segunda-feira, maio 27, 2019

'World peace' - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 27/05

Os jovens são, desde os anos 1960, um fetiche da burguesia e dos mais óbvios


Pergunto-me: de onde vem a paixão louca pela série “Game of Thrones” (“GoT” para os íntimos)? A resposta deve ser longa. Não quero respondê-la aqui.

Espanta-me que pessoas tão preocupadas em serem boas (como as contemporâneas, cheias de causas do “bem”) podem gozar com uma produção (nada de pessoal contra a série, inclusive porque não me incluo entre as pessoas que querem ser boas) tão violenta —tanto no nível explicitamente físico quanto no político e no psicológico. É evidente que a velha pulsão de morte freudiana encontra em exemplos como essa série seu parque temático do mal.

Essa questão me serve de gancho para pensar uma outra, esta sim, que me ocupa há algum tempo. Por que mentimos tanto sobre os jovens hoje em dia? Outra, relacionada à anterior: por que eles mentem tanto sobre si mesmos e tantos de nós batemos palma para esse espetáculo de “mortos-vivos”?

Um parêntese. O título acima, “World peace” (paz mundial), era a resposta que as candidatas ao concurso de Miss Universo davam à pergunta “o que você mais deseja na vida?”. Esta questão vinha acompanha por outra: “Qual é seu livro de cabeceira?”. A resposta: “O Pequeno Príncipe”. Afora a ingenuidade aparente dessas respostas, lembro-me bem desses concursos porque era uma delícia ver tantas gostosas num programa só, e de tantos países diferentes. Sei. Hoje em dia achar uma mulher gostosa é “masculinidade tóxica”.

Explicado o título, voltemos às duas questões enunciadas anteriormente sobre os jovens. Numa pesquisa recente de um desses institutos com credibilidade que saiu na grande mídia, os jovens latino-americanos, inclusive os brasileiros, revelaram ter o mesmo humor depressivo mostrado em pesquisas com jovens americanos.

Depressão, medo do futuro, falta de expectativas, dificuldades nos relacionamentos afetivos, queda de esperança no cotidiano. Nada de novo no fronte desde meados dos anos 2000, quando começaram a aparecer pesquisas de comportamento nos Estados Unidos com os chamados “millennials”. E as escolas, as universidades e as famílias continuam na sua batida mentirosa e marqueteira sobre como os jovens estão “evoluídos”.

O que chamou minha atenção especificamente nessa pesquisa não foi o estado de humor dos jovens latino-americanos. Como costumo dizer, atuando em graduação há mais de 20 anos, podemos constatar, no mínimo, duas coisas.

A primeira é que, a cada ano, nós, professores, estamos mais velhos, enquanto os alunos têm sempre a mesma idade.

A segunda é que podemos perceber, claramente, que o humor dos jovens está a cada ano mais depressivo. Os jovens estão piores, e não melhores.

O que chamou minha atenção especificamente foram as respostas desses jovens, que a pesquisa trouxe, como causas para esse humor depressivo: a preocupação com o aquecimento global, a violência contra os animais e os direitos humanos e a perseguição à liberdade de expressão.

Perdoe-me a sinceridade: essas “causas” são mentira e marketing. Não acredito nessas “causas”. Não que os temas não sejam preocupantes, mas não creio que elas sejam as verdadeiras causas do humor depressivo entre os jovens. Acho que elas são respostas prontas que mostra no que transformamos os jovens. Eles são, desde os anos 1960, um fetiche da burguesia. E dos mais óbvios. Pais e escolas adoram esse fetiche porque ele os faz parecer geradores de um futuro melhor. Porém, o que ocorre é que esse fetiche aumenta a distância entre a realidade (psíquica, social e política) desses jovens e a projeção que o marketing de comportamento faz deles.

A maioria esmagadora da população não liga para liberdade de expressão. Só quem liga para ela são jornalistas, professores, artistas ou intelectuais em geral. A menos que a repressão sobre a liberdade de expressão torne seu jantar impossível, ela que se dane. Quanto às outras “causas”, elas estão bem distantes do dia a dia concreto da maioria esmagadora desses jovens. Mas muita gente acredita mesmo que esses deprimidos estejam assim porque “querem um mundo melhor”. Mas essas respostas são como a resposta “world peace”, dada pelas gostosas no concurso de Miss Universo. Puras “fake news” com aprovação de todos.

Creio mais que as causas sejam famílias disfuncionais, mercado de trabalho em transformação monstruosa, instabilidade afetiva, insegurança identitária, desconfiança epidêmica. Dizer que estão deprimidos por causa de questões políticas e sociais é mais fácil do que enfrentar o quarto desarrumado e o banheiro sujo.

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

Inovação e competição na China - RONALDO LEMOS

FOLHA DE SP - 27/05

Exemplo chinês evidencia como inovação e infraestrutura caminham lado a lado


Na semana passada, a China recebeu a visita do vice-presidente Hamilton Mourão. Por coincidência, estou também no país, fazendo uma pesquisa sobre inovação e empreendedorismo.

Uma primeira impressão é que a China se transformou em um gigantesco laboratório de experimentação. Não existe só uma China, mas várias. Cada uma adotando um modelo de organizar e inovar diferente.

