quinta-feira, maio 30, 2019

Bolsonaro, seu bobo - FERNANDO SCHULER

FOLHA DE SP - 30/05

Apaixonados, governistas e oposicionistas, são inúteis para o bom debate público


Na semana que passou, assistimos de camarote a mais uma lição sobre como funciona nossa alegre democracia na era do escândalo.

Dias atrás o presidente compartilhou com os amigos um texto confuso e irrelevante, e sua base difusa de apoio marcou uma passeata, para o fim de semana.

Isso bastou para que a tagarelice digital levantasse o tom. Ouvi gente boa dizendo que era uma "carta de renúncia", como a de Jânio. Uma "ameaça" ao país, escreveu outro. Uma jovem deputada vaticinou: a continuar assim, é "impeachment ou renúncia". O exagerômetro nacional quase pifou, mas depois tudo virou espuma, como quase sempre acontece.

Passados alguns dias, ninguém mais se lembra do que dizia o tal artigo esquisito, a manifestação domingueira correu tranquila, com 75% dos manifestantes tendo ido à avenida Paulista, segundo dados do Monitor Digital, em apoio às reformas que o país precisa fazer.

Nossos alarmistas não perdoaram: foi um sucesso? Pior para o governo. E se tivesse sido um fracasso? Pior ainda. E se tivessem cancelado tudo, antes? Sinal de fraqueza. A realidade pode variar do jeito que quiser, a constante é sempre a mesma: o governo errou, o governo perdeu, o governo é bobo, vulgar, agride japoneses, faz o diabo.

Vejam só as passeatas de domingo. Não havia um boneco satirizando Rodrigo Maia? Não havia gente falando mal do centrão? É evidente que isso vai terminar mal, vai estragar mais ainda a relação com os Poderes, com o Congresso, não é mesmo?

Não estragou. Na semana em que os corpos deveriam ser recolhidos, o governo promove um agradável convescote entre os chefes de Poderes, propondo um pacto pelas reformas. Na sequência, o Senado aprova a MP da reforma administrativa.

Sim, mas o pacto é "enganador", "exotérico", um "conto do vigário"! Até o croissant servido no café da manhã deveria ser falso! OK, OK, e o suco de laranja era de caixinha. E o governo perdeu na votação do Coaf! Exato. Vai aí uma revelação: na democracia, governos ganham e perdem, no Parlamento projetos são ajustados, coisas assim.

E quando isso acontece, não significa que o sistema, o governo ou a democracia estejam em crise.

Há muito o que aprender com essas coisas todas. Uma delas é que eventualmente há muita gente um pouco precipitada, por aí, dando opinião. Democracia digital é assim, não há o que fazer.

Um exemplo: sabem o que significa o tal pacto entre os Poderes? Um gesto, apenas isso. O presidente do Supremo nem sequer deveria assinar algo apoiando uma reforma que depois irá, necessariamente, passar pela corte que preside.

Mas a política é assim, feita de gestos, de um movimento pendular entre momentos de tensão e diálogo. Não era diálogo, afinal, que os críticos do governo mais exigiam, geralmente aos berros, do presidente? OK, é chato perder uma pauta tão fácil. Entendo a brabeza.

Imaginem só se a reforma da Previdência passar, sem o governo ter negociado quase nada com o Congresso. Imagina a raiva. Minha sugestão é que os teóricos do caos tratem de dar um jeito para uma tragédia dessas não acontecer. E digo para andarem rápido, pois a reforma vai avançando.

Outra lição: só há uma coisa mais inútil para o bom debate público do que um apaixonado governista, um apaixonado oposicionista. Ambos não se contentam com as próprias opiniões. Exigem também seus próprios fatos. Sua opinião funciona como uma espécie de ponto fixo, no palco, ao redor do qual dança a realidade.

O problema com esse tipo de análise é que faz escorrer pelo ralo qualidades essenciais para a democracia: o bom senso, a prudência na análise, a independência para colocar o dedo na ferida, quando o governo erra, e fazer o contrário, quando o governo acerta.

O governo erra feio, por exemplo, quando aposta em uma inútil guerra cultural, na educação, e em tudo que envolve certo conservadorismo tosco que parece pairar, como um fantasma, nos arredores do Planalto. Seu maior erro, continuo achando, é aquele que ninguém vê: a completa ausência de um projeto, uma ideia que seja, sobre a reforma das instituições políticas, neste país com 27 partidos no Congresso, que ainda funciona, quem sabe, porque Deus talvez seja mesmo brasileiro.

Mas o governo também acerta. A agenda econômica é obviamente um exemplo. MP da liberdade econômica, autonomia do Banco Central. Dá para escolher. E arrisco dizer o seguinte: quem sabe à revelia do governo, talvez descubramos, depois que o inverno passar, que o Congresso pode funcionar, aprovar reformas, agir com mais independência (ainda que com mais ruído), sem a tutela do Executivo, sem o velho modelo que um dia Fernando Henrique chamou de "presidencialismo de cooptação" e que todos nós sabemos como funcionava.

Talvez descubramos que não era má a ideia de que o Congresso tomasse as rédeas de uma reforma difícil, como a da Previdência, e que a prática de distribuir ministérios e diretorias da Caixa Econômica Federal para arrumar votos, no Parlamento, não guardava nenhuma virtude. Era apenas uma mazela (mais uma) de um país que se acostumou com muito pouco.

Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

Veneno da política intoxica o PIB e derruba 2019 - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 30/05


Nas pegadas de um final de semana em que o Posto Ipiranga de Jair Bolsonaro ameaçou fechar as portas —"Pego o avião e vou morar lá fora", disse Paulo Guedes—, o IBGE informa nesta quinta-feira (30) que o PIB do primeiro trimestre de 2019 foi medíocre. É o prenúncio de um mal maior: o excesso de veneno na política intoxica a economia, comprometendo o crescimento do país pelo terceiro ano consecutivo.

