sexta-feira, maio 08, 2020

O sangue do churrasco do sociopata é dos brasileiros

O Antagonista - 08/05

Setecentos e cinquenta e um mortos por Covid-19 em 24 horas, afora as subnotificações, com 10.222 casos a mais de ontem para hoje, também deixando de lado os que não foram e nem serão confirmados, visto que o Brasil é o país do mundo que menos testa para a doença.

O que dizer?

Não há política única de combate à Covid-19, porque estamos nas mãos de um sociopata cercado de oportunistas, fanáticos e incompetentes, como esse patético ministro da Saúde que permanece “estudando” a situação.

Dois meses de quarentena ou confinamento depois, muitos países começam a voltar a uma vida seminormal. Dois meses de quarentena depois — quarentena caótica, desigual e constantemente sabotada pelo sociopata –, o Brasil ainda não tem ideia de quando poderá retornar ao seu cotidiano pré-pandemia.

A única certeza é que o sangue do churrasco do sociopata é dos brasileiros.

A blitz consentida dos insensatos - REINALDO AZEVEDO

Folha de S. Paulo - 08/05

Bolsonaro tentou jogar no colo do STF a culpa pela crise econômica do coronavírus



O que o presidente Jair Bolsonaro e empresários foram fazer no STF? Tentar jogar no colo do tribunal a responsabilidade pela crise econômica provocada pelo coronavírus. Tese de fundo, vocalizada por Paulo Guedes: é o distanciamento social a origem dos males.

A marcha dos insensatos ocorre no momento em que a curva de mortos dá um pinote e em que capitais se veem obrigadas a impor o “lockdown” para tentar ao menos ordenar o caos. Mas por que ir ao Supremo, não ao Congresso? Porque saiu da corte a leitura evidente do texto constitucional: o presidente não pode impor disciplina na base do decreto. E ele exige ser o Napoleão de hospício do coronavírus.

Não se viu nada parecido em nenhuma democracia. A receita que Bolsonaro e Guedes levaram a Dias Toffoli é também inédita. O capitalismo mundial vive a maior crise de sua história porque não seguiu a opinião do nosso ministro da Economia.

Que coisa! O discurso homicida do presidente, do ministro e da patota de mascarados reúne mais adeptos, especialmente entre as elites, do que nosso senso de decência gosta de admitir. Há no ar miasmas de uma República de Salò (pesquisem) continental, não a de Mussolini, mas a revisitada em filme por Pasolini. Assiste-se a uma assombrosa banalização da morte, mormente agora que o vírus chegou a pobres e pretos.

Não é por acaso que mais da metade dos brasileiros, segundo estudo, pode ter de se pendurar no auxílio oficial. Essa condição miserável não foi fabricada pelo distanciamento social. Já existia antes do vírus. A utopia de Guedes já é uma realidade! O ministro não é melhor que Bolsonaro. A perversidade social do presidente é inata, espontânea. A de Guedes é cultivada, fruto da reflexão.

Há gato na tuba. O STF não é a casa da Noca. Bolsonaro teve a delicadeza de telefonar para Toffoli? “Fala aí, meu chapa! Como vai essa força? Tou indo aí!”? Ou tudo foi feito na base da blitz dos poderosos, entrando no tribunal como quem ocupa um boteco? Em tempos pré-vírus, só se conseguia ir a certos botecos reservando-se mesa.

De toda sorte, está liberado o caminho da romaria dos inconformados. Quando os sem-qualquer-coisa-que-os-faça-felizes quiserem tomar o Supremo, basta chegar e ir entrando. Afinal, na Casa que representa, por excelência, a República dos iguais, não pode haver distinção de classe. É ali o “locus” da vivência prática do artigo 5º da Constituição: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção etc.”

É evidente que Dias Toffoli não deveria ter recebido ninguém. Até porque Bolsonaro fazia uma transmissão ao vivo da invasão consentida para as suas milícias digitais. A marcha dos mascarados ocorre no dia seguinte à declaração do ministro da Saúde, Nelson Teich, segundo quem o governo estuda a possibilidade de recorrer ao “lockdown” em algumas áreas. Ele deveria ter apresentado nesta semana um plano de saída do isolamento. Não há plano nenhum. O governo federal entregou aos estados 11% das UTIs prometidas.

Leio na Folha que Toffoli aproveitou a oportunidade para ressuscitar a antiga tese do pacto entre os Poderes: “Essa coordenação, que eu penso que o Executivo, o presidente da República, junto com seus ministros, chamando os outros Poderes, chamando os estados, representantes de municípios, penso que é fundamental. Talvez um comitê de crise para, envolvendo a federação e os Poderes, exatamente junto com o empresariado e trabalhadores, a necessidade que temos de traduzir em realidade esse anseio, que é o anseio de trabalhar, produzir, manter a sociedade estruturada”.

Tudo indica que ninguém falou da curva dos mortos, da falta de leitos ou do colapso do sistema de saúde. Ou por outra: discutiu-se, na base de uma blitz consentida, a feitiçaria de um pacto, mas nada se falou sobre ciência. Não se produz o segundo país mais desigual da Terra da noite para o dia. Parafraseando, acho, Nelson Rodrigues, cumpre constatar: atraso moral como o nosso não é coisa de blitz. Trata-se de uma obra de séculos.

A seguir, os omissos e hidrófobos - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 08/05

A qualquer momento, o vírus mostrará que não conhece ideologia

Nós, os amigos de Aldir Blanc, não pudemos nos despedir dele. Quando soubemos que fora para o Miguel Couto, Aldir já estava fora do nosso alcance, como acontece com as vítimas da Covid-19. E, quando o transferiram para a UTI e depois para o Pedro Ernesto, nem mais sua família pôde vê-lo. Ninguém, exceto a equipe médica, foi testemunha da luta que, inconsciente, seu corpo travou contra a morte durante 20 dias. Ninguém, exceto os íntimos, pôde levá-lo ao reduto final, e nem mesmo a eles foi concedido um beijo ou olhar de despedida.

Esse quadro de internações repentinas e despedidas prematuras está se repetindo em todo o país, milhares de vezes por dia. Os números já são massacrantes por si, mas insuficientes para descrever o sofrimento de cada cônjuge, pai, filho ou família. Um dia, muitas dessas histórias individuais serão contadas e só então saberemos o alcance de cada uma. Isto se antes não formos, nós mesmos, testemunhas de casos próximos ou seus protagonistas.

Tem-se a impressão de que, até agora, só os nossos estão morrendo. E não me refiro aos artistas, aos famosos, mas também àqueles, anônimos para a maioria e tão importantes para suas ruas ou comunidades. Os jornais publicam diariamente os perfis dessas pessoas, e só então ficamos sabendo quem perdemos e o quanto farão falta.

