quinta-feira, outubro 10, 2024

Por que os EUA apostam nas armas? - BRENO ALTMAN

FOLHA DE SP -  10/10

Dinâmica da acumulação capitalista se degrada em extrema concentração de renda e riqueza, empobrecimento de trabalhadores e colapso ambiental
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O mundo vive a crise da ordem estabelecida em 1991, após o colapso da União Soviética e a quebra do campo socialista. Vencida a Guerra Fria, os Estados Unidos conquistaram a hegemonia planetária em todos os terrenos: militar, político, econômico e cultural.

Parecia tão indestrutível esse novo contexto que, para muitos, fazia todo o sentido a afirmação de Francis Fukuyama, renomado cientista político norte-americano: chegara-se ao "fim da história", não haveria alternativa além da democracia liberal e da economia de mercado.

Trinta anos depois, esse horizonte de pedra está abalado. Os Estados Unidos lutam para manter seu comando, acantonados por fatores degenerativos internos e externos. A dinâmica da acumulação capitalista se degrada em extrema concentração de renda e riqueza, empobrecimento das classes trabalhadoras, colapso ambiental e adoecimento físico-mental. O regime político perde legitimidade e funcionalidade, dissociado de qualquer perspectiva sustentável de prosperidade. A coesão social se desfaz a olhos vistos.

Apesar das imensas reservas de poder, os EUA acompanham seu protagonismo ser ameaçado pelo desenvolvimento chinês, cuja aceleração seduz países de quase todos os continentes. Novas articulações e instituições multipolares, além de nações e blocos ambicionando autonomia, despontam à margem da arquitetura imperialista erigida após a Segunda Guerra. Dois dos pilares hegemônicos fundamentais são confrontados: a dominância do dólar nos fluxos financeiros e o monopólio da guerra sobre as relações internacionais.

Uma coalizão heterogênea de Estados vai sendo tecida para superar a ordem pós-soviética. A coluna vertebral dessa aliança está na crescente associação entre a pujança econômica da China e o reerguimento do exército russo. Torna-se cada vez mais difícil a manutenção do modelo copérnico estabelecido no final do século 20, pelo qual todas as nações deveriam girar ao redor de um centro único ou sofrer as consequências por qualquer indisciplina.

O certo é que as classes dirigentes dos EUA estão decididas a pagar qualquer preço para impedir que a decadência se transforme em bancarrota. Contam com a solidariedade incondicional de seus vassalos, especialmente europeus e japoneses, para uma luta de vida ou morte.

Mas não é na economia que o Ocidente imaginário localiza sua principal plataforma de sobrevivência, mas sim na guerra. Seus dirigentes acreditam que ainda conservam posição predominante no aspecto militar, capaz de impor limites a seus oponentes, além de impulsionar um dos setores mais lucrativos, o complexo bélico-industrial.

A sustentação da Ucrânia e do Estado de Israel, armados até os dentes pelos Estados Unidos e a União Europeia, comprova a opção de incentivar potências regionais como cabeças de ponte que ajudem a preservar ou conquistar, na marra, liderança sobre zonas estratégicas.

No outono de sua hegemonia, a Casa Branca empurra a humanidade para a beira do precipício. Sem ilusões com republicanos e democratas, somente uma firme posição anti-imperialista, em defesa da paz e da soberania, poderá livrar países como o Brasil de acabarem sequestrados por um sistema que prefere a guerra e a destruição como mapa da estrada.

domingo, setembro 08, 2024

Musk alia interesses comerciais a inclinações políticas sob o manto da liberdade de expressão - Patrícia Campos Mello


Musk alia interesses comerciais a inclinações políticas sob o manto da liberdade de expressão

Bilionário, que está em embate com STF, se alinha a políticos de direita que defendem desregulamentacão e abertura de mercados para Tesla e Starlink


FOLHA DE SP 08/09/24


Patrícia Campos Mello
São Paulo


Enquanto se apresenta como o paladino da liberdade de expressão no mundo, o bilionário Elon Musk protege seus interesses comerciais e promove seus aliados políticos no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa.

