só pode ser respondida pelo presidente da República: por que Bolsonaro quis tanto trocar o superintendente da PF no Rio, primeiríssima providência que o novo diretor-geral da PF tomou assim que assumiu o cargo? “O Rio é meu Estado”, justificou Bolsonaro, como se fosse a coisa mais natural do mundo o presidente da República escolher a dedo o superintendente da PF no “seu” Estado.

Para assessores palacianos e para os militantes bolsonaristas, o depoimento de Sérgio Moro nada provou contra o presidente. No afã de defender o indefensável – a tentativa de ingerência na Polícia Federal, o que é inadmissível numa República –, os aduladores não percebem que o ônus da prova está com Bolsonaro, ou seja, é o presidente quem deve explicações consistentes, melhores do que as que tem regurgitado em suas irascíveis declarações, para ter causado tamanho tumulto em seu governo e no País, em meio a uma pandemia mortal, apenas para trocar um superintendente da Polícia Federal.

Um futuro muito incerto - EVERARDO MACIEL

O Estado de S. Paulo - 07/05

Sem limites, competição e eficiência se convertem em práticas predatórias, que se voltam contra elas próprias

Kristalina Georgieva, diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), no blog da instituição (20/4/2020), qualificou, com precisão, a pandemia da covid-19 como uma “crise como nenhuma outra”, porque mais complexa, mais incerta e verdadeiramente global.

São abundantes as previsões, com base frequentemente em pífias e macabras estatísticas, sobre os desdobramentos da pandemia e suas consequências econômicas e sociais. Todas elas são, entretanto, meras aproximações da realidade – provavelmente distantes –, porque sobre o vírus, como se disse a respeito da China, não há um verdadeiro conhecimento, mas graus variáveis de ignorância. Por igual razão, são precárias as especulações sobre suas consequências sociais e econômicas. Caminhamos no domínio da incerteza, em que fica evidente a impossibilidade de estimativa e cálculo, como conceituava o economista americano Frank Knight (1885-1972).

A despeito disso, ouso, com consciente risco de errar, explorar questões associadas à crise da pandemia.

Em artigo anterior (Generosidade e responsabilidade em tempos de catástrofe, 2/4/2020), atribuí a crise ao descaso internacional com a segurança planetária, com destaque para a prevenção de pandemias e catástrofes naturais, a atenção com o meio ambiente, a correção das desigualdades entre pessoas e entre países e o enfrentamento do crime transnacional e do planejamento tributário abusivo.

A esse descaso se acrescentam uma crescente abdicação do multilateralismo e esvaziamento das instituições multilaterais, em direção oposta à intensa globalização dos negócios.

Construíram-se, igualmente, elegantes formulações teóricas, não necessariamente verdadeiras, a deificar a eficiência e a competição, em desfavor da equidade e da colaboração, promovendo tendências hegemônicas de países e empresas, nos âmbitos comercial e bélico.

É evidente que eficiência e competição são motores do progresso. Sem limites, contudo, se convertem em práticas predatórias, que terminam por se voltar contra elas próprias.

A partir de agora há dois caminhos: manutenção do atual modelo, com ligeiras correções, ou a procura de um novo equilíbrio, em que sejam consideradas a equidade e a colaboração.

Como bem assinalou, em meio à crise, um grafite no metrô de Hong Kong: “Não podemos voltar ao normal, porque o que era normal era exatamente o problema”.

O curso da História, ainda que indeterminado, é seriamente influenciado por catástrofes e pela intervenção de líderes políticos.

A pandemia, para além de sua gravidade intrínseca, irá promover uma disrupção na história da humanidade, com inevitáveis repercussões no financiamento do setor público, hábitos e padrões de consumo e poupança, atividades turísticas, aeroviárias e desportivas, processos digitais, mobilidade urbana, ordenamento do território, cobertura do seguro social, formas de trabalho, efetividade da saúde pública, ensino a distância, etc.

As repercussões não serão homogêneas, porém serão universais e, talvez, impliquem a construção de um Estado de bem-estar social 4.0.

Infelizmente, no mundo de hoje, a safra de líderes políticos, com raras exceções, é formada por populistas e autoritários delirantes e sem escrúpulos.

Por sua importância no cenário internacional, nunca as próximas eleições presidenciais nos Estados Unidos foram tão importantes para a humanidade. Se nada mudar naquele país, receio de que ocorrerão outras catástrofes.

Brasil. E o Brasil? Triste trópico. Não bastassem a crise sanitária, enfrentada heroicamente pela nossa precária saúde pública, as imprevisíveis consequências sobre a saúde mental dos que estão submetidos ao isolamento social, a crise fiscal que se abate sobretudo sobre os entes subnacionais, o desemprego e as paralisações da atividade econômica, conseguimos acrescentar, por mais absurdo que seja, uma crise político-institucional, que nada mais é do que fruto de doença política, decorrente de uma combinação de corrupção sistêmica, degradação da representação popular e microrrupturas institucionais. Que os céus nos protejam!

Consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)

Sobre problemas reais e quimeras - ZEINA LATIF

O Estado de S.Paulo - 07/05

A julgar pelas dificuldades de gestão da crise no atual governo, há razões para temer o uso ineficiente dos recursos públicos


O Brasil tem sido um exemplo de fracasso no combate a covid-19 no mundo. Seria simplismo apontar a falta de recursos como a razão para a escalada de óbitos e a saturação do sistema público de saúde. O principal problema é a falha de gestão.

Erramos na saúde e precisamos conter os erros na economia.

A elevação dos gastos e da dívida do governo é inevitável, sendo a decisão mais acertada no momento. No entanto, é crucial que o recurso público seja utilizado de forma justa e eficiente. Que a deterioração fiscal valha a pena, pois ela nos custará caro.

Isso sem contar que, com a economia tão fragilizada, será necessário esforço fiscal ainda maior no futuro para garantir a estabilidade da dívida pública como proporção do PIB. O cumprimento da regra do teto não será suficiente para isso, como aponta a A. C. Pastore e Associados.

A julgar pela baixa qualidade da ação estatal e pelas dificuldades de gestão da crise no atual governo, há razões para temer o uso ineficiente dos recursos públicos. Preocupam os excessos e a má alocação, fora as despesas de natureza permanente.

Por ora, a medida com maior impacto no orçamento é o auxílio emergencial de R$ 600 por 3 meses, que está orçado em R$ 123,7 bilhões – a previsão inicial era R$ 98 bilhões. A tendência é de mais aumento, pela grande demanda e pela possibilidade de extensão do programa. Será necessário calibrá-lo e preparar seu desmonte adiante.

Algumas despesas poderão se tornar permanentes, como as decorrentes da inevitável elevação da inadimplência de empresas e entes da federação que contam com garantia da União em seus empréstimos.

O ineditismo da crise estimula a busca por saídas fáceis.

Alguns analistas propõem que o Banco Central compre títulos públicos para financiar o governo, reduzindo a pressão sobre a dívida pública.

Parece uma defesa de volta ao passado que jogou o País na histórica inflação. Esse é um tema secundário, pois instituições como o FMI computam também os títulos públicos na carteira do BC para cômputo do estoque da dívida do governo.

Há ainda os que defendem levar a taxa de juros do BC a zero para estimular o crédito a famílias e empresas. Não será esse medida, porém, que irá ativar o mercado de crédito, principalmente com o elevado risco de inadimplência neste quadro recessivo e com elevada insegurança jurídica.

A medida teria efeitos colaterais na inflação e na capacidade do Tesouro de se financiar. Seria aprofundada a saída de recursos do País, de residentes e estrangeiros, o que pressionaria a cotação do dólar ainda mais. Também poderia alimentar a compra de ativos reais. O resultado seria inflação mais elevada, cedo ou tarde.

As propostas acima baseiam-se na crença de que não há mais risco inflacionário no Brasil. Porém, não é porque a inflação está baixa – ainda mais agora por conta do isolamento social que compromete o consumo - que podemos rasgar manuais.

Não faz muito tempo que lidamos com o risco de descontrole dos preços. A história nos ensina que recessões não impedem a inflação de subir. O desequilíbrio fiscal sistemático – e este risco aumentou – e voluntarismo na política monetária desancoram a inflação. Esse foi o quadro no governo Dilma.

Outros defendem vender as reservas internacionais para financiar os gastos extras do governo. Uma ilusão. As reservas não foram construídas utilizando sobras orçamentárias, mas sim com a emissão de dívida pública. Vendê-las para gastar implicaria reduzir o seguro que o País tem hoje, sem qualquer benefício em termos de redução de dívida. Deixaria o País mais vulnerável a crises.

Melhor deixar como está, com o BC administrando as reservas com vistas ao bom funcionamento do mercado cambial.

Saídas fáceis não existem, principalmente em um país que falha muito na ação estatal. A crise exige cuidado com o uso dos recursos públicos, e estamos falhando. Seria errar duplamente utilizar fórmulas equivocadas para financiar os gastos e trazer alívio à sociedade.

Consultora e doutora em economia pela USP

Por quem dobram os cotovelos - MARIA CRISTINA FERNANDES

Valor Econômico - 07/05

Gesto que irritou presidente é de autopreservação de Forças Armadas que veem crescer o contágio em suas fileiras


Há 1.813 militares infectados e sete óbitos, num efetivo de cerca de 390 mil nas Forças Armadas. A proporção de casos (0,5%) é dez vezes maior que o contágio do total da população brasileira. O elevado número de contagiados reflete a exposição dos militares em operações de combate à covid-19, da desinfecção de hospitais e higienização de áreas de grande circulação ao transporte de alimentos e equipamentos hospitalares. A mortalidade entre infectados, por outro lado, é um milésimo daquela observada no país, resultado, em grande parte, do monitoramento precoce dos casos e atendimento nos hospitais militares.