Não vi até agora a notícia da morte de ninguém que, próximo ou distante de Jair Bolsonaro, mas estimulado por ele, continua negando a pandemia, fazendo carreatas, trocando perdigotos, esbravejando insultos e agredindo enfermeiros e jornalistas. Mas não é possível que a irresponsabilidade, a inconsciência e a crueldade sejam imunizantes.

Teme-se que, em breve, o número de mortes diárias chegue aos quatro dígitos. Só que, quando acontecer, atingirá também os omissos e os hidrófobos, dentro e fora do governo. O vírus, ao contrário deles, não conhece ideologia.

A reconstrução da política externa brasileira - Fernando Henrique Cardoso , Aloysio Nunes Ferreira , Celso Amorim , Celso Lafer , Francisco Rezek , José Serra , Rubens Ricupero e Hussein Kalout

FOLHA DE SP - 08/05

Fernando Henrique Cardoso , Aloysio Nunes Ferreira , Celso Amorim , Celso Lafer , Francisco Rezek , José Serra , Rubens Ricupero e Hussein Kalout


Em artigo, FHC e chanceleres e diplomatas de governos anteriores afirmam que atual condução do Itamaraty contraria Constituição


O artigo abaixo é de autoria de Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República e ex-ministro das Relações Exteriores; Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Rezek e José Serra, ex-ministros das Relações Exteriores; Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda, do Meio Ambiente e ex-embaixador do Brasil em Washington; e Hussein Kalout, ex-secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência.

Apesar de nossas distintas trajetórias e opiniões políticas, nós, que exercemos altas responsabilidades na esfera das relações internacionais em diversos governos da Nova República, manifestamos nossa preocupação com a sistemática violação pela atual política externa dos princípios orientadores das relações internacionais do Brasil definidos no Artigo 4º da Constituição de 1988.

Inovadora nesse sentido, a Constituição determina que o Brasil “rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I- independência nacional; II- prevalência dos direitos humanos; III- autodeterminação dos povos; IV- não-intervenção; V- igualdade entre os Estados; VI- defesa da paz; VII- solução pacífica dos conflitos; VIII- repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX- cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X- concessão de asilo político”.

“Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.”

É suficiente cotejar os ditames da Constituição com as ações da política externa para verificar que a diplomacia atual contraria esses princípios na letra e no espírito.

Não se pode conciliar independência nacional com a subordinação a um governo estrangeiro cujo confessado programa político é a promoção do seu interesse acima de qualquer outra consideração.

Aliena a independência governo que se declara aliado desse país, assumindo como própria uma agenda que ameaça arrastar o Brasil a conflitos com nações com as quais mantemos relações de amizade e mútuo interesse.

Afasta-se, ademais, da vocação universalista da política externa brasileira e de sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, desenvolvidos e em desenvolvimento, em benefício de nossos interesses.

Outros exemplos de contradição com os dispositivos da Constituição consistem no apoio a medidas coercitivas em países vizinhos, violando os princípios de autodeterminação e não-intervenção; o voto na ONU pela aplicação de embargo unilateral em desrespeito às normas do direito internacional, à igualdade dos Estados e à solução pacífica dos conflitos; o endosso ao uso da força contra Estados soberanos sem autorização do Conselho de Segurança da ONU; a aprovação oficial de assassinato político e o voto contra resoluções no Conselho de Direitos Humanos em Genebra de condenação de violação desses direitos; a defesa da política de negação aos povos autóctones dos direitos que lhes são garantidos na Constituição, o desapreço por questões como a discriminação por motivo de raça e de gênero.

Além de transgredir a Constituição Federal, a atual orientação impõe ao país custos de difícil reparação, como o desmoronamento da credibilidade externa, perdas de mercados e fuga de investimentos.

Admirado na área ambiental, desde a Rio-92, como líder incontornável no tema do desenvolvimento sustentável, o Brasil aparece agora como ameaça a si mesmo e aos demais na destruição da Amazônia e no agravamento do aquecimento global.

A diplomacia brasileira, reconhecida como força de moderação e equilíbrio a serviço da construção de consensos, converteu-se em coadjuvante subalterna do mais agressivo unilateralismo.

Na América Latina, de indutores do processo de integração, passamos a apoiar aventuras intervencionistas, cedendo terreno a potências extrarregionais.

Abrimos mão da capacidade de defender nossos interesses, ao colaborarmos para a deportação dos Estados Unidos em condições desumanas de trabalhadores brasileiros ou ao decidir por razões ideológicas a retirada da Venezuela, país limítrofe, de todo o pessoal diplomático e consular brasileiro, deixando ao desamparo nossos nacionais que lá residem.

Na Europa ocidental, antagonizamos gratuitamente parceiros relevantes em todos os domínios como França e Alemanha. A anti-diplomacia atual afasta o país de seus objetivos estratégicos, ao hostilizar nações essenciais para a própria implementação da agenda econômica do governo.

A gravíssima crise de saúde da Covid-19 revelou a irrelevância do Ministério das Relações Exteriores e seu papel contraproducente em ajudar o Brasil a obter acesso a produtos e equipamentos médico-hospitalares.

O sectarismo dos ataques inexplicáveis à China e à Organização Mundial de Saúde, somado ao desrespeito à ciência e a insensibilidade às vidas humanas demonstradas pelo presidente da República, tornaram o governo objeto de escárnio e repulsa internacional.

Criaram, ao mesmo tempo, obstáculos aos esforços dos governadores para importar produtos desesperadamente necessários para salvar a vida de milhares de brasileiros.

O resgate da política exterior do Brasil exige o retorno à obediência aos princípios constitucionais, à racionalidade, ao pragmatismo, ao senso de equilíbrio, moderação e realismo construtivo.

Nessa reconstrução, é preciso que o Judiciário, guardião da Constituição, e o Congresso Nacional, representante da vontade do povo, cumpram o papel que lhes cabe no controle da constitucionalidade das ações diplomáticas.

A fim de corresponder aos anseios do nosso povo e corresponder às necessidades reais do Brasil, a política externa precisa contar com amplo respaldo na opinião pública, e a colaboração na sua concepção de todos os setores da sociedade.

Requer também o engajamento do nosso corpo de diplomatas: uma política de Estado e não uma ação facciosa voltada para excitar os ânimos e exacerbar os preconceitos de uma minoria obscurantista e reacionária.

Nossa solidariedade e decidido apoio aos diplomatas humilhados e constrangidos por posições que se chocam com as melhores tradições do Itamaraty.