Homem mais rico do mundo e pioneiro nos campos de viagens espaciais (SpaceX), satélites de baixa altitude (Starlink), carros elétricos (Tesla) e implantação de chips no cérebro (Neuralink), o sul-africano de 53 anos mantinha posições políticas discretas e tendia para a centro esquerda. Cidadão americano desde 2002, declarava voto no Partido Democrata.

A conversão de Musk de gênio excêntrico em megafone da extrema direita global se deu a partir da pandemia de Covid-19, em 2020. "O pânico com o coronavírus é idiota", disse Musk em um tuíte. Naquela época, como conta seu biógrafo Walter Isaacson em "Musk", o bilionário se insurgiu contra as ordens de fechar sua fábrica da Tesla na Califórnia e desafiou o delegado local a prendê-lo.

Ao longo de 2021, o bilionário fez várias postagens em redes sociais criticando Joe Biden e o governo por supostas injustiças contra suas empresas.

O fato de Biden ter recebido na Casa Branca montadoras de Detroit para celebrar carros elétricos –e ignorar a Tesla, maior fabricante desses veículos no país– acabou de azedar a relação. A Tesla havia instituído várias medidas que desestimulavam os funcionários a se sindicalizarem, e Biden não queria irritar o poderoso sindicato.

Até então, Musk tinha sido um grande apoiador de políticos progressistas. Na eleição de 2020, ainda declarou apoio a Biden.

Mas já estava migrando gradualmente para a direita. Iniciou uma cruzada contra o "woke", expressão usada de forma pejorativa para designar os exageros do politicamente correto.

"A menos que o vírus da mentalidade woke, que é anticiência, antimérito e anti-humano, seja contido, a civilização jamais se tornará multiplanetária", disse a Isaacson.

Um dos motivos para essa guinada foi sua oposição à transição de gênero da filha Vivian Jenna, que rompeu relações com o pai.

Em maio de 2022, abandonou oficialmente os democratas. "No passado, votei nos democratas, porque eram (na maioria) o partido da gentileza", tuitou. "Mas se tornaram o partido da divisão & do ódio, por isso não posso mais apoiá-los e vou votar nos republicanos".

Segundo Isaacson, Musk escreveu isso quando estava a caminho do Brasil para se reunir com o então presidente Jair Bolsonaro (PL).

Pouco depois, o bilionário afirmou que iria votar nos republicanos na eleição legislativa de novembro de 2022 já que "houve ataques gratuitos de líderes democratas contra mim e esnobaram a Tesla e a Space X".

Com a conclusão da compra do Twitter, que ele rebatizou de X, em outubro de 2022, sua transformação em profeta da nova direita se completou. Na época, ele acusou plataforma de ter um "forte viés de esquerda" e disse que iria reduzir a moderação de conteúdo para defender a liberdade de expressão.

Uma das primeiras medidas ao assumir foi restabelecer a conta de Trump. O republicano havia sido suspenso após usar as redes para incitar seus apoiadores a contestar os resultados da eleição presidencial de 2020. O movimento culminou no ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021, que deixou 5 mortos.

Também começou a se pronunciar sobre questões internacionais e interagir com o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban. Abraçou vários temas caros à extrema direita –críticas a um suposto racismo contra brancos, à "ideologia de gênero" e a imigrantes.

Disseminou a teoria conspiratória de que Biden estimula a imigração indocumentada para "criar eleitores de esquerda". Outra obsessão é a queda da taxa de natalidade da população branca. Ele tem 12 filhos. "Estou fazendo o melhor que posso para combater a crise de subpopulação", disse.


No Reino Unido, amplificou postagens de extremistas anti-imigração após um ataque contra meninas em uma escola de dança que levou a protestos violentos. Advertido pelo comissário europeu Thierry Breton, respondeu com um meme e um xingamento.