O que dá certo segue em frente, podendo ser escalonado em outros lugares. O que dá errado é descontinuado, mas não sem antes gerar lições sobre o que não funcionou.

Em outras palavras, aquilo que se recomenda que as empresas startups façam —testar modelos— a China tem feito em escala nacional. Ao mesmo tempo, ser empreendedor na China não é fácil. A competição local é acirrada e implacável. Como consequência, a vida das startupschinesas de tranquila não tem nada.

Ao visitar uma plantação de chá próxima à cidade de Hangzhou, fica claro como a digitalização mudou até práticas milenares. A filha de uma das famílias produtoras locais acabou se mudando para a Austrália, desencantada com as perspectivas do cultivo do chá.

No entanto, em razão do processo de digitalização do país, com celulares e conexão barata em toda parte, enxergou uma oportunidade. E se fosse possível criar uma plataforma digital para vender o chá cultivado localmente para outras localidades?

Foi exatamente o que ela fez. Mudou-se de volta e transformou um cultivo da família, que dependia de mercados limitados para sobreviver, em uma atividade capaz de escoar sua produção para qualquer lugar.

O resultado veio rápido. Em quatro anos, a região saltou de um faturamento de US$ 500 mil anuais para US$ 20 milhões. Mesmo quem mora em Pequim, a 1.400 quilômetros de Hangzhou, pode comprar o chá da região (chamado Longjing) e recebê-lo em casa em 24 horas.

Esse exemplo ilustra um dos segredos do país: criar plataformas digitais e físicas que funcionam como infraestrutura para o comércio, abrangendo as cidades grandes e as pequenas, além das regiões rurais. Cada uma com capacidades produtivas distintas. No entanto, quando conjugadas em rede, tornam-se complementares. E mais: quando pequenos comerciantes conseguem se integrar a redes de comércio
nacionais, isso muda tudo.

Vale entrar em um mapa na internet e dar um zoom para visualizar a quantidade de estradas e sobretudo de ferrovias da China. A imagem é impressionante. Esse pequeno experimento mostra por que os chineses ficam espantados ao saber que no Brasil há poucas ferrovias e praticamente nenhuma para transportar pessoas. Sabem que o Brasil é grande e não entendem por que não temos trens integrando
as cidades brasileiras.

Só de trem-bala há hoje 29 mil quilômetros de linhas férreas na China, ligando 30 das 33 províncias. Os trens mais novos são capazes de viajar a 340 km/h. Uma viagem de São Paulo a Salvador levaria pouco mais de cinco horas e meia se uma linha dessas existisse no Brasil.

O exemplo chinês evidencia como inovação e infraestrutura (inclusive informacional e educacional) caminham lado a lado. No mundo em que vivemos, sem cuidar desses dois aspectos, é impossível
almejar o desenvolvimento.


READER

Já era Prever o tempo com adivinhação

Já é Prever o tempo com análise meteorológica

Já vem
 Prever o tempo com análise de dados dos celulares das pessoas

Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro

A nova república dos adesistas - ELTON FREDERICK

GAZETA DO POVO - PR - 27/05

Bolsonaro e suas ideias não devem se submeter ao escrutínio público porque, afinal, trata-se de um homem que cumpre uma missão divina


Lá no longínquo ano de 2010, escrevi um artigo neste espaço cujo título era “A república dos adesistas”. Dizia que “a retórica lulista transformou a prática de se opor – natural e desejável em qualquer regime democrático – em algo indecente, imoral, empreendido por representantes de interesses nebulosos”. Era a véspera da eleição em que, com a bênção de Lula, Dilma Rousseff derrotaria José Serra, tornando-se presidente.

A vida não estava fácil para os tucanos. Enfrentavam nas urnas um governo que terminaria o ano com incríveis 87% de aprovação. O que oferecer como alternativa? Estava ali, talvez, a gênese do fracasso do PSDB como oposição ao petismo: Serra viu-se obrigado a ofertar continuísmo, garantindo que, se eleito, seria mais lulista do que Dilma. Não colou. O fim da história é mais dramático e menos entediante que o de Game of Thrones.

Ao longo de seus dois mandatos, Lula foi hábil e bem-sucedido ao usar a deslegitimação da oposição, o seu “nós contra eles”, menos como uma demarcação de extremos ideológicos (direita x esquerda) e mais como estratégia político-eleitoral adaptável aos ouvidos da audiência. A política e suas entranhas sempre foram a bússola: vendeu medo quando achou oportuno (o fim do Bolsa Família), fiou otimismo quando a plateia assim demandava (a “marolinha” da crise econômica de 2008).

Aquele que agora luta para manter seu protagonismo na esquerda – mesmo que isso custe a derrota em algumas eleições – fez lá suas acusações à “direita raivosa”, claro. Disse, por exemplo, que “eles” teriam conspirado para que tivesse destino semelhante ao de Jango ou de Getúlio, forçado ao exílio ou ao suicídio. Nas palavras do ex-presidente, ditas em um discurso naquele 2010 consagrador, o que o salvou da vergonha ou da tragédia foi o apoio do povo: “eu tinha um ingrediente a mais. Eu tinha vocês”. Lula tratou de construir uma imagem mítica, reputando a si mesmo como protetor dos pobres contra o descaso dos poderosos, ao mesmo tempo em que abraçava Paulo Maluf e fazia desagravos a José Sarney, aquele que, segundo o ex-presidente, não podia ser tratado como um “homem comum”. As relações com a plutocracia nacional seriam evidenciadas mais tarde.