A reconstrução da política exterior brasileira é urgente e indispensável. Deixando para trás essa página vergonhosa de subserviência e irracionalidade, voltemos a colocar no centro da ação diplomática a defesa da independência, soberania, da dignidade e dos interesses nacionais, de todos aqueles valores, como a solidariedade e a busca do diálogo, que a diplomacia ajudou a construir como patrimônio e motivo de orgulho do povo brasileiro.

Fernando Henrique Cardoso , Aloysio Nunes Ferreira , Celso Amorim , Celso Lafer , Francisco Rezek , José Serra , Rubens Ricupero e Hussein Kalout

País vê bestificado a passeata da morte - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 08/05

Não há reação às campanhas presidenciais de ruína sanitária, econômica e política



Depois de alguns dias mais dedicado ao golpeamento da democracia e à contenção do surto da ideia de impeachment, Jair Bolsonaro voltou a se empenhar no desgoverno da saúde, da epidemia, e na sabotagem de quem tenta administrar a crise mortífera. Fez uma passeata da morte na praça dos Três Poderes, nesta quinta-feira (7).

Não importa que maioria qualificada da população diga apoiar ou praticar o isolamento (cerca de dois terços, pelo menos). Quase dois meses e meio depois do início oficial da epidemia no Brasil, não há mais esperança de acordo ou coordenação nacionais do enfrentamento da crise.

Mesmo nesta síndrome aguda de degradação institucional, mortes sem fim à vista, ruína econômica e ameaça autoritária, não há protesto organizado. A elite econômica que não é cúmplice contemporiza. Parte do Congresso barganha 30 moedas de cargos pelo corpo e pela alma do país.

O "parlamentarismo branco", a alternativa de governo que vigorou por um ano, entre o começo de 2019 e a chegada do vírus, se desfaz na contraofensiva de Bolsonaro contra a limitação dos seus poderes e as ameaças de impeachment. A articulação nacional de governadores a fim de administrar a epidemia ou sugerir medidas econômica vai de precária e nula (no caso da doença) a desordenada, mal pensada ou mesmo oportunista (no caso da economia).

O país se desfaz: há desordem político-administrativa nos assuntos essenciais (doença e economia), impasse político derivado do conflito vago do impeachment e ameaça ou prática de tutela militar. Na pior crise da história republicana, ao menos, não há perspectiva de solução das crises, de desaceleração maior da epidemia e, pois, de reativação ordenada da atividade econômica.

Bolsonaro fez uma minipasseata, do Planalto ao Supremo, e um minicomício na sede do Judiciário nacional. Acompanhado de líderes de associações empresariais, de ministros e com a cumplicidade do presidente do STF, Dias Toffoli, retomou com força a campanha de sabotagem do isolamento social. Como de costume, não apresentou nenhum plano alternativo racional ou vaga ideia razoável de como lidar com a epidemia.

Bolsonaro disse que foi à sede do Supremo para expor as "aflições" dos empresários ao chefe do Poder Judiciário, pois a economia deixou de "funcionar" e, teme, pode se transformar em uma Venezuela. Criticou outra vez os governadores e suas "medidas restritivas", como de costume: "O efeito colateral do combate ao vírus não pode ser mais danoso que a própria doença".

"Manter as pessoas em casa para impedir que o coronavírus se espalhe mesmo que isso prejudique a economia e cause desemprego" era mais importante (para 67%) do que "acabar com o isolamento das pessoas em casa para estimular a economia e impedir o desemprego, mesmo que isso ajude a espalhar o coronavírus" (para 25%), registrava o Datafolha em 27 de abril.

Pesquisa CNI/FSB do início de maio mostrava que 86% dos entrevistados eram a favor do isolamento, ainda que 40% tivessem perdido ou toda a renda do trabalho (23%) ou parte dela (17%).

Pesquisas de adoção de medidas de isolamento (do Seade de SP, de amostra de contaminação por coronavírus ou da CNI) mostram que entre 67% a 80% das pessoas dizem manter o isolamento (total ou saindo só para atividades essenciais).

No entanto, não há revolta popular na mesma proporção contra as atitudes de Bolsonaro; não há reação organizada de nenhuma elite. O país assiste estupidificado à passeata bolsonariana.

Como será o amanhã? - CLAUDIA SAFATLE

Valor Econômico - 08/05

Temor da equipe econômica é que o resultado das ações emergenciais do Executivo desemboque em maior participação do Estado na economia


Há uma forte inquietação na área econômica do governo em busca de um horizonte de definições para o pós-pandemia da covid-19. O temor é que o resultado das ações emergenciais do Executivo desemboque em uma maior participação do Estado na economia, exatamente o contrário da proposta que venceu as eleições de 2018, de redução do papel do Estado na atividade econômica, sintetizada no slogan “Mais Brasil, menos Brasília”, adotado como lema pelo ministro Paulo Guedes, da Economia.

Uma das medidas temporárias que podem se tornar permanentes, na avaliação de técnicos oficiais, é a do auxílio emergencial de R$ 600 para os trabalhadores informais. Concebida para durar apenas três meses, será muito difícil extingui-la sem colocar nada no lugar, segundo essa visão. Trata-se de um benefício que tem tudo para se transformar em um amplo programa de renda mínima, em detrimento de gastos indiretos em projetos sociais.

O problema é o tamanho dessa despesa: o seu custo final caminha para a casa dos R$ 150 bilhões, envolvendo uma parcela gigantesca da população - mais de 79 milhões de brasileiros, segundo prognósticos da Instituição Fiscal Independente (IFI). São os trabalhadores informais, autônomos, microempreendedores individuais (MEI).

Mesmo diante de resistências iniciais, o governo sabe que não será simples suspender a ajuda a essa parcela da população até então invisível.

Um programa estratégico de saída da pandemia, em que o Estado não ampliaria a sua presença na economia, deve aprofundar a agenda liberal, na ótica da equipe econômica. Mas é importante notar que essa alternativa tem pouca aderência às demandas que a elite política propaga em nome do povo.

Uma das medidas defendidas por alguns assessores do governo pressupõe “desencantar” de vez a reforma tributária não para aumentar impostos, mas para reduzi-los como uma iniciativa que poderia dar um choque de produtividade na economia. Os primeiros candidatos a desaparecer, neste caso, seriam os impostos sobre a folha de salários das empresas.

A situação econômica é muito grave e, até o momento, o que há é uma disputa por hegemonia dentro do governo. De um lado estão os que, no Palácio do Planalto, advogam a participação do Estado de maneira quase que inesgotável - como se não houvesse limitações para a ampliação do gasto público - na geração de investimentos e empregos. E de outro lado, há o grupo de economistas do governo, liderado por Paulo Guedes, que pretende retomar a pauta mais liberal como saída estratégica da pandemia. Trata-se, aqui, da velha disputa entre desenvolvimentistas e ortodoxos, cuja história do país é marcada por fracassos da visão dominante pró-gasto público.