De acordo com um levantamento do jornal Wall Street Journal, as postagens de Musk sobre política aumentaram 230 vezes em 2024 na comparação com 2019. Antes, ele publicava principalmente informações sobre suas empresas, piadas e memes.

Musk tem 196,5 milhões de seguidores no antigo Twitter. O fato de ele fazer campanha abertamente a favor de Trump e contra Kamala Harris tem gerado discussões sobre o potencial do bilionário influenciar na eleição americana, ao desequilibrar a disputa. Como dono da rede social, ele já determinou a engenheiros que ampliassem alcances de seus posts e os promovessem.

Ele anunciou apoio a Trump em julho, logo após o republicano sofrer uma tentativa de assassinato em comício. Em agosto, bajulou o republicano em uma entrevista de mais de duas horas no Spaces do X. E contratou um estrategista republicano para ajudá-lo a incentivar votos em Trump.

Considerações empresariais explicam parte da conversão de Musk. Como outros bilionários do Vale do Silício, principalmente os amigos que criaram com ele o PayPal, Musk se tornou crítico de Biden pela política mais intervencionista dos democratas na economia, especialmente tentativas de regulação de tecnologia.


No governo Biden, a Tesla foi investigada pelo Departamento de Justiça e a Comissão de Valores Mobiliários. A percepção é que Trump repetiria o ímpeto desregulatório de seu primeiro mandato. Musk até se ofereceu para participar de uma "comissão de eficiência" no governo que Trump promete implementar se for eleito.

Sua defesa da liberdade de expressão é seletiva. Musk não critica a muralha digital que proíbe o acesso ao X e outras plataformas na China —50% dos veículos da Tesla são produzidos na fábrica em Xangai.

Na Índia e na Turquia, onde os líderes são de direita, o bilionário removeu inúmeras contas e postagens a pedido do governo, muitas vezes sem ordem judicial, e não reclamou. "Nós não podemos violar as leis do país", disse Musk sobre a Índia, em abril de 2023.

Nos EUA, segundo o Washington Post, o X está restringindo ou classificando como "spam" contas de apoio a Kamala.

"Musk é um absolutista da liberdade de expressão quando convém", diz Caio Machado, pesquisador das universidades Harvard e Oxford. "E ele se sente autorizado a usar a infraestrutura que detém (satélites, rede social) para coagir países e governos."

Também na América Latina os negócios do bilionário andam de mãos dadas com sua cruzada anti-esquerda. "Vamos dar golpe em quem quisermos. Lide com isso", escreveu Musk em 2020 ao responder a um post acusando Washington de ter deposto o então presidente esquerdista Evo Morales para se apropriar das reservas de lítio.

A Bolívia tem 29% das reservas mundiais do minério, essencial para baterias de carros elétricos. A Tesla tentou entrar no mercado boliviano, onde operam hoje empresas chinesas e russas.

Em abril deste ano, Musk e o presidente argentino Javier Milei se encontraram no Texas e prometeram promover o "livre mercado" e projetos de exploração de lítio –a Argentina é outra com grandes reservas.

Também no Brasil, seus interesses comerciais misturam-se com suas inclinações políticas.

Em novembro de 2021, o então ministro das Comunicações, Fábio Faria, se reuniu com Musk na sede da Tesla nos EUA e anunciou que o governo queria fazer parcerias com a Starlink para uso de satélites no monitoramento da Amazônia e conexão de escolas.


Pouco depois, em janeiro de 2022, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) aprovou o uso de satélites da Starlink.

Dali a quatro meses, Musk veio ao Brasil para se reunir com Bolsonaro e empresários em um hotel de luxo perto de São Paulo. O bilionário foi condecorado com a medalha da Ordem do Mérito da Defesa pelo Ministério da Defesa.

Em julho de 2022, o governo Bolsonaro baixou o decreto 11.120, que facilita a exportação de lítio do país. O Brasil detém a oitava maior reserva de lítio do mundo.