A recuperação da economia está, por assim dizer, pendurada numa palavra: Confiança. Algo que os governos não conseguem inspirar. Após a ruinosa gestão de Dilma Rousseff, o impeachment e a pauta liberal de Michel Temer animaram a conjuntura. Súbito, o grampo do Jaburu carbonizou as expectativas. Em vez de salvar a Previdência e sanear as contas públicas, Temer priorizou o salvamento do próprio pescoço.

A eleição de Jair Bolsonaro, com Paulo Guedes a tiracolo, reacendeu o otimismo do mercado. A ilusão durou pouco. Em cinco meses de mandato, descobriu-se que a única coisa que cresce no Brasil é a capacidade do capitão de produzir crises contra si mesmo. Já seria o suficiente para potencializar o pessimismo. Nem precisava do auxílio externo proporcionado pelos ruídos da guerra comercial entre China e Estados Unidos.

Continua na ribalta ela, a reforma da Previdência. Até o asfalto já roncou pelo ajuste previdenciário —coisa inédita no mundo. Mas a ficha dos atores políticos demora a cair. Com sorte, Bolsonaro se autoimpõe uma abstinência de redes sociais. E a coisa se resolve até setembro. Com azar, novas polêmicas esticarão a corda até as vésperas do Natal, empurrando o pessimismo e a retração dos investimentos para dentro de 2020.

O brasileiro deve ser um dos sujeitos mais bombardeados por notícias econômicas do mundo. Aqui, a economia tem mais espaço no noticiário do que o futebol. Quanto mais a economia não dá certo, mais manchetes ela ocupa. Quanto mais o cidadão acompanha as novidades, mais percebe que entende apenas o suficiente para saber que precisa entender muito mais para descobrir o que leva um país com 13 milhões de desempregados a desperdiçar tanta energia com desavenças políticas.

Política é crime? - AÉCIO NEVES

FOLHA DE SP - 30/05

Doações tiveram candidaturas como destino final


Dentre as inúmeras ações criminosas praticadas pelos delatores do grupo J&F contra o país, uma volta a chamar a atenção. Em uma delação corrompida e ensaiada, destaca-se o enorme esforço que fizeram para colaborar com o movimento de criminalização indistinta da atividade política, pelo qual o Brasil já está pagando um alto preço.

Na busca desesperada pela manutenção dos incríveis benefícios de sua delação, Joesley Batista, réu confesso de mais de 200 crimes, resolve afirmar, dentre outros absurdos, que as doações oficiais feitas ao PSDB e a partidos da nossa coligação em 2014 eram, na verdade, compra de apoio político. Com base em tamanho disparate, na última semana foram bloqueados mais de R$ 100 milhões em minha conta pessoal. Isso mesmo os delatores tendo afirmado que “o Aécio nunca fez nada por nós”. Mesmo não havendo em meus 30 anos de vida pública qualquer ação em favor do grupo J&F.

Desnecessário dizer que jamais possuí esse valor astronômico. Na verdade, nunca tive saldo que correspondesse a 1% disso. Portanto, doações oficiais, devidamente registradas junto à Justiça Eleitoral, de uma hora para outra se transformaram em crime apenas porque o delator assim resolveu tratá-las, com o intuito de criar um falso ativo no seu balcão de negociação.

Esses recursos, como foi amplamente comprovado, tiveram como destino final dezenas de candidaturas em todo o país e diretórios estaduais e nacionais de nove diferentes partidos políticos. Nunca transitaram nas minhas contas. Nunca fui acusado de me beneficiar pessoalmente de nenhum centavo. Ainda assim, o pedido de bloqueio foi feito na minha conta pessoal.

Por analogia, é de se supor que possam vir a ser igualmente bloqueados, na conta pessoal da ex-presidente Dilma Rousseff, R$ 600 milhões referentes aos valores que os mesmos delatores dizem ter doado à coligação do PT no mesmo pleito.

Apesar de se tratar da coligação adversária, tal decisão, registro, seria igualmente injusta.
Por essa mesma lógica, milhares de candidatos que disputaram eleições dentro da lei, mesmo tendo suas contas aprovadas, podem, a qualquer momento, ser acusados de corrupção. Basta que isso interesse a algum delator e ao seu acordo.

Sentados no alto do trono de ouro da impunidade, fora do alcance da Justiça, os executivos da J&F apontam para políticos e escolhem quem “salvar” e quem “condenar” em função de seus interesses, da repercussão e do prêmio que possam alcançar. Apontam e escolhem. “Essa doação foi correta. Essa foi compra de apoio politico.” E, se alguém ousar pedir provas que sustentem tão grave acusação, ouvirá: “Ah, o politico em questão me disse que um dia, no futuro, poderia me ajudar”. Pronto. Está aí a “prova“ da propina.

Ou seja, a distinguir as doações apenas o sentido que, anos depois, em função da conveniência do momento, os delatores atribuem, arbitrariamente, a cada uma delas.

A aliança entre PSDB, DEM, PTB e Solidariedade é a mesma que se repete há várias eleições presidenciais. Antes e depois de 2014.

Um trecho do depoimento de Ricardo Saud, delator da J&F, referindo-se a doações ao Solidariedade, dá a medida da irresponsabilidade das acusações. “Mas o Solidariedade... não foi comprado, ...porque eles já vinham contra a Dilma, eles já iam automaticamente para o PSDB… mas… vamos falar que foi comprado também por 15 milhões…”. Ou sobre o DEM: “...o DEM também é mais ou menos igual ao Solidariedade, não precisava muito comprar…”.