Ao Estado resta, por enquanto, o caminho do aumento do endividamento rumo aos 90% do Produto Interno Bruto (PIB), assumindo uma trajetória insustentável cujo desfecho pode ser a dominância fiscal, tão temida pelos seus efeitos nefastos e cujo golpe final seria um “calote” na dívida interna.

Foi essa a gênese do embate travado entre os ministros da Economia e Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional. Marinho estimulou o ministro-chefe da Casa Civil, Braga Netto, a abraçar a ideia de um programa de investimentos ao melhor estilo do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) concebido no governo Dilma Rousseff. Seria o Pró-Brasil, um plano de investimentos públicos de R$ 184 bilhões por um período de quatro anos, envolvendo projetos de infraestrutura.

Guedes referiu-se a Marinho como um aliado da “gastança” e qualificou o ato do ministro, que chegou ao cargo por indicação do titular da pasta da Economia, de “desleal”. Amigos de Guedes consideraram a atitude de Marinho oportunista. “Ele furou a fila”, indo diretamente ao chefe da Casa Civil vender uma ideia que deveria ter sido submetida, originalmente, a Guedes, que é o guardião da chave do cofre.

O certo, porém, é que a ideia de um PAC subsiste no governo, juntamente com a de uma boa encorpada do Minha Casa, Minha Vida (MCMV), programa de habitação popular sob a gerência de Marinho.

Foi, porém, na votação da proposta de socorro financeiro aos Estados e municípios, na quarta-feira, na Câmara e no Senado, que se assistiu ao ensaio geral do que ocorre no centro da disputa pelo parco dinheiro público em nome do combate à covid-19.

O Executivo havia proposto que os salários do funcionalismo público da União, dos Estados e dos municípios ficassem congelados até dezembro de 2021, representando uma economia de R$ 130 bilhões. Esse seria o preço a pagar pela crise do coronavírus. No setor privado, boa parte dos trabalhadores teve redução de salários em troca de uma temporária estabilidade no emprego. No setor público, a estabilidade é um direito adquirido.

Durante a tramitação do projeto os parlamentares começaram a excepcionalizar o alcance do congelamento de salários. No texto aprovado pelo Senado os salários ficarão congelados até o fim do próximo ano, exceto para os profissionais das áreas de segurança, saúde e educação dos três entes da federação (União, Estados e municípios) diretamente envolvidos no combate à covid-19. São exatamente essas as áreas onde a folha de salários mais pesa nos cofres dos Estados e municípios.

“Arrombaram a porteira”, comentou um qualificado funcionário do ministério da Economia, tão logo foi encerrada a votação, na noite de quarta-feira. O mais grave é que esse duro golpe desferido em Guedes teve a aprovação prévia do presidente da República, conforme explicou o líder do governo na Câmara, deputado Vitor Hugo (PSL-GO), ao encaminhar a votação. Bolsonaro é sensível às pressões das corporações. Mas depois de aprovado e de ouvir Guedes, Bolsonaro disse ontem que pode vetar a parte da proposta que excepcionaliza o congelamento dos vencimentos do funcionalismo. E, mais uma vez, ele garantiu que quem manda na economia é o ministro Paulo Guedes.

Com Toffoli e Bolsonaro, STF foi picadeiro de ato mais patético da história - REINALDO AZEVEDO

UOL - 08/05
Tem gato na tuba. Engula quem quiser a história de que Dias Toffoli, presidente do Supremo, foi surpreendido por Jair Bolsonaro. Se foi, que emita, então, uma nota de protesto por ter sido submetido ao ridículo — ele e o tribunal que preside. Ele e o tribunal que representa.

O STF não é um puxadinho do Palácio do Planalto. A ser verdade a versão que circula por aí — segundo a qual o ministro não estava no prédio, dirigindo-se para o local porque receberia a visita de Bolsonaro —, em nada fica melhor o retrato do presidente do Supremo. Como, segundo essa narrativa, não havia encontro nenhum agendado, cabia a Toffoli indagar, e eles têm intimidade para isto, qual era a agenda. Afinal, o presidente queria falar sobre o quê?

"Ah, estou aqui com um grupo de empresários e quero levá-los aí... " De novo: "Para quê, Jair (suponho que se tratem pelo prenome)?" E então, com honestidade mínima, Bolsonaro lhe diria que eles iriam pedir a abertura imediata da economia, quando as mortes alcançaram o patamar de 600 ocorrências por dia, com o colapso chegando ou já tendo chegado a várias capitais. No Rio, a fila de espera para leitos de UTI chega perto de 500 pessoas.

Se Toffoli foi mesmo engando por Bolsonaro e não sabia que estava participando de uma "live" para suas milícias digitais, que esclareça, então, em nota, lamentando o fato de ter caído numa espécie de cilada.

Não se falou sobre vítimas da doença no encontro. Os mortos foram um tema ausente. Quando se recorria à expressão "UTI", tratava-se de uma metáfora para aludir à economia. Isso, reitero, quando estamos no patamar das 600 ocorrências fatais por dia. Raramente senti tanta vergonha de ser brasileiro. Ou, por outra, de saber que compatriotas meus são capazes de fazer discurso tão pusilânime.

O encontro ocorre um dia depois de o próprio ministro da Saúde, Nelson Teich, ter admitido que, em certos lugares do país, será preciso recorrer mesmo ao lockdown, o que já acontece em São Luís, Belém e áreas próximas. Muitas pessoas estão morrendo em casa. As evidências de subnotificação nos envergonham. Ninguém pode estar contente com a situação, mas, então, que apresentem uma alternativa que não seja sinônimo de mandar milhares de pobres e pretos para as covas coletivas, em caixões empilhados.

Bolsonaro é, sim, um líder muito mais influente do que gostamos de admitir. É ele a matriz desse comportamento e desse sentimento que dá de ombros para a tragédia, transformando a morte em mero dano colateral do tal "funcionamento da economia", como se fôssemos obrigados a escolher entre uma coisa e outra. Tivesse havido o isolamento social na proporção adequada, e talvez estivéssemos mais prontos para sair dele.

É impressionante que um presidente do Supremo receba um presidente que não tem proposta nenhuma, que não respeita nem mesmo as orientações de um ministro da Saúde que foi escolhido a dedo para chegar lá e dizer: "O diabo não é tão feio como se pinta". Mas não há como o catatônico Teich fazer essa afirmação porque sua carreira ainda não acabou. Será desmoralizado pelos números. E ele terá de trabalhar depois do fim do governo. Ainda que seja hoje mais empresário do que médico, sobraram resquícios de sua ética profissional.

