domingo, julho 30, 2017

Caçador de marajás 2.0 - GUILHERME FIUZA

O GLOBO - 30/07

Uma mosquinha azulada zumbiu no ouvido do procurador: Deltan, tu és mais! Tu és Dartagnan! Pensa grande, rapaz!

Depois de condenar Lula, Sergio Moro declarou que não é candidato a nada. Onde esse rapaz está com a cabeça? É no mínimo estranho um brasileiro chegar a esse nível de notoriedade e não começar a ciscar na política. Desconfiem desse juiz. Já o procurador Deltan Dallagnol, herói da Lava-Jato, é coisa nossa. Jovem ainda, já demonstrou estar sintonizado com a democracia de arquibancada.

Fale a verdade: após anos de estudo e trabalho duro, você participa da captura da maior quadrilha da história, fica famoso, é idolatrado e faz o quê? Continua trabalhando duro? Claro que não. Isso é neurose de Sergio Moro. Qual um Lula da Silva, você chegou lá. Lá, onde? Num lugar paradisíaco, onde você poderá ter trânsito livre entre notáveis, ser lambido por artistas deslumbrados e ver cada espirro seu virar manchete. Para isso, basta largar de ser chato e trocar sua indumentária tosca de servidor pelo fardão de guerreiro do povo. Aí é correr pro abraço.

Uma mosquinha azulada zumbiu no ouvido do procurador: Deltan, tu és mais! Tu és Dartagnan! Pensa grande, rapaz! És o cavaleiro que algema políticos — numa terra de moral frouxa onde odiar políticos é salvo-conduto! Sai de baixo dessa luz fria, meu jovem! A luz do Sol te espera!

Dartagnol entendeu o recado e logo viu: no front enevoado das pesquisas de opinião, o tiro ao mordomo é o nome do jogo. Pediu licença ao rigor da Lava-Jato e foi ser feliz como franco-atirador contra o governo — quase um Ciro Gomes subtropical, ou um Molon repaginado, dado o nível da liberdade poética. E lá vai o procurador virtuoso, montado em seu cavalo branco contra os políticos — para virar político. Um brasileiro.

Certamente, não o primeiro. Um dos mais famosos cavaleiros contra a imundície da política foi Fernando Collor de Mello, o Caçador de Marajás. O Brasil explodiu de esperança na cruzada do seu Partido da Reconstrução Nacional contra Sarney, o Temer da época. Menos de 30 anos antes, o cavalo branco da depuração política havia sido montado pelos militares — também num basta àquele mundo nojento dos corruptos. Collor e os militares ensinaram muito ao Brasil sobre o nojo.

Fora os Protógenes e demais justiceiros de gibi, outro grande mosqueteiro contra a sujeira da política foi Getúlio Vargas. Ali o cavalo nem era metáfora. A revolução purificadora veio a galope do Sul — e após a faxina, como é comum acontecer, tomou gosto e foi ficando. A carne já era fraca.

À exceção de lunáticos como Sergio Moro, portanto, o normal do homem público é privatizar o seu sucesso. Um Joaquim Barbosa, por exemplo: faz história condenando poderosos e vai continuar levando vida de juiz, afundado em processos empoeirados? Nada disso. Vida de celebridade é outra coisa: é preciso pairar, qual um ser imaginário, que se materializa em momentos cruciais — como para tentar salvar do impeachment a despachante da quadrilha que você condenou.

A fama é sua, você faz o que quiser com ela — inclusive dar pinta em convescote da MPB. Todo brasileiro que sai do anonimato tem o sagrado direito de ser um ex-BBB de si mesmo.

Deltan brilhou na maior investigação da República e teria, pode-se dizer, duas referências de homem público a seguir: Sergio Moro e Rodrigo Janot. O primeiro é esse ser estranho já descrito acima. O segundo é um ser esperto. Passou anos amortecendo Lula e Dilma, os regentes do petrolão, em triangulações com o STF e o companheiro Cardozo para fazer a enxurrada de denúncias morrer nas praias certas. Depois emergiu como príncipe da Lava-Jato, bajulado pela imprensa e por artistas despistados, para fazer o quê? Adivinhou, danadinho: montar no cavalo branco da faxina contra os políticos imundos.

Fazendo sua caminha política com ataques à própria (especialidade da casa), Janot não é propriamente um ex-BBB de si mesmo, pois o que privatizou foi o sucesso alheio — no caso, de gente como Moro e Deltan. Já Deltan não achou graça na contrição de Moro e resolveu ser Janot na vida.

É um modelo e tanto — sobretudo de coragem. Não pense que é fácil celebrar um acordo fajuto com um caubói biônico para tentar derrubar um presidente no susto. Uma manobra dessas requer, no mínimo, um altíssimo grau de desinibição — além de um juiz próprio, para homologar o que você mandar. Ainda mais se o tal caubói tiver sido enriquecido pelo ex-presidente quadrilheiro que você protegeu. Mas o plano era bom, porque o presidente que você escolheu derrubar é detestado pela opinião pública. Em qualquer hipótese, portanto, você poderá correr para o abraço da galera (a não ser que alguém te ponha em cana no caminho).

Deltan sentiu o perfume da carne assada e aderiu à molezinha do tiro ao mordomo. Saiu disparando até sobre o ajuste fiscal — matéria na qual o governo atual está (segundo os números, não os panfletos) corrigindo o rombo histórico do PT, que não comove o jovem caçador de políticos corruptos. Ou seja: o rapaz está pronto. Vai, Dartagnol, ser ex-BBB de si mesmo.

Guilerme Fiuza é jornalista

O mito do BNDES grátis - RODRIGO CONSTANTINO

REVISTA ISTO É

” O governo grátis pode acontecer em qualquer lugar. Basta que as condições políticas e econômicas se tornem propícias ao surgimento de atores que irão organizar seus interesses em torno do domínio das instituições do Estado”.

“O governo grátis é o grande adversário da prosperidade e o inimigo número um da ascensão social e patrimonial dos brasileiros”.

“A indústria nacional obteve créditos subvencionados, a taxas fixas no então BNDE, muito abaixo do curso da inflação crescente. […] Os pesados custos do financiamento inflacionário do País foram sendo contornados, pagos e ‘apagados’ por emissões de moeda escritural nas contas especiais dos bancos oficiais. Poucos se deram conta de que tudo aquilo era obra de uma variante de governo grátis em plena gestação”.

“Na década passada, praticamente não houve redução no custo financeiro médio enfrentado pela maioria das empresas. Evidentemente, as mais poderosas têm acesso diferenciado a fontes externas ou a créditos de fontes públicas, especialmente do BNDES, especializado em selecionar as ‘maiores e melhores’. Não é o caso da imensa maioria de empresas brasileiras, em geral as de porte médio ou pequeno. Essas têm enfrentado o mesmo patamar de custo financeiro desde o período de crise, no início dos anos 2000”.

“[…] o produtor nacional é maltratado dentro do País, com impostos cavalares e burocracia ineficiente; na tentativa de compensar o empresário pelo mau tratamento, o governo grátis vende a ideia de alinhamento com o empresário por meio de medidas de proteção”.

“O povo brasileiro quer treinamento e trabalho. Quer aposentadorias e pensões compatíveis com o que cada trabalhador, ao longo da vida, construiu de pecúlio e merece gastar como quiser. O povo quer, daqui para a frente, ser dono de parte do capital do Brasil. O Estado não o representa nisso”.

Esses são trechos do excelente livro O mito do governo grátis, escrito pelo economista Paulo Rabello de Castro em 2014. Poucos anos depois, quem diria!, o autor se tornou presidente do BNDES. E mais: em apenas 45 dias no comando, veio a público defender a política do banco nas últimas décadas, inclusive na era petista, até mesmo nas operações com a JBS. Centenas de bilhões em subsídios, sem transparência, direcionados a poucos e grandes grupos: o oposto do liberalismo.

Isso mostra como o poder de minorias organizadas, de oligarquias, realmente corrompe. E comprova a importância de liberais focarem em seus princípios, não em pessoas — essas podem decepcionar muito, enterrar tudo aquilo que defenderam ao longo de uma vida em poucos dias dentro do esquema de poder.

É, também, o argumento definitivo de que não basta trocar o comando; é preciso acabar com o instrumento, fechar o banco!

O marcusiano “childfree” - SÉRGIO PARDELLAS

REVISTA ISTO É

O sociólogo e filósofo alemão Herbert Marcuse pertence ao rol dos maiores sofistas do século XX. O morubixaba da contra-cultura dos anos 60, forjado na Escola de Frankfurt, conseguiu como poucos elevar o sofisma ao estado da arte. Pior, o seu pensamento enviesado, niilista na essência e baseado na destruição dos valores da civilização ocidental, influenciou gerações e, por meio da academia, contribuiu decisivamente para moldar o que se convencionou chamar de senso comum coletivo dos nossos tempos. Criador do slogan “Make love, not war”, Marcuse nunca, jamais e em tempo algum teve a intenção de pregar a paz, ao cunhar o bordão cantado e decantado pelo movimento hippie. Pelo contrário. Seu legado embalou a disseminação do ódio quase visceral, reinante atualmente nas relações pessoais e escancarado pelas redes sociais. Marcuse era mestre em conferir conotações positivas a práticas negativas. A noção da tolerância, por exemplo, passou a significar exatamente o inverso do seu sentido original. A tolerância não constitui mais o ato de tolerar os pontos de vista e os valores de outra pessoa, apesar de não concordar com eles, como defendiam os liberais do Iluminismo. No “novo significado”, não é possível mais haver discórdia. Mais totalitário impossível. É elementar: a imposição de não poder discordar é quem mais alimenta a discórdia. Assim, Marcuse conseguiu converter a tolerância em seu antônimo, a intolerância. Os exemplos pululam por aí.

