segunda-feira, março 06, 2017

Antes que seja tarde - PAULO GUEDES

O GLOBO - 06/03

O que esperamos de Temer e seus aliados, a maior base parlamentar da Velha Política, é que aprovem com urgência as reformas previdenciária e trabalhista


O governo Temer precisa aprovar a reforma da Previdência antes que acabe sua munição. Os principais homens do presidente estão na mira das investigações e caem dos ministérios em constrangedora sequência. Além dos experientes políticos do PMDB, há também importantes apoiadores no PSDB e no DEM entre os alvos das colaborações premiadas. São eminentes articuladores, sobreviventes de uma selva infestada de práticas degeneradas, espécimes aperfeiçoados da Velha Política dos quais depende a eficácia do governo.

Sem essa coluna da reforma previdenciária, desaba o teto de gastos e vem abaixo todo o regime fiscal. A economia voltaria em poucos meses a mergulhar no caos. A perspectiva de controle da expansão dos gastos públicos pela primeira vez em quase 40 anos é a mais importante âncora de um programa anti-inflacionário bem-sucedido e com pouco sacrifício em perda de produção e de empregos. Trata-se da dimensão fiscal que faltou em capengas tentativas anteriores de estabilização. Mesmo o Plano Real teve de botar os juros na Lua por falta dessa mudança de regime fiscal, que veio apenas no segundo mandato de FHC e, ainda assim, de forma branda e à base do aumento de impostos. A ininterrupta expansão de gastos públicos por décadas corrompeu a República e levou a economia à estagnação. A concentração de recursos no governo central enfraqueceu a Federação. O establishment político está em ruínas. É patético que haja congressistas sonhando com o parlamentarismo quando o Parlamento está em seu pior momento desde a redemocratização. A crise de representatividade se aprofunda. Como o establishment perdeu a decência, será avassaladora a renovação pelas urnas nas eleições de 2018.

A independência do Ministério Público, da Polícia Federal e do Poder Judiciário é a grande novidade de nosso traumático, mas inegável, avanço institucional. A revelação de um sistema político degenerado é um inestimável serviço ao aperfeiçoamento de uma democracia emergente. Mas a tarefa de reconstrução caberá às novas lideranças que emergirão das urnas em 2018. O que esperamos de Temer e seus aliados é que aprovem com urgência as reformas previdenciária e trabalhista, antes que seja tarde, pela eventual interdição de seus articuladores à luz das investigações da Lava-Jato.

Questão de lógica - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 06/03

Permitir que patrões e empregados se entendam, em defesa do emprego, é um avanço civilizatório


Reformas costumam ser determinadas por crises profundas. Faz sentido, porque é nestes momentos que se pode viabilizar politicamente mudanças necessárias há muito tempo, mas que só têm chance de ser aprovadas no Congresso sob pressão da vida real. Há sempre interesses políticos e corporativos que se beneficiam de distorções causadas por leis e arranjos que se tornam anacrônicos.

Foi assim no lançamento do Plano Real, em 1994, no governo Itamar Franco, e levado adiante pela gestão tucana de FH. Debelada a superinflação e ganha a eleição presidencial por Fernando Henrique Cardoso, foi possível iniciar-se reformas que reduzissem a distância do Brasil em relação à modernidade, por meio da atenuação do modelo autárquico de capitalismo de Estado seguido pelo getulismo e revigorado pelos generais — principalmente Geisel —, na ditadura militar.

Com a chegada de Lula ao poder, porém, parte daquele projeto retrógrado, com o mofo do nacionalismo de esquerda dos anos 1970, voltou, e de forma mais evidente a partir do segundo mandato do presidente. Não daria certo, como já ficara evidente quando Dilma Rousseff, criatura inventada por Lula, assumiu e aprofundou os equívocos: despreocupação com responsabilidade fiscal, aumentos do salário mínimo sem cuidados com a produtividade da economia etc. A presidente sofreu impeachment, por atropelar a Lei de Responsabilidade Fiscal, enquanto o PIB mergulhava na maior recessão registrada pelas estatísticas oficiais.

Está-se em novo ciclo de reformas, também por uma questão de imperiosa necessidade de se recuperar a capacidade de a economia voltar a gerar empregos e renda. E mudanças na legislação trabalhista estão na agenda, para depois de aprovadas as revisões na Previdência, que sucedem à criação de um teto para impedir que os gastos públicos subam mais que a inflação e o PIB, algo insustentável, mas que vinha ocorrendo.