Se a alguns a resposta de Toffoli ao presidente pareceu dura, é puro erro de interpretação. O que se viu foi a ressuscitação do tal "Pacto entre os Poderes", coisa que, até agora, não sei o que significa e que, por óbvio, ninguém jamais saberá. A menos que alguém se apresente para esse tipo de encontro garantindo que, por algum tempo, vamos ignorar a lei em favor daquilo que o Poder Executivo, ou outro ente qualquer, considera eficiência.

Essa ida destrambelhada de Bolsonaro ao Supremo, naquela Marcha dos Mascarados, é das coisas mais patéticas, quem sabe a mais, de que eu e qualquer um temos memória pessoal e histórica. Um dia se vai esse espírito mau, e muitos vão se perguntar como foram capazes... E, no entanto, foram. Transforme os mortos numa taxa, num percentual, num número. Desumanize-os, submeta-os a um processo de reificação, de coisificação. E tudo ficará mais fácil. Depois, passe tudo pelo filtro do recalque, da pretensão e da arrogância sem lastro. E se chega àquilo que se viu nesta quinta-feira.

A história será muito dura com certas biografias. E nem precisará ser escrita com especial severidade. Bastarão os fatos.

Encerro lembrando que dá para saber agora por que há muito tempo parte da elite brasileira não se sentia devidamente representada na Presidência. Nenhum dos antecessores de Bolsonaro, incluindo os militares, seria capaz de fazer o que ele fez. Parte do capital no Brasil diz exatamente o que quer e como acha que devem ser tratados os pobres de tão pretos e pretos de tão pobres. O Brasil é o segundo país mais desigual do mundo. Só perde para o Catar. É injusto. Nossos bambas fazem de tudo para levá-lo ao primeiro lugar no pódio.

E a culpa pelas iniquidades, claro!, é do isolamento social.

Espetáculo constrangedor - CARLOS MELO

O Estado de S.Paulo - 08/05

Foi desconcertante assistir a um embaraçado presidente do STF dizer a Bolsonaro, nas entrelinhas, que o presidente da República é ele, não Toffoli

Fenômeno mundial, a pandemia atinge e agrava a situação econômica em todos países. Estados Nacionais, no entanto, existem para antecipar e mitigar problemas do tipo. Sua ação é inevitável.

Naturalmente, empresários de todo o planeta defendem seus interesses e querem soluções rápidas. Mas, em poucos lugares se fez tanto pelo agravamento do quadro quanto no Brasil. Aqui, foi explícito o boicote contra a única forma de abreviar o drama: a política de distanciamento social. A história é sabida, por atos e palavras, o presidente da República piorou a situação com que dizia se incomodar. Foi desserviço à própria economia.

Nesta quinta-feira, Bolsonaro talvez imaginasse atravessar o Rubicão. Mas, o que lhes sobrou foi o ato cênico de uma extravagante marcha pela Praça dos Três Poderes. Triunfo de nada, mais que inútil foi constrangedor. Gesto de enfrentamento? Talvez fosse intenção, mas restará como história do dia em que um presidente da República espontaneamente submeteu seu Poder a outro, como se Dias Toffoli fosse o verdadeiro chefe de Estado.

Foi desconcertante assistir a um embaraçado presidente do STF dizer a Jair Bolsonaro, nas entrelinhas, que o presidente da República é ele, Jair, não Toffoli; que é tarefa do Executivo, não do Supremo, planejar ações, construir consensos, articular atores políticos e a sociedade – governadores, inclusive. Pois, quereriam mais o que aqueles senhores?

Signo do improviso, a “marcha” talvez se pretendesse “Marcha sobre Roma”, de 1922, mas foi mais um eloquente grito de amadorismo. Espetáculo constrangedor que, ao final, mais pareceu batida em retirada de tropa desorganizada, sem projeto e sem comando. Agradará aos fanáticos de sempre, mas não se comunica com a nação nem apresenta saídas. Existem lugares de onde não há volta.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

A fatura a ser paga - CÉSAR FELÍCIO

Valor Econômico - 08/05

Construção de base não combina com apoio a Guedes

Em que pese o propósito golpista claro de uma militância de corte neofascista que apoia Bolsonaro, o presidente, no presente momento - que não fornece garantia alguma de se converter em tendência sustentada para o futuro - está mais próximo de Michel Temer do que de Mussolini.

A aliança entre Bolsonaro e o Centrão é altamente conveniente para ambos. O apoio do que outrora se convencionou chamar de baixo clero pode garantir ao governo algum grau de efetividade para aprovar matérias no Congresso, afasta a imagem de governo disfuncional. Constrói uma base mínima para justificar sua existência.

A sensação de ingovernabilidade é, ao lado da impopularidade, da falta de perspectivas econômicas, da existência de um projeto de poder alternativo e da descoberta de um crime de responsabilidade, uma das condições necessárias para que se desencadeie um processo de impeachment. O presidente parece raciocinar que o quadro é mais favorável a um processo de impeachment do que à concretização de um autogolpe que lhe confira poderes ditatoriais. Entre a tutela e a ruptura, flerta com a tutela.

O Centrão foi uma salvaguarda poderosa para Temer concluir o mandato, e pode ser assim com Bolsonaro. Há muito sentido em se pensar assim. “Existe uma confluência de interesses. Bolsonaro quer blindar o próprio mandato e garantir o dos filhos, o senador Flávio e o deputado federal Eduardo. O Centrão quer garantir o caráter impositivo das emendas, o fundo partidário e eleitoral e participar do bilionário Orçamento de Guerra”, comenta um veterano observador da cena política de Brasília, o cientista político Antonio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar.

Com estas ferramentas na mão, o Centrão garante a eleição de seus protegidos na disputa municipal de 2020, que em algum momento ocorrerá. O fracasso da organização do Aliança pelo Brasil para se converter no partido bolsonarista este ano, nesse sentido, foi altamente conveniente.

Bolsonaro, em contrapartida, faz o jogo das nomeações, como bem demonstrou ontem com a escolha do novo diretor do DNOCS, que será funcional para a candidatura do deputado Arthur Lira (PP-AL) à presidência da Câmara.

Hoje a maior liderança do Centrão, Lira naturalmente tende a se credenciar como favoritíssimo para a vaga de Rodrigo Maia na presidência da Mesa Diretora, se o casamento entre Bolsonaro e Centrão fluir.