Alguns desses números foram expostos no tenso encontro que, no fim de semana, reuniu os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ao Palácio da Alvorada com o presidente da República e seus ministros militares. Na véspera, o general Edson Leal Pujol e todo o generalato presente à cerimônia de transmissão do Comando Militar do Sul haviam dobrado o cotovelo ante um presidente surpreendido.

Com os números, ofereceu-se uma explicação. Para continuar a colaborar com o combate à covid-19, que hoje mobiliza 29 mil militares em todo o país, os militares precisam se cuidar. Os comandantes bateram na tecla, que vêm pautando as portarias militares desde o início da pandemia, de que devem se proteger para proteger o país.

No dia seguinte, o comandante supremo estamparia o divórcio.
Desceu a rampa do Palácio do Planalto para mais um da série de espetáculos que protagoniza nesta pandemia. Cotovelos, naquele domingo, só entraram em cena para seus apoiadores baterem em jornalistas. Sem civismo, mas com muito cinismo, sugeriu que as Forças Armadas partilhariam consigo a paciência esgotada com as instituições e vazou a saída Pujol do comando.

Tratava-se de um balão de ensaio, mas tinha gás suficiente para aumentar a insatisfação dos oficiais da ativa com o presidente da República. O comandante que expunha as tropas ao risco de contágio, visto que se trata “da maior missão” de sua geração, estaria, de fato, com seu cargo em risco? Não. Tratava-se apenas de um presidente que resolvera regar de baciada a semente da indisciplina nos quartéis, praga da República brasileira da qual ele é apenas o mais recente representante.

É sua maneira de reagir ao cordão de isolamento que as instituições começam a apertar em torno de seu pescoço. O decano do Supremo Tribunal Federal é o puxador desse cordão. O depoimento do ex-ministro Sergio Moro frustrou muita gente mas não ao ministro Celso de Mello, que lhe deu publicidade bem como a todo inquérito.

Foi além do procurador-geral da República ao pedir a busca e apreensão do celular do ministro e estabelecer prazo para a tomada de depoimentos das testemunhas e a entrega do vídeo da reunião em que Moro disse ter sido tratada a substituição da superintendência da Polícia Federal no Rio.

Alguns dos intimados não gostaram da advertência do decano de que a resistência das testemunhas em marcar o dia, a hora e o local para serem ouvidos pode resultar em condução coercitiva. Depois que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi tirado de sua casa de madrugada para depor no aeroporto de Congonhas, o Supremo resolveu limitar o instrumento.

Réus não lhe estão mais sujeitos, mas o depoimento “debaixo de vara” continua valendo para testemunhas, mesmo que, entre elas, estejam três generais da reserva na função de ministros (Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto), um dos quais, da ativa.

Advertência no mesmo tom foi usada contra o secretário-geral da Presidência, Jorge Oliveira, e o secretário de Comunicação Social da Presidência, Fábio Wajngarten. Além do prazo de 72 horas para a entrega do vídeo da reunião, eles foram lembrados de que a eventual adulteração do material está sujeita a penalidades previstas na lei.

Um influente general da reserva viu na decisão do decano uma afronta à presunção de inocência, mas Celso de Mello não parece preocupado com as reações. Não foi por decisão dele que generais deixaram as Forças Armadas para servirem a um governo que tem Jair Bolsonaro como presidente da República e Wajngarten como chefe da comunicação.

O decano chegou ao Supremo no governo José Sarney, quando a democracia parecia consentimento de uma ditadura insepulta. Parece confiar no compromisso das Forças Armadas com a defesa da Constituição ao encurtar a vara com a qual intimou os servidores militares lotados no Palácio do Planalto. A quem serão leais, ao presidente, às Forças Armadas ou à lei máxima do país? A evolução do inquérito mostrará se as três lealdades terão como ser conjugadas.

Nas mais de três décadas em que os militares se ocuparam exclusivamente de profissionalizar as Forças Armadas, só deveram satisfação à justiça fardada. Foi a militarização deste governo, pela tese já nocauteada da tutela, que inverteu esta situação. Na ditadura, o Supremo Tribunal Federal teve acanhado desempenho, com honrosas exceções, como o ministro Ribeiro da Costa, que contestou o julgamento do governador deposto Miguel Arraes pela justiça militar. Hoje não há submissão possível.

No limite, o presidente da Corte e seu ex-assessor, o atual ministro da Defesa, movem as peças da contemporização. Se as Forças Armadas têm números a mostrar de sua participação no combate à covid-19, a Corte também os tem. Foram 1.660 processos e 1.473 decisões em torno da pandemia. Dias Toffoli reabilitou a Ordem do Dia de 31 de março, Fernando Azevedo e Silva entronizou a Constituição. Ambos repudiaram a violência contra jornalistas.

Não chega a ser um dueto, mas é um diálogo que pode manter Bolsonaro sob o cerco da Constituição. Ontem Toffoli definiu o Supremo como a última trincheira. A ver como dará cabo de um presidente que, na definição de um fardado, continua a ser o pentatleta da academia militar. Aquele que, quando a corda arrebentar, se manterá em pé com um pedaço dela nos dentes e os cotovelos em riste.