A Tesla expressou interesse em investir na Sigma Lítio, que opera na exploração do minério no vale do Jequitinhonha. A BYD, fabricante chinesa de veículos elétricos, também entrou no páreo. Nenhum acordo foi divulgado até agora.

Em março de 2022, ainda durante o governo Bolsonaro, a Tesla assinou um acordo com a mineradora brasileira Vale para fornecimento preferencial de níquel, outra matéria-prima para baterias de veículos elétricos. O minério é proveniente das operações da brasileira Vale no Canadá.

A Starlink teve crescimento meteórico –passou de 26.694 acessos em abril de 2023 para 224.458 acessos em agosto deste ano (alta de 740%), segundo a Anatel. É a única maneira de acessar a internet em várias localidades da Amazônia e é usada por produtores agrícolas em diversas regiões.

Já no mandato de Lula, Musk apareceu de surpresa em uma reunião por Zoom com integrantes do governo logo após os ataques de 8 de janeiro de 2023. Apesar de pedidos, não retirou postagens incitando à destruição do Congresso e intervenção militar. Durante a conversa, ele teria ressaltado "a importância de defender a liberdade de expressão".

Desde então, os embates do bilionário com o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e o governo vêm escalando.

Em abril, após Moraes ameaçar tirar o X do ar se Musk não cumprisse ordens de remoção de contas e posts, o bilionário chamou o juiz de "ditador do Brasil" e disse que descumpriria decisões judiciais brasileiras.

Bolsonaro fez uma live afirmando que o bilionário havia encampado a luta pela liberdade no país. "A nossa liberdade, em grande parte, está nas mãos dele", disse.

Em maio, a área técnica da Anatel abriu procedimento para avaliar impactos da possível expansão de serviços de internet via satélite da Starlink no Brasil.

O descumprimento de ordens judiciais pelo X culminou na ordem de Moraes para bloquear o aplicativo no país, no dia 30 de agosto.

Enquanto isso, algumas das promessas de Musk no país empacaram. Após se reunir com Bolsonaro em maio de 2022, Musk anunciou pelo X "o lançamento da Starlink para 19 mil escolas desconectadas" na Amazônia.

Procurado, o Ministério da Educação afirmou que o projeto não saiu do papel. O Ministério das Comunicações informou que não tem contrato com a Starlink e nenhum dos seus programas utiliza atualmente o serviço.

quinta-feira, agosto 15, 2024

Moraes não é Moro - THIAGO AMPARO

FOLHA DE SP -15/08/25


Folha acerta ao expor as mensagens, mas errará se não explicar que são situações distintas


Brasília acordou e se deparou com um elefante na sala: a correspondência em que o gabinete de Alexandre de Moraes ordenou —"por mensagens e de forma não oficial", nas palavras desta Folha— a produção de relatórios pelo TSE, que presidia à época, para fundamentar a investigação de fake news no STF, que ele mesmo conduzia na corte (com o aval do plenário do Supremo, aliás).

O jornal afirmou que a atuação de Moraes estaria fora do rito. O rito era Moraes (STF) oficiar o Moraes (TSE). Qualquer análise precisa partir do fato de que as instituições estavam lidando com um campo político que queria implodir a democracia e literalmente o fez no fatídico 8 de janeiro. Sem essa clareza histórica, o que é análise vira inocência.

Nem tudo que cheira mal é ilegal, mas nem por isso deixa de ser pouco transparente e esquizofrênico. É o caso. Moraes não é Sergio Moro: não emitiu ordens a pessoas a ele não subordinadas, como promotores; o gabinete do ministro emitiu ordens para subordinados a ele em outro órgão. Ilegal não é se Moraes poderia ordenar, legalmente, ele mesmo a produção de relatórios.