Com a mesma tranquilidade com que respondo a questionamentos da Justiça sobre outras doações eleitorais, faço hoje esse desabafo porque a legítima busca da sociedade por justiça não pode ser manipulada por aqueles que se julgam acima da lei.

Por ironia, não existe em toda a delação uma acusação sequer contra mim por uso incorreto de recurso público. Na outra vertente, é incalculável o prejuízo que o grupo J&F causou aos brasileiros.

Alguns dados, apontados pela imprensa, são estarrecedores. Entre 2002 e 2013, a J&F recebeu quase R$ 13 bilhões de recursos do BNDES. O valor do acordo de leniência é outro presente para os delatores. Vão pagar R$ 10 bilhões em 25 anos. O valor a ser pago por ano equivaleria a um dia de receita do grupo.

Hoje, sabe-se que delatores, mesmo tendo omitido ilícitos, falseado informações e cometido crimes após o suspeito acordo de delação firmado com a Procuradoria-Geral da República, continuam impunes.
Do alto do trono de ouro, não faltam motivos para gargalhadas.

Aécio Neves
Deputado federal (PSDB-MG); ex-senador (2011-18), ex-governador de Minas Gerais (2003-10) e candidato à Presidência da República em 2014

O poder da caneta - WILLIAM WAACK

O Estado de S.Paulo - 30/05

Na relação com o Congresso, Bolsonaro está conseguindo o contrário do que pretende

As pessoas que foram às ruas no domingo atendendo a chamado do presidente e as que vão às ruas nesta quinta-feira para protestar contra o governo deram uma demonstração de política real. Uma e outra sugerem a Jair Bolsonaro que ele teria prevalecido num teste de forças que, na verdade, está apenas no começo e no qual a caneta Bic do presidente é insuficiente para vencer.

Começa pelo tal “pacto” dos três Poderes que nem tem como existir (o STF assinando pactos?). A ênfase retórica no “pacto” é, em parte, o resultado da percepção de Bolsonaro de que os termos da vitória eleitoral e “as ruas” lhe teriam permitido enfrentar os outros dois Poderes, e que levou o ministro Paulo Guedes a dizer que “não há antagonismo” entre eles (os Poderes) – frase que só provocou risadas entre seus pares no mundo real da economia e finanças. Tudo bem, reconheça-se que um dos pilares do governo não poderia mesmo declarar outra coisa em público, ainda que fosse para segurar o dólar.

“As ruas” – ou o que Bolsonaro entende por isso – teriam também dito ao presidente que ele não precisa se esforçar muito em conseguir uma base estável no Congresso, pois o ronco das multidões que o apoiam superaria em caso de necessidade os cochichos dos participantes do nefasto conchavo que o impede de realizar os anseios do povo. O problema aqui é o de desafiar um dado estrutural do sistema de governo brasileiro (admita-se, o pior do mundo), que obriga Executivo e Legislativo a se entender de alguma maneira.

Nesse sentido, Bolsonaro está conseguindo o inverso do que pretende. O Congresso está caminhando até com certa rapidez para fortalecer suas prerrogativas e com pautas próprias (na área tributária, por exemplo). Mais complicado ainda para o presidente, o mundo parlamentar se impressionou menos do que ele acredita com as manifestações de rua. Ao contrário, está tomando a guerra deflagrada pelo bolsonarismo nas redes sociais como incentivo para reduzir as prerrogativas do Executivo em dois setores-chave: alocação de recursos pelo orçamento e uso de medidas provisórias.

Ao aderir a simplificações brutais da (admita-se) complexa e dificílima relação com o Legislativo, Bolsonaro ignora um outro dado relevante da realidade dos fatos. Parlamentares reagem, sim, não só “às ruas”, mas, também, a uma série de pressões políticas, sociais, econômicas e regionais que os empurram, por exemplo, para a aprovação de alguma reforma da Previdência –é o que explica, em parte, o entendimento relativamente muito mais fácil entre o próprio Guedes e os presidentes das casas legislativas, que estabeleceram há tempos linha direta com importantes segmentos da atividade econômica.

As elites da economia estão há tempos totalmente convencidas de que não há um plano B para a não aprovação de alguma reforma da Previdência. Mais ainda: clamam por algo que mexa com a sufocante questão dos impostos (nem estamos falando da carga). Alguma surpresa com o fato, mencionado acima, de o Legislativo querer seguir adiante com uma pauta “própria” de reforma tributária? Ou das expectativas dos agentes de mercado voltadas agora menos para Bolsonaro e mais para o Congresso?

Aos cinco meses de governo, está se ampliando a noção de que a formação de uma base coesa e estável de Bolsonaro no Legislativo não só continua distante, mas, talvez, nunca se concretize. O presidente não se mostra disposto a liderar nada nesse sentido, e já deixou a própria bancada mais de uma vez na mão. Confia estar na rota política correta. É a que vai ajudar a diminuir muito o poder da sua caneta.

A rua e o povo - MARIA HERMÍNIA TAVARES

FOLHA DE SP - 30/05

O 'povo' de Bolsonaro pode ocupar avenidas, mas é minoria da população

Mobilizar o povo para pressionar as instituições políticas —especialmente o Congresso— é estratégia clássica do populismo. Ela começou a ser posta em prática no último domingo, por iniciativa de grupos mais radicais do bolsonarismo com o dissimulado beneplácito do seu líder e o incentivo entusiasmado de sua prole.

A extrema direita colocou muita gente nas ruas. Ainda assim, ficou bem longe de falar em nome daquilo que o presidente chamou de “essa população maravilhosa” que não pode ser ignorada.