Entre a morte e a vida - MARIA HERMÍNIA TAVARES

Folha de S. Paulo - 07/05

Minoria criminosa repete o brado do general fascista espanhol Millán-Astray em 1930



É muito o que não se sabe sobre o avanço da Covid-19 no país. Ainda assim, parece que não nos saímos tão mal até aqui, como apontou nesta Folha o colunista Vinicius Torres Freire. Comparando a proporção de mortos por 1 milhão de pessoas, nos 40 dias depois da décima vítima, ele calculou que, mesmo descontada a subnotificação, a proporção de casos letais no Brasil era menor que nos Estados Unidos, Alemanha, Itália, Reino Unido e Espanha. Ressalvou, porém, que tudo poderia piorar, pois a progressão dos óbitos não dá margem a muito otimismo.

O mérito daqueles resultados alentadores tem de ser creditado por inteiro ao SUS e às suas equipes, aos governadores e aos prefeitos que adotaram a tempo medidas de distanciamento social e fizeram a parte que lhes cabe na mobilização do sistema público de saúde. Por terem seguido o caminho indicado pelos especialistas, alguns se tornaram alvo de Bolsonaro e das minorias abestadas que o seguem.

Mas o que os governos subnacionais podem fazer tem limites. Na saúde, assim como em outras áreas sociais, o modelo brasileiro é o federalismo centralizado. Nele, a União detém grande poder normativo, regulatório e financeiro, enquanto aos estados —e especialmente aos municípios— cabe a implementação das ações.

Nesta crise, ao mesmo tempo em que o tosco chefe do Executivo sabota políticas razoáveis, por palavras e atos —mudando o ministro da Saúde, opondo-se ao isolamento social e dando como certos os ainda duvidosos benefícios de drogas tidas por miraculosas, de cujos efeitos colaterais, aliás, desdenha—, a máquina sob o seu desgoverno tem respondido de forma lenta e errática.

Em artigo certeiro no site Poder360 —"A velha falta de prioridade e uma nova tragédia anunciada"—, o economista José Roberto Afonso e a procuradora Élida Pinto lembram que não é de hoje o sub-financiamento do SUS. Mostram também o abismo entre o que já está aprovado e o que efetivamente foi desembolsado pela União para a saúde, como se o combate à pandemia não fosse urgência urgentíssima.

Parcela crescente da população reconhece que os governadores agem em defesa da vida. Segundo pesquisa da XP-Investimentos, em abril a sua avaliação positiva saltou 18 pontos percentuais, passando de 26 % a 44% os que consideram sua atuação ótima ou boa.

Enquanto isso, a minoria criminosa que buzina às portas de hospitais, ofende enfermeiras, espanca jornalistas e se prosterna diante Bolsonaro ecoa, naturalmente sem saber, o brado do general fascista espanhol Millán-Astray nos anos 1930: "Abaixo a inteligência, viva a morte!".

Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap

Três sugestões contra o vírus - ASCÂNIO SELEME

O Globo - 07/05

Se opositores forem ao Alvorada haverá confronto?

Já deu para perceber que não há remédio para Jair Bolsonaro. Ele não dá trégua ao bom senso, não faz concessão ao contraditório, ignora apelo em favor do entendimento. Como mandar o presidente calar a boca é exagerar nos seus próprios termos, aqui algumas sugestões para superar o tormento.

1) Jornais, sites de notícias, emissoras de TV e rádio deveriam abandonar a cobertura das manhãs presidenciais no Palácio da Alvorada. Poderia se fazer um pool, e cada dia apenas um cinegrafista, um operador de áudio e um fotógrafo gravariam a saída diária de sua excelência, sem perguntas e sem transmissão ao vivo. Ninguém mais seria ofendido por Bolsonaro, e as bobagens que ele disser para a sua claque ficariam registradas. E, claro, só se publicaria o que de fato importasse.

As perguntas do dia seriam feitas em atos públicos no Palácio do Planalto ou em cerimônias oficiais do presidente. Bolsonaro continuaria falando tontices, podem ter certeza, notícia não faltaria. Só que sem o apoio da claque matinal não teria os arroubos agressivos habituais. Duvido que o capitão tivesse coragem de gritar com um jornalista, mandar ele calar a boca, em frente a uma plateia menos cega e tansa do que a das manhãs do Alvorada.

Um veículo e outro poderiam não topar o pool. Azar, seriam a minoria e reduzir o dano é muito mais importante. O pool seria com os que concordam que não dá mais para aturar as ofensas presidenciais diárias. Quem quisesse continuar dando palanque ao homem, que continuasse. Ajudaria também a deixar mais claro como cada um desses veículos se situa no cenário nacional.

2) Onde anda a oposição a Bolsonaro? Está certo, nem todo mundo é tão estúpido a ponto de se aglomerar durante uma pandemia, como fazem os apoiadores radicais do presidente, mas quase não se veem protestos (fora os panelaços) contra Bolsonaro. Manifestação como a dos enfermeiros, separados por distância regulamentar, como manda o figurino, devem ser repetidas? Talvez, mas o que não se pode negar é que hoje as ruas têm um só dono.