Uma Câmara presidida por Lira tende a ter momentos emocionantes.No crepúsculo de seu poder, Rodrigo Maia detém ainda a faculdade de desencadear um processo de impeachment, mas é pouco provável que o faça sem ter certeza absoluta da vitória. Conta com a confiança plena dos principais agentes econômicos do País, mas seu poder para influir na própria sucessão rapidamente se esvai na medida em que fica claro que o DEM deverá repetir em 2022 a aliança com o PSDB. E é altamente provável que o partido do presidente da Câmara fortaleça a candidatura presidencial de Doria.

Lira não tem compromisso com projetos presidenciais atuais ou futuros. Ele assume acordos táticos, é um operador do curto prazo, daqueles que cobram de maneira incisiva faturas não pagas. Seus interesses coincidem com os do Planalto, mas a relação tem tudo para ser atribulada.

Trabalha também a favor de Bolsonaro, ao menos no Congresso, a presença de Hamilton Mourão na vice-presidência da República. Mourão tem sido um exemplo de moderação na posição de vice, mas algumas perguntas persistem no Congresso: o vice-presidente seria capaz de recuar em situações-limite, como Bolsonaro faz? Em momento de grande pressão da opinião pública, o que Mourão faria?

As Forças Armadas estariam mais inclinadas a uma adesão cega a aventuras presidenciais, se o presidente fosse Mourão?
Bolsonaro finge ser o outsider que Mourão na realidade é, esta é a suspeita básica que existe entre parlamentares. Com uma pessoa como Arthur Lira na presidência da Câmara, este fator há de ser medido cuidadosamente.

Para uma aliança entre Bolsonaro e o Centrão prosperar, talvez tenha que haver um sacrifício supremo do presidente da República, uma concessão que beira o insuportável para ser feita, que é a demissão de Paulo Guedes.

O ministro da Economia é um empecilho nesta nova argamassa. Sua agenda de privatizações, rigor fiscal absoluto e Estado mínimo não é compatível com o modelo de governo que o Centrão necessita para se aliar. Se Guedes não abrir mão da agenda de ajuste, subirá a pressão para que ele seja atropelado no processo, acredita Queiroz.

Um sinal eloquente disso foi a aprovação, pela Câmara e pelo Senado, da brecha para reajustes salariais de diversas categorias do funcionalismo. O aviso de Bolsonaro, ao lado de Guedes, de que vetará o dispositivo, mostra que o presidente, por ora, não está disposto a soltar a mão de seu ministro da Economia.

A alegada inadequação da agenda de Guedes às necessidades do mundo real não comove a cúpula da indústria, que ontem estava lado a lado com o governo federal para pressionar o Supremo a colocar em segundo plano a preservação de vidas na pandemia.

A pressão sobre o Supremo por enquanto parece ser apenas um gesto retórico. Ao sugerir que o governo federal crie um comitê de crises para coordenar soluções com as partes envolvidas na pandemia, o presidente do STF deixou claro que o problema não era com ele. Devolveu a bola ao campo adversário. As matilhas que seguem fanaticamente o presidente já estão convocando manifestações antidemocráticas para este fim de semana. Este jogo está em andamento.

O mais importante no gesto de ontem é que lá estavam o grande capital, os ministros militares e o presidente, todos prestigiando Guedes. A questão é por quanto tempo o presidente conseguirá sustentar o fogo para preservar o perímetro de segurança em torno do ministro. O presidente pode ter que fazer uma escolha amarga.

César Felício é editor de Política.

A pé e na contramão - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 08/05

Com transmissão ao vivo no STF, presidente do Executivo assumiu presidência do Judiciário

Quanto mais perdido na Presidência, mais Jair Bolsonaro parte para ataques e demonstrações de força, na tentativa de culpar as instituições e os governadores pelos próprios erros e dividir os ônus das múltiplas tragédias que assolam o Brasil. Os mortos vão chegando a 10 mil e os sistemas de saúde e funerário entram em colapso, mas a prioridade do presidente não são a doença e as mortes. “E daí?” A história vai lhe cobrar um alto preço.

Atravessar a Praça dos Três Poderes a pé, com empresários e ministros, para pressionar o Supremo no sentido oposto ao que defendem o ex e o atual ministros da Saúde, é mais um ato surpreendente. E o presidente do Executivo se comportou como presidente do Judiciário. Fez uma transmissão ao vivo lá de dentro e deixou o anfitrião (compulsório) como coadjuvante.

Várias vezes o ministro Dias Toffoli se dirigiu a ele ao tomar a palavra, mas Bolsonaro nem sequer virou o rosto para ouvi-lo e, com ar de enfado, olhou ostensivamente o relógio. Entrou na casa alheia, assumiu o comando e ainda demonstrou desconforto com o anfitrião. Bolsonaro sendo Bolsonaro. Ele não estava ali para ouvir, só para falar.

Ao dizer que “quase” houve uma crise institucional quando o ministro Alexandre de Moraes suspendeu a posse do delegado Alexandre Ramagem na Polícia Federal, Bolsonaro deixou no ar uma dúvida, ou ameaça: ele é capaz de desacatar o Supremo, de desobedecer a uma decisão judicial? Essa ameaça contamina o ar, já contaminado pelo coronavírus.

As pendências entre Supremo e Planalto se avolumam, centradas agora nas acusações do ex-ministro Sérgio Moro a Bolsonaro. O vídeo da reunião de 22/4 em que o presidente avisou a ministros que demitiria o diretor da PF é considerado a principal prova de Moro. Há também a convocação dos três generais do Planalto para depor e, de quebra, a intrigante resistência de Bolsonaro a cumprir decisão judicial e entregar seus testes para a covid-19.

O Planalto se atrapalhou com as versões do vídeo. Não havia, não se sabia onde estava, até Bolsonaro admitir a gravação num pendrive e AGU fazer duas sugestões: não entregar ao STF, porque haveria “questões sensíveis” nessa reunião; depois, entregar o vídeo editado, só com as partes que interessam a Bolsonaro (e não à investigação?). A trapalhada comprova a importância da prova: a “materialidade”.

Quanto à convocação dos generais Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno para depor, houve um excesso do decano e relator da investigação Moro-Bolsonaro, Celso de Mello. Ok, é da praxe, uma fórmula pronta, mas ele poderia ter excluído as expressões “condução coercitiva” e “debaixo de vara”. A Defesa ficou fora, porque os generais não são testemunhas enquanto militares, mas como ministros. Mas os generais manifestaram indignação ao STF.

A sociedade conta com a firme posição do Judiciário e do Legislativo contra investidas autoritárias, mas o STF precisa ser muito responsável e há dois agravantes, um de cada lado: Celso de Mello é ostensivamente crítico a Bolsonaro e não tem muito a perder, já que se aposenta em novembro, e o presidente Toffoli parece mais dedicado a compor com Bolsonaro do que com seus pares.

