O Estado de S.Paulo - 08/02
Como nas quermesses da infância, quando comprávamos números e ficávamos com o coração nas mãos, torcendo para ganhar na roleta um frango assado, um bolo, um brinquedo, Jair, o cantador das pedras, ia anunciando os números. Eu ouvia e me lembrava também do tempo em que jogava tombola na juventude: dois patinhos na lagoa, 22; dois machados num pau só, 11; idade de Cristo, 33; quá-quá-quá, 44; o mesmo número de qualquer lado, 8; começo do jogo, 1. Naquela época havia um número que provocava risos: é ele ou é ela? 24. O veado no jogo de bicho.
Não se diz mais tombola, é bingo. As cartelas são de papel, você marca com giz de cera, caneta, ou fura com palito de dente. As vendedoras de cartelas para cada rodada entregavam um palito para quem não tinha. Era o bingo do Dia de São Sebastião na Praia Grande do Bonete, em Caraguatatuba. Dia sagrado para minha família, o 20 de janeiro é também aniversário da Rita, minha filha. Da última vez, dois anos atrás, entramos, sentamos, as pedras começaram a ser cantadas. Na quinta, Rita saltou: "Deu aqui!" Um espanto, isso é raro. Levamos para casa um bolo de chocolate delicioso. Voltamos este ano decididos a repetir. O bolo de chocolate saiu para outro. Mas havia uma atração, um bolo de banana. Tudo coisa feita em casa. Cada morador leva uma prenda (assim se diz). Bordados, toalhas, tortas, pacotes de cerveja, boas cachaças. O início é marcado por rojões. Ao ouvir os estouros, todos deixam as casas e vão para o Tablado.
Não ganhar na primeira não significa desistir. Nosso grupo era de seis pessoas, comprávamos duas cartelas de cada vez. Tínhamos sido os primeiros a chegar ao Tablado, onde a comunidade se reúne para tudo - bingo, rezas, reuniões. No domingo de manhã, a convite de Renilva Norma Guimarães, mulher do barqueiro Zezinho - um campeão das corridas de barco do dia do santo -, fiz uma conversa sobre literatura. Havia locais, havia turistas, ou seja, nós, os poucos de fora, que alugam as raras casas disponíveis. O lugar é preservado, as praias são desertas, limpas, sem barracas de caipirinhas, sem salgados, sem churrascos, sem farofas, sem jet skis.
Areia, mar, beleza e sossego. O silêncio é cortado vez ou outra pelos barcos que vão até Ruínas da Lagoinha buscar ou levar alguém. Quem quer beber vai ao Barcoiris, onde há iscas de peixe, lulas, comidinhas e integração. Foi ali que recebi o livro com casos sobre o Bonete (e a história do lugar), escrito pelo Roberto Cury, médico que frequenta há décadas, tem casa ali. Na minha fala me vi frente a frente com algumas saíras. É como são denominadas as mulheres caiçaras que preservam tradições e fazem artesanato. Saíras são os pássaros coloridos que se aproximam quando deixamos frutas na varanda, no jardim. Sossego, barulho do mar, a imensidão da água.
Os de "fora" são aceitos lentamente. A população (apenas 75 pessoas) é boa, amabilíssima, hospitaleira, mas se contém, é preciso merecer para conquistar. Há um lindo livro sobre o Bonete, fruto de um trabalho organizado por largo tempo (ainda bem que tais pessoas existem) por Ana Carmen Franco Nogueira e Vera Maria Rossetti Ferretti. Ana é mestre em Educação, Arte, História da Cultura e graduada em Artes Plásticas; Vera é mestre em Psicologia Clínica, psicoterapeuta e arteterapeuta. Com tais títulos poderiam ser acadêmicas sensaboronas, de linguagem arrevesada. Que nada! Pé no chão, conversadoras, falam de igual para igual com todo mundo, me lembraram a doce e rígida Ruth Cardoso, uma biografia que amei fazer, mulher insuperável. O trabalho de Ana Carmen e Vera Maria é pura antropologia moderna.
Neste livro, Saíras do Bonete, que podemos encontrar no Xixico, armazém-empório-vende-tudo da Lourdes, está uma história de emoção: como as mulheres caiçaras veem a vida, seus sonhos, o que querem para si e para seus filhos. Adelaide, Ana Rosa, Aurora, Cláudia, Claudineia, Graziela, Inocência, Juliana, Lourdes, Margarida, Michele, Renilva formam uma rede comunitária. Elas aderiram aos encontros com Vera e Ana Carmen dispostas a resgatar valores e culturas adormecidas, além de organizar um grupo forte e unido. A história de cada uma emociona pela força, luta, firmeza, poesia. Ao longo de meses, contaram suas vidas e teceram uma colcha em que cada desenho é um episódio em si, um sonho e um desejo. Esta colcha pode ser uma bandeira do Bonete, comunidade que resiste e se recusa a desaparecer, a ser engolida. Saíras do Bonete. Vozes que querem se fazer ouvir. Elas não sabem, mas fazem parte do grande movimento feminino do mundo, conquistando espaços, lugares, força.
No bingo, quase no final, chegou a hora do bolo de banana cobiçado. Jair, cheio de humor, avisou: e agora, o BBB. Todos olharam, surpresos. BBB? Ele acrescentou: o Bolo de Banana do Bonete. Saiu para nosso grupo. Ao deixarmos o Tablado, um mundo de gente correu para nosso banco, afinal, levávamos quatro prendas. Banco da sorte.