Marcuse deixou tantos descendentes que seria impossível nominá-los em tão pouco espaço. Um dos filhotes de Marcuse é o Childfree, um movimento que promove, direta ou indiretamente, um discurso de ódio às crianças, sob a capa de libertário. Em recente artigo, a educadora e antropóloga Cristiane Lasmar o descreveu com maestria. “A motivação do Childfree transborda a questão da escolha e da afirmação de um estilo de vida”. De acordo com Cristiane, o deslizamento semântico na mudança de “childless” para “childfree” não tem nada de inocente. “Traz embutido um juízo de valor. Para dotar a decisão de não ter filhos de uma conotação positiva, a negatividade — olha Marcuse aí — é deslocada para o lado da criança. Ela é objetificada e tratada como um estorvo”. Ou seja, os childfree não querem apenas ter o direito de não ter filhos, e viver seu próprio estilo de vida, o que é perfeitamente compreensível. Eles comparam as crianças a seres nocivos.

Já se ouve falar, alertou Cristiane, da existência de um lobby, em alguns países, contrário a certos privilégios às mulheres grávidas ou com filhos pequenos.

A alegação é que os childfree se sentem discriminados. “As crianças são equiparadas à fumaça do cigarro, à gordura insalubre, ao imposto que pesa no bolso do consumidor”, diz ela. Uma sociedade incapaz de cuidar e de salvaguardar suas crianças é uma sociedade enferma, a manquitolar de podre. E não era tudo o que Marcuse queria?

O medo de Luiz Inácio, um candidato de mentira MARIO VITOR RODRIGUES

REVISTA ISTO É

Matérias sobre encontros inapropriados entre Jared Kushner e agentes do governo russo não passam de fake news; México e Colômbia conspiram com a CIA para intervir na Venezuela; o termo “propina” foi criado por empresários e o Ministério Público com o único intuito de prejudicar a classe política. Donald Trump, Nicolás Maduro e Lula certamente não combinaram o tom de suas declarações ao longo da última semana, mas nem precisariam. Populistas são todos iguais; mentir e manipular os fatos está na gênese das suas estratégias, tanto de ataque quanto de defesa.

Ainda assim, resguardada essa premissa, há uma importante diferença entre o mandatário ianque, o ditador venezuelano e o caudilho tupiniquim: apenas um deles é condenado e corre o risco de ir parar na cadeia.

Medo e instinto de sobrevivência. São essas as razões da retórica surrealista adotada por Luiz Inácio em seus recentes pronunciamentos. Não que se fazer de vítima para ludibriar a massa seja um hábito novo, entretanto o abuso das inverossimilhanças, sugestões capazes de ofender a inteligência do brasileiro mais crédulo, apenas escancaram o desespero de quem nunca se imaginou tão vulnerável.

Hoje, dentre outros ladeado pelos senadores Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias, enquanto é defendido por figuras emblemáticas como Renan Calheiros e Paulo Maluf, Lula se vê como o marujo que dá os últimos passos na prancha do pirata. E só vislumbra uma salvação: a fantasia de candidato.

Os tempos mudaram. E ele sabe.

Já não existe um antagonista boa praça como Fernando Henrique para ser demonizado. Também bateu asas o discurso que vendia uma esquerda moralmente imaculada. A narrativa da herança maldita está viva, mas dessa vez é verdadeira e será utilizada por seus adversários contra a sua imagem e a do PT.

Acima de tudo, porém, tornou-se impossível ressuscitar o personagem do metalúrgico que arrebatava multidões, de imagem maltrapilha e grande capacidade para se comunicar com o povo. Restou, somente, um senhor de cabeça branca, tão corrupto quanto milionário, apavorado com a ideia de passar bons anos na cadeia pelo assalto financeiro e moral que infligiu a um País inteiro.

Luiz Inácio não é candidato a nada. A não ser que fugir da prisão conte como projeto eleitoral.

Há um jeito de melhorar - DORA KRAMER

REVISTA VEJA
A reforma política só sai se proposta por presidente forte

O Brasil já deve estar farto de ouvir falar em reforma política. E, como há anos só vê a coisa patinar no terreno das piores intenções, tem todo o direito de crer na máxima pessimista segundo a qual não há risco de, por essa via, a política melhorar.

Antes de concluir que assim é e sempre será no mundo inteiro porque a democracia representativa vive uma crise universal, olhemos a França. Às voltas com uma crise política, os franceses rejeitaram fantasias à direita e à esquerda, foram ao centro da questão, apostaram na normalidade e elegeram Emmanuel Macron.

O.k., não se podem usar critérios iguais para realidades diferentes. França é Paris, Brasil, Bra­sília. Há, no entanto, ensinamentos contidos no exemplo. Na posse de força política decorrente da eleição recente e de robusto (59%) apoio popular, Macron deu a largada no mandato propondo ao parlamento uma reforma política: redução de um terço no número de parlamentares (são para mais de 900 por lá), limite à possibilidade de reeleição e substituição do sistema de voto distrital puro por distrital misto.

Mudanças substantivas, difíceis de ser aceitas pelos parlamentares, mas ainda assim postas à mesa. Se elas forem do agrado da população, o Congresso que se vire com a opinião do público. Aqui ocorre o oposto: os presidentes quando eleitos só querem saber da opinião do Congresso sobre a sustentação do governo, o que passa a léguas de distância de uma reforma política digna do nome.

Estamos, pela enésima vez, diante da questão: uma proposta de reforma política indigna do nome, cuja ideia básica é criar uma despesa de 3,5 a 6 bilhões de reais, conforme o cálculo da receita líquida da União, para financiar as campanhas eleitorais dos partidos falidos desde que proibidos de receber aportes de empresas ora investigadas por corrupção.

O nome é ironicamente pomposo: fundo especial de financiamento da democracia, criado para capturar 0,5% do Tesouro. Isso além dos 820 milhões de reais reservados ao chamado fundo partidário. Sem contar a renúncia fiscal das emissoras de rádio e televisão decorrente do horário eleitoral. Uma baba, coisa de no mínimo 4 bilhões de reais. Para financiar a democracia? Ora, pois, ela se sustenta em outros pilares, entre os quais o exercício da soberania pelo povo, cujo bolso não está em jogo.

Voltemos um instante à França, para examinar a questão do financiamento de campanha. Há participação de dinheiro público no processo? Há. Da seguinte forma: os candidatos podem requerer reembolso de 47,5% das despesas, desde que obedecido um teto de gastos. Pouco mais de 150 000 reais para deputados e uma faixa entre 59 milhões e 80 milhões de reais para os candidatos à Presidência, considerados os dois turnos da eleição.

De onde a discussão da reforma política na França não é sobre “quanto” se gasta, mas sobre “como” e “por que” se elege um candidato. Um exemplo, se não a ser seguido, ao menos a servir como caso a pensar.

Complexo de Peter Pan - PAULO FELDMANN

REVISTA VEJA

No Brasil, 99% das empresas são micro ou pequenas. A maior parte delas tem pouca capacidade para crescer, por causa dos incentivos perversos da regulação


FÓRMULA - Fábrica na China: ao contrário dos brasileiros, os chineses investem pesado em tecnologia e produtividade (//Divulgação)

Uma costureira trabalhando em uma fábrica na Coreia do Sul consegue produzir dentro de um mês quatro vezes mais roupas que sua colega brasileira que trabalha na Grande São Paulo. Um pedreiro brasileiro ergue menos de um quinto de muros e paredes do que seu colega americano, no mesmo período de tempo, trabalhando nos Estados Unidos. O que está por trás disso são as diferenças de produtividade dos países. No caso brasileiro, a baixa produtividade vem de longe.

Apesar das dificuldades desses últimos três anos de recessão, o Brasil registrou grandes avanços econômicos no período pós-ditadura militar: a inflação foi contida, a economia cresceu por muitos anos e milhões de pessoas saíram da miséria absoluta e da fome, engrossando a classe média. No entanto, há um indicador que permaneceu inalterado mesmo nos anos áureos. Trata-se da produtividade, que, medida em relação aos Estados Unidos, é a mesma de trinta anos atrás. Nestas três décadas, a produtividade do trabalhador brasileiro ficou praticamente estagnada, representando algo entre 16% e 18% do índice registrado pelo trabalhador americano.

É comum cotejar a produtividade do Brasil com a da Coreia do Sul. Em 1985, os dois países tinham praticamente o mesmo nível de produtividade, mas, em 2011, a Coreia já era três vezes mais produtiva que o Brasil. O problema com a produtividade vem sendo resolvido satisfatoriamente por inúmeros países, menos por nós. Por exemplo, entre 1995 e 2005, a produtividade média no mundo avançou 1% ao ano, sendo que na China o indicador aumentou 1,5% anualmente. No Brasil, ao contrário, houve queda média de 0,3% ao ano. Entre 2005 e 2008, antes da crise financeira internacional, a produtividade média na China cresceu 4,1%, e na Índia, 2,3%. No Brasil, ela declinou 0,8%.

O Brasil viveu anos de prosperidade nas últimas décadas, mas, na visão de muitos economistas, a explicação é que a economia cresceu na mesma medida em que assimilou trabalhadores, utilizando uma massa de capital humano que permanecia como uma reserva de inativos dentro da prolongada crise dos anos 1980. Tudo indica que esse modelo está esgotado, pois o governo praticamente já exauriu seus recursos para manter o crescimento do PIB, enquanto se ampliam as despesas de custeio da máquina pública e diminuem os investimentos oficiais. A necessidade de elevar a produtividade do Brasil é premente, portanto. Essa é a forma de conseguir o crescimento econômico de modo consistente ao longo dos anos. Quando a produtividade aumenta, o país produz mais com o mesmo nível de capital e trabalho, e assim sua renda per capita cresce mais rapidamente.


No Brasil, as empresas que querem crescer perdem o incentivo fiscal. Ou seja, ninguém quer crescer!



Não nos damos conta, mas o preço que pagamos por essa baixa produtividade é muito alto. Se os recursos econômicos do Brasil (trabalho, máquinas, prédios, capital) gerassem a mesma quantidade de produtos e serviços feitos em países de maior produtividade, a renda per capita do brasileiro teria mais do que dobrado, sem a necessidade de que houvesse sido realizado um investimento adicional. Isso significa que, mais do que investimentos, o Brasil precisa aumentar a eficiência com que utiliza recursos econômicos. Ou seja, é simplesmente uma questão de saber alocar melhor os recursos.