O “povo”, cujas aspirações Bolsonaro imagina encarnar, é uma ficção política; na realidade se divide em relação ao governo, tanto na avaliação do seu desempenho quanto nas expectativas.

Segundo pesquisa de opinião da XP-Investimentos, realizada pelo Ipespe, neste mês, vem caindo a porcentagem daqueles que consideram o governo ótimo ou bom. Tendo chegado a 35%, empatou com os que, crescentemente, pensam que ele é ruim ou péssimo (36%).

O ceticismo também se manifesta na queda de 16 pontos percentuais dos entrevistados com expectativa positiva em relação ao futuro do governo: hoje, menos da metade (47%) prevê que o governo será ótimo ou bom.

Na verdade, embora predomine o total de brasileiros que atribui aos governos passados, especialmente aos do PT, a responsabilidade pelasdificuldades econômicas do presente, simplesmente dobrou a proporção daqueles que pensam que a culpa é do atual.

Bem pesados os números, verifica-se que os manifestantes favoráveis ao presidente e críticos do Congresso e do Judiciário falam hoje em nome de menos de um terço da população. Não passam de 31% aqueles que pensam que o governo deve endurecer suas posições, mesmo que isso lhe torne mais difícil aprovar suas propostas.

Em contrapartida, quase a metade dos brasileiros (48%) pensa que o governo deveria flexibilizar sua conduta para que os seus projetos cheguem a bom termo. Ou seja, o Planalto deveria negociar com o Legislativo: o benefício para a governança do país compensaria o custo (para o prestígio de seu titular) de ele engavetar as suas expressões mais pontiagudas, tão a gosto de seus adeptos aversivos à “velha política”.

No que decerto é o resultado mais significativo do levantamento, 83% dos entrevistados consideram importante que o presidente tenha uma boa relação como o seu homólogo da Câmara, Rodrigo Maia, execrado por manifestantes de domingo.

O “povo” de Bolsonaro pode ocupar avenidas, mas é minoria da população. Como dois mais dois são quatro, governar voltado para ela e em seu nome é receita perfeita de crise política.

Maria Hermínia Tavares de Almeida
Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. Escreve às quintas-feiras.

O que explica a fraqueza do PIB - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 30/05


A Fundação Getúlio Vargas (FGV) está otimista. Acha que o PIB do primeiro trimestre divulgado hoje será zero. “A que ponto chegamos, o que prevê zero está otimista”, comenta o economista Armando Castelar. Os bancos estão projetando um PIB ligeiramente negativo, algo em torno de 0,2%. Mais importante do que o número em si é a constatação de que o país está indo para o terceiro ano de frustração. As projeções começam bem e vão murchando com o passar dos meses.

Houve fatos concretos que prejudicaram o começo de 2019. Um deles foi o rompimento da barragem de Brumadinho, que encolheu a produção da Vale. Como a Petrobras também produziu menos, a indústria extrativa mineral teve uma queda que a FGV está projetando em 9,3% em relação ao último trimestre do ano passado. Há questões que são mais estruturais. A indústria da construção não consegue melhorar. Seu encolhimento tem a ver diretamente com a confiança.

— Ninguém vai pegar um empréstimo para comprar um imóvel sem saber se vai continuar empregado, se a renda permanecerá no mesmo nível. O empresário também se retrai — explica Castelar.

Pelos cálculos da FGV, a construção pode ter uma queda de 0,9%, e isso faz com que ela esteja 31% abaixo do primeiro trimestre de 2014.

— O problema é a questão fiscal, e o que preocupa é a dificuldade de coordenação política do governo. Entre o segundo turno e o começo do ano houve um aumento da confiança, mas depois caiu. Há um círculo vicioso, o governo não avança nas reformas, a confiança cai, o país não cresce, o imposto não é recolhido, o emprego não é criado, a renda não sobe, a popularidade do governo cai e diminuem as chances de aprovação das reformas — diz Armando Castelar.

O Bradesco soltou estudo para tentar explicar o baixo crescimento da economia. O banco prevê uma queda de 0,2% no PIB do primeiro trimestre e acha que uma das causas prováveis é que o mundo está crescendo menos. A outra, e mais importante, é o colapso fiscal do país. O mundo está com taxas de 3% de alta do PIB, bem mais elevadas do que as do Brasil nos últimos anos, mas o comércio está em desaceleração, por causa da briga entre EUA e China. Isso está começando a nos afetar, tanto que mesmo com o dólar mais alto as exportações não estão reagindo.

— O Brasil acumulou há muito tempo um problema crônico de falta de competitividade — diz Castelar.

O Itaú também estima queda de 0,2% no primeiro trimestre, e na visão do economista-chefe do banco, Mário Mesquita, “o segundo trimestre não está com uma cara boa”. A previsão preliminar é de alta de apenas 0,1% e o risco é de novo corte na estimativa de 1% para o ano de 2019.

— Tivemos frustração com as reformas, há a guerra comercial entre EUA e China, com impacto sobre o crescimento mundial, e a ociosidade das empresas está muito elevada, o que inibe investimentos — afirma Mesquita.

Mesmo que o governo aprove a reforma da Previdência, a estimativa é de aceleração do PIB para apenas 2% no ano que vem, com uma queda muito pequena do desemprego, de 11,9% para 11,6%, segundo o banco.

A FGV está com uma projeção mais otimista para o PIB do ano: 1,4%. Mas isso no cenário de aprovação da reforma da Previdência.

— Acho que todo mundo está fazendo seus cálculos com a hipótese de aprovação da reforma. Nós achamos que ela deve ser votada até setembro. Se passar disso e continuar complicado, haverá um impacto muito grande na economia — diz Castelar.

