FOLHA DE SP - 08/02
São mais de 60 anos no ofício. Tempo de sobra para aprender os macetes todos e, sabendo manejá-los, assumir a cara e a coragem do vencedor. Mas não deu. Olho-me no espelho e vejo sempre o rosto antigo e perdedor. Seria o caso de me perguntar: onde errei? Qual foi a esquina que eu dobrei errado?
Na verdade, foram tantas as esquinas erradamente dobradas que fica difícil descobrir a esquina fatal. Olhando tudo em conjunto, desconfio que, na soma de tantos e tamanhos erros, alguma coisa deveria dar certo. Como no caso do prêmio da Loteria Federal incansavelmente procurado.
Se durante 40 anos eu tivesse comprado todos os dias um bilhete, talvez tivesse ganho alguma coisa, não digo o maior prêmio, mas algum tipo de consolação que me daria a esperança, o alento para continuar insistindo.
Felizmente --e para diminuir o prejuízo da operação-- houve algum lucro. Duramente aprendi que tudo tem um preço e que não precisava ter me esbofado tanto para lucrar tão pouco.
Outro dia, folheando um jornal ao lado de um amigo tarimbado no mesmo ofício, fomos identificando os lobbies de cada um, o itinerário de cada produção, o roteiro de cada sucesso, o calvário de cada fracasso.
Tudo tão óbvio, tudo tão primário que, de repente, chegamos à conclusão de que não são os jornalistas que fazem o ofício, e sim os lobistas de diversos tamanhos, feitios e intenções.
São eles que pressionam para que determinado ministro apareça mais do que outro, para que determinado artista brilhe mais do que o colega, para que determinado assunto tenha mais peso em determinada edição.
Hora a hora, minuto a minuto, na feitura de um jornal, de uma revista ou na reunião de pauta do departamento de jornalismo das redes de TV, o lobby direto ou indireto, explícito ou camuflado, atua sem trégua, criando estratagemas que vão da garrafa de uísque no Natal ao acesso privilegiado de determinada fonte, passando pelos subornos menores, socialmente tolerados, como o almoço no restaurante caro ou o tapinha nas costas para mostrar intimidade.
No tempo de meu pai, que foi jornalista a vida inteira, a imprensa era subornada com a mesa do lanche que os dirigentes esportivos, que então se chamavam "paredros", promoviam no meio tempo das partidas.
Durante a semana, avisava-se nas Redações que o Fluminense ou o Botafogo ofereceriam um lanche aos "rapazes da imprensa" entre o primeiro e o segundo "half time" --e os ditos rapazes surgiam aflitos e famélicos, em busca dos sanduíches de salame e dos copos de guaraná na generosa boca-livre daqueles tempos.
Hoje, o furo é mais em cima. Em linhas gerais, e apesar das idas e vindas da profissão, a imprensa subiu de nível social e econômico, mas continua gravitando em torno dos ricos e dos poderosos.
A estrutura do poder de tal modo se acomodou à imprensa (a operação contrária também se verificou, com a imprensa se acomodando à classe dirigente) que hoje a Presidência da República, os ministérios, os departamentos de primeiro escalão, os bancos, as administrações estaduais e municipais, as principais empresas e até mesmo os principais indivíduos dispõem de um serviço de assessoramento de imprensa altamente remunerado.
No caso dos jornalistas, nem sempre a sujeira é individual, às vezes é, mas em escala pequena. Ficou famosa a anedota atribuída a Alcindo Guanabara, um dos primeiros jornalistas a integrar a Academia Brasileira de Letras. Hoje, é nome de rua importante no centro do Rio.
Em uma Semana Santa, o editor pediu que Guanabara escrevesse um artigo sobre Jesus Cristo. Alcindo estava consultando o programa do Jóquei Clube, era viciado em apostar nos cavalinhos. Completamente desligado da data religiosa, levantou a cabeça e perguntou: "Contra ou a favor?"
É isso aí. Existem profissões sujas. No caso do jornalismo, a sujeira talvez nem chegue a ser individual (às vezes é, mas em escala pequena).
De uma forma ou de outra, para sobreviver nela é confortador saber que vendemos nossa alma diariamente por um copo de guaraná e um sanduíche de salame.
Às vezes, nem isso.
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