A informalidade é um bom exemplo da nossa ineficiência. Estima-se que de 18% a 20% do PIB brasileiro é produzido de forma clandestina, com a sonegação dos respectivos impostos que seriam devidos. Para acabar com isso, é preciso um sistema tributário muito mais simples do que o que temos e, principalmente, um combate efetivo à sonegação fiscal. A informalidade não é ruim apenas por causa da sonegação. Ela é perversa, porque os informais competem de modo desleal com as empresas que querem estar do lado formal.

Outra explicação importante para nossa baixa produtividade crônica está no fato de que 99% dos 8,5 milhões de empresas brasileiras são pequenas ou micro e não conseguem crescer. As empresas maiores quase sempre são mais produtivas, em decorrência dos ganhos de escala. No Brasil, a legislação age como um desestímulo ao crescimento. O principal mecanismo fiscal é o Simples, oferecido a empresas que faturem até 4,8 milhões de reais por ano. Quem cresce além disso perde o incentivo fiscal. Ou seja, ninguém quer crescer! É o chamado “complexo de Peter Pan”, que hoje assola a pequena empresa brasileira.

Muitas empresas sabem quais são as causas da sua baixa produtividade e onde deveriam investir para aperfeiçoar seus métodos e processos e, dessa forma, se tornar mais competitivas. Sabem também que quase sempre a solução está no emprego de máquinas modernas ou de novos equipamentos automatizados. No entanto, elas não dispõem do capital necessário para adquiri-los. Seria fácil de resolver se elas obtivessem crédito, mas, no momento, o nível de crédito ao setor privado no Brasil é um dos mais baixos do mundo. Apenas para comparar com o Sudeste Asiático, podemos dizer que lá é duas vezes mais fácil para uma pequena ou média empresa obter empréstimos em seu banco.

Reparem que até aqui não enumeramos medidas que demandem altos níveis de investimento ou grandes reformas legais ou institucionais. Em algumas situações, essas medidas serão necessárias. A infraestrutura brasileira, em sua maior parte, é obsoleta e precisa ser melhorada. Não é por outra razão que o transporte de carga em nosso país inviabiliza os custos da maioria das empresas. É fundamental dinamizar o transporte ferroviário. Ainda na infraestrutura, não podemos conviver com a energia elétrica, cuja tarifa é uma das mais altas do mundo e cujo índice de falhas é comparável apenas ao de algumas regiões da África.

A Lava-Jato ajudou a desvendar por que as obras de infraestrutura são tão caras. Sem o pagamento de propinas, poderíamos construir estradas e ferrovias que funcionassem e que contribuíssem para reduzir os custos de transporte. Os novos investimentos deveriam contar com a participação de empreiteiras estrangeiras, para que houvesse competição e, assim, caíssem os preços das obras. Vale lembrar que esses projetos colaboram para a geração de empregos de baixa qualificação, algo altamente desejável neste momento.

Muito se fala na necessidade de mudanças e reformas econômicas, e elas têm sido muito discutidas, mas talvez seus resultados sejam insatisfatórios se elas não forem precedidas ou acompanhadas de medidas simples, como as que estão aqui mencionadas, porque essas permitirão que sejamos efetivamente mais produtivos e competitivos em relação a outras nações.

Estudos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) comprovam que, se tivéssemos atacado os pontos aqui citados, nossa renda per capita estaria pelo menos 50% acima da que temos hoje. Não é justo condenar toda a sociedade brasileira pelo fato de que, por falta de vontade, algumas decisões deixaram de ser tomadas nos últimos trinta anos. Pior que isso, no entanto, é continuar cometendo os mesmos erros.

* Paulo Feldmann é professor livre-docente da FEA-USP e professor visitante na Universidade de Pécs, na Hungria

Minha doce prisão - ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

REVISTA VEJA
No mesmo dia em que Geddel estaria de volta, depois de dez dias na Papuda, sua mulher foi flagrada a comprar uísque, vinhos e queijos num supermercado

Valeu o choro. Geddel Vieira Lima ganhou a troca da prisão-prisão pela prisão domiciliar e agora cumpre pena no condomínio Pedra do Valle, no Jardim Apipema, em Salvador. Não é o lar de seus sonhos, ele que, se os leitores se lembram, queria desfrutar a vista da Baía de Todos-os-Santos no La Vue, uma torre em construção na Ladeira da Barra, em desafio às posturas que regem o tombamento da área. O Pedra do Valle tem seu valor, no entanto. Quem o localizar no Google verificará que alcança cotação máxima numa tabela de avaliações. A primeira pessoa a opinar, um visitante que teve a fortuna de ali ser hospedado, afirma: “Lugar tranquilo… Sem barulho e sem baderna. Todos aqui são bem-educados e respeitadores uns dos outros, sem causar incômodo à vizinhança. E todos aqui estão de parabéns… Obrigado, Salvador, por me receber tão bem”.

Doce prisão domiciliar. No mesmo dia em que Geddel estaria de volta, depois de dez dias na infausta Papuda, sua mulher foi flagrada pelo jornal A Tarde a comprar uísque, vinhos e queijos num supermercado. Havia o que comemorar. Na prisão domiciliar, os lava-jatistas reencontram o conforto de antes. Na maioria usam tornozeleira eletrônica (não Geddel, porque está em falta o produto no mercado) e não podem sair de casa, mas que sacrifícios são esses para quem vive em mansão com piscina ou cobertura de frente para o mar? Um deles, o ex-senador sul-mato-­grossense Delcídio do Amaral, passa boa parte do tempo em sua fazenda no Pantanal. Que é não sair de casa para quem mora numa fazenda?

Outros também não podem se queixar. O ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró está trancafiado num condomínio amplo e verde de apenas nove casas no bairro de Itaipava, em Petrópolis. Outro diretor, o pioneiro delator premiado Paulo Roberto Costa, também vive numa mansão de Itaipava, de onde sai para ministrar aulas de reforço a alunos de uma escola das redondezas, o serviço comunitário a que está obrigado. Outro ainda, o operador Fernando Baiano, apesar do apelido popular, trancafiava-se até há pouco numa cobertura de 800 metros quadrados na Barra da Tijuca. De lá mudou-se para uma casa, no mesmo bairro, onde montou uma academia doméstica para cumprir pesada rotina de exercícios físicos.

Casos como esses, e ainda há muitos outros, abrangendo virtualmente a totalidade dos contemplados com o mimo da prisão domiciliar, levaram dona Biloca a se dobrar sobre o assunto, em busca de maior justiça. Dona Biloca é uma sábia amiga e conselheira do colunista. É dela a máxima: “O barato sai caro, mas o caro sai mais caro ainda”. Também lhe pertence a constatação de que os apartamentos das novelas de TV estão proibidos de ter interfone. Os estranhos chegam à moda antiga, tocando a campainha. Abre-se a porta e ─ surpresa! A comoção de o intruso chegar de repente, a ser desenvolvida no próximo capítulo, é tão indispensável às tramas quanto as secretas paternidades.

No caso em exame, dona Biloca recomenda que os premiados com a prisão domiciliar a cumpram num conjunto habitacional do programa Minha Casa Minha Vida. Falta finalizar o projeto que ela pretende enviar ao Ministério Público, mas alguns detalhes estão adiantados. A casa seria adquirida, em transação transparente, sem malas de dinheiro, por mais que isso lhe causasse constrangimento, pelo próprio futuro morador. Só lhe custaria um pouco mais do que a taxa de condomínio numa cobertura de frente para o mar. Mas precisaria ser um Minha Casa Minha Vida autêntico, não falso como o tríplex no Guarujá, que seu suposto proprietário equiparou a “um Minha Casa Minha Vida, um em cima do outro”.

O interessado o mobiliaria a seu gosto. O que não poderia é comprar as casas vizinhas, ou até o conjunto inteiro, na miragem de produzir uma nova Itaipava, com piscina e quadras esportivas. O lado bom é que, ao contrário do comum dos moradores do programa, apelidado pelos críticos de Minha Casa Meu Fim de Mundo, não estaria condenado a perder horas percorrendo longas distâncias ─ a obrigação de ficar em casa tem dessas vantagens. O colunista atalhou se a casa não poderia ser no Complexo do Alemão. Dona Biloca discordou, em respeito aos moradores de lá. Mas reconhece que ouvir tiroteios na madrugada poderia ajudar. “Acorda! Este é o Brasil que você ajudou a construir”, diriam os tiros.

O passado do futuro - JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA

REVISTA VEJA

Os que são sempre muito mais iguais que todos


– O FABIANO de Vidas Secas foi humilhado por soldados ciosos de sua autoridade — tanto mais ostensiva quanto menos efetiva. Amargando uma noite na cadeia, sonha com vinganças e retaliações.

– As Ordenações Filipinas, conjunto de leis compilado no reinado de Felipe II, foram promulgadas em 1603. No Brasil, tiveram vigência até 1830, e, em certos aspectos do Código Civil, introduzido em 1916, ainda tinham voz. Fernand Braudel certamente aí veria um modelo de longue durée.

– O juiz do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin negou habeas-corpus a uma mulher que roubara um desodorante e outras miudezas, cujo valor não atingia 50 reais. Sereno, o severo juiz justificou a sentença: a ré era reincidente. Ora, faça as contas: de grão em grão, uma cidadã ordinária se transforma na maior produtora de proteína animal do mundo.

– Consultemos as Ordenações Filipinas, Livro V, Título XV. Sua fórmula evoca uma novela de Boccaccio: “Do que entra em Mosteiro, ou tira Freira, ou dorme com ela, ou a recolhe em casa”.

Crime gravíssimo — diria José Dias, jurista acidental. Em casos assim, uma pena exemplar se impõe: “E o homem, a que for provado, que tirou alguma freira de algum Mosteiro (…), se for peão, morra por isso. E, se for de mor qualidade, pague cem cruzados, e mais será degradado para sempre para o Brasil”.