O ponto central da proposta da reforma é permitir que o que seja definido em acordos coletivos, negociados entre patrões e empregados, possam contrariar normas ultrapassadas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), herança do getulismo. É sensato que certos dispositivos não possam ser alterados: como o recolhimento do FGTS, o décimo-terceiro salário, o adicional de 50% no pagamento de hora extra, entre outros itens.

O conceito de que o “negociado” pode se sobrepor ao “legislado” é utilizado para salvar empregos. Tanto que o próprio governo lulopetista de Dilma o aplicou, em 2015, num programa destinado à indústria, para permitir o corte de salários proporcional à redução de jornada, uma heresia para o PT tempos atrás. Confirma-se o entendimento de que proteção ao trabalho que não respeita a realidade da economia funciona contra o trabalhador. Esta flexibilização das leis trabalhistas já é aceita por sindicatos e no próprio Supremo.

A mão invisível da Justiça - EDITORIAL ESTADÃO

ESTADÃO - 06/03

Casos recentes revelam os crescentes problemas de má formação teórica dos juízes de primeira instância e a disposição de substituir a lei por opiniões políticas, para fundamentar suas sentenças



Vem crescendo de modo preocupante, na primeira instância dos tribunais, o número de juízes que utilizam suas prerrogativas para fazer política, interpretando as leis de forma enviesada, judicializando a administração pública e intervindo no livre jogo de mercado. O caso mais recente, que levou o corregedor-geral de Justiça, desembargador Manoel Pereira Calças, a pedir ao órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) a abertura de um processo administrativo disciplinar, ocorreu com o juiz Fernando Antonio de Lima, titular da Vara do Juizado Cível e Criminal de Jales (SP).

Em entrevista concedida a um jornal da cidade, em maio de 2015, ele criticou a privatização de empresas estatais e defendeu o que chamou de “direito do povo contra serviços mal prestados por grandes bancos e grandes corporações econômicas”. Segundo o site Consultor Jurídico, na ocasião ele também apresentou citações do papa Francisco em favor dos “desprezados e esquecidos”. E ainda lembrou que, em 2014, as condenações que aplicou a empresas privadas concessionárias de serviços públicos totalizaram R$ 14 milhões – valor esse “repassado para a população da comarca” e que “movimentou nossa economia, com distribuição de renda”.

Alegando ter sido condenada sistematicamente por esse juiz a indenizar consumidores por danos morais, em decisões idênticas, sempre com os mesmos fundamentos e sempre no valor de R$ 10 mil, uma dessas empresas – a Telefônica – levou o caso à Corregedoria-Geral de Justiça. A empresa acusou o juiz de falta de isenção e lembrou que, antes de sua entrevista, o Juizado Cível e Criminal de Jales recebia, em média, 212 novos processos por mês. No mês seguinte, o número foi de 1.080 novas ações, pulando para 1.622, no outro mês.

A reclamação foi acolhida pelo Órgão Especial do TJSP. “Não há dúvida de que o aumento da demanda decorreu em grande medida da entrevista concedida pelo magistrado, onde externou a predisposição de condenar empresas. O comportamento refletiu favoritismo e, no mínimo, gerou dúvidas sobre sua imparcialidade. Não é a atitude esperada de um juiz independente e prudente. A conduta, em tese, pode configurar infração disciplinar”, afirmou o corregedor Pereira Calças. Já o presidente da Corte, Paulo Dimas Mascaretti, alegou que o juiz de Jales foi infeliz e entendeu que, em vez de submetê-lo a um processo disciplinar, o Órgão Especial deveria orientar os magistrados paulistas a conter sua exposição na mídia: “Temos visto diariamente juízes, desembargadores e ministros usando não só a imprensa, mas as redes sociais e os mais variados mecanismos de difusão, para manifestar suas opiniões”.

Em sustentação oral, os advogados do juiz negaram qualquer prática irregular. Observaram que ele sempre julgou com base na doutrina e na jurisprudência. Argumentaram que o aumento do número de novas ações no Juizado Cível e Criminal teria sido provocado pelo aumento das novas tarifas telefônicas, que entrou em vigor no mesmo mês da entrevista. E disseram que, ao concedê-la, o juiz apenas exerceu a liberdade de expressão e opinião garantida pela Constituição. O Órgão Especial rejeitou esses argumentos, sob a justificativa de que o magistrado se comportou como “autêntico promotor de distribuição de rendas”, e, agora, analisará o caso no mérito, podendo aplicar sanção disciplinar.