O mundo político dá umas voltas incríveis. Hoje é ala fanática da direita bolsonarista que pede adesão absoluta e considera qualquer ato de oposição como a manifestação de interesses não republicanos. “Comunista” virou um xingamento cuja elasticidade alcança de Guilherme Boulos ao Movimento Brasil Livre (MBL). O ethos bolsonarista, porém, traz elementos diferentes daqueles que alimentavam o petismo apaixonado.

Para Bolsonaro e seus fiéis, a política não pode ser um meio porque sua missão não é política. O presidente convenceu-se (ou foi convencido) de que está destinado a liderar uma cruzada moralizante, demandada por mais de 57 milhões de pessoas, mas que foi endereçada pelo próprio Deus. Trata-se, portanto, de assegurar a prevalência do Bem sobre o Mal. Logo, "esquerdista" ou "comunista" não são categorias a explicar tendências e ideias políticas, mas sim o balaio onde se enfiam aqueles que se opõem à missão, os hereges, as bruxas ideológicas.

Exagero? O presidente da República compartilha um vídeo em que um pastor do Congo, falando “da parte de Deus”, atesta que “Jair Bolsonaro é o Ciro do Brasil. Deus o escolheu para um novo tempo, para uma nova temporada no Brasil. Não passe o seu tempo criticando. Juntem as forças e sustentem esse homem. Orem por ele, encorajem-no, não façam oposição". Bolsonaro e suas ideias não devem se submeter ao escrutínio público porque, afinal, trata-se de um homem que cumpre uma missão divina. Logo, a oposição só pode ser resultado de forças maléficas. Isso seria mera instrumentalização da fé alheia para fins políticos se o presidente não desse mostras diárias de crer nessa pregação. Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores, já havia dito que o presidente é a “pedra angular” do novo Brasil, expressão usada na Bíblia para se referir à missão restauradora de Jesus. Na boca blasfema de um esquerdista, para se referir a um dos seus, as referências certamente seriam criticadas por religiosos. Silas Malafaia não se ofendeu.

Para lembrar Paul Veyne, Bolsonaro parece verdadeiramente acreditar em seu mito. Por isso, não chega a espantar que alguém que materialmente nada entregou em quase três décadas de atividade parlamentar – além de um conjunto de bravatas que guardam alguma correspondência com valores ditos conservadores – cerque-se de um grupo de seguidores cuja fidelidade é comparável à dos lulistas que decidem passar o Natal às portas de uma carceragem para fazer companhia ao líder.

Bolsonaro está onde está para realizar uma reparação, para se vingar em nome daqueles que supostamente viram seus valores sendo atacados ao longo dos anos em que a esquerda esteve no poder. Seja a nudez universitária, a maconha nos câmpus, o beijo gay nas novelas, as mamadeiras de piroca: há uma expectativa – meio inocente, é verdade, mas que se alimenta de um perigoso ressentimento – de que o presidente colocará “ordem” nisso, como se houvesse forma de fazê-lo sem recorrer à borrachada e à censura; ou talvez porque só seja possível fazer isso por meio desses instrumentos. Gerar empregos? Esse milagre ele já sinalizou que não pode realizar. Elegeu-se um presidente para moralizar o Brasil.

Não vai acontecer (oremos!). Mas isso importa pouco para os eleitores fanatizados. Para estes, a mera censura verbal a esses comportamentos já é motivo de regozijo, pois olham para o presidente com os olhos da fé, entendida segundo aquela acepção genuinamente cristã: o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não veem.

Elton Frederick é mestre em Ciências Sociais.

O voto Bolsonaro - DENIS LERRER ROSENFIELD

O Estado de S. Paulo - 27/05

O governo continua imerso em suas contradições. E o País já perdeu um ano!

Muita poeira tem sido lançada aos olhos dos cidadãos brasileiros, como se um grupo de predestinados operantes em redes sociais e ideólogos de tipo conspirativo tivessem sozinhos ganho as últimas eleições presidenciais. Nem Hércules teria tido a ousadia e a força de tal pretensão!

Não se trata de desmerecer a estratégia adotada nas redes sociais, mas de reconhecer uma realidade muito mais complexa. O voto bolsonarista foi essencialmente um voto do não, de tipo lulista, “contra tudo o que está aí”. Claro que o que estava aí se baseava em outra percepção da realidade, desta feita, a corrupção da experiência petista de governo, o descalabro econômico, seguido do aumento de desemprego, e os efeitos da Lava Jato enquanto fator de regeneração nacional. O não se estendia também ao politicamente correto, que foi imposto goela abaixo aos habitantes deste país, muitos de índole conservadora.