E a entrada do Palácio da Alvorada, que é um espaço público, também só tem um dono. Ou dois. São os adoradores da ditadura e alguns religiosos espertos que vão lá porque sabem que sua excelência vai ajoelhar e rezar com eles, e o resultado do vídeo que produzirão causará tremendo impacto na comunidade. Onde estão os bravos militantes que foram às ruas para defender o mandato da ex-presidente Dilma Rousseff? Onde anda a turma das jornadas de 2013?

Se opositores forem ao Alvorada haverá confronto? Pode ser, mas é o que já ocorre. Ou vocês dariam outro nome ao que se viu quando radicais atacaram enfermeiras e jornalistas? E pode-se fazer como na Esplanada dos Ministérios durante o processo do impeachment de Dilma, separando-se os lados. Do lado direito do portão, apoiadores. Do lado esquerdo, opositores. Ou ao presidente só se deve prestar loas?

3) A polícia precisa identificar e a Justiça processar os que carregam faixas com dizeres contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional ou a favor de uma intervenção militar e do AI-5. A liberdade de expressão permite que as pessoas digam o que bem entendem, mas sobre o que dizem e defendem serão sempre responsabilizadas. E atacar a Constituição é crime.

Vou dar um exemplo mais claro. Posso até chamar o 01 de ladrão em razão das rachadinhas que ele e o Queiroz operaram nos salários dos servidores do seu gabinete na Alerj, mas não vou porque o caso dele ainda está em andamento. Se o chamasse de ladrão, estaria exercendo meu direito de liberdade de expressão, mas ele poderia me processar por injúria e difamação porque não foi condenado. Sobre a liberdade de expressão repousa a responsabilidade.

E a resposta, afinal, estará sempre com a Justiça.

P.S.: Aliás, falando nisso, por que o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), ainda não acolheu nenhum dos muitos pedidos de impeachment que recebeu? Não é por falta de crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro. Ele já somam quase uma dúzia.

Bolsonaro sabotou Guedes - BRUNO BOGHOSSIAN

Folha de S. Paulo - 07/05

Presidente autoriza mudança em projeto de servidores e prova que não fala a língua do ministro



Na semana passada, Jair Bolsonaro foi até a portaria do Palácio da Alvorada para desfazer a impressão de que Paulo Guedes era alvo de sabotagem no governo. O presidente disse que seu auxiliar, que posava satisfeito a seu lado, era "o homem que decide economia no Brasil". Dias depois, o próprio chefe ajudou a sabotar os planos do ministro.

Bolsonaro deu sinal verde para desidratar uma das bandeiras de Guedes no pacote econômico do coronavírus. Foi o presidente quem autorizou a retirada de todos os policiais da proposta que congelava salários de servidores para compensar as despesas com a pandemia.

A equipe econômica se queixou dos parlamentares que votaram a favor da blindagem de diversas carreiras do funcionalismo e apontou o dedo para o líder do governo na Câmara, que negociou as mudanças no projeto. Numa espécie de delação, o deputado Vitor Hugo (PSL) entregou o presidente e disse que partiu dele o aval para a traição a Guedes.

A disposição de Bolsonaro para proteger o funcionalismo não é novidade. O presidente fez carreira como representante sindical de militares e, no poder, continuou trabalhando a favor de algumas categorias.

Quando Guedes defendeu publicamente o congelamento de salários dos servidores, no início da última semana, Bolsonaro cutucou o ministro três vezes. O presidente se irritou ao ouvir que os funcionários não poderiam ficar em casa "com geladeira cheia" enquanto milhões de brasileiros perdem o emprego.

O líder do governo foi ao plenário para deixar as digitais de Bolsonaro na votação. Vitor Hugo contou que, em dois telefonemas, o presidente aprovou as alterações na proposta. No fim, deu a dimensão do apreço de seu chefe pela equipe econômica: "Eu sou líder do governo e não líder de qualquer ministério".

O episódio prova que Bolsonaro e Guedes jamais falarão a mesma língua. Como se vê, o presidente está mais próximo de seus novos aliados do centrão, que costuraram os benefícios para os servidores.

Como a indústria da desinformação vai demolindo uma imprensa indefesa - EUGÊNIO BUCCI

ESTADÃO - 07/05

Há conexão com o projeto fascista que se manifesta na Esplanada dos Ministérios


O que aconteceria se milícias rivais se associassem para abrir quiosques de agiotagem pelas esquinas do Brasil, emprestando dinheiro barato para todo mundo, sem pagar imposto e sem legalizar suas operações? O que aconteceria se distribuíssem cédulas falsas, mas ninguém ligasse? O que aconteceria se os desavisados afluíssem em massa para tomar empréstimo e fazer tilintar a caixa registradora da bandidagem? O que aconteceria se os quiosques, além de dinheiro suspeito, distribuíssem panfletos para xingar o sistema bancário de ladrão da Pátria e acusar o Poder Judiciário de ser cúmplice da ladroagem dos banqueiros? O que se passaria se esse novo negócio ilegal contasse com o presidente da República como seu garoto-propaganda? E se, para completar, uma turba saísse pelas praças do País, travestida de seleção canarinho, estapeando bancários a caminho do trabalho?