Casos como esse revelam os crescentes problemas de má formação teórica dos juízes de primeira instância e a disposição de substituir a lei por opiniões políticas, para fundamentar suas sentenças. Nos tempos de faculdade, o juiz de Jales deve ter ouvido falar do conceito de “mão invisível” de Adam Smith, para quem o livre jogo de mercado gera a busca por novos produtos e modos de produção mais rápidos e baratos, incentivando a criatividade e a tecnologia. Sabe-se lá por que cargas d’água achou que, condenando empresas privadas e disso dando notícia ao público, faria girar a roda do progresso, tal qual a mão visível que atua na dinâmica da oferta e da procura.

O grande temor da oposição - EDITORIAL ESTADÃO

ESTADÃO - 06/03

Os apoiadores de Dilma Rousseff almejavam que a força da Constituição não fosse suficiente para sustentar Temer no cargo presidencial e que o discurso repetitivo do golpe maculasse a legitimidade do governo



O grande temor da oposição vai-se tornando realidade: a plena consolidação do governo do presidente Michel Temer. Os apoiadores de Dilma Rousseff almejavam que a força da Constituição não fosse suficiente para sustentar Temer no cargo presidencial e que o discurso repetitivo do golpe maculasse a legitimidade do governo. Nada disso ocorreu.

Da mesma forma como havia ocorrido com Fernando Collor, o impeachment de Dilma Rousseff deixou claro que existe lei no País e que ela vale para todos, também para os que estão no cume da hierarquia do poder público.

A consolidação do governo de Michel Temer vai, no entanto, além da questão meramente institucional. Ela é decorrência direta de um governo que, se não isento de erros, até o momento vem mostrando disposição de acertar. Logicamente, há ainda muito a ser corrigido, começando por retirar do governo pessoas que devem antes prestar esclarecimentos à população e, em alguns casos, à Justiça.

Mas isso não obscurece o fato de que o presidente Michel Temer, como há muito tempo não se via no Palácio do Planalto, está disposto a colocar o Brasil nos trilhos. Sua opção por uma equipe econômica de alta qualidade técnica, sem apegos político-partidários, começa a dar resultados. Ainda há uma longa distância para devolver ao País o dinamismo que ele precisa ter, mas é inegável o empenho para fortalecer os fundamentos macroeconômicos, em especial o equilíbrio das contas públicas. Nesse campo, a aprovação da Emenda Constitucional 95, estabelecendo um teto para os gastos públicos, foi uma vitória da racionalidade e da responsabilidade frente a um populismo que perdurou por longos anos, nas administrações de Lula – especialmente em seu segundo mandato – e de Dilma Rousseff.

Também é verdade que o presidente Michel Temer soube vislumbrar, ainda no exercício provisório da Presidência, que o ajuste fiscal, por si só, não seria suficiente para a retomada do crescimento econômico. Talvez aqui esteja a principal razão da consolidação do seu governo frente às frustradas tentativas da oposição de minguar sua legitimidade – a disposição de Temer de levar adiante reformas legislativas que não são fáceis de serem implementadas e, ao mesmo tempo, são tão necessárias.

Se as reformas previdenciária, trabalhista e tributária representam o grande desafio do governo Temer, já que uma eventual rejeição pelo Congresso põe em risco as conquistas até aqui alcançadas, a disposição de levar adiante essas alterações legislativas é, por sua vez, o grande mérito do governo. Seria, portanto, um equívoco pensar que transigências do Palácio do Planalto na tramitação das reformas facilitariam a trajetória de Temer na Presidência. Concessões nesse campo seriam tão somente derrotas.

Deve-se reconhecer que os acertos do governo de Michel Temer ainda não se refletiram em popularidade. As pesquisas de opinião mostram uma avaliação que, se não chega a ser péssima, está longe de trazer tranquilidade a qualquer governante. De toda forma, a capacidade do governo para aprovar as reformas não depende, nesse momento, de sua popularidade. Manter-se firme na disposição de trabalhar pelo bem do País, sem dispor do conforto de um apoio massivo da opinião pública, é o atual desafio do presidente Temer.

A tarefa de reconstrução do País mal começou. Os desafios são enormes. Basta ver as dificuldades que o governo tem pela frente para aprovar uma tímida, porém imprescindível, reforma da Previdência. Agora, é preciso continuar no mesmo rumo, trabalhando com afinco pelas reformas, e corrigir os equívocos. Não é segredo, por exemplo, que há colaboradores de Temer que, mais do que ajudar, trazem sérios problemas ao Palácio do Planalto. Urge trocá-los.