O quadro econômico não é feito apenas de más notícias. A inflação está controlada. O índice está um pouco alto, mas tenderá a cair com os dados de maio e, principalmente, junho. Quando sair do acumulado de 12 meses o número de junho do ano passado, em que houve a greve dos caminhoneiros, o índice deve voltar a ficar em torno de 4%.

O que preocupa mesmo é a marcha da insensatez na economia, na política, no meio ambiente. O governo criou uma quantidade exorbitante de problemas políticos e administrativos para si mesmo nestes primeiros meses de administração. A cada dia novos sinais ruins são emitidos. Os de ontem foram na área ambiental. O ministro Ricardo Salles continua no seu esforço de demolição do setor, e a Câmara aprovou mudanças temerárias no Código Florestal. Se eles pensam estar favorecendo a recuperação se enganam. A nova economia do mundo, para a qual o nosso agronegócio fornece, vê com maus olhos o desmonte ambiental no país.

Não bastará a Previdência para resgatar a economia - CELSO MING

O Estado de S. Paulo - 30/05


Todo o avião tem de funcionar. Mas as pessoas querem balas de prata.

Um dia espalhou-se a crença, ou apenas jeito de dizer, de que lobisomens, vampiros, assombrações e monstros dessa ordem seriam definitivamente eliminados com um tiro certeiro de bala de prata.

Logo se viu que não existem tais monstros nem balas de prata. A expressão ficou para dar a entender que não existem soluções simples para problemas complexos. Ou, então, que determinados problemas têm de ser enfrentados sem vacilação, sob pena de mergulho imediato no caos ou no fim do mundo.

O Brasil tem uma longa história de eleições de problemas de vida ou de morte e de soluções radicais. Talvez o mais antigo tenha acontecido no século 19, quando o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire se impressionou com a devastação provocada pela saúva e proclamou: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”. De lá para cá, apesar do formicida Tatu e das iscas de exterminação que vieram depois, nem o Brasil acabou com a saúva nem a saúva acabou com o Brasil.

Mas teve Ruy Barbosa no início do século 20, para quem tudo se resolveria se fosse sancionado um único artigo de lei, revogadas as disposições em contrário: “Todo o brasileiro está obrigado a ter vergonha na cara”.

E então vieram os economistas. Logo eles passaram a dizer que o grande problema do Brasil era o latifúndio improdutivo e que, por isso, seria preciso reforma agrária radical já para acabar com todas as mazelas. Também houve o tempo em que tudo se resolveria quando o Brasil tivesse indústria e quando controlasse o petróleo. Veio a indústria e, quando esta se desenvolveu, no resto do mundo e também no Brasil, o setor predominante da economia passou a ser o de serviços. “O petróleo é nosso” ajudou, mas não resolveu.

Nos anos 60, os economistas mais identificados com o progresso ensinavam que a inflação era o efeito colateral inevitável do processo de desenvolvimento. Nos anos 70, no regime militar, o avanço passou a depender da chegada de capitais e, assim, a estratégia de desenvolvimento baseou-se no aumento da dívida externa. Deu no que deu, na baita crise do endividamento. A cada disparada da inflação, o governo da hora inventava um plano infalível, como o congelamento artificial de preços, o corte de zeros da moeda velha e a criação de uma nova.

A história econômica do Brasil vem convivendo com recomendações infalíveis. Por muitos anos, os empresários brasileiros vinham identificando o câmbio atrasado ou os juros escorchantes como a explicação definitiva para todos os males do setor. Agora, muitos elegeram o trabalho informal como vilão maior.

De umas semanas para cá, foram inúmeros os economistas e políticos que saíram a advertir que nem a reforma da Previdência, nem a ainda longínqua estabilização fiscal, nem a também distante modernização do ensino seriam a bala de prata que garantiria o fim da estagnação em que está atolada a economia.

O maior erro desses diagnósticos e dos procedimentos recomendados está na falta de visão abrangente. O desempenho de um avião não depende apenas da perícia do piloto, nem só das turbinas, das asas, da fuselagem ou da excelência do trem de pouso. Depende de que tudo funcione como planejado.

Não bastará uma boa reforma da Previdência, nem apenas a derrubada do custo Brasil, nem melhorar o sistema de ensino para resgatar a economia. Todo o avião tem de funcionar. Mas, no dia a dia, as pessoas querem balas de prata.

Insegurança jurídica - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 30/05

Duas decisões monocráticas têm o efeito de paralisar o programa de venda de ativos da Petrobras


Um bom exemplo da impossibilidade de o Supremo Tribunal Federal (STF) participar de um pacto político com o Executivo e o Legislativo é o julgamento de hoje das liminares que impedem a privatização de estatais e suas subsidiárias.

Duas medidas correlatas foram tomadas monocraticamente por ministros, afetando as privatizações, cujo programa está em curso e é um dos pilares das reformas econômicas do governo.

A decisão do plenário do Supremo pode gerar reação do Congresso, que já tem um projeto para impedir que ministros possam tomar decisões individuais.

Estudos como “O Supremo em números”, realizados pela Fundação Getulio Vargas do Rio, mostram que o fenômeno da “monocratização” das decisões, decorrência do enorme número de processos que impossibilita que todos sejam julgados pelo plenário, vem prejudicando a atuação regular do STF.

Nada menos que 80% das decisões atualmente são monocráticas. Para o jurista Joaquim Falcão, criador do projeto da FGV, este fato ”deturpa o sistema, já que a Constituição dá o direito ao cidadão ser julgado pela instituição do Supremo, não por este ou aquele ministro”.