Imagine viver numa época em que uns poucos felizardos são sempre muito mais iguais que todos os outros! Não se confunda: em 2017, os donos do mundo, inimputáveis, são enviados para o Inferno de Wall Street — e, claro, nunca ouviram falar no Guesa Errante.

– A delação Mega-Sena da virada de Joesley e Wesley Batista estarreceu o país. Seu diálogo com o senador Aécio Neves é de tão baixo nível que desafia o Simão Bacamarte que existe em cada um de nós, diagnosticando a esquizofrenia que estrutura o sistema político brasileiro: dupla personalidade é fichinha ante o conluio mafioso a que fomos expostos. Seus sussurros com o presidente da República são politicamente pornográficos: privilégios indevidos em bancos públicos; corrupção ativa de juízes; generosas mesadas vitalícias, mais conhecidas como “vale-silêncio” — e outras pérolas de igual quilate. Afinal, em suas confissões, só se serve carne de primeira.

– Numa vereda, Fabiano cruzou com o soldado amarelo. Mais forte, poderia matá-lo com facilidade. No entanto, algo segurou o seu braço: “Governo é governo”.

– O criterioso juiz Edson Fachin homologou o acordo de delação conto de fadas de Joesley e Wesley Batista. Compreende-se: seria sem dúvida precipitado considerar os dois irmãos reincidentes apenas porque ao longo de quase duas décadas patrocinaram com incomum generosidade a carreira elogiável de aproximadamente 2 000 políticos.

– O que será que será quando os milhões de Fabianos deixarem de respeitar a autoridade de um governo-pura-desfaça­tez?

Multa por excesso de velocidade - CLAUDIO DE MOURA CASTRO

REVISTA VEJA

Essa corrida vertiginosa é um dos problemas do péssimo ensino


Deu na Tribune de Genève: pilotan­do a sua Ferrari, um certo senhor cruzou um vilarejo a mais de 200 quilômetros por hora. Foi multado em 3 000 francos suíços e preso sem direito a fiança.

Como meu espírito hoje é incendiário, proponho penas terríveis para autores de currículos e ementas de curso que são longos demais, obrigando os alunos a percorrer os programas em excesso de velocidade. Multa e prisão para eles.

Segundo o meu guru A.N. Whi­te­head, não importa tanto o que ensinar, mas que seja sem­pre em profundidade. Concluo então que para aprender muito é preciso ensinar pouco. A velocidade é fatal.

A abundante pesquisa hoje disponível nos permite saber que se aprende pela repetição, seja o saque do tênis, a ortografia, os verbos irregulares ou a elegância no escrever. Se é assim, aprendizado é função do tempo dedicado a praticar. Sem a repetição, apenas pensamos que aprendemos, mas continuamos sem saber. É a diferença entre ouvir falar e realmente dominar algum conhecimento.

Esse princípio nos leva a uma aritmética inelutável: se há coisas demais para aprender, por importantes que sejam, o tempo será repartido e insuficiente para cada uma. Assim sendo, o grande inimigo da educação é o excesso de velocidade com que avança a Ferrari curricular.

Mas é pior do que isso, pois gostamos do que entendemos e nos sentimos frustrados com o que não entendemos. Portanto, como ideias novas não entram instantaneamente na nossa cabeça, a primeira reação é negativa. Se batalhamos com elas, começamos a entender e, eureca, começamos também a gostar. Para que isso aconteça, é preciso que haja tempo.

Se o ensino roda com excesso de velocidade, passamos ao tema seguinte sem haver entendido o anterior. Portanto, é abandonado antes de começarmos a gostar dele. Ao fim do ano, não gostamos de nada e não aprendemos nada.

Deveria ganhar uma medalha o professor que arroste o sistema e ensine cuidadosamente apenas um terço da ementa de sua disciplina. Seus alunos saberão mais do que os outros.

Por que a Fórmula 1 dos currículos e ementas? Parece que os seus fabricantes pensam que o aluno só tem o assunto dele para estudar. Ademais, faz parte da nossa cultura acadêmica propor cursos para gênios, não para os alunos comuns, como se faz no Japão ou nos Estados Unidos.

Como não tenho dúvida de que essa corrida vertiginosa é um dos problemas do nosso péssimo ensino, insisto na multa e na prisão por excesso de velocidade para quem cometer esse crime de lesa-pátria.

Tenho mais uma sugestão (politicamente incorreta): o ministro da Educação e o presidente do Inep deveriam sempre se submeter oficialmente ao Enem e ter as suas notas postadas na internet. Desta forma, experimentariam de primeira mão o turbilhão de matérias que se enfia goela abaixo nos alunos do ensino médio. Quem sabe, isso aumentaria a sua motivação para multar os infratores?

No morro - J. R. GUZZO

REVISTA VEJA

A vida é dura. Não dá para ser vice de Dilma e acabar bem

ONDE TERIA IDO parar, a esta altura dos acontecimentos, a imensa questão da saída ou da permanência de Michel Temer na Presidência da República, esse drama de quinta categoria em que todos representaram o papel de palhaços, a começar pelo público pagante? Tirar Temer para colocar em seu emprego o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, ou algum outro gigante da política nacional, sempre foi uma das piadas mais prodigiosas que a vida pública brasileira já conseguiu produzir em toda a sua história de país subdesenvolvido. Ninguém, em nenhum momento, conseguiu encontrar um único fato, por mais miserável que fosse, capaz de mostrar alguma diferença para melhor entre o cidadão que queriam enfiar no Palácio do Planalto e o cidadão que queriam despejar de lá. Rodrigo Maia? Nesse caso, por que não o empresário Joesley Batista? Em termos de qualificação, seria tudo a mesma coisa; aliás, seria a mesma coisa com praticamente qualquer homem público brasileiro hoje em atividade. Muito se falou, também, sobre “eleições diretas” e outros disparates. Mas no mundo real nunca aconteceu nada. Lula, o PT e a “esquerda” gritam “fora Temer” em nome da honestidade — e como alguém poderia levar a sério uma coisa dessas? É uma oposição subnutrida em números, sem gente nas ruas e em estado de coma moral. Não derruba nem um síndico de prédio.

Tem sido um sinal de realismo, a propósito, que todo o monumental terremoto armado em torno dessa história esteja preso até agora no cercadinho dos políticos, comunicadores e elites em geral — mais, naturalmente, as multidões de parasitas que se organizam para tirar dinheiro do Erário. Na população, ao longo desse tempo todo, a única reação notada é uma quase completa indiferença — ou o desprezo por todos os envolvidos. É o que merecem. O assunto todo, no momento, só sobrevive através de espasmos de cachorro atropelado, como descreveria Nelson Rodrigues — o procurador vai fazer mais isso, o procurador vai tentar mais aquilo, o relator vai, o delator não vai, a presidenta do STF vai e não vai. E a comissão? E o plenário? E o quórum? A mídia acha tudo isso importantíssimo. Os cientistas políticos garantem o fim do mundo a cada quinze minutos. Michel Temer, enfim, continua sendo o ex-presidente que já é há tempos. Paga pelo que fez. Há quinze anos, ou sabe-se lá quantos, vive para servir o ex-presidente Lula e o PT, e para servir-se de ambos. Os grandes amigos de ontem e inimigos de hoje lhe deram de presente o cargo de vice. Em compensação, deram-lhe também o desastre que vinham construindo desde que assumiram o comando do país, em 2003 — o governo Temer, no fim das contas, é apenas a segunda parte da calamidade que foi o governo Dilma Rousseff. A vida é dura. Não dá para ser vice de Dilma e acabar bem.

O fato é que, com Temer, Maia ou o rei da Bessarábia, não há a mais remota possibilidade de melhorar coisa nenhuma em qualquer dos 100 principais problemas na vida prática do cidadão deste país. Como seria possível, se as disputas na política brasileira continuam sendo apenas uma briga interna de quadrilhas cujo propósito comum é saquear o Tesouro Nacional? Brigam unicamente porque querem uma parte maior que a parte do inimigo. A aprovação das reformas propostas pelo governo tem sido um avanço, sem dúvida, e a administração da economia passou a fazer sentido após treze anos e tanto de demagogia, rapina e demência. Mas isso tudo, até agora e sabe-se lá por quanto tempo ainda, é muito mais uma tentativa de sobrevivência do que um progresso real, consistente e duradouro. No dia a dia, e no mundo das coisas como elas são, o que se tem é a guerra pelo controle dos pontos de tráfico — a exemplo do que acontece nos morros, onde os bandidos brigam pelos pontos de droga, os políticos brigam pelos pontos de poder. No momento, aliás, muitos brigam apenas para sobreviver. Enquanto se falava no fim de Temer, a realidade trouxe a primeira sentença de condenação para Lula; ficar fora da cadeia, desde então, passou a ser o seu objetivo máximo, e para o PT, que não vive sem ele, torn­ou-se uma questão de vida ou morte. Se ficarem vivos, seu “projeto político” mais precioso será lutar pelo “financiamento público” das campanhas eleitorais, talvez o maior ato de escroqueria já tentado na história do Brasil. Aí se poderá ver, precisamente, o buraco em que estamos: os maiores aliados do PT nesse golpe são seus maiores inimigos. É onde todos, do extremo Lula ao extremo Temer, vão se encontrar: no “fundo partidário”. O resto é conversa.

Retomando os trabalhos - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 30/07

A semana que hoje se abre marca a retomada dos trabalhos no Congresso Nacional.


O período recente tem sido de muita atividade no Congresso, que tem reconhecido que há temas que precisam ser tratados independentemente de estarmos em meio a uma grave crise política que ficará conosco até o final de 2018.

O Congresso pode tocar a agenda de Estado. Deu essa demonstração quando aprovou a modernização das relações de trabalho no Brasil com a reforma trabalhista.

A reforma política é o próximo item da agenda de modernização do Estado brasileiro. Foi aprovado no Senado e tramita na Câmara Federal o texto da reforma política de autoria do senador Ricardo Ferraço, do PSDB do Espírito Santo.