É justamente essa atuação segura de Temer de que tanto o País necessita e que, ao mesmo tempo, faz a oposição ficar tão alarmada. O PT e seus aliados torciam por uma administração débil e, a cada dia que passa, vão percebendo que o impeachment não trouxe um golpe. Trouxe um governo.

Parece, mas não é - FERNÃO LARA MESQUITA

ESTADÃO - 06/03

Toda lei de alcance nacional é intrinsecamente antidemocrática



Mais um dos nós cegos que amarram a vida brasileira está prestes a ser atado pela trajetória dessa “lei de iniciativa popular” do Ministério Público que surfou a onda da luta contra a corrupção.

Nem entro no mérito das “10 Medidas”. Tudo está errado nessa história, a começar pela figura deformada de lei de iniciativa popular enfiada de última hora na Constituição de 88. Ferramentas de “democracia semidireta” como essa são uma inovação suíça dos meados do século 19 que foi incorporada à democracia americana na virada para o 20. Pouco menos de cem anos depois da inauguração do “governo do povo, pelo povo e para o povo”, em 1787, a excessiva “blindagem” dos representantes eleitos arquitetada pelos “Fundadores” tinha se revelado um trágico equívoco. Com mandatos garantidos até à eleição seguinte, como continuam sendo no Brasil, políticos corruptos estavam à vontade para se mancomunar com empresários corruptos e se locupletar impunemente, o que reduziu o sistema a uma ditadura de uma minoria articulada para explorar o povo.

Nada disso! A obra da sociedade é que precisava de garantias de estabilidade! E para obtê-la era preciso quebrar a dos representantes eleitos, que a comprometia, sem, no entanto, enfraquecer o “governo de representação”. As leis de iniciativa popular foram o primeiro instrumento da reforma permanente que começou ali e prossegue ininterrupta até hoje. Foi com elas que se instituíram, em etapas sucessivas, os complementos do “referendo” das leis dos Legislativos e do “recall” dos mandatos dos representantes, que inclui os de todos os funcionários que prestam serviços diretos ao público e, para isso mesmo, são eleitos por ele, e não nomeados por políticos.

O pressuposto dessas três ferramentas é, no entanto, o estrito respeito ao princípio federalista. Uma organização democrática – a prerrogativa de decidir, entre iguais, quem vai fazer o quê por ordem de quem – era um imperativo de sobrevivência para comunidades isoladas em territórios hostis longe das autoridades dos países de origem. Foi a mesma que funcionou por 300 anos no Brasil Colônia das Câmaras Municipais. O federalismo apenas institucionaliza a lógica da necessidade e consagra a sequência histórica desse segundo renascimento da democracia no “Novo Mundo”. Se o povo é a única fonte de legitimação das instituições republicanas, tudo o que envolver um só município – educação, segurança, normas de convivência, etc. – deve ser decidido (e bancado) por ele mesmo e só o que envolver mais de um município deve ser decidido (e bancado) pelo poder estadual. Nos EUA independentes essas unidades políticas e geográficas originais só concordaram em aderir a um ente nacional abstrato se os poderes dele ficassem restritos à defesa do território e da moeda nacionais e ao estabelecimento de relações internacionais, pois tudo contra o que se lutava, lá e nas “Vilas Ricas” do Brasil, era um poder centralizado colhendo, à distância, impostos abusivos e mandando despoticamente em gente diferente com necessidades diferentes apenas para sustentar seus privilégios.

Toda lei “nacional” fora desse escopo restrito é, portanto, intrinsecamente antidemocrática. Quanto à regra de maioria, ela é a menos ruim porque todas as alternativas são piores. Mas também as maiorias são tanto mais democráticas quanto menores forem os pedaços em que a massa dos eleitores for pulverizada. As ferramentas de “democracia semidireta” só se aplicam aos âmbitos municipal e estadual e num contexto de eleição distrital pura, não só por essa razão, mas também porque só esse sistema define quem exatamente é representante de quem e permite processos de cobrança e substituição perfeitamente legítimos. Qualquer cidadão pode iniciar uma petição de “recall”, propor uma nova lei ou convocar o “referendo” de uma lei baixada pelo Legislativo. Mas é preciso colher entre 5% e 7% (dependendo do município) das assinaturas dos eleitores do funcionário ou representante visado ou do eleitorado afetado pela lei proposta ou desafiada. Conferidas as assinaturas pelo secretário de Estado municipal ou estadual, função que existe especificamente para supervisionar a legitimação desses processos, fica a petição qualificada para ser submetida a um “sim” ou “não” de todos os eleitores daquele funcionário ou representante numa votação especial, no caso de “recall”, ou mediante a impressão da lei proposta ou desafiada na cédula da próxima eleição majoritária para aprovação ou rejeição de todos os eleitores do Estado ou município afetados por ela. Na de novembro passado, a média nacional de propostas do gênero nas cédulas nos EUA foi de 62.