Nesses casos que serão julgados hoje pelo plenário, dois ministros interromperam um programa de desinvestimento da Petrobras, com possíveis efeitos colaterais no programa de privatização do governo, se as decisões forem aprovadas pela maioria.

O ministro Ricardo Lewandowski deu uma liminar em junho do ano passado proibindo a venda do controle de estatais e suas subsidiárias, inclusive da Petrobras, sem a prévia autorização do Congresso.

Essa decisão, se referendada pelo plenário, acrescentará à insegurança jurídica a demora do processo de privatização, pois a tramitação no Congresso necessariamente será demorada, e sujeita a injunções politicas de todas as ordens.

Dentro do mesmo entendimento, Lewandowski, em abril, encaminhou uma reclamação de sindicatos para proibir as privatizações de refinarias da Petrobras, que o ministro Edson Fachin acatou, suspendendo decisão do Superior Tribunal de Justiça que permitiu a venda de 90% das ações da Transportadora Associada de Gás (TAG), subsidiária da Petrobras, alegando que ela só poderia ser feita através de licitação.

As duas decisões monocráticas têm o efeito de paralisar o programa de venda de ativos da Petrobras, e podem dar à estatal um prejuízo de cerca de U$ 30 bilhões, além de já terem gerado uma insegurança jurídica que pode afetar o programa de privatizações do governo, que tem o potencial de gerar até R$ 1 trilhão.

Além dos impactos econômicos imediatos nos resultados da Petrobras, e a ingerência nos planos de privatização do governo, as decisões monocráticas, aumentando a insegurança jurídica, poderão afetar os investimentos aguardados para a retomada do crescimento econômico.

A definição de que estatais só podem ser vendidas com a autorização do Congresso, e de que as subsidiárias têm que ser vendidas através de licitações, e não do programa especial que a Petrobras utiliza, com autorização legal e o aval do Superior Tribunal de Justiça (STJ), afeta a economia como um todo, especialmente no momento crucial que estamos vivendo.

Parece incoerente a especialistas que, se a Petrobras pode criar empresas, subsidiárias, coligadas, da mesma forma não possa aliená-las, extingui-las, incorpora-las. Trata-se de ato de gestão da empresa, que tem órgãos de direção que, em tese, sabem o que é melhor da ela.

O programa de desinvestimento de ativos está em andamento desde o governo Temer, quando Pedro Parente assumiu a presidência de uma estatal quebrada e começou seu processo de recuperação.

Outra questão preocupante é o ritmo do Supremo, que hoje, em tese, vai apenas decidir se referenda ou não a decisão do ministro Lewandowski. O mérito da questão ficaria para outro julgamento, sem data marcada. Se não houver a decisão de queimar etapas e transformar a sessão de hoje em exame do mérito, continuará a insegurança jurídica na dependência da pauta do Supremo.


‘Harmonia’ não é submissão - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 30/05


Votos no Congresso para aprovar reformas não brotam por abiogênese. São fruto de um trabalho de convencimento e do reconhecimento de opiniões divergentes.



O governo espera que haja “harmonia” entre os Poderes para aprovar a reforma da Previdência e outras medidas necessárias para tirar o País da crise e colocá-lo no “caminho da prosperidade”, como disse o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Essa afinação seria resultado de um “pacto” que o Executivo pretende articular com o Congresso e o Judiciário. Depois do primeiro encontro entre os chefes dos Poderes para discutir a ideia do tal “pacto”, o ministro Lorenzoni explicou que “o Brasil precisa de harmonia e os Poderes têm de dialogar a favor do País”. Também a propósito da “harmonia”, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que “não há antagonismo entre os Poderes” e que, em razão disso, o governo está confiante de que o Congresso vai aprovar a reforma. Assim, parece disseminada no governo a certeza de que a “harmonia” entre os Poderes, gerada pelo anunciado “pacto pelo Brasil”, é o que falta para aprovar as reformas.

O governo parece mesmo acreditar que um acordo de cavalheiros do Executivo com o Legislativo e o Judiciário terá o condão de dispensar o Palácio do Planalto de fazer política – isto é, de conquistar votos em defesa de seus projetos no Congresso.

Ora, ainda que se alcance uma harmonia entre os Poderes, sempre desejável, isso não significa submissão automática do Congresso às teses do governo. Na provável hipótese de encontrar resistência entre os parlamentares para aprovar a reforma da Previdência, o que fará o governo? Acusará o Congresso de romper o tal “pacto”?

Em nenhum momento as eventuais reticências aos projetos do Executivo podem ser entendidas como violação do anunciado entendimento entre os Poderes, pois esse entendimento, se houver, deve se dar em termos de princípios, nunca em termos de resultados. Isso significa que, em nome da tal “harmonia”, a liderança do Congresso pode até se comprometer a facilitar a tramitação das reformas e pode até se empenhar pessoalmente em favor dessas matérias, mas jamais poderá garantir sua aprovação, pois esta decorre da conquista de votos no plenário – isto é, do convencimento dos deputados e senadores.

Essa conquista depende em grande medida do empenho do governo, que até aqui faltou. Mesmo os deputados e senadores governistas se ressentem da ausência de uma articulação política eficaz do Palácio do Planalto, e as iniciativas patrocinadas pelo presidente Jair Bolsonaro para demonstrar disposição para o diálogo não frutificaram – ao contrário, encontraram ceticismo explícito. O governo parece convencido de que suas propostas devem ser aceitas pelos parlamentares simplesmente porque são “a favor do Brasil”, para usar a expressão do ministro Lorenzoni. Segundo essa concepção, presume-se que quem discorda das propostas do governo está contra o Brasil – e faz parte da “velha política”, rótulo reservado a todos os que não anuem, harmonicamente, com tudo o que emana do Palácio do Planalto.