Em meio a tudo isso, o presidente entope o governo de militares, abre as portas para o Centrão e acaba de criar nova tensão com Paulo Guedes, ao dar sinal verde para a ampliação pelo Congresso da lista de categorias do funcionalismo com direito a reajustes, apesar da crise e da pandemia. A contrapartida dos Estados proposta pelo Ministério da Economia para a ajuda aos Estados, de R$ 130 bilhões, caiu para R$ 43 bilhões. “Inaceitável!”, berrou Guedes para sua equipe. De novo, Bolsonaro fez, Guedes chiou, Bolsonaro desfez. Até quando?

Regina Duarte vira Chapeuzinho Vermelho abilolada - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 08/05

Ninguém se afoga por cair na água, mas por permanecer lá. Regina Duarte permanece nas águas turvas do governo Bolsonaro agarrando-se a jacarés como se fossem troncos. Não podendo decretar o fim da guerra ideológica na Secretaria da Cultura, a atriz ajustou o seu discurso à ideologia do presidente.

Numa única entrevista, concedida à CNN, Regina Duarte justificou o seu silêncio diante da morte de baluartes da cultura —"Será que eu vou ter que virar um obituário?"—, cantarolou a marchinha preferida do ditador Médici —"Pra frente, Brasil"— contemporizou com a tortura e a morte nos porões da ditadura —"Sempre houve tortura, não quero arrastar um cemitério nas minhas costas"— e celebrou sua própria fritura —"Estou adorando estar aqui."

No seu discurso de posse, há dois meses, Regina Duarte disse ter aceitado ingressar no governo porque Bolsonaro lhe prometeu "carta branca" e uma Secretaria da Cultura de "porteira fechada". A exemplo de Sergio Moro, ela também acreditou em Papai Noel. Tornou-se uma espécie de Chapeuzinho Vermelho que a turma do Olavo de Carvalho e do Carlos Bolsonaro xinga de comunista.

Regina Duarte ainda não conseguiu compor a equipe dos seus sonhos. Deveria buscar a assessoria de uma criança de cinco anos. No teatro infantil, com seus enredos básicos, sua comédia ingênua e seus exageros trágicos, as crianças se integram com facilidade à catarse. Elas participam do espetáculo. Interferem na história, vaiam os vilões e torcem pelos herois.

Uma criança avisaria para a Chapeuzinho Vermelho, aos berros, que o Lobo Mau está prestes a atacar. Invadiria o palco para evitar o ataque. O que falta a Regina Duarte é uma criança de cinco anos capaz de saltar da poltrona do teatro e gritar, a plenos pulmões: "Fuja, Chapeuzinho!"

Enquanto CPFs morrem, Bolsonaro serve cafezinho para os CNPJs - BRUNO BOGHOSSIAN

FOLHA DE SP - 08/05

Presidente mantém campanha pela economia, mas governo não tem plano para retomada segura


Pelo segundo dia seguido, o ministro da Saúde disse que o governo deve recomendar medidas mais rigorosas de isolamento contra o coronavírus em algumas cidades. Nelson Teich afirmou na Câmara que o chamado “lockdown” pode ser implantado para “segurar o número de casos novos” de contaminação.

O doutor está na contramão do chefe. Após receber empresários e fazer um comício no STF contra o distanciamento, Jair Bolsonaro alegou que as restrições são inúteis. “Essa questão de ‘fique em casa’ não está funcionando. Está servindo para matar o comércio”, diagnosticou.

O presidente trocou o ministro responsável pelo combate à pandemia porque Henrique Mandetta não dizia o que ele queria ouvir. Teich assumiu com um discurso errático e completou 20 dias no cargo sem nenhuma ideia de como enfrentar a crise, mas nem ele conseguiu maquiar a realidade para agradar ao patrão.

Bolsonaro insiste numa retomada imediata e milagrosa da economia, embora ninguém no governo seja capaz de apresentar um plano para que isso seja feito de forma segura. Seu propósito é puramente político: uma tentativa de manter a tensão com governadores e se proteger dos danos provocados pela recessão.

Enquanto sistemas hospitalares entram em colapso e corpos se amontoam em câmaras frigoríficas, o presidente só se lembra deles para fazer campanha pela reabertura de lojas e fábricas. “A indústria comercial está na UTI”, declarou. “Depois da UTI, é o cemitério.”

Ele reproduzia a metáfora de lobistas que foram a Brasília para defender o relaxamento das medidas de restrição. Um deles, representante de fábricas de brinquedos, mostrou qual era a preocupação da turma. Reclamou da China e completou: “Eu tenho um inimigo lá fora prontinho para suprir o mercado inteiro, e então haverá morte de CNPJ”.

Até esta quinta (7), morreram 9.146 CPFs, na linguagem do empresário. Já os CNPJs do grupo que visitou Bolsonaro receberam ajuda do governo e cafezinho no Palácio do Planalto.​

Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

A marcha da insensatez - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 08/05


A marcha do presidente Bolsonaro, seu ministro da Economia Paulo Guedes, deputados e um grupo de industriais sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) é uma típica ação política de pressão, e ao negar esse intuito o chefe do Gabinete Civil General Braga Neto demonstra que não entende nada do assunto, ou, ao contrário, já deixou de ser um técnico apolítico para se transformar em um político seguidor do presidente.

Comparável a isso apenas na forma, não na gravidade institucional, só a marcha que o então governador Antonio Carlos Magalhães fez sobre o Palácio do Planalto, acompanhado de bancada baiana na Câmara e no Senado, para protestar contra a intervenção no Banco Econômico no governo de Fernando Henrique Cardoso.

O presidente Jair Bolsonaro não pode aumentar a pressão para o fim do isolamento justamente no momento em que o país entra na hora mais crítica da epidemia da Covid-19. Uma pressão indevida em cima do presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, que foi constrangido a recebê-lo e sua trupe sem audiência marcada e, inacreditável, transmitindo a reunião ao vivo em suas redes sociais.

Seus companheiros de toga ficaram irritados, evidentemente, com o ultrajante avanço do chefe do Executivo sobre um outro poder, e gostariam que Toffoli tivesse recebido apenas o presidente, deixando a comitiva na sala de estar. Evidentemente, não foi uma visita de cortesia, como disse Paulo Guedes, mas sim uma pressão para impedir que Estados façam lockdown e apertem as barreiras para evitar o aumento do caso de mortes pela Covid-19, que já está chegando a limites dramáticos.

A resposta de Toffoli foi certeira, colocando a coisa em seu devido lugar, ao reafirmar que a Constituição garante a competência de estados e municípios na matéria. O comitê de crise sugerido por ele poderia estar funcionando há muito tempo, se o presidente não fosse tão autoritário.