A corrupção petista havia se tornado visível graças à Lava Jato, ao expor o modo de exercício partidário do poder, com o PT se apropriando de recursos públicos com fins pessoais e políticos. Líderes partidários acabaram sendo condenados e remetidos à prisão, num espetáculo que não deixa de ser doloroso para o País, porém necessário do ponto de vista da punição exemplar. Outros partidos e políticos sofreram o mesmo destino, mostrando o caráter suprapartidário de tal operação. A classe política ficou maculada, o que foi muito bem aproveitado pelo candidato vencedor.

No supermercado as pessoas começaram a sentir os efeitos da inflação, ao que se acrescentavam a redução da renda familiar e o desemprego. Pessoas que tinham galgado uma posição social superior, principalmente durante parte dos mandatos do presidente Lula, sofreram o descalabro do governo Dilma, com recessão, juros altos e perda de emprego. Do ponto de vista da percepção pessoal, há enorme diferença entre uma pessoa voltar a uma posição social inferior e dela nunca ter saído. O carro comprado foi vendido, a educação privada dos filhos voltou para a pública e apartamentos foram devolvidos. O caminho estava aberto para o candidato que soubesse dizer não.

O apoio maciço dos evangélicos, que em muito contribuiu para a vitória, teve como uma das suas âncoras a linguagem conservadora do candidato, que soube fustigar sem pena os exageros e os excessos do chamado politicamente correto. As pessoas de índole familiar conservadora não mais aguentavam tal tipo de imposição, qualificada de “progressista”. Se isso era o “progresso”, preferiam não avançar. Diga-se de passagem que mudanças culturais, para serem bem-sucedidas, devem ser feitas homeopaticamente, salvo se pretenderem uma revolução, que, ao fazer economia de meios, produz resultados desastrosos.

Na esteira da crise de valores, a imagem de Jair Bolsonaro terminou por ser beneficiada pelo prestígio social das Forças Armadas. Os militares gozam de excelente reputação na opinião pública, pela retidão de seus membros e por sua defesa intransigente dos princípios nacionais. Em certo sentido, votar no então candidato veio a significar uma volta democrática dos militares ao poder, o que foi reconhecido pelo presidente na constituição de seu Ministério. Note-se, ademais, que é esse grupo que está sendo atacado pela ala ideológica do governo, como se fossem meros intrusos, quando são os mais responsáveis.

Um fator totalmente imprevisível terminou contribuindo decisivamente para a vitória: a facada. As imagens do candidato sofrendo e sua lenta e difícil recuperação o puseram como vítima da violência que prometia erradicar. Horas de televisão foram dedicadas ao ataque e às suas repercussões, criando uma ampla identificação social com a vítima. A simpatia pelo candidato tomou conta da sociedade. Páginas de jornais, rádios e redes sociais cobriam cotidianamente o que estava acontecendo. Nenhum candidato, por mais tempo de rádio e televisão que tivesse, podia equiparar-se a essa superexposição. Nesse período, a eleição se definiu, não tendo o candidato Jair Bolsonaro podido participar de nenhum debate. Apresentação de ideias e de programa de governo tornou-se prescindível.

Hoje se ouvem supostas análises e comentários de que a Câmara de Deputados – e por extensão o Senado – está se recusando a levar adiante a proposta de reforma da Previdência que foi eleita com o novo governo. Ora, o presidente não apresentou, quando candidato, nenhuma proposta de reforma da Previdência, nem, em geral, econômica, salvo pequenas exceções. Não espanta que haja reações. Que a reforma da Previdência é algo essencial, isso salta à vista, basta fazer as contas. Acontece que nem isso foi – e tampouco é – explicado adequadamente. O governo continua imerso em suas contradições.

Teria sido muito mais sensato retomar o projeto de reforma da Previdência do então presidente Michel Temer, que estava pronto para ser votado em plenário. Em vez disso, o governo Bolsonaro quis fazer a “sua” proposta, supostamente “nova”, contra a “velha”. Foi, de fato, a “velha” forma de fazer política, não querendo reconhecer a continuidade das reformas e propostas feitas no curto governo anterior. O resultado é que o País já perdeu um ano!

Por último, convém dizer uma verdade óbvia, que, no entanto, parece estar sendo esquecida. Não é só o presidente que tem legitimidade popular, a do voto, mas também os senadores e deputados. Todos eles foram eleitos conjuntamente num mesmo processo eleitoral. Logo, é uma falácia dizer que os deputados, por exemplo, estão se colocando contra o voto popular, na medida em que eles são, igualmente, o resultado do mesmo voto. A representatividade do presidente é a mesma dos parlamentares. Se não houver esse reconhecimento, o Brasil continuará imerso em conflitos insolúveis, com desfechos que podem ser institucionalmente nocivos.

PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS.

Na Paulista, manifestantes esquecem o PT e escancaram o racha na direita - FÁBIO ZANINI

FOLHA DE SP - 27/05

Até podiam ser vistos alguns Pixulecos na avenida Paulista, e de vez em quando alguém puxava um coro de “a nossa bandeira jamais será vermelha”.
A manifestação de apoiadores do governo, no entanto, tinha outros inimigos. Eram os “traidores”.