Tais bravatas podem ter sido úteis para vencer a eleição, mas não são boas para governar, ainda mais em um país que necessita urgentemente de reformas. O governo precisa começar a entender que os membros do Congresso, a exemplo do presidente da República, foram eleitos pelo voto direto e livre. Não pode esperar que os deputados e senadores simplesmente aceitem sem discussão as propostas palacianas, em nome de uma tal “harmonia”. “Nós não vamos ser submissos. Somos eleitos para votar o que a sociedade clama, e não o que o governo quer”, declarou o deputado Wellington Roberto, líder do PL (ex-PR) na Câmara, dando o tom das reações no Congresso ao “pacto” proposto pelo Palácio do Planalto.

Há razoável disposição no Congresso para aprovar a reforma da Previdência, ânimo que já se percebia mesmo antes da iniciativa do governo em torno do entendimento entre os Poderes. Ou seja, o caminho está aberto para o avanço dessa e de outras importantes pautas. Mas votos não brotam por abiogênese. São fruto de um duro trabalho de convencimento e do reconhecimento democrático de opiniões divergentes. Tudo isso pode ser resumido em uma palavra: política. Sem ela, restam apenas “pactos” vazios.

Justiça absurda - CARLOS ALBERTO SARDENBERG

O Globo - 30/05

De onde tiraram que nadar numa piscina particular, para a qual não se paga, é manter a dignidade?


O caso: moradora de um condomínio no Guarujá, litoral de São Paulo, e seus filhos foram proibidos de frequentar a piscina, o salão de festas e a brinquedoteca. Motivo: inadimplência, dívida já chegando a R$ 290 mil.

O caso foi parar no Superior Tribunal de Justiça, Quarta Turma. O relator, ministro Luis Felipe Salomão, observou no seu voto: “Não há dúvida de que a inadimplência vem gerando prejuízos ao condomínio... (a moradora) está inadimplente desde 1998... E os autores possuem bens suficientes, em valores que superam os R$ 2,5 milhões”.

A ministra Isabel Gallotti acrescentou: “Quando se vive em condomínios, a inadimplência causa vários transtornos”. E manifestou sua “perplexidade”, isso mesmo, “perplexidade”, que a inadimplente possa usar áreas que demandam manutenção cara.

Na mesma direção, o ministro Marco Buzzi cravou: “Para usar essa piscina, esse direito todo, alguém tem de pagar”.

Para uma pessoa normal, a decisão estava tomada.

Mas a Justiça brasileira não é normal. Acreditem: por unanimidade, o STJ decidiu que o condomínio não poderia impor aquelas restrições. Ou seja, eis a superior decisão: embora cause prejuízo a todos os demais moradores, embora cause perplexidade, embora pegue uma carona grátis, o condômino inadimplente tem direito de usar todos os benefícios do condomínio, mesmo que não pague por isso há 21 anos.

Como disse o ministro Buzzi, “alguém tem de pagar”. E o STJ mandou a conta para os trouxas que pagam em dia.

O argumento: a restrição ao uso da piscina viola o direito de propriedade e a dignidade humana.

Mas o Código Civil diz que o condômino inadimplente não tem direito de participar nem de votar nas assembleias. Claro que se trata de um limite ao direito de propriedade. Só que essa norma tem que ser interpretada “restritivamente”, observou o relator.

Então, ficamos assim: negar o direito do inadimplente de votar nas assembleias dos proprietários, tudo bem. Negar o sagrado mergulho na piscina paga pelos outros, aí trata-se de uma afronta ao direito de propriedade e à dignidade humana.

Sei que muitos leitores devem estar pensando: onde está a pegadinha?

A pegadinha é a imensa insegurança jurídica que persiste no Brasil. Isso inclui desde as instâncias e o tempo que os tribunais tomam para resolver — o caso vem de 1998, foi parar no STJ e ainda não terminou — até o teor das decisões que não resistem à mais simples lógica.

Vamos falar francamente: numa Justiça minimamente eficiente e garantidora do cumprimento das leis e dos contratos, esse caso não passaria do primeiro passo. Imagino o juiz, perplexo: a senhora nunca paga o condomínio e quer que a Justiça lhe garanta o direito de nadar na piscina dos outros que pagam?

Não se trata de um caso fora do padrão. A Justiça brasileira manipula o conceito de direito de propriedade com frequência, passando por cima de leis e contratos, com o objetivo de “fazer justiça” — objetivo vago, que varia conforme a orientação doutrinária e ideológica do juiz.

Dignidade humana justifica tudo. De onde tiraram que nadar numa piscina particular, para a qual não se paga, é manter a dignidade?

Não faz muito tempo, o mesmo STJ dizia que o dono de uma loja não poderia dar desconto ao cliente que pagasse em dinheiro. Precisou o Congresso Nacional aprovar uma lei nova — uma das leis mais ridículas — dizendo que comerciante e comprador poderiam negociar o preço livremente.

E nem é bom se lembrar disso. É bem capaz de alguma corte declarar que essa lei é ilegal.

E tem outros trouxas nessa história: os contribuintes brasileiros que pagam seus impostos regularmente, impostos que financiam a Judiciário —onde se encontram os maiores salários do funcionalismo.

NO STF
E por falar nisso, o Supremo Tribunal Federal deve decidir hoje se a Petrobras, uma empresa pública colocada no mercado, tem o direito de vender uma subsidiária transportadora de gás.

Isso mesmo: um caso de Suprema Corte, como se não tivesse mais nada para resolver.

O pacto é a Carta - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 30/05

Cabe no máximo aos chefes dos Poderes dar prioridade aos temas acordados


Surgem, enfim, acenos positivos na direção da distensão política vindos do Palácio do Planalto.