Os Legislativos são, portanto, meros “pacientes” desses processos. Não podem alterar o que é decidido de forma tão transparente e inclusiva. O Judiciário pode, em alguns casos, interferir. Mas para desencorajar desvios há eleições de confirmação (ou não) também dos juízes de cada comarca a cada quatro anos. No âmbito federal há só processos indiretos de “impeachment”, que rarissimamente chegam a ser aplicados, pois o sistema vai sendo permanentemente higienizado ao longo do caminho.

Tendo recomendado reiteradamente a “democracia semidireta” adotada com variações em todo o mundo que funciona, chamo a atenção, agora, para as falsificações presentes em todas as ditaduras disfarçadas. Nossa lei torta, aberta apenas à iniciativa de corporações e fechada aos cidadãos comuns, pode, com muito boa vontade, ser considerada como uma brecha num sistema hermético que pode eventualmente ser usada para o bem. Mas dar a um indivíduo no STF o poder de fixar o precedente de que bastam umas tantas assinaturas para substituir 140 milhões de eleitores e impor leis intocáveis a todo o País terá o mesmo efeito do que tentou fazer o PT quando quis substituir o conjunto do eleitorado pelos seus “movimentos sociais” amestrados: será o tiro de misericórdia na esperança de uma democracia no Brasil.

Decepção com influenciadores é questão de tempo - RONALDO LEMOS

FOLHA DE SP - 06/03

Converse com qualquer marqueteiro e há grandes chances de você ouvir a palavra "influenciador" em algum momento. Em geral ela se refere a algum tipo de celebridade da internet capaz de modificar a opinião alheia, levando a pessoa a comprar algo, mudar um comportamento ou até sua visão sobre algum assunto. Até o governo federal foi recentemente flagrado contratando o serviço de "influenciadores" no YouTube para elogiarem mudanças promovidas no ensino médio.

Só que a vida de influenciador não é fácil. Celebridades "tradicionais" usualmente são associadas a habilidades específicas, tais como cantar, dançar ou representar. Já influenciadores são reconhecidos por ações mais cotidianas, como ensinar a usar maquiagem ou jogar videogames. Grande parte conquista fãs não por dominar alguma habilidade mas por projetar seu ego na internet.

Isso gera um paradoxo. A ascensão de um influenciador funda-se na sua disponibilidade: o desejo dos fãs de interagir com ele, de serem notados, reconhecidos. É uma via de mão dupla: os fãs não querem apenas assistir, mas interagir.

Isso torna a fama contemporânea na internet altamente instável. Muitos influenciadores são na verdade apaziguadores da solidão alheia. Atuam como elos na multibilionária indústria da carência criada pela internet. Indústria essa que decorre do grande número de pessoas querendo falar e do diminuto grupo de pessoas disposto a ouvir. O influenciador ocupa esse lugar utópico entre a fala e a escuta. É celebridade justamente por aparentar ser "gente como a gente", capaz de ouvir e compreender o outro.

Só que essa é uma situação utópica. Não há condições verdadeiras para a troca, já que a desproporcionalidade é grande demais. A relação entre fãs e influenciadores rapidamente torna-se insatisfatória: frustração e decepção são questão de tempo. O que era empatia converte-se rapidamente em ódio. Não é por acaso que todo influenciador que desponta precisa inventar formas de gerenciar não só os fãs (carentes) como os detratores ("haters"), muitos deles originados na descoberta de que estavam envolvidos em uma relação de troca impossível.

Para reduzir essa disparidade, seria necessário concretizar o desejo do poeta W.H. Auden, quando diz em seu belo poema "The more loving one" que: se "não se pode ter paixões iguais, então que seja eu quem ame mais". Só que esse tipo de grandeza só existe no terreno da poesia. Na internet, o fã frustrado vira rapidamente "the more hating one". É muito mais fácil odiar do que amar sozinho.