O centrão, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), os ministros do STF e o MBL (Movimento Brasil Livre) tomaram o lugar que durante muito tempo foi ocupado por Lula, Fernando Haddad ou Gleisi Hoffmann.

Um desavisado que aparecesse por ali com uma camiseta do deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP), líder do MBL, correria tanto risco quanto alguém que usasse uma do PT.

Um exemplo dessa mudança de alvos ocorreu no carro de som do grupo Direita SP, quando foram lidos os nomes dos deputados federais paulistas do centrão que votaram contra a permanência do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) com Sergio Moro (Justiça).

Um a um foram vaiados parlamentares de DEM, PP, MDB, PRB e outros, com destaque para Paulinho da Força (SD-SP), chamado de “maldito”.
Os do PT e PSOL foram ignorados, porque, como justificou o locutor, destas legendas nunca se esperou apoio para as pautas do governo. Era como se tivessem sido rebaixadas a uma Série B do antibolsonarismo.

Já a direita não-alinhada ao governo foi tratada como uma inimiga muito mais forte, o que revela uma disputa de espaço no conservadorismo.

O MBL apanhou muito, algo sintomático dado que era um protesto de direita. Foi chamado de “tchutchuca do centrão” e “Movimento Bumbum Livre”. Num rap improvisado, o MC Reaça mandou o movimento para a “Cuba que o pariu”, sob intensos aplausos.

Sobraram petardos também para as deputadas Janaina Paschoal (PSL), que criticou as manifestações, e Carla Zambelli (PSL), vista como titubeante na defesa dos atos.
“Eu tenho vergonha de ter votado na Janaina e ver que ela chegou lá e em cinco minutos nos esqueceu”, disse uma liderança do Direita SP no microfone.

Muitas das pessoas ali presentes apoiavam as reformas propostas por Moro e Paulo Guedes (Economia) até com mais força do que defendiam o próprio presidente Jair Bolsonaro.
Contraditoriamente, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, um dos principais defensores da reforma da Previdência, era criticado em cartazes e palavras de ordem. Seu pecado: tentar roubar o protagonismo de Bolsonaro.

“Ele teve 67 mil votos [na verdade, 74.232] e o Bolsonaro teve 57 milhões, não dá para comparar”, disse a empresária Milcia Ghilardi, que estava com um grupo que carregava uma faixa contra o “golpe” do parlamentarismo. “Nós votamos no Bolsonaro, é ele quem deve governar, não o Rodrigo Maia”, afirmou.
Corretor de seguros, José Alexandre Acre afirmou que “Maia usa sua inteligência para o mal”. “Ele se elegeu a duras penas, não gosta do Sergio Moro e agora se aliou ao centrão”.

Outrora idolatrado em manifestações do tipo, que incluíam até o maior símbolo de prestígio da direita –seu próprio boneco inflável–, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, foi outro a receber críticas, embora em escala menor do que a destinada ao odiado centrão.

“Ele é traíra. Tudo que o Bolsonaro fala ele é contra. É a favor do aborto, contra porte de armas, defende a Venezuela”, disse João de Andrade, bancário aposentado que veio de Araras (SP) para a manifestação.

Apesar da virulência de alguns discursos, eles ficaram no limiar da defesa da ruptura institucional, mas sem cruzar essa linha vermelha, no que parece ter sido uma orientação dos movimentos de evitar qualquer posicionamento que pudesse ser classificado como antidemocrático.

Vaias a ministros do STF, pedidos de impeachment de integrantes da corte como Dias Toffoli e Gilmar Mendes (outro que já foi visto como aliado dos que estavam na Paulista) estiveram por todo lado.

Mas, excetuando-se manifestações isoladas de pessoas mais exaltadas, não se ouviu a defesa do fim do Supremo ou do Congresso Nacional.

Ninguém lembrou, por exemplo, do cabo e do soldado mencionados por Eduardo Bolsonaro como suficientes para fechar o STF.

O máximo a que se chegava eram faixas como “A Justiça se perde com esses togados do STF”. Ou o muito aplaudido discurso de um sargento, completo com sua farda do Exército, que defendeu a mudança na forma como os ministros são escolhidos, com obrigatoriedade de serem juízes de carreira.

A Paulista estava cheia, embora não intransitável. Havia muitos empresários, profissionais liberais e estudantes universitários que defendiam as reformas. Um deles, Ericon Matheus, segurava um cartaz que dizia: “Larga esse ódio e venha amar o Guedes”.

Mas também participaram muitos desempregados e moradores de bairros periféricos, todos defendendo uma reforma que vai, em última análise, reduzir direitos, o que não deixa de ser uma demonstração de força do governo.

“Vim pelo pacote do Moro, a reforma da Previdência e contra os ministros do STF. Bolsonaro está tentando governar, mas tem a interferência do Parlamento”, afirmou José Carlos de Oliveira, 21, ajudante de pedreiro em Guarulhos (SP).

Não se perdeu totalmente o clima de domingão na Paulista. Crianças tiravam fotos em cima de um caminhão do Exército estacionado (propriedade de um colecionador). Ambulantes vendiam camistas de Bolsonaro a R$ 10.

Bastões de plástico branco eram distribuídos. Mas neste domingo, não eram bonecos de Lula preso, como em outras manifestações. Tinham a frase “Congresso corrupto”, com ratos passeando pelas letras.