A Folha acerta ao expor as mensagens; errará, no entanto, se não explicar ao leitor que são situações distintas. O problema de Moraes é a falta de transparência dos atos, por mensagem, e a eventual interferência (se houve) no conteúdo dos relatórios do TSE por seu gabinete do STF. O caso evidencia algo a que um país de pequenos poderes não está acostumado: a mesma pessoa não significa o mesmo cargo.

Parte da esquizofrenia, no entanto, é institucional e é dupla: ter um membro do Supremo presidindo a Justiça Eleitoral significa, consequentemente, ter um juiz do Supremo que acumula o poder de polícia do TSE e o poder de presidir inquérito criminal no Supremo. É incoerência e faz mal à democracia, mas não é culpa de Moraes e sim do desenho institucional da Justiça brasileira —e nisto é falho e opaco, favorecendo os corredores do poder e não seu escrutínio público.

quarta-feira, maio 15, 2024

Aumento da longevidade trará mudanças sociais profundas - Martin Wolf

FOLHA DE SP 16/05/24

Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.


Aumento da longevidade trará mudanças sociais profundas

Pessoas terão que trabalhar por mais tempo e a previdência social precisará ser transformada

FINANCIAL TIMES



Em 1965, a idade mais comum de morte no Reino Unido era no primeiro ano de vida. Hoje, a idade mais comum para morrer é de 87 anos. Essa estatística surpreendente vem de um novo e notável livro, "The Longevity Imperative" [O Imperativo da Longevidade, em tradução livre], de Andrew Scott, da London Business School.

Ele observa também que uma menina recém-nascida no Japão tem 96% de chance de chegar aos 60 anos, enquanto as mulheres japonesas têm uma expectativa de vida de quase 88 anos. O Japão é excepcional. Mas estamos vivendo mais em todos os lugares: a expectativa de vida global é agora de 76 anos para mulheres e 71 para homens (claramente, o sexo mais fraco).

Esse novo mundo foi criado pelo colapso nas taxas de morte dos mais jovens. Em 1841, 35% dos meninos morriam antes de completar 20 anos no Reino Unido e 77% não sobreviviam até os 70 anos.

Em 2020, esses números haviam caído para 0,7% e 21%, respectivamente. Nós praticamente derrotamos as causas de morte precoce, por meio de alimentos e água mais limpos, vacinação e antibióticos. Lembro-me quando a poliomielite era uma grande ameaça. Ela está quase totalmente erradicada, assim como o outrora muito maior perigo da varíola.

Essa é a maior conquista da humanidade. No entanto, nossa principal reação é nos preocuparmos com os custos de uma sociedade "envelhecida". Os jovens adultos e pessoas de meia-idade prefeririam saber que eles e, pior, seus filhos poderiam morrer a qualquer momento? Sabemos a resposta para essa pergunta.

Sim, o novo mundo em que vivemos cria desafios. Mas o principal argumento de Scott é que esse mundo também cria oportunidades.

Precisamos repensar a velhice, tanto individualmente quanto socialmente. Não devemos empurrar uma grande parte de nossa sociedade para uma "velhice" improdutiva e insalubre.

Podemos e devemos fazer muito melhor, tanto individualmente quanto socialmente. Este é o "imperativo" dele. Exceto por um desastre, haverá muito mais pessoas muito idosas: em 1990, havia apenas 95.000 pessoas com mais de 100 anos no mundo. Hoje, há mais de meio milhão, e esse número está aumentando.

Uma grande questão é como as pessoas vão envelhecer. Elas vão desfrutar de uma velhice vigorosa e depois morrer subitamente, ou viveremos "sem olhos, sem dentes, sem nada" por muitos anos impotentes e sem esperança? Scott imagina quatro cenários.

O primeiro são os Struldbruggs de Jonathan Swift, imortais, mas envelhecendo eternamente. O segundo é Dorian Gray de Oscar Wilde, que vive jovem e depois morre subitamente velho. O terceiro é Peter Pan, que é eternamente jovem. O quarto é Wolverine dos quadrinhos da Marvel, que é capaz de se regenerar.