Ora, até aí, você dirá, a resposta é fácil: o que aconteceria seria o caos – o caos generalizado e a convulsão social. Só que esse caos não nos ameaça, você dirá também, pois os bancos, para o bem e para o mal, sabem se defender. Mas, atenção: e se, em vez das instituições bancárias, a vítima dos novíssimos quiosques clandestinos das milícias fosse, não as instituições bancárias, mas a instituição da imprensa? Agora a pergunta deixa de ser hipotética. Na verdade, se você olhar a cena nacional, verá que isso já está acontecendo. Existe, de fato, uma guerra aberta contra algo que talvez seja ainda mais valioso para uma sociedade livre do que o capital bancário (ou financeiro): o capital simbólico de credibilidade e de independência que o jornalismo representa. E aí? O que nos vai acontecer?

O corneteiro-mor à frente da guerra é o presidente da República. Seus seguidores, bem adestrados, aprenderam a ferir o núcleo do valor sobre o qual a imprensa se sustenta. Qual é o serviço essencial que um bom jornal oferece ao público? Informações dignas de confiança. Com esse serviço o jornal conquista a confiança do público e dessa confiança extrai todo o valor que poderá ter – o valor econômico, inclusive, mas não apenas ele. Pois agora os quiosques criminosos dispõem de armamento para enfraquecer esse valor. Com relatos fajutos produzidos em larga escala, operam para sufocar, muitas vezes com sucesso, a repercussão das reportagens de qualidade.

Estamos falando de uma portentosa, ainda que ilegal, indústria de desinformação. Bem arquitetada, essa indústria por trás da guerra mantém uma linha produtiva especialmente dedicada a produzir “conteúdos” virais que corroem a honra de empresas jornalísticas e de jornalistas respeitados. Os ultrajes se alastram, impulsionados por direitistas festivos que trabalham de graça para o crime. Nas redes sociais, cada ofensa baixa contra uma redação profissional ou contra um repórter autoriza e incentiva os capangas que esbofeteiam jornalistas no meio da rua. O discurso do ódio virtual explode em violência material. Enquanto isso, o corneteiro-mor ordena, aos berros, que os repórteres profissionais calem a boca. Grita e repete: “Cala a boca!”.

Por certo, a democracia procura defender a imprensa – entre outras razões, porque ela mesma, democracia, já desponta como a próxima vítima. Mas isso não basta. A imprensa precisa fazer mais por si mesma. Ela deve se antecipar e dar combate à indústria criminosa que a elegeu como primeira inimiga. Nesse ponto, as redações devem mudar de atitude. Não que devam mover uma outra guerra, não que precisem se orientar por metáforas bélicas. A forma adequada que a imprensa tem para se defender é fazendo jornalismo, com base em dois ingredientes que se interligam e que já são velhos conhecidos do ofício: reportagens focadas e de pensamento crítico.

As reportagens focadas investigariam sistematicamente a economia paralela e o organograma da indústria das fake news. Quem lucra com a difusão de mentiras nas redes sociais? De que maneira? Quais as cifras implicadas aí? Quem comanda os centros de produção que abastecem os direitistas festivos? Quem são os gerentes? Onde atuam? Quais os elos entre essa atividade clandestina e a organização política que dá sustentação ao bolsonarismo? Esta deveria ser não uma das, mas a pauta prioritária para a imprensa jurada de morte.

Em segundo lugar, as redações não podem abrir mão de pensamento crítico. Uma redação só é uma redação quando pensa à frente da sociedade. E, hoje, uma redação pensante é uma redação dedicada a compreender os nexos entre a indústria da desinformação e o projeto fascista que já pôs as mangas de fora na Esplanada dos Ministérios. Sem compreender o objeto, não há como cobri-lo. Mais do que desmentir as fake news, trata-se de desmontar a indústria que as fabrica em prol do autoritarismo anti-imprensa.

A única forma de dissolver a treva é jogar luz contra ela. Os jornais, que só brilharam quanto jogaram luz sobre os fatos e por dentro dos fatos, são convocados agora a apontar o farolete na cara (e no traseiro) do inominável. Será um bom começo para reescrever um triste fim.

EUGÊNIO BUCCI É JORNALISTA E PROFESSOR DA ECA-USP

Pistas - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 07/05
Confirmada a hipótese de o vídeo ter sido apagado, ficará claro que há alguma coisa a esconder


O ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro deu uma pista importante em seu depoimento à Policia Federal no inquérito que investiga a possível tentativa de interferência do presidente Bolsonaro na Polícia Federal.

Disse que será possível verificar na Polícia Federal e na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que todas as informações “legais” foram passadas à presidência da República, não se justificando a reclamação do presidente.

Não é uma simples disputa entre chefe e subordinado sobre o cumprimento de funções, mas a pista para se confirmar que Bolsonaro não estava satisfeito com os limites legais que o impediam de ter acesso a outras informações da Polícia Federal, ato que passaria a ser ilegal.