Disfarçado, viés autoritário esteve subjacente aos atos - VERA MAGALHÃES

O Estado de S. Paulo - 27/05

O cavalo de pau dos últimos dias nas pautas autoritárias e belicistas das manifestações deste domingo surtiu efeito de saneamento básico: em cima dos caminhões de som e por parte dos coordenadores (quando era possível identificá-los) não se ouviram palavras de ordem pelo fechamento do Congresso Nacional ou do Supremo Tribunal Federal.

Mas o germe havia sido plantado, e a intenção inicial de apresentar os demais Poderes como inimigos do governo Jair Bolsonaro esteve presente em faixas, pixulecos como o do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), cartazes e gritos de guerra no asfalto de Norte a Sul.

Na Paulista, epicentro desse e dos últimos grandes atos, havia muito menos gente que nas jornadas de 2013 e nas de 2015 e 2016, pelo impeachment de Dilma Rousseff. O número de pessoas foi próximo ao do ato do dia 15, contra os cortes na Educação (e, assim, antigoverno).

Mas o cálculo de participantes e a comparação com o dia 15 importam menos que o efeito das manifestações na relação entre governo e Congresso.

Os militantes foram levados a acreditar que sua presença nas ruas acuará o Centrão, em particular, e o Congresso, em geral, e os convencerá na marra a votar a reforma da Previdência, o pacote anticrime do ministro Sérgio Moro e o que mais vier do Palácio do Planalto a toque de caixa.

Não é bem assim. Embora seja verdade que, nos últimos anos, o escrutínio das ruas e das redes sociais tenha adquirido mais peso para os parlamentares, o Legislativo continua cioso de suas prerrogativas e não vai abrir mão delas em favor de um plebiscito permanente.

Se Bolsonaro achar que porque as pessoas foram às ruas ele poderá governar à revelia do Congresso, cometerá (mais) um erro crasso. É preciso que haja assessores que lhe digam que quem foi à rua é um contingente menor que o de seus próprios eleitores. Em número e em representatividade (basta ver as defecções na centro-direita).

O melhor, na verdade o único, caminho para a aprovação das iniciativas do governo continua sendo a democracia representativa. A conferir o estrago que a confrontação de ontem pode causar.

Bandeira e boneco não dão votos a Bolsonaro no Congresso - LEANDRO COLON

FOLHA DE SP - 27/05

Se presidente quer tirar o governo da UTI, deveria parar de medir forças


O presidente Jair Bolsonaro pagou para ver e conseguiu, surpreendentemente, um público considerável nas ruas a favor de seu governo. O protesto deste domingo (26), no entanto, é incapaz de contornar a maior fragilidade de sua gestão: a relação com o Congresso.

A eleição já passou. Não adianta empunhar bandeira verde-amarela mirando em quem pode inviabilizar as pautas governistas. Os alvos principais foram o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o centrão.

Sem eles, Bolsonaro não vai a lugar algum. É política, queira ou não. Na falta de capacidade para fazê-la, o presidente apelou, e quem apela tem grandes chances de perder no final.

Se ele quer tirar o governo da UTI, deveria parar de medir forças. Bandeira e boneco inflável não dão voto no Congresso. É hora de pragmatismo, de colocar a bola no chão, dar um pito na deslumbrada e ineficiente bancada da selfie do PSL e aconselhá-la a usar os telefones para negociar voto a favor do Planalto.

É um governo sem base e com o agravante de o partido do presidente comportar-se de maneira negligente. Não há graça alguma na imagem dos deputados desfilando simpatia pelas redes sociais em plena sessão de interesse do país.

A votação da reforma da Previdência no plenário da Câmara, quando e se ocorrer, será uma final de Copa do Mundo. O Planalto e seus apoiadores no Congresso podem errar agora, agir como se estivessem em um parque de diversões, mas não terão margem para falhas lá na frente.

O ministro Paulo Guedes (Economia) avisou que pulará fora do barcose a reforma fracassar. Caso o Senado confirme a votação da Câmara, o Coaf sairá da Justiça e Sergio Moro terá ainda de trabalhar muito para conseguir passar o projeto anticrime.

Guedes e Moro são os fiadores políticos do governo. Bolsonaro perderá prestígio e musculatura se um dia ficar sem um deles ou ambos. Embora finja que não, o presidente sabe que, em um cenário hipotético de catástrofe política, as ruas, por si sós, não são suficientes para sustentá-lo.

O STF e o Executivo - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 27/05


Toffoli usou cautelosamente as palavras, mas suas observações foram um recado claro dirigido ao Executivo


Em evento promovido pela International Bar Association sobre segurança jurídica e os riscos de insolvência na economia globalizada, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, fez duas observações importantes sobre o papel do Judiciário e suas relações com o Executivo.

A primeira observação foi sobre as relações entre o direito e a economia, principalmente num cenário de emaranhado de leis. Segundo ele, a ideia de que “a economia deve conduzir o direito” causa preocupação no âmbito da Justiça, uma vez que seus membros têm de decidir com base na racionalidade lógico-formal do sistema jurídico, e não com base na racionalidade funcional do sistema econômico. É por isso que os tribunais devem ter a “frieza” de fazer valer os contratos e de preservar atos juridicamente perfeitos, desempenhando assim suas atribuições constitucionais, afirmou Toffoli.