No Brasil, o voto para a Câmara Federal, as Assembleias Legislativas estaduais e as Câmaras de Vereadores é proporcional com lista aberta. Significa que o voto é duplo. O eleitor escolhe um partido político e um candidato.
Em razão da proporção de votos que cada partido teve em um Estado, estabelece-se quanto da bancada daquele Estado na Câmara será daquele partido.

Por exemplo, se os Democratas tiverem 10% dos votos em São Paulo, a bancada dos Democratas terá 7 dos 70 deputados de São Paulo na Câmara. Os representantes dos Democratas serão os sete mais votados do partido.

A grande vantagem da regra proporcional é que ela dá voz às minorias. Suponha que São Paulo fosse dividido em 70 distritos –70 pedaços contíguos com 1/70 avos da população em cada um. Que cada um dos 70 deputados da bancada paulista na Câmara fosse escolhido em um dos 70 distritos. Esse é o modelo americano e inglês.

Se houver um grupo que represente 10% da população, e se esse grupo for bem distribuído no espaço –ou seja, se não houver um distrito em que fosse maioria–, a sua representação será nula. O grupo em questão não ganharia em nenhum distrito. Com voto proporcional, teria sete deputados.

O problema é que há um dispositivo em nosso regime político que altera a lógica do sistema e o torna torto.

No Brasil, permite-se coligação para a eleição legislativa. Isto é, diferentes partidos participam na eleição proporcional como se fossem um único partido. Ou seja, a "bancada" da coligação será proporcional ao número de votos que a coligação teve. Os eleitos serão os mais votados da coligação.

Se um partido de direita se coligar com um de esquerda, o eleitor que votou no de direita ajuda a eleger um de esquerda e vice-versa. Uma verdadeira bagunça ideológica!

Nosso sistema já é proporcional. As minorias estão mais do que representadas. Esse fato é ainda mais verdadeiro porque os distritos eleitorais são grandes. Por exemplo, o Estado de São Paulo é um distrito com 70 deputados. Quanto maior o distrito eleitoral, menor o coeficiente eleitoral que um partido precisa para ter um candidato eleito.

Assim, é urgente que a Câmara aprove a PEC do senador Ferraço que veda coligações para eleição proporcional. A grande vantagem dessa reforma é que ela não altera nossas instituições eleitorais. Ao contrário. Ela as torna consistentes sem mexer com os fundamentos de nosso sistema político.

Adicionalmente, o projeto introduz a cláusula de desempenho, que visa reduzir a fragmentação partidária excessiva, certamente a maior disfuncionalidade de nosso sistema político. Impossível governar com 28 partidos na Câmara e outros 50 na fila.

Eu tenho algo a ver com isso? - MARCIUS MELHEM

FOLHA DE SP - 30/07

A gente sabe que não tá fácil. Violência, crise econômica e o Flamengo que não deslancha deixam nossos nervos à flor da pele.

Então, depois de muito refletir, elaborei um manual de como agir frente às questões da vida.

Regra número um: diante de qualquer questão sempre se pergunte "eu tenho algo a ver com isso?" Fim do manual.

Sei que à primeira vista parece complexo. Mas com exemplos fica mais fácil.

Situação 1: meu vizinho é gay e namora outro homem.

Pergunta: "eu tenho algo a ver com isso?"

Resposta: não.

Consequência: eles seguem a vida deles, e eu a minha.

Situação 2: o hospital público do meu bairro está abandonado.

Pergunta: "eu tenho algo a ver com isso?"

Resposta: sim. Se o bem é público, é de todos.

Consequência: eu me junto a outras pessoas, incluindo meu vizinho gay e seu namorado, e vou cobrar do poder público que a situação melhore.

Situação 3: eu sou evangélico e tenho um vizinho que é do candomblé, religião de que eu não gosto.

Pergunta: "eu tenho algo a ver com isso?"

Resposta: não.

Consequência: eu continuo com a minha religião e meu vizinho com a dele.

Situação 4: meu bairro está com assaltos frequentes.

Pergunta: "eu tenho algo a ver com isso?"

Resposta: sim. O Governo estadual tem obrigação de prover segurança à população.

Consequência: me junto a meu vizinho gay, seu namorado, e meu outro vizinho do candomblé, vamos até a delegacia do bairro e ao batalhão da PM responsáveis pela área e cobramos um plano de ação.

Situação 5: tenho uma vizinha que planta maconha e fuma.

Pergunta: "eu tenho algo a ver com isso?"

Resposta: não.

Consequência: ela continua se arriscando com essa droga ilegal, e eu continuo saudável com meu cigarro e meu uísque legalizados.

Situação 6: não estou satisfeito com os representantes do meu Estado no Congresso Nacional.

Pergunta: "eu tenho algo a ver com isso?"

Resposta: sim. Sou eleitor e ajudei a colocá-los lá.

Consequência: estudo melhor quem são os candidatos, depois me uno a meu vizinho gay, seu namorado, meu outro vizinho do candomblé, e minha vizinha maconheira. Juntos tentamos votar com mais consciência.

A questão no fundo é que 90% dos problemas do mundo não existiriam se as pessoas entendessem que se meter na vida do outro não melhora a nossa vida.

Cleptocracia renitente - VERA MAGALHÃES

ESTADÃO - 30/07

Os escalões ignoram o Estado de Direito, zombam da capacidade de punição dos corruptos



A espantosa revelação de que, com a Lava Jato comendo solta e um monte de gente presa, Aldemir Bendine negociou o recebimento de pelo menos R$ 3 milhões em propina da Odebrecht às vésperas de assumir a Petrobrás com a missão de saneá-la mostra a profundidade do buraco em que o Brasil se meteu na última quadra.

Trata-se de uma cleptocracia renitente, em que seus integrantes de todos os escalões ignoram o Estado de Direito, zombam da capacidade de punição dos corruptos, se sentem à vontade para pedir dinheiro por mensagem eletrônica, como se houvesse um caixa eletrônico virtual da propina, correm pela rua com malas recheadas de pixuleco para pegar táxi e discutem à luz do dia a mudança das leis de forma a permitir que a pilhagem continue sem admoestações.

A corrupção brasileira não começou com o PT, mas foi obra do lulismo a construção desse regime de ladrões, em que todos os escalões foram loteados por companheiros cuja única razão de estarem onde estavam era montar uma rede de financiamento político-partidário cedendo a empresários “amigos” financiamentos, contratos, leis feitas sob encomenda, negócios em países governados por ditaduras aliadas e toda sorte de traficância.

Os petistas, em seu exercício quase comovente de autoengano, vão se apressar em gritar: mas e Michel Temer? O atual governo, que manteve a cleptocracia instalada, nada mais é que continuação do de Dilma Rousseff.

Não há ginástica retórica nem cambalhota intelectual que altere o fato histórico de que foi Lula quem inventou do nada a candidatura de Dilma e colocou Temer como seu vice. Foi ele quem designou o casal João Santana e Monica Moura para repaginar Dilma, que a vendeu como uma técnica competente (!), “mãe” do PAC, depois “faxineira” da corrupção e outras tantas mistificações para alguém que era incapaz de governar o País, por inabilidade política, por incapacidade de gestão e uma visão totalmente enviesada do papel da economia, atributos reais escondidos sob o manto do marketing e pelos quais o País vai pagar décadas.

Não cola também o outro véu com que se tentou vestir Dilma, o da presidente honesta que não sabia de nada do sambalelê da corrupção que grassava em seu governo.

Afinal, foi ela quem trocou José Sérgio Gabrielli pela amiga Graça Foster e ordenou o desmonte do condomínio PT-PMDB-PP que parasitava a companhia. Depois, foi ela quem sucumbiu às pressões e trocou a amiga pelo agora preso Bendine, vendido como alguém que iria recolocar a empresa nos trilhos.

Não foi por falta de aviso prévio. A gestão de “Dida” no Banco do Brasil já havia sido coroada de episódios capazes de inabilitá-lo para essa missão em qualquer governo minimamente sério.

Ele comprou um apartamento por R$ 150 mil em dinheiro vivo, usou as linhas de financiamento do BB para dar mimos à amiga Val Marchiori e se meteu numa guerra de gangues com o então presidente da Previ, Ricardo Flores, em que as armas eram dossiês, ameaças e o uso do fundo e das diretorias do banco como instrumentos para derrubar os inimigos.

O esquema do PMDB na Caixa, com Geddel Vieira Lima, Eduardo Cunha e Fábio Cleto à frente, nada mais é que a fatia dos aliados dada pelo PT na cleptocracia lulo-dilmista. O mesmo vigorou na Transpetro, dada como capitania ao outro PMDB, o do Senado, e em todos os demais espaços públicos.

Não é possível, portanto, os petistas apontarem o dedo e berrarem “Fora, Temer”. Foi seu líder supremo quem transformou o aparelho de Estado numa lucrativa organização político-partidária destinada a tornar ricos empresários que aceitassem colaborar com o esquema e burocratas com vocação para mafiosos. Essa é a verdadeira herança de pai Lula e mãe Dilma, uma cleptocracia que resiste.

Militantes - ROBERTO ROMANO

ESTADÃO - 30/07

Eles se imaginam próximos do divino ou, como Lúcifer, desejam o monopólio do bem



Na corrosão mental ocorrida a partir do século 19 se encontra o aniquilamento da crítica, um fanatismo que antes definia o religioso. Os dogmas que levaram às fogueiras cristãs na era totalitária foram trocados por credos políticos. A infalibilidade dos papas ressurgiu nos líderes das revoluções ou dirigentes reacionários. Anathema sit tornou-se signo de morte política. Semelhante prática foi vivida sob os nazistas, stalinistas, fascistas. Mas ela existiu nas ditaduras que ensanguentaram a Europa, a África, as Américas. “Brasil, ame-o ou deixe-o”: a intolerância foi gerada pela redução do político (como o caracterizou Carl Schmitt) ao bélico.