Depois de ter concorrido para desestimular as mensagens autoritárias nas manifestações deste domingo (26), o presidente Jair Bolsonaro(PSL) persistiu na agenda de interlocução institucional.

Em mensagem ao Senado, adotou a via conciliatória para ter aprovada a reorganização ministerial. Deu anuência ao retorno do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) ao setor econômico mesmo sob pena de frustrar segmentos que apoiam o governo.

Num gesto mais simbólico que prático, também patrocinou encontro com os chefes dos Poderes Legislativo e Judiciário para selar o que seria um pacto em torno de medidas consideraras cruciais.

Bolsonaro (Presidência da República), Rodrigo Maia (Câmara dos Deputados), Davi Alcolumbre (Senado Federal) e Dias Toffoli (Supremo Tribunal Federal) movimentam-se para assinar acordo em torno das reformas nas aposentadorias e nos tributos, da desburocratização, da segurança pública e da revisão das relações federativas.

Nenhum dos quatro, obviamente, será capaz de comprometer-se com o mérito das propostas. Deputados e senadores, desde que arregimentem maiorias, têm ampla prerrogativa de fazer prevalecer a sua visão ou mesmo de rejeitar os projetos. Da mesma forma agirá Bolsonaro, com seus amplos poderes de veto e de iniciativa sobre a agenda do Congresso Nacional.

Juiz nenhum, nem sequer Toffoli, obriga-se a fechar os olhos diante de ilegalidades e inconstitucionalidades que lhe chegarem às mãos.

Aos quatro chefes de Poder, definidores da pauta de suas organizações, cabe no máximo priorizar as deliberações acerca dos temas pactuados. Já é alguma coisa.

A rigor, boa parte dessa agenda já tramita com certa prioridade pelo Legislativo, em parte refletindo o amadurecimento do debate na sociedade e a emergência econômica.

No Supremo, nenhum desses temas ainda pôs à prova a boa vontade do seu presidente. Assuntos correlatos à solvência e à equidade do Estado —como os benefícios da Zona Franca de Manaus, a judicialização da saúde e a venda de ativos da Petrobras— foram tratados com a velha desídia pelas consequências bilionárias da decisão.

O tal pacto, na verdade, será bem mais útil se consumar um casamento entre o chefe do Executivo e os comandos basilares da Constituição. Ao longo da carreira de deputado, na campanha presidencial e neste atribulado início de mandato, vieram do seu campo agressões ao statu quo institucional.

O establishment democrático reagiu ao teste com firmeza: ou Bolsonaro se ajusta às regras do jogo ou condena seu governo ao desgaste e à paralisia. O pacto é a Carta.

Mais que privatizações em jogo no STF - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 30/05

Julgamento de liminares pode afetar uma fonte de recursos para reduzir o déficit fiscal


Tem muita coisa em jogo no julgamento marcado para hoje no Supremo de duas liminares concedidas contra privatizações. O desfecho pode definir o destino de um pilar do ajuste fiscal, a venda de estatais. E também impedir o ataque a um dos grandes problemas do Brasil, a baixa produtividade. Num país em que historicamente o Estado sempre teve uma participação grande na economia, a saída dele de qualquer segmento é sempre polêmica, pelos interesses de grupos que se formam em torno das estatais.

A oposição a privatizações é parte da democracia, e a Justiça, o único espaço para a mediação legal de conflitos. Num arcabouço jurídico tão emaranhado como o brasileiro, não é incomum magistrados dividirem-se diante da mesmo questão. Nem sempre a “letra da lei” tem leituras coincidentes entre juízes. Neste caso específico, cabe expor o contexto em que os ministros Ricardo Lewandowski e Edson Fachin emitiram liminares contra a venda de estatais. Está em questão o rito das operações, e não o mérito da redução da presença do Estado na economia e na sociedade, pois este é tema de discussões políticas e ideológicas. Que não podem ocorrer em tribunais.

Lewandowski acolheu de entidades sindicais — associações de pessoal da Caixa Econômica Federal e confederação dos trabalhadores do setor financeiro — um questionamento da Lei das Estatais, e estabeleceu que cada privatização necessita de uma autorização do Congresso. Já Edson Fachin suspendeu uma privatização específica, da Transportadora Associada de Gás (TAG), subsidiária da Petrobras.

A estatal é a primeira a ser prejudicada se o seu programa de venda de ativos vier a ser afetado pela necessidade de ouvir-se o Legislativo. Como empresa de capital misto, com ações em Bolsa em vários países, a Petrobras também precisa fazer o melhor para seus acionistas. No caso, reduzir a participação no refino, na distribuição e especificamente no gás, para investir no que é mais rentável: na exploração do pré-sal. Também é o melhor para o Brasil. Não há conflito entre os objetivos. Além de tudo, a empresa aprovou junto ao Tribunal de Contas da União seu programa de mudança de perfil. Não há voluntarismo por parte da empresa.

Não se trata de simples privatizações, mas de uma mudança estratégica destinada a enfim permitir que haja concorrência no refino e na distribuição, em defesa dos consumidores, como os caminhoneiros. No gás, a redução do tamanho da estatal tem a ver com um projeto crucial para, por meio da entrada de novas empresas no setor, reduzir o elevado preço do insumo, num choque benéfico para os consumidores industriais e individuais. O efeito multiplicador em toda a economia será enorme. E não faltará gás, devido ao crescimento da produção do pré-sal.

No plano macroeconômico, a venda de estatais permite ao Tesouro abater a elevada dívida pública e melhora a rentabilidade das empresas. Não deve ser esquecido que as contas públicas fecharão 2019 pelo sexto ano em déficit. É algo insustentável.