A segunda observação foi no sentido de que, ao julgar litígios, os juízes devem prender-se mais às normas, cuja redação é objetiva, do que aos princípios jurídicos, que são expressos por conceitos indeterminados. Magistrados querem “fazer justiça em caso concreto, em vez de aplicar a lei. A função dos tribunais é aplicar a Constituição e as leis. É garantir que as normas jurídicas e as regras do jogo político sejam cumpridas como foram estabelecidas”, disse ele.

O pronunciamento do presidente do Supremo Tribunal Federal ocorreu três dias depois que o presidente Jair Bolsonaro divulgou um texto que acusa o Legislativo e o Judiciário de impedi-lo de governar e praticamente às vésperas de manifestações de grupos que apoiam o Executivo contra os outros Poderes. O discurso também foi feito no mesmo dia em que os jornais mostravam que, em apenas 135 dias de gestão, cerca de 30 medidas adotadas pelo governo Bolsonaro estavam sendo questionadas na mais alta Corte do País. Entre as normas cuja constitucionalidade está sendo contestada estão o decreto que determinou o contingenciamento das verbas das universidades federais, o decreto que ampliou o direito de porte e posse de armas e a medida provisória que proíbe desconto de contribuição sindical em folha de pagamento.

Toffoli usou cautelosamente as palavras, mas suas observações foram um recado claro dirigido ao Executivo. Na primeira observação, ele deixou claro que, se a Constituição e as regras do processo legislativo não forem devidamente observadas na votação de Propostas de Emenda Constitucional, o STF não hesitará em declarar sua inconstitucionalidade. Em outras palavras, por mais importante que seja a reforma previdenciária para a contenção da crise fiscal, os argumentos jurídicos dos 11 ministros da Corte prevalecerão sobre os argumentos econômicos do governo. E por mais urgentes que sejam as medidas destinadas a conter a crise fiscal, o Supremo não aceitará que elas passem por cima de atos juridicamente perfeitos.

Em sua segunda observação, Toffoli também demonstrou habilidade. Ele sabe claramente que parte das críticas que a Justiça tem sofrido decorre da opção de determinados magistrados por interpretações extensivas do direito, muitas vezes com a intenção de proteger o que supõem ser a parte mais fraca nos litígios, o que torna as decisões judiciais imprevisíveis e dissemina a insegurança do direito. Assim, ao recomendar enfaticamente aos juízes que deixem de lado, em seus julgamentos, a “ponderação de princípios” e levem em conta o que a lei diz, o presidente do STF antecipou-se a uma crítica que era esperada nas manifestações de domingo.

A tensão entre o Executivo e o Judiciário só está ocorrendo por causa de dois equívocos cometidos pelo presidente da República. O primeiro é o expediente de usar decretos e medidas provisórias para tratar de matérias que teriam de passar pelo Congresso sob a forma de projetos de lei ou de Propostas de Emenda Constitucional. O segundo é desprezar os órgãos técnicos responsáveis pela qualidade da elaboração legislativa. As consequências desses erros são imprevisíveis e podem custar caro ao governo e ao País.

Bolsonaro e as ruas - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 27/05

Atos em defesa do governo tendem a dificultar ainda mais a relação com o Congresso


Com apenas cinco meses de governo, contam-se manifestações de rua contra e a favor de Jair Bolsonaro (PSL) e sua agenda. As últimas, neste domingo (26), transcorreram sem maiores incidentes violentos e pregações antidemocráticas, mas ainda assim reforçam o clima precoce de exaltação.

A esta altura, pouco seria possível esperar de uma administração além do anúncio dos primeiros planos e do início de um diálogo com o eleitorado em geral e o Congresso em particular. Dá-se o contrário, entretanto.

O presidente incita o conflito político, como mais uma vez ficou claro com suas declarações em redes sociais, por meio das quais, sem dúvida, associou seu prestígio aos atos de diversas cidades. Nesse aspecto, o saldo da passeata governista ficou entre neutro e negativo.

Não houve fiasco de público, notadamente na capital paulista. Mas a presença expressiva de cidadãos nas ruas a exercer seu direito de expressão —como houve até em apoio a Dilma Rousseff, nos estertores do governo petista— nem de longe representa declaração de respaldo popular inconteste.

Trata-se antes de evidência da divisão nacional e da discórdia até entre movimentos que apoiaram a eleição do presidente. Houve críticas ou insultos mesmo entre parlamentares governistas.

Bolsonaro, pois, ficou um tanto mais isolado também à direita do espectro político. A manifestação, de resto, tende a prejudicar ainda mais a relação com o Legislativo.

Nos protestos de pautas variadas ouviram-se críticas insistentes aos partidos do famigerado centrão e ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que dá apoio às mais importantes reformas econômicas propostas ou pretendidas por Bolsonaro.

O chefe do Executivo prefere o ambiente de campanha eleitoral. Promove a política plebiscitária, a pressão de ruas e rede sociais em detrimento da mediação institucional e da negociação parlamentar —que chama de velha política.