Podemos concordar que o primeiro é terrível. No entanto, parece ser onde estamos: se vivermos o suficiente, tendemos a nos desintegrar lentamente. Mas, talvez, a combinação de uma dieta melhor, mais exercícios e avanços médicos possa oferecer outras possibilidades.

Isso, argumenta Scott, é para onde os esforços devem se concentrar agora, não apenas no tratamento ou, pior, apenas na gestão dos males da velhice, mas na busca por evitá-los.

Isso requer não apenas avanços médicos. A alta desigualdade não é apenas uma questão social e econômica, mas também um risco para a saúde.

A expectativa de vida na China agora é de 82 anos para mulheres e 76 para homens. Surpreendentemente, isso é muito semelhante aos EUA. A expectativa de vida neste país é surpreendentemente baixa para um país tão rico. Isso se deve a enormes desigualdades de saúde.

Segundo Scott: "Nos EUA, a diferença na expectativa de vida entre o 1% mais rico e o 1% mais pobre é de quinze anos para homens e dez anos para mulheres."

No entanto, precisamos mudar não apenas como envelhecemos, mas como pensamos sobre a idade.

O mundo de Dorian Gray, embora ideal, parece improvável. Mas um mundo de Struldbruggs ou Peter Pans seria horrível.

Isso é verdade para o primeiro, porque a maioria de nós não deseja terminar nossas vidas na decrepitude, impondo inevitavelmente também um grande fardo aos membros mais jovens da sociedade. Isso também é verdade para o segundo, porque poucos quererão viver ao lado de seus bisavós. A imortalidade não é para nós.

De forma igualmente clara, um mundo em que a maioria provavelmente viverá até os 90 anos, muitos até mais, precisa ser completamente repensado.

A ideia de 25 anos ou mais de educação, 35 anos de trabalho e depois, digamos, 35 anos de aposentadoria é impossível, tanto para indivíduos quanto para a sociedade. Certamente é insustentável. Também é provável que produza uma velhice vazia para vastas proporções da população.

Será necessário trabalhar por mais tempo por via de regra. Isso também exigirá várias mudanças na carreira ao longo da vida. Em vez de um período de educação, um de trabalho e um de aposentadoria, fará sentido para as pessoas misturarem os três. As pessoas voltarão a estudar, repetidamente. Elas farão pausas, repetidamente. Elas mudarão o que fazem, repetidamente.

Este é o caminho para tornar a longevidade acessível e, tão importante, suportável. Para fazer com que um mundo assim funcione, teremos que reorganizar a educação, o trabalho, as pensões, os estados de bem-estar social e os sistemas de saúde.

As pessoas não mais, por exemplo, irão para a universidade ou receber treinamento apenas quando jovens adultos. Isso será uma atividade ao longo da vida. Novamente, idades obrigatórias ou padrão de aposentadoria serão sem sentido. As pessoas devem ter opções de trabalhar e não trabalhar em várias fases de suas vidas.

Apenas aumentar as idades de aposentadoria de forma geral é ineficiente e injusto, uma vez que a expectativa de vida é distribuída de forma tão desigual. As taxas de contribuição para aposentadoria também precisarão ser alteradas. Hoje, geralmente são muito baixas.

Os sistemas de saúde também devem incorporar totalmente a saúde pública, que se tornará cada vez mais importante à medida que a sociedade envelhece.

Estamos entrando em um novo, velho mundo. Isso é fruto de um enorme sucesso. No entanto, há também um perigo realista de um futuro Struldbrugg para indivíduos e para a sociedade. Se assim for, devemos repensar nossa visão sobre a prioridade de preservar a vida.

segunda-feira, maio 13, 2024

EUA perderam a América Latina para a China

FOLHA DE SP 11/05/24


Igor Patrick

EUA perderam a América Latina para a China

Políticos latinos dizem que em Pequim encontram promessas de investimentos; de Washington, voltam com palestras


Na semana que vem, o Congresso americano vai precisar votar a renovação da concessão de fundos à Corporação Financeira de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (DFC, na sigla em inglês), o resultado de uma fusão de várias agências de promoção ao desenvolvimento criado durante o governo de Donald Trump para fazer frente à Iniciativa Cinturão e Rota.