Colocar na mesma mesa representantes de governadores, prefeitos, industriais, comerciantes, médicos, judiciário, sob a coordenação do ministerio da Saúde para planejar o momento certo e como fazer o relaxamento da quarentena seria uma medida correta num governo normal. Mas nada nesse governo é normal.

Agora mesmo estamos às voltas com a disputa pela divulgação do vídeo da reunião ministerial em que o presidente Bolsonaro teria ameaçado o então ministro Moro de demissão se não concordasse com a troca do diretor-geral da Policia Federal.

O governo, através da AGU, primeiro pediu ao ministro Celso de Mello, relator do processo no STF, que revogasse a exigência, e depois que a fita fosse editada. Tudo indica que teremos uma repetição, como farsa, da crise do então presidente dos Estados Unidos Richard Nixon com a Suprema Corte, na investigação do caso Watergate, em torno da divulgação de áudios das conversas presidenciais em seu gabinete no Salão Oval.
Conforme relato do livro “Os dias finais”, de Bob Woodward e Carl Bernstein, o juiz Thurgood Marshall disse no julgamento da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre o direito de Nixon de escolher quais documentos liberaria para a Comissão Especial que investigava o caso Watergate: “A Nação estará seriamente ameaçada se o Presidente, qualquer Presidente, puder dizer que a Constituição é o que ele acha que é, e que não existe ninguém, nem mesmo a Corte Suprema, capaz de dizer-lhe que as coisas não são assim”.

O promotor especial Jaworski alegava que ele tinha direito de levar o Presidente aos tribunais sobre a questão do privilégio executivo. O advogado da presidência, St. Clair, defendia que o promotor especial era um funcionário do Executivo e devia obediência ao Presidente.

Os juizes pareciam espantados com a alegação de que quem definiria quais provas deveriam ser dadas era o presidente Nixon. O advogado insistia em que a privacidade do Presidente deveria ser preservada, e citou o caso de uma fictícia conversa entre o Presidente e um indicado para a Suprema Corte.

O juiz Marshal então atacou: “o senhor não acha que seria importante tomar conhecimento de uma conversa em que o presidente estivesse escolhendo um membro da Suprema Corte em troca de dinheiro?”.

Resta saber o que o presidente Bolsonaro e seus ministros palacianos querem esconder do público.

Deslealdade - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 08/05

Jair Bolsonaro, que tanto diz prezar a lealdade, foi absolutamente desleal com o presidente do STF. O objetivo foi somente usar Dias Toffoli para sua propaganda política desvairada


O presidente Jair Bolsonaro, que tanto diz prezar a lealdade, foi absolutamente desleal com o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli. Praticamente sem aviso prévio, como fazem os que não tiveram educação em casa, Bolsonaro foi ao Supremo acompanhado de uma comitiva de empresários e assessores para cobrar do ministro Toffoli providências para levantar as medidas restritivas impostas nos Estados para enfrentar a pandemia de covid-19.

A deselegância da visita sem convite nem foi o pior aspecto desse episódio vergonhoso. Para começar, o presidente Bolsonaro providenciou uma equipe de filmagem para registrar o momento e transmitir as imagens em suas redes sociais, com o objetivo evidente de fazer do embaraçoso encontro um evento eleitoreiro.

Na encenação mequetrefe que protagonizou, e para a qual arrastou o chefe do Poder Judiciário, o presidente Bolsonaro pretendia afetar preocupação com a economia do País, duramente prejudicada pela pandemia. Na verdade, sua única preocupação, como sempre, era com a manutenção de seu capital eleitoral, que míngua à medida que a inédita crise avança.

No seu afã de parecer um herói do setor produtivo, demandou que as restrições acabem “o mais rápido possível”, para aliviar as “aflições” dos empresários, pois “a economia também é vida” – isso no dia em que o País ficou sabendo, por meio da Confederação Nacional de Saúde, que o sistema hospitalar privado de seis Estados já não tem mais UTIs disponíveis em razão do colapso do sistema público.

A deslealdade de Bolsonaro, portanto, não foi somente em relação ao ministro Toffoli, mas também com os brasileiros que já morreram e com os moribundos. O presidente explora o padecimento de seus concidadãos para minar a imagem dos que considera seus adversários – isto é, todos os que não lhe dizem amém – e fugir de suas responsabilidades como chefe de governo.

Assim, o improviso de Bolsonaro foi perfeitamente calculado. Formado na velha política, o presidente sabe farejar oportunidades para exercitar seu populismo reacionário. Enquanto governadores de Estado lutam para convencer seus governados a ficarem em casa, pois esta é a única maneira de enfrentar o coronavírus, o presidente surge impetuoso no Supremo como o destemido defensor do povo que “quer trabalhar”. E os empresários que acompanharam Bolsonaro deram seu aval a esse engodo, que é mais um vexame que o País está a passar graças à leviandade bolsonarista.

Mas há outra razão, não tão evidente e talvez mais importante, que levou Bolsonaro a tentar envolver o ministro Dias Toffoli em sua contradança macabra. O presidente quis causar constrangimento ao Poder que ora tolhe seus movimentos autoritários e amofina o clã Bolsonaro. Seguidas derrotas no Supremo transformaram os ministros togados em inimigos do bolsonarismo, a ponto de o próprio presidente, há alguns dias, ter feito um comício em que invocou as Forças Armadas vituperando contra as interferências do Judiciário em suas decisões. Mais golpista, impossível.

Mas o presidente do Supremo não se deixou intimidar. Primeiro, disse a Bolsonaro que, para enfrentar a pandemia e seus efeitos sociais e econômicos, “é fundamental uma coordenação (do governo federal) com Estados e municípios”, cobrando do presidente a formação de um gabinete de crise efetivamente nacional, que nunca existiu. Em seguida, o ministro Toffoli lembrou ao chefe do Executivo que “a Constituição garante competências específicas para os entes” (União, Estados e municípios) e, por isso, o Supremo já definiu que governadores e prefeitos têm a prerrogativa de adotar medidas de isolamento. Logo, se Bolsonaro pretendia arrancar do ministro Toffoli algum compromisso com sua estratégia destrambelhada de enfrentamento da pandemia, deve ter saído frustrado do encontro.

Mas não nos deixemos enganar. O objetivo de Bolsonaro não era converter o ministro Toffoli a seu credo sinistro, e sim somente usá-lo para sua propaganda política desvairada. Para os inocentes úteis que ainda enxergam em Bolsonaro um chefe de Estado, e não um oportunista, ele certamente foi bem-sucedido.