Escreveu neste domingo, em tom messiânico, que os manifestantes teriam “o firme propósito de dar recado àqueles que teimam, com velhas práticas, [em] não deixar que esse povo se liberte”.

Nota-se que o mandatário e seu entorno mais extremista ainda alimentam a ambição de “quebrar o sistema”, uma ideia nebulosa que cria instabilidade política e receio de ameaças às instituições.

Bolsonaro não conseguiu demonstração ampla e inequívoca de apoio, mas estimulou o espírito de facção no país e o clima de mal-estar que obstrui o Congresso.

No mínimo, contribui para reforçar os motivos do impasse político e acentuar a incerteza econômica com conflagração ideológica. Nada disso se parece com governar um país complexo e plural.

O caminho do meio na política - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 27/05

Seria necessário um autêntico interesse pela produção dos parlamentares, uma noção de sua trajetória


Depois de um longo dia de trabalho em Oeiras, no centro-sul do Piauí, fui contemplar a lua cheia e vi um corpo brilhante sobre ela. Era Júpiter, que se aproxima todo mês, mas aparece claramente quando a lua é cheia. Fotografei com prazer aquela presença. Uma conjunção feliz, pois nos traz algo de novo ao alcance do olho nu.

Do meu posto de observação da história contemporânea do Brasil, conjunções são raras, desastres mais comuns, não é raro ver a vaca ir pro brejo.

O documento que Bolsonaro divulgou sobre as dificuldades de governar o país nos coloca diante de uma alternativa: governar com conchavos e perpetuar a corrupção ou usar a força popular para provocar mudanças, o que tende a desembocar no autoritarismo.

Existe um caminho do meio, uma nova forma de de se relacionar com o Congresso que ainda não foi experimentada amplamente. Não há garantia de êxito, mas certamente vale a pena tentar.

É uma ilusão supor que os congressistas sempre se curvam à maioria. Foram eleitos também, e para muitos a opinião de seus próprios eleitores pesa mais do que a da maioria.

Uma saída seria atrair o Congresso na execução do Orçamento, tornar políticos de uma região responsáveis também por uma série de obras programadas para ela. É uma parceria que não acaba com o fisiologismo. Mas pelo menos o isola um pouco, oferecendo aos envolvidos uma forma de superar o medo de que seus eleitores pensem que nada fazem por eles.

Pela experiência no Congresso, não considero apenas os fatores materiais. Há um grande muro simbólico a ser derrubado.

Os deputados e senadores seriam mais felizes se pudessem aprovar seus próprios projetos e não serem sufocados por medidas provisórias e pautas oriundas do governo. Há um desequilíbrio aí, e ele já existe há muitos anos.

Ainda num campo simbólico, a atenção de um presidente e uma palavra de apoio ao seu trabalho representam para um deputado mais que verbas. Não recomendo um expediente de relações públicas, como mandar um telegrama no dia do aniversário.

Seria necessário um autêntico interesse pela produção dos parlamentares, uma noção de sua trajetória, uma tentativa de impulsionar o que tem de melhor: jovens começando a carreira, veteranos especializados em alguns temas, todos amparados por um corpo técnico competente.

Pode ser bobagem o que vou dizer, mas os presidentes falharam de uma certa forma em buscar esse caminho e suas variantes.

De um modo geral, chegam ao governo depois de uma grande campanha eleitoral. Ao contrário de terem resolvido as ilusões do ego, eles aceleram a viagem e colocam-se num outro patamar: sabem mais que os outros, são acontecimentos inéditos na história, enviados de Deus. E há os mais distantes, como Collor e Dilma, que claramente não tinham esse dom.

O caminho do meio depende de um presidente que realmente leve a sério o Congresso. Isso não exclui que, em certos momentos, existam manifestações não a favor do governo, mas a favor de alguma bandeira que coincide com algo bem claro no jogo democrático.

Nesse caminho do meio não há avanços vertiginosos. Quem os espera se decepciona. Sem ilusões sobre o Congresso. Não se trata de fazer um avião decolar. Na verdade, trata-se de pôr em marcha uma geringonça.

Essa imagem não é depreciativa. Assim os portugueses chamam sua experiência relativamente exitosa. Comunistas? Nesse caso, Portugal seria o único país comunista a atrair tantos imigrantes, ricos e pobres.

A chance de superar o dilema corrupção ou autoritarismo não foi realmente tentada por Bolsonaro. Mas ainda está aberta para a virada da década.

Os candidatos sempre prometem alguma forma de resolver o impasse. Fica essa lembrança quando o tema voltar em 2020.

Há um caminho do meio. Quem sabe?

O problema é produzir políticas públicas que melhorem as condições reais de vida de milhões de pessoas. O resto são honrarias, condecorações, estátuas para pombo fazer cocô.

Prefiro acreditar que exista uma solução e contribuir para ela a continuar na velha história de que, no fundo, afirma o documento lançado pelo Bolsonaro, o Brasil não tem jeito. Como os estoicos, acham que tudo vai passar como os bárbaros por Roma, pois acabariam engolidos por ela.