Não existe genocídio sem o erotismo perverso entre dirigentes assassinos e dirigidos. Em livro cruel, Hitler e os Alemães, Eric Voegelin desmente a hipocrisia que desejou atribuir o inferno apenas ao Führer. Se a população inteira foi cúmplice do holocausto, houve um tipo humano que deu eficácia ao aniquilamento. Trata-se do militante.

O uso antigo da palavra indica o indivíduo ou coletivo religioso preso às ordens da autoridade eclesiástica. Mimetizando as formas bélicas de Roma, a Igreja Católica assume o conceito de ordem hierárquica, idealizado por Dionísio Areopagita. O cosmos seria uma cascata de luzes, das mais brilhantes e próximas a Deus às atenuadas no plano humano. Os postos nas imediações divinas brilhariam esplendorosamente, nos afastados o fulgor seria menor. No ápice os combatentes arcanjos, depois os sacerdotes, os reis e os nobres e, na obscuridade, o povo. Quem está no alto manda. Os demais obedecem.

Tal escala da auctoritas foi negada por Lutero. Os liderados por Calvino radicalizaram o veto à hierarquia e retomaram as teses democráticas gregas (Gerson Leite de Moraes, Entre a Bíblia e a Espada, Filosofia e Teologia Política em Calvino, 2014). Recordemos as Vindiciae contra Tyrannos, revividas na edição brasileira de Frank Viana Carvalho (2017).

Mas o vezo da hierarquia permanece na cultura ocidental, apesar da Reforma e das Luzes. As revoluções norte-americana e francesa abriram espaços de liberdade para os indivíduos. A contrarrevolução inspirada no mais rígido catolicismo político tudo fez para abafar as pretensões “ímpias” de autonomia humana. Um resumo da receita autoritária encontramos em Vargas : “O indivíduo não tem direitos. Ele tem deveres para com a sociedade e o Estado” (1.º/5/1936). Os liberticidas europeus, apoiados pelo Vaticano, aplicaram a lição (Kertzer, D.I.: O Papa e Mussolini).

O militante não tem direitos contra seu partido. Como o soldado, segue ordens e não as pensa. Como só conhece a cega obediência, não imagina que outros cérebros dispensem palavras de ordem e anátemas. Quando alguém nega seus dogmas, morde e calunia, se possível labora para a morte civil ou física do “inimigo”. Da literatura sobre os militantes, me limito a indicar Gotovich, J. e Morelli, J.: Militantisme. O militante foi essencial ao poder hitlerista no extermínio de judeus, ciganos, homossexuais e outros “parasitas”, como os democratas, liberais, socialistas. Na União Soviética, inverte-se a ordenação bélica, embora os judeus continuem como alvo a ser abatido (por exemplo, durante a campanha contra os médicos judeus, mantida por Stalin e acólitos).

Mesmo Trotski, tido como alternativa, disse no XIII Congresso do Partido Comunista da URSS: “Definitivamente, o Partido tem sempre razão (...). Não se pode ter razão a não ser com e para o Partido, porque a história não tem outras vias para realizar sua razão” (citado por Claude Lefort, Un Homme en Trop). Se o partido não o prevê, um fenômeno não existe. Trotsky era, apesar de tudo, um pensador.

Se vamos aos militantes desprovidos de conceitos, encontramos uma teratologia. No Brasil: “Sem a orientação da doutrina marxista-leninista, doutrina todo-poderosa porque verdadeira, nada de bom e duradouro pode ser alcançado” (D. A. Câmara, “Forjemos nosso Partido à imagem e semelhança do Partido de Lenin e Stalin”, Problemas, 1953). E mais: “Somente a sabedoria coletiva do Comitê Central, tendo à frente o camarada Prestes, permite dar aos militantes uma educação de elevado teor ideológico” (M. Alves, “Elevar o nível ideológico do Partido, tarefa essencial na luta pela vitória do Programa” – Informe em nome do Presidium do Comitê Central, in Problemas, 1956). A técnica é translúcida: “Guiados pelos ensinamentos do camarada Stalin, nosso educador, estudemos e assimilemos a doutrina marxista-leninista” (Luís Carlos Prestes, Nossa Política, em Problemas, 1950). Para as citações, leia-se Rückert, Sérgio Joaquim, Persuasão e Ordem: a escola de quadros do Partido Comunista do Brasil na década de 50, mestrado/Unicamp, 1987. Essas formas de enquadramento foram assumidas pela massa dos militantes. A reflexão crítica virou catequese.

Após uma palestra recente, quando indiquei os riscos de reduzir juízes, professores, cientistas, artistas ao papel de militantes, uma catadupa de ataques contra mim foi posta na internet por... militantes. Fui chamado de palhaço e vil caluniador da imaculada faina de militar. Em momento algum os autômatos da máquina partidária pensaram o problema. Pois bem, hoje os mesmos militantes, das mesmas agremiações, lamentam o fato, ou provável fato, de que juízes e promotores da Lava Jato agem em relação ao seu líder como se fossem... militantes, sem a reserva necessária ao mister. Convido os que atacaram minha honra, para garantir a hegemonia de sua grei, a relerem minhas considerações. Tarefa impossível: o partido e seus dirigentes nunca erram. E também os militantes.

Na escala cósmica eles se imaginam próximos do divino ou, como Lúcifer, desejam o monopólio do verdadeiro, do bem, do belo. Edificam pandemônios, dos quais são as primeiras vítimas.

A ditadura dos burocratas - IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

ESTADÃO - 30/07

Ser do governo é tornar-se superior aos comuns e sofridos cidadãos deste país


A máquina estatal brasileira é gigantesca. Uma federação é sempre mais onerosa para os cidadãos que o Estado unitário, por necessitar, na autonomia dos entes federados, uma escala intermediária de poder, que são os Estados, províncias, cantões ou unidades semelhantes. O custo maior da federação deveria ser compensado por uma maior eficiência administrativa. No Brasil, esse custo é consideravelmente superior ao da maioria das federações, pois os municípios, desde 1988, são entidades federativas, com plena autonomia administrativa, política e financeira.

Infelizmente, a eficiência pretendida – o princípio da eficiência é um dos cinco princípios fundamentais da administração pública plasmados no artigo 37 da Lei Suprema – não existe na esclerosada, amorfa e aparelhada máquina administrativa da maior parte das entidades federativas, incluída a União Federal, em que a autonomia financeira dos Poderes Judiciário e Legislativo e do Ministério Público mais a adiposidade do Poder Executivo tornam a carga tributária brasileira insuficiente, apesar de elevadíssima, para pagar o custo burocrático e político do Brasil.

Com efeito, segundo a carga tributária medida pela OCDE em 2014, o Chile ostentava 19,8% do PIB; a Coreia do Sul, 24,6%; os EUA, 26%; a Suíça, 26,8%; o Canadá, 30,8%; Israel, 31%; e o Brasil, 32,6% – sem contar as penalidades, que nas execuções fiscais, nos “refis” e parcelamentos variados a elevam consideravelmente, por força das multas acopladas aos tributos no País.

É interessante que na faixa entre os 32,42% do Brasil e os 36,1% da Alemanha (diferencial de 3,68 pontos porcentuais) se encontram países como Reino Unido (33,26%) e Espanha (33,2%), todos eles com serviços públicos incomensuravelmente melhores que os do Brasil. Em comparação com países da América Latina, o Brasil vence Argentina (32,2%), Colômbia (20,3%), Chile (19,8%), México (19,1%) e Peru (18%). O gasto das empresas brasileiras para pagar os tributos é, em média, de 2.600 horas anuais de trabalho – em segundo lugar no mundo em horas trabalhadas está a Bolívia (1.080); nenhum grande país se encontra entre os dez primeiros colocados.

Como se percebe, nada obstante ter o maior nível de imposição da América Latina, o investimento no Brasil é escasso, pois o brasileiro paga tributos para sustentar a burocracia nos três Poderes, incompatível com o tamanho das necessidades do País. A carga tributária no Brasil é elevada porque a carga burocrática e política é enorme, pagando o brasileiro seus tributos em grande parte para sustentar os privilégios dos três Poderes, a Federação inchada e a corrupção inerente a todo sistema político em que ser do governo é tornar-se superior aos comuns mortais e sofridos cidadãos desta República.

Quando Roberto Campos dizia que o País não corria o risco de melhorar, apenas diagnosticava que gerar empregos produtivos e úteis para a comunidade não é a especialidade de burocratas e políticos – pelo menos no século 21, em que os governos dos últimos 13 anos atolaram o País na mediocridade administrativa, na corrupção burocrática, na incompetência política, na ineficiência empresarial, embarcando em projetos ideológicos fracassados desde o início do século 20. E fazendo as opções erradas, que fulminaram o prestígio que o Brasil , a duras penas, adquirira nos fins do século passado.

O pior é que, apesar de os governos de Lula e Dilma terem afundado a economia nacional, provocando novamente inflação de dois dígitos, o sucateamento do parque industrial, a perda de competitividade internacional e o aumento do desemprego – algo que só agora, no governo Temer, começa a ser recuperado –, além de terem dado total apoio aos ditadores Chávez, Maduro e irmãos Castro, implodindo o prestígio do Itamaraty, que fora sempre elevado, em nível mundial, continuam seus áulicos de costas para a realidade, dizendo que querem voltar ao poder. Para isso combatem todas as reformas necessárias para que o País saia da crise, das quais a previdenciária é a mais relevante. Só neste ano o déficit programado da Previdência é de R$ 270 bilhões, em grande parte por força dos privilégios de burocratas e políticos dos três Poderes. Basta dizer que a média de proventos dos aposentados de segunda classe, os “não governamentais”, é de R$ 1.900 mensais e a dos enquistados nos três Poderes, R$ 15.800!!!

O próprio carro-chefe da propaganda ideológica dos governos anteriores, o programa Bolsa Família, foi transformado em sistema de aposentadoria precoce, quem recebe o benefício não procura emprego para não perdê-lo, passando a ser mais um estímulo à ociosidade do que um verdadeiro e provisório auxílio a necessitados.