Isso denota um ponto cego no fascínio do marketing com o poder dos influenciadores. Esse fascínio desconsidera a permanente instabilidade das celebridades da internet. Ignora também a ausência de bases científicas para a existência do influenciador individual. Do ponto de vista científico, o "influenciador" individual é como um amigo imaginário: conveniente, mas não existe.

Uma das causas da caretice 3.0 é a criação da noção de jovem crítico - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 06/03

Tem coisa mais brega do que colocar números depois de palavras ou conceitos, como marketing 3.0? Vamos embarcar nessa breguice geral e propor a caretice 3.0. Aquela presente na geração chamada milênio ou Y (e, ao que tudo indica, na Z, mais careta ainda).

Primeiro, vamos esclarecer para quem não sabe: milênio ou Y são jovens nascidos entre 1983 e 2000 (mais ou menos) e "bem de vida". A partir daí viriam os chamados Z. Outra coisa: trabalho com jovens entre 18 e 20 há quase 20 anos e posso dizer com razoável certeza que eles chegam à universidade cada vez mais caretas.

O que confunde é que certos marcadores como liberdade sexual, fumar maconha, ausência de preconceitos, roupas descoladas e posturas políticas progressistas, classicamente considerados índices de comportamento não careta, aparecem nos jovens de hoje de forma bastante evidente. E isso parece indicar que não seriam caretas. Ledo engano. A caretice 3.0 é justamente esta: ela aparece ali onde se imaginava que jamais estaria por causa desses marcadores históricos. O que nos ensina isso?

Antes de tudo, que a caretice não é um traço que se refere ao conteúdo de uma opinião ou atitude, mas à forma com que essa opinião ou atitude se manifesta. E é justamente na forma que aparece a caretice 3.0 nos mais jovens.

Caretice se refere, antes de tudo, à rigidez associada à autoafirmação moral. Os jovens são cada vez mais rígidos e certos de sua pureza moral. E rigidez, como se sabe, é fruto de sofrimento psicológico. Nunca as famílias foram mais disfuncionais e solúveis em água. Pais tontos e melosos querendo ser mães, mães solitárias e estressadas pelas jornadas triplas. As redes sociais e seu debate histérico são muito mais tóxicas do que a televisão jamais foi.

Essa rigidez se revela no fato de que os jovens nunca se levaram tão a sério como os de hoje. Eles têm opiniões claras sobre tudo.

Aborto, sexo, política, Oriente Médio, cinema iraniano, teoria crítica adorniana, sistemas complexos de economia, relação cosmologia-cosmética trans, uso de medicação tarja preta, amor com outras espécies animais, química da lactose, como alimentar sete bilhões de pessoas com hortas caseiras, a eliminação absoluta do sofrimento na vida dos frangos, como alocar um milhão de sírios na Alemanha, sistemas políticos democráticos para o Iêmen, calotas glaciais, formas de vida sob opressão em Marte, como educar filhos que não existem, métodos democráticos de avaliação escolar, fóruns com crianças de cinco anos para votar as leis de mercado, enfim, toda um gama de temas abertos a opiniões rígidas, porque evidentemente simples e facilmente resolvidos numa aula de filosofia contemporânea a partir de Deleuze e Foucault.

Os jovens estão reduzidos a um manual produzido por professores pregadores e mídias sociais furiosas.

No que concerne à relação com os pais, ou esses aderem à caretice 3.0 (quando não são eles mesmos uma das causas dessa caretice 3.0 devido às suas próprias opiniões corretinhas), submetendo-se à pregação no café da manhã, ou abrem uma frente contínua de polêmicas que sempre chegam ao mesmo lugar: a definitiva desqualificação de qualquer forma de consistência argumentativa em favor da preguiça intelectual e afetiva.
Além da calça jeans, o mercado da caretice 3.0 é um dos efeitos evidentes da contracultura dos anos 1960.

Uma das causas mais interessantes desse fenômeno é a criação da noção de jovem crítico. Ser crítico é, talvez, uma das coisas mais fáceis na vida (facilidade essa pouco pensada por todos os pensadores que criaram esse fetiche da crítica): basta você falar mal de tudo o que não gosta de forma arrogante e estar seguro de que você representa o avanço social e político.

A ideia de que fazer a crítica de algo implica um largo repertório intelectual e afetivo de experiências revelou-se falsa. O caminho mais curto para a não-educação é tornar pessoas de 15 anos críticas. Nunca mais arrumarão o quarto delas justificando essa atitude, agora, na estupidez do Trump.