Se é verdade que o procurador-geral da República Augusto Aras tende a arquivar o inquérito porque em seu depoimento o ex-ministro Sergio Moro não acusou Bolsonaro de nenhum crime, será uma decisão absurda que o desmoralizará, pois foi ele próprio quem identificou os diversos crimes que poderiam estar indicados no depoimento de Moro ao pedir demissão do ministério da Justiça.

Cabe ao procurador-geral investigar, e não a Moro acusar. Além dos indícios de provas que serão ou não investigados pelos promotores, há o vídeo citado por Moro da reunião ministerial onde Bolsonaro o teria ameaçado de demissão por não dar informações sobre a PF, e o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) explicado que aquele tipo de informação não poderia ser fornecida.

Neste caso, ficaria caracterizada a tentativa do presidente de interferir indevidamente na PF. Por absurdo, confirmada a hipótese de o vídeo ter sido apagado, ficará claro que há alguma coisa a esconder, o que configuraria obstrução da Justiça, um crime óbvio.

Foi assim que terminou a presidência do então presidente Richard Nixon, no caso Watergate nos Estados Unidos, quando parte de uma gravação de conversa em seu gabinete foi deletada pela secretária do então presidente americano, alegadamente por acidente. Alegação que se tornou ridícula.

O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, é o titular da ação penal, o que significa que é um ato de soberania sua oferecer a denúncia ao final do inquérito, ou arquiva-lo. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, relator do inquérito, não tem autoridade para discordar da decisão em caso de arquivamento. Mas o Supremo pode não aceitar eventualmente uma denúncia.

Repúdio

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, manifestou-se em nome da Corte condenando as agressões a jornalistas na manifestação contra o STF e o Congresso em frente ao Palácio do Planalto no domingo passado, com a presença do presidente Jair Bolsonaro.

Aproveitou para se posicionar sobre os ataques ao Supremo: “Na democracia, as divergências são equacionadas pelas vias institucionais adequadas, pré-estabelecidas na Constituição, a qual dita as regras do jogo democrático. As irresignações contra decisões deste Supremo Tribunal Federal se dão por meio dos recursos cabíveis. Jamais por meio de agressões ou ameaças a esta instituição centenária, ou a qualquer um de seus ministros individualmente”.

Toffoli disse que, na ocasião, “foi agredida a democracia”. A coincidência de as agressões terem acontecido no Dia da Liberdade de Imprensa, tornou, para Toffoli, as tornou “lamentáveis e intoleráveis”.

“Sem imprensa livre, não há liberdade de informação e expressão. Sem imprensa livre não há democracia”, afirmou. O presidente Dias Toffoli voltou a apelar a união necessária: “Devemos prestigiar a concórdia, a tolerância e o diálogo, bem como exercitar a solidariedade e o espírito coletivo. É momento de harmonia, de equilíbrio e de ação coordenada entre as instituições e os Poderes da República. As divergências existem, pois elas são naturais na democracia. Na democracia, as divergências são equacionadas pelas vias institucionais adequadas, preestabelecidas na Constituição, a qual dita as regras do jogo democrático”.

Mais uma vez a retórica a favor da democracia e da liberdade de expressão ganha força nesses momentos escuros que estamos vivendo. Breve, será necessário mais do que simples palavras para repudiar a tentativa de implantar no país um governo autoritário.

Aliança despudorada e ruinosa - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 07/05

Mais uma vez, o fisiologismo, o populismo e o corporativismo venceram, com apoio do governo que prometeu abandonar a velha política

Nociva em tempos normais, a maneira despudorada com que parcela não desprezível dos congressistas costuma decidir sobre o destino do dinheiro público pode ser ruinosa para o País no momento em que os recursos humanos, materiais e financeiros deveriam ser canalizados prioritariamente para salvar vidas ameaçadas pela covid-19. Sem nenhum pejo, porém, e desconectada da grave realidade dos brasileiros, essa parcela – agora amiga íntima do governo do presidente Jair Bolsonaro e sua parceira em transações com recursos orçamentários – agiu decididamente para que a Câmara dos Deputados desfigurasse o projeto de auxílio financeiro para Estados e municípios e nele incluísse benefícios para várias categorias de servidores.

A versão aprovada pelo Senado já favorecia algumas categorias especiais. Era o máximo que se podia conceder para estimular o trabalho dos profissionais que cuidam de vítimas da covid-19 sem comprometer a necessária austeridade financeira. Mas, com a ativa participação do líder do governo na Câmara, deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), e do líder do PP, deputado Arthur Lira (PP-AL), a lista foi ampliada para atender a interesses eleitorais específicos de um determinado grupo político.

Mais uma vez, a perniciosa combinação de fisiologismo, populismo e corporativismo venceu, desta vez com o apoio decisivo, muito mais do que simples conivência, do governo cujo chefe se elegeu prometendo abandonar a velha política do toma lá dá cá. Coincidência ou não, muito provavelmente não, no dia seguinte à decisão da Câmara, o Diário Oficial da União publicou a nomeação de Fernando Marcondes de Araújo Leão para dirigir o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), um dos cargos mais cobiçados por parlamentares do Nordeste por causa das dimensões do orçamento desse órgão federal e da abrangência de sua atuação.