Para crescer o Brasil precisa de seis reformas: trabalhista, já em parte feita, previdenciária, tributária, administrativa, do Judiciário e política. Isso para que a adiposidade da Federação encolha, a burocracia diminua e os privilégios sejam reduzidos, permitindo que a sociedade possa desenvolver-se.

Enquanto todos desejarem ser burocratas ou políticos, para alcançarem privilégios que o comum dos cidadãos não tem, o Brasil continuará patinando. Está cada dia mais longe o país do futuro de Stefan Zweig e, em vez de se aproximar das grandes potências, terá o seu futuro muito mais semelhante ao da Venezuela de Maduro.

Desburocratizar, desregulamentar, não atrapalhar a iniciativa privada, para que ela possa gerar empregos e desenvolvimento, sem ter de rastejar perante os “regulamenteiros” da Federação – que multiplicam obrigações e alimentam a corrupção pelas dificuldades criadas –, isso é o que o povo desta desesperançada nação deseja para voltar a ser o país dos brasileiros, e não dos detentores do poder. Precisamos de democracia cidadã, e não de ditadura burocrática.

PROFESSOR EMÉRITO DAS UNIVERSIDADES MACKENZIE, UNIP, UNIFEO E UNIFMU, DO CIEE/O ESTADO DE S. PAULO, DA ECEME, DAESG E DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF-1ª REGIÃO

O limite dos subsídios - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 30/07

Sempre que alguém se dispõe a contestar não apenas a eficácia de muitos benefícios, mas principalmente seu caráter pouco transparente e democrático, é desde logo acusado de fomentar o “austericídio”, isto é, a asfixia econômica do País



O debate sobre a concessão de subsídios, a exemplo de tantas outras importantes questões nacionais, corre o risco de ser monopolizado pelos que consideram infinitos os recursos do Estado. Sempre que alguém se dispõe a contestar não apenas a eficácia de muitos benefícios, mas principalmente seu caráter pouco transparente e democrático, é desde logo acusado de fomentar o “austericídio”, isto é, a asfixia econômica do País. Assim, a questão dos subsídios é dos poucos temas capazes de alinhar empresários a políticos demagogos, tornando muito mais penoso o já difícil trabalho dos que precisam administrar a brutal escassez dos recursos nacionais. E isso tem ajudado a condenar o Brasil ao profundo descontrole das contas públicas ao longo dos governos petistas, em especial a partir do segundo mandato do governo de Lula da Silva.

Uma nota técnica divulgada recentemente pela Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda informou que, entre 2007 – primeiro ano do segundo mandato de Lula – e 2016 – ano em que Dilma Rousseff foi apeada da Presidência –, chegou a inacreditáveis R$ 723 bilhões o total de subsídios concedidos pelo governo federal. Note-se que, nessa conta, não estão computados os chamados gastos tributários, isto é, as isenções fiscais, que também cumprem a função de subsídios.

A nota técnica destina-se a esclarecer as razões da troca da Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) pela nova Taxa de Longo Prazo (TLP) nos empréstimos concedidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Como se sabe, a TJLP é inferior ao custo de endividamento do Tesouro, o que configura subsídio. A TLP, proposta pelo governo, será equivalente ao custo de captação do Tesouro, reduzindo o subsídio. Por essa razão, tem sido objeto de fortes críticas do empresariado.

Em 2007, os benefícios, em valores atualizados pelo IPCA, somaram R$ 31 bilhões. Em 2016, atingiram R$ 115 bilhões, um crescimento real de cerca de 16% ao ano. O contexto desse período é muito importante. Em 2006, Lula escancarou os cofres do governo no momento em que enfrentava o escândalo do mensalão. Em seguida, ajudado pela forte alta dos preços internacionais das commodities, em razão do apetite chinês, o governo petista apostou no Estado como locomotiva do desenvolvimento, em associação com grandes empresas selecionadas e devidamente subsidiadas.

A crise financeira internacional de 2008 levou o governo a ampliar ainda mais os estímulos estatais à economia, muitos dos quais difíceis de reverter, como o aumento generalizado de salários do funcionalismo. Como o País cresceu robustos 7,5% em 2010, os petistas acreditaram ter encontrado a fórmula mágica para a administração econômica – e, em vez de desmontar o modelo de estímulo, como seria recomendável, o governo acelerou os gastos. A popularidade de Lula foi às alturas, a ponto de permitir que ele elegesse Dilma Rousseff, uma completa desconhecida, para a Presidência, em 2010. O modelo de desenvolvimento com forte subsídio estatal estava consagrado.

Mas faltou combinar com os chineses, que reduziram suas compras, e com os empresários, que não investiram o que o governo imaginava, não só porque os subsídios estatais são uma confortável forma de redução dos riscos inerentes ao capitalismo, mas também porque o Brasil, a despeito do discurso delirante dos petistas quando estavam no poder, continuou com uma série de gravíssimos problemas estruturais que desestimulam os investimentos em produção.

Assim, não há razão para continuar a defender um modelo que prometeu acelerar o desenvolvimento nacional e acabou por condenar o País a uma prolongada recessão. Tampouco é possível defender algo tão antidemocrático. A nota da Fazenda lembra que 59% dos subsídios concedidos entre 2007 e 2016, algo em torno de R$ 429 bilhões, não passaram por nenhuma discussão orçamentária. Essa falta de transparência só interessa aos privilegiados.

O reajuste do funcionalismo - EDITORIAL ESTADÃO

ESTADÃO - 30/07

Sindicatos de servidores ameaçam com greve, desconsiderando o delicado momento pelo qual passam as contas públicas

A secretária do Tesouro Nacional, Ana Paula Vescovi, informou que o governo estuda adiar os reajustes salariais do funcionalismo já aprovados para 2018 e que resultarão em um custo adicional de R$ 22 bilhões. A simples menção a essa possibilidade bastou para que sindicatos de servidores partissem para a ameaça de greve, desconsiderando o delicado momento pelo qual passam as contas públicas. O País não pode continuar refém de corporações para as quais nada interessa senão benesses, em total desconexão com a realidade nacional.

A maior parte dos reajustes ao qual Ana Paula Vescovi se referiu foi concedida pelo presidente Michel Temer em junho do ano passado, quando ainda era interino, durante o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Compreende-se que, naquela ocasião, na interinidade, Temer se sentisse obrigado a respeitar os compromissos assumidos por Dilma, além de precisar arrefecer a pressão dos funcionários públicos, incitados pelo PT. Uma vez efetivado no cargo, Temer anunciou um severo regime de austeridade de gastos. E hoje, quando a equipe econômica luta para encontrar uma forma de cumprir a meta fiscal e paira no ar a ameaça até mesmo de suspensão do funcionamento de partes da máquina estatal por falta de recursos, está claro que a concessão aos servidores foi um erro.

Durante os governos de Lula da Silva e de Dilma Rousseff, o quadro de funcionários públicos cresceu exponencialmente. Foram adicionados 131 mil servidores nesse período, um acréscimo de 27%, depois de uma tentativa de enxugamento na administração de Fernando Henrique Cardoso. Além de mais numerosos, esses funcionários, de um modo geral, foram contemplados com generosos aumentos salariais, tornando-se mais bem remunerados, em média, do que empregados com formação equivalente no setor privado.

Em junho e dezembro de 2016, foram concedidos aumentos ao funcionalismo que, somados, representam um custo de R$ 64 bilhões até 2019. Na ocasião, Temer argumentou que esses reajustes haviam sido negociados por Dilma Rousseff. Entre os benefícios estão, por exemplo, o pagamento de bônus de eficiência de R$ 3 mil para auditores fiscais da Receita Federal – inclusive aposentados e pensionistas. Dos 45 mil beneficiados, 27 mil já não trabalham, razão pela qual é difícil compreender como se pode falar em “eficiência” nesse caso. Além disso, o vencimento básico inicial de um auditor da Receita foi fixado em R$ 19.211,01. Em 2019, esse valor salta para R$ 21.029,09. Não há nada parecido com esse piso no setor privado.

Assim, é compreensível que um dos primeiros sindicatos a manifestar repúdio à possibilidade de adiamento do reajuste tenha sido o dos auditores fiscais. “Certamente as entidades não ficarão paradas”, informou o presidente do Sindicato dos Auditores Fiscais (Sindifisco), Claudio Damasceno. Já a Confederação Nacional dos Servidores Públicos (CNSP) anunciou que entrará na Justiça para impedir o adiamento. Seu argumento é que, durante a negociação, o governo de Dilma Rousseff não mencionou o estado deplorável das contas públicas. “A outra parte (o governo) tinha de ter colocado o problema na mesa”, disse o presidente da CNSP, Antonio Tuccilio. Ou seja, a notória falta de transparência de Dilma tornou-se desculpa para a manutenção de um reajuste que obviamente não deveria ter sido acertado. “Uma vez que o aumento foi decidido, tem de ser cumprido”, disse o sindicalista.

Assim, mais uma vez, a incapacidade dos governantes de enfrentar a corporação dos funcionários públicos resulta em prejuízo para o País. Enquanto a maioria dos trabalhadores do setor privado luta para manter seu emprego e para ter um salário ao menos suficiente para pagar as contas, em meio aos efeitos da gravíssima crise econômica, o setor público, beneficiando-se de seu livre trânsito no meio político, mantém privilégios e deles não abre mão.

O adiamento de um reajuste salarial que nem deveria ter sido concedido seria uma rara vitória da sensatez num ambiente em que predomina a irresponsabilidade.

Efeitos colaterais do ‘campeão nacional’ JBS - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 30/07

Política do BNDES de concentração de poder de mercado em poucos grupos não deve ser avaliada apenas pelo aspecto da rentabilidade financeira


O grupo JBS chegou a ser o maior produtor de proteína animal do planeta, orgulho da política desenhada em pranchetas lulopetistas para converter empresários brasileiros em “campeões”, vitaminados por dinheiro público. O grupo, de origem numa família dona de açougue em Anápolis, Goiás, não é o primeiro a ter ascensão rápida e queda equivalente.