Acompanhei in loco o debate na Câmara e adianto: os argumentos levantados durante a audiência pública sobre o tema deixam claro que os EUA vão perder o trem na competição com a China por influência na América Latina.

Há várias razões para esta conclusão. Para começar, não acho que ninguém minimamente informado acreditou algum dia que a DFC conseguiria fazer frente aos chineses. O fundo que financia as operações da corporação chegam a US$ 60 bilhões, contra quase US$ 1 trilhão prometido pelos chineses no lançamento da Cinturão e Rota.

A distribuição do dinheiro também está sujeita a uma série de requisitos, sendo o pior o fato de que ao criar o órgão, congressistas americanos limitaram a maior parte dos recursos a países classificados de pobres pelo Banco Mundial. Essa regra não faz nenhum sentido, e mesmo os coordenadores da DFC admitem isso. Ao ranquear as economias de países ao redor do mundo, o Banco Mundial não leva em consideração questões como variação cambial, poder de paridade de compra e desigualdade. A própria instituição nem sequer usa apenas essa variável na hora de conceder empréstimos.

Consequentemente, países como o Brasil são classificados de "renda média superior", o que automaticamente nos exclui de receber investimentos substanciais por parte dos americanos. Alguém aí diria que nossa infraestrutura é semelhante à chinesa, outro país posto pelo Banco Mundial sob o mesmo guarda-chuva?

Além disso, o dinheiro que vem de Washington geralmente vem atrelado a uma série de compromissos, como a promoção de reformas políticas e melhora do ambiente de negócios. Não são regras necessariamente ruins, claro, mas atrasam significativamente a aprovação e o recebimento das verbas.

Para um país de tamanho e economia médios, faz pouco sentido esperar anos por um dinheiro que, os chineses, muito mais pragmáticos e desinteressados em interferir na governança doméstica de nações terceiras, conseguem entregar em meses. Políticos latinos também têm por tradição abraçar projetos de infraestrutura que possam mostrar em suas campanhas eleitorais —e o calendário das eleições nem sempre é compatível com o tempo necessário para garantir a sustentabilidade de tais obras.

Por fim, só agora começa a cair a ficha em Washington que a presunção ao tratar a América Latina como seu quintal de influência estava baseada em premissas frágeis. Não me entendam mal, é inegável que os EUA ainda são parceiros essenciais de vários dos nossos vizinhos, mas agora há uma nova opção: a China.

Mesmo assim, não vemos nenhuma movimentação para mudar o panorama. Os EUA estão ocupados demais resolvendo a miríade de disputas políticas internas e agora se veem às voltas com a possibilidade de eleger um candidato abertamente isolacionista.

Não há clima no Congresso para ampliar um auxílio financeiro para atenuar o enorme déficit de infraestrutura na América Latina. O dinheiro disponível está fluindo para o Indo-Pacífico, única região no mundo cuja importância é consenso bipartidário, dada a necessidade de fazer frente aos chineses.

Quando encontro fontes do governo Joe Biden, essas pessoas quase sempre gostam de defender o que vêm fazendo pelos latino-americanos e enunciam de cabeça uma série de projetos na região. É só perguntar sobre o valor empreendido em cada um deles para fazê-los corar e invariavelmente admitir que deveriam estar gastando mais se quiserem competir de verdade com Pequim.

Ao longo dos últimos meses ouvi de dezenas de políticos latinos que, quando viajam à China, voltam para casa com acordos e promessas de investimentos. Dos EUA, voltam com uma palestra sobre o que deveriam estar ou não fazendo. Os cães ladram e o dragão passa.