É a primeira nomeação para um cargo dessa importância como consequência da aliança que o presidente Jair Bolsonaro fechou com o grupo de deputados que, em lugar de princípios e programas, têm prioritariamente interesses políticos e eleitorais a serem atendidos pelo governo federal. Não por acaso o nomeado foi indicado pelo PP do deputado Arthur Lira. Esse partido vem tendo papel importante na aliança com a qual Bolsonaro procura assegurar o mínimo de votos no Congresso para não ver seu cargo sob risco. Esse mesmo grupo sinistro tenta agora adonar-se da estrutura do Ministério da Agricultura, ainda nas boas mãos de Tereza Cristina.

Ao desfigurar o projeto de ajuda financeira aos Estados e municípios, a decisão da Câmara praticamente demole uma das condições essenciais negociadas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). O congelamento de vencimentos dos servidores, salvadas pouquíssimas exceções, era a contrapartida para a ajuda aos Estados e municípios no combate à pandemia. Guedes foi derrotado com a colaboração de integrantes da base do governo.

Também Alcolumbre perdeu, pois a Câmara alterou os critérios para a repartição do auxílio federal, estimado em R$ 60 bilhões, e reduziu a desproporcional participação do Amapá, Estado que o senador representa, no bolo. Como foi alterado no mérito pela Câmara, o texto voltará para o Senado.

A lista aprovada pelo Senado de carreiras de servidores que ficariam fora do congelamento de vencimentos incluía militares das Forças Armadas, servidores dos serviços de segurança pública dos Estados e profissionais de saúde. Emenda apresentada na Câmara pelos líderes do governo e do PP estendeu o benefício para as Polícias Federal e Rodoviária Federal, agentes penitenciários, técnicos e peritos criminais, agentes socioeducativos, garis e assistentes sociais. Até policiais legislativos, que atuam na Câmara e no Senado, saíram ganhando. Outro destaque preserva os aumentos dos professores. Os deputados retiraram do projeto a restrição de que os aumentos salariais seriam autorizados somente para carreiras diretamente envolvidas no combate ao coronavírus.

Enquanto isso, estima-se que praticamente três quartos (ou 75%) dos assalariados do setor privado terão sua remuneração cortada.

Maratona inglória - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 07/05

Beneficiários do auxílio emergencial enfrentam filas evitáveis com organização

Sem dúvida fundamental neste período de colapso econômico, a concessão de um auxílio temporário de R$ 600 para trabalhadores de baixa renda, com custo total na casa dos R$ 100 bilhões, tem esbarrado em graves problemas de logística.

O ineditismo do programa, aprovado pelo Congresso, e a massa de beneficiários, estimada por ora em cerca de 50 milhões de brasileiros, explicam até certo ponto as dificuldades que se observam para fazer com que o recurso chegue rapidamente aos destinatários.

São deploráveis, ainda assim, cenas chocantes como as que se viram no sábado (2), quando pessoas pobres, muitas delas com problemas de saúde, enfrentaram filas intermináveis em agências da Caixa Econômica Federal (CEF) para tentar retirar o dinheiro.

Num momento em que a pandemia do novo coronavírus recrudesce, impondo o distanciamento físico e o uso de máscaras, formaram-se aglomerações que poderiam ter sido evitadas com melhor orientação e planejamento.

Cabe questionar se a concentração das ações na instituição estatal foi o melhor desenho para o programa. No lançamento da proposta, apontou-se aqui a importância de o Executivo mostrar capacidade de articulação e recorrer a todos os meios disponíveis para cumprir de modo eficiente o prometido.

Além da estrutura já espalhada pelo país para a distribuição de inúmeros benefícios sociais, a própria rede privada de bancos poderia prestar algum apoio.

Os problemas, na realidade, já começaram pelos meios eletrônicos oferecidos para cadastrar e habilitar os que teriam direito à ajuda. Foram vários os relatos de lentidão, queda do sistema e outros empecilhos técnicos e burocráticos.

Diante do quadro, a Caixa anunciou que vem tomando providências e teria registrado nesta quarta-feira (6) “redução considerável” das filas em todo o país. Parcerias com prefeituras de cerca de 500 municípios estariam ajudando a ordenar o atendimento.

Os próximos dias revelarão se tais decisões irão de fato representar uma mudança de patamar na prestação do serviço —ainda mais se o número de beneficiários vier, como se teme, a aumentar.

A maratona inglória, que não deixa de expor um traço cultural perverso de desconsideração no trato dos estratos de baixa renda, remete a uma deficiência que o país precisa enfrentar o quanto antes: a falta de um sistema digital de identidades e cadastros públicos.

Trata-se de projeto indispensável, para o qual existe tecnologia disponível —como atestam, aliás, os dois países mais populosos do planeta, a China e a Índia.