Na década de 70, na ditadura militar, havia fixação no modelos dos “chaebols”, da Coreia do Sul, gigantes edificados em torno de famílias, bancos e governo. Na “crise asiática”, na década de 90, alguns se liquefizeram, com o desmonte de esquemas de dívida externa assentados na garantia de um câmbio fixo ou quase. O câmbio teve de flutuar e muita coisa veio a baixo. Mas a estrutura coreana, já colhendo os frutos dos investimentos em educação e tecnologia, aguentou o tranco.

No Brasil, o sonho de fortes empresas nacionais turbinadas pelo Estado também virou pesadelo em vários casos. Kalium, Decred, Coroa-Bastel são grupos que viriam a renascer bem mais à frente com outros nomes. O JBS é o exemplo mais recente e, como no passado, foi incentivado a partir de uma plataforma ideológica — existente à direita e à esquerda — que preza empresas com músculos anabolizados por bilhões manejados pelo inquilino de turno no Planalto.

JBS é típico. Com dinheiro do BNDES, no lulopetismo, se capitalizou com a venda de debêntures para o banco e obteve empréstimos subsidiados, sob a prestimosa vigilância do então ministro da Fazenda Guido Mantega, também zeloso na cobrança de contribuições do grupo a campanhas eleitorais petistas. Toma lá dá cá.

A implosão do JBS no vácuo da delação premiada de Joesley Batista deflagrou efeito sísmico no Brasil decorrente da política de concentração intencional de poder na mão de poucos empresários amigos: um choque no mercado interno de carne, porque os frigoríficos aglutinados no grupo, sob as bênçãos financeiras do Planalto, se transformaram em importantes compradores de rebanhos no interior do país, quase que única opção dos pecuaristas em regiões-chave, como no Centro-Oeste.

As ondas de choque sobre o grupo deflagradas pela repercussão da delação de Joesley Batista sobre o presidente Temer retraíram o crédito ao JBS — houve até suspeita de retaliação por bancos públicos —, este parou de pagar à vista pelos rebanhos, o que levou à retração de pecuaristas. Preços desabaram. Pois o JBS, é claro, concentrava a sua maior capacidade de abate nos estados em que se encontra a maior parte do rebanho: Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. No primeiro, 50% do total de seus abates; no segundo, 40%.

Este é outro alerta sobre políticas governamentais que promovem concentração em mercados, a partir de conceitos derivados de concepções contrárias à livre concorrência. Em algum momento a casa pode cair. Como costuma acontecer nessas situações, paga o preço a dupla contribuinte-consumidor.

Por isso, é equivocado fazer o balanço da política de “campeões nacionais” do BNDES lulopetista apenas pelo ângulo estreito dos lucros e perdas do banco no programa. Mesmo que o banco obtivesse boa rentabilidade com o JBS, ele teria colocado em risco parte ponderável da pecuária nacional, ao criar um único e forte comprador de carne. E também grande financiador de campanhas políticas, não por acaso.

O engodo do Fies e seu peso na crise fiscal - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 30/07

Estudo da Fazenda relaciona os desvios no crescimento descuidado do sistema de financiamento ao estudante de faculdades privadas


Marcas fortes das administrações lulopetistas — principalmente a partir do segundo mandato de Lula e, em especial, na gestão Dilma Rousseff —, o voluntarismo, o desprezo pela responsabilidade fiscal e o pressuposto de que o Estado tem capacidade infinita de endividamento aparecem, em destaque, no Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), um dos estandartes da campanha de Dilma à reeleição.

Criado em 2001, o Fies teve grande expansão com Dilma no Planalto, e passou a ser brandido nos palanques como prova irrefutável das preocupações governamentais com os jovens, principalmente de baixa renda. Afinal, o financiamento das despesas do estudante com faculdades privadas passou a ter volumes crescentes de recursos públicos à disposição, liberados sem preocupação com os riscos, absorvidos pelo Tesouro Nacional.

Estudo da Secretaria de Acompanhamento Econômico, do Ministério da Fazenda, faz uma autópsia do Fies, em que ficam expostas as marcas registradas do lulopetismo.

Os 182 mil contratos de financiamento que existiam no Fies em 2009 foram multiplicados para 1,9 milhão, em 2015, algo como 280 mil matrículas anuais, segundo o estudo da Fazenda. Entre 2009 e 2015, houve mais de 1 milhão de novas matrículas, enquanto o Fies, no mesmo período passou a financiar 2,2 milhões de estudantes, mais que o número de matrículas.

Esta aparente incongruência se deve ao fato de que estudantes já matriculados passaram a usar o Fies, até mesmo estimulados pelas próprias faculdades. Era tamanha oferta de crédito, que os estabelecimentos privados passaram a transferir ao Tesouro o seu risco. Tudo sem qualquer preocupação com o rendimento escolar do financiado.

Em 2009, foi criado o Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo (Fgeduc), para ser o fiador das operações, e também sustentado pela União. Importa é que, na essência, o custo bate no Tesouro, embora, por uma daquelas manobras contábeis no período Dilma, os títulos emitidos pelo Tesouro para bancar o Fies apareçam apenas na dívida bruta, porque os financiamentos são contabilizados como ativos da União. Uma cortina de fumaça. E ativos podres, é certo.

O custo fiscal do Fies, por ano, está na faixa dos R$ 30 bilhões, equivalente a um programa Bolsa Família ou a 0,5% do PIB. E aumentará, à medida que os contratos, em que há uma inadimplência de 50%, vencerem. Este é um gasto de má qualidade: objetivos meritórios, mas sem a garantia de retorno positivo para a sociedade. Porém, serviu para encorpar o estelionato eleitoral de Dilma.

Um problema de R$ 350 bilhões - GUSTAVO FRANCO

ESTADÃO - 30/07

Há um problema referente ao papel do Estado e seu tamanho


A decisão recente de aumentar impostos indiretos despertou imensa e justificada contrariedade. Um cheiro de Revolta de Atlas.

Como é possível que o governo federal não se possa reduzir despesa? Não é óbvio que o governo gasta mal, faz coisas demais e não “retorna” o dinheiro dos impostos com serviços de boa qualidade?

Não deveria ser claro que o governo serve ao cidadão e não a seus servidores, ativos e inativos? Como pedir mais dinheiro da sociedade para jogar numa máquina tão atrapalhada, inchada, ineficiente e mesmo corrompida?


Não há dúvida que temos um problema referente ao papel do Estado e seu tamanho, ou que chegamos a um saudável ponto de reflexão e, quem sabe, de inflexão nesse assunto.

Foi-se o tempo da discussão teórica sobre o Estado, quando qualquer ideia que diminuísse o papel supostamente redentor do Estado era desqualificada como projeto conducente ao “Estado Mínimo”.

Na verdade, o tamanho do Estado tinha virado uma pauta sindical (a “valorização” do servidor e a multiplicação dos concursos e carreiras) e um empreendimento de colonização política.

Não se sabe bem o que é o Estado Mínimo, mas todos conseguem identificar um estado obeso e capturado, e cuja pilhagem se tornou a razão de ser de muitos partidos políticos, corporações, federações e sindicatos. O Estado se tornou uma ocupação, e o problema não é novo.

O sintoma mais contundente da disfuncionalidade do Estado era a inflação.

Em termos simples, a despesa é o tamanho das demandas sobre o Estado e a receita é o que a sociedade quer dar ao Estado. São duas maneiras de observar “o tamanho do Estado”, sobre o qual tanto se discute.

As duas não podem divergir por muito tempo, nem muito relevantemente, mas era exatamente o que se passava no tempo em que o Estado cobria a diferença pintando pedaços de papel. Era um jeito fácil de fechar a conta, pois a inflação funciona exatamente como um imposto indireto.

Fácil de entender também a contrariedade com a inflação, pois é a mesma que se observa com os impostos. As coisas ficaram bem mais claras duas décadas atrás com o Plano Real.

Mas depois que a inflação deixou de ser uma solução para regular a desproporção entre desejos e possibilidades, ficamos com um problema: para não mexer no gasto, ou bem aumentávamos os impostos ou o endividamento.

Na verdade, fizemos as duas coisas, e pouco ou nada no terreno da despesa. A dívida aumentou um bocado depois de 1994, mas o ajuste veio em 1998, com o acordo com o FMI, depois de muitas hesitações. E daí em diante passamos mais de uma década com as contas no azul, e com o endividamento público se reduzindo.

Dez anos de austeridade, ou seja, com responsabilidade fiscal, crescimento, melhoria na distribuição de renda e acumulação de reservas. É verdade que tínhamos um belo vento a favor, mas fizemos a coisa certa e a medicina convencional funcionou, como se espera.

Depois de 2009, todavia, com o furacão Dilma, o problema retornou. Fomos de um superávit primário na faixa de 3% do PIB (algo como R$ 210 bilhões em dinheiro de hoje, arredondando a conta) para um déficit de 2,5% do PIB, os R$ 139 bilhões de hoje, previstos para 2017, conforme a meta fixada na LDO.

A virada negativa foi de R$ 350 bilhões, portanto.

Como explicar esse fenômeno?

Os artífices da Nova Matriz Econômica têm muitas histórias para justificar o acontecido, todas ruins, algumas péssimas. Mas, na verdade, nenhuma dessas teses heterodoxas tem a menor importância, são como discursos do ditador da Coreia do Norte, legendas para o inexplicável.

Também os detalhes técnicos e ilegalidades cometidas pela ex-presidente, e que lhe custaram o mandato, passam a ter menos importância macroeconômica que o resultado global do esforço: R$ 350 bilhões. Este é o tamanho do problema, um número impossível e a iminência de um inédito apagão administrativo, financeiro e fiscal do setor público.

Impossível?

Durante os dez anos anteriores a 2008, nós vivemos muito bem sem esses gastos, e vínhamos prosperando. Talvez exatamente por causa disso: estávamos nos afastando da insustentabilidade fiscal, para onde fomos novamente colocados e de onde não estamos conseguindo sair.