segunda-feira, janeiro 22, 2018

“Vai, ministra, eta loca tá brincando com o país”. Cármen usa o “periculo in mora” para tragar todo o “fumus bonus iuris” - REINALDO AZEVEDO

REDE TV/UOL - 22.01

Supremo se torna território privilegiado da insegurança jurídica


Sob o pretexto do “periculum in mora” — o perigo da demora —, cumpre a uma ministra do Supremo, no exercício monocrático do plantão judicial, tragar o “fumus boni iuris”, aquela tal “fumaça do bom direito”, e, loucona, dar uma viajada, concedendo uma liminar cuja justificativa é um despropósito de cabo a rabo. Cá comigo, pensei numa adaptação do que já se tornou um clássico de Anitta. Na hora do quadradinho, deve-se cantar: “Vai ministra, eta loca tá brincando com o país”. Ficaria melhor “Banânia” em lugar de “país”, mas preciso do dissílabo para não quebrar o ritmo.

Cármen Lúcia, presidente do STF, concedeu uma liminar, na calada da madrugada, suspendendo a posse de Cristiane Brasil no Ministério do Trabalho. Justo ela! Justo Cármen Lúcia, aquela que esteve no centro do que chamo “conspiração golpista” para derrubar o presidente Michel Temer. Ela própria era tida como a presidenciável indireta do grupo que resolveu fumar, aí em conjunto, todo o “fumus boni iuris” de uma vez só.

Lembro rapidamente: a patuscada de Joesley Batista com Rodrigo Janot só se transformou em duas denúncias porque Cármen permitiu que Edson Fachin, relator no STF dos casos que dizem respeito à Petrobras, fosse o relator de um caso que não era dele, já que a acusação, ainda que verdadeira fosse, nada tivesse a ver com o chamado “petrolão”. Pelas mãos de Cármen, violou-se o princípio do juiz natural. E esse foi só um dos problemas. Tudo o que dali derivou e que se chamou de “Operação Controlada” não passou do mais escancarado flagrante armado. O objetivo final da conspirata, que envolvia até meios de comunicação — com reunião e tudo! — objetivava pôr a agora presidente do tribunal na Presidência da República.

Deu tudo errado. Mas o grupo não desistiu.

Voltemos ao caso.

Cármen suspendeu a posse de Cristiane. O diz-que-diz-que de seu gabinete já havia deixado claro que ela assim procederia. Do tribunal, sai uma nota que diz o seguinte: “[a ministra] suspendeu temporariamente a posse da deputada Cristiane Brasil até que venha ao processo o inteiro teor da decisão do STJ (proferida no sábado). Se for o caso, e com todas as informações, a liminar poderá ser reexaminada”.

Gente que vai tragando desbragadamente o “fumus boni iuris” fica com larica. Sente uma fome descomunal. Fica com vontade de devorar todo o estoque do Estado de Direito, de engolir o que vê pela frente”. Eta loca, vai brincando com o país…

O que Cármen espera encontrar na decisão de Humberto Martins, vice-presidente do STJ, que havia derrubado a liminar que impedia a posse? Que parte da questão ela finge não ter entendido direito?

A liminar originalmente concedida, por espantoso que possa ser, se assenta em dois pilares:
1 – Cristiane não teria currículo para ser ministra do Trabalho. É mesmo? Eu, por exemplo, acho que o currículo de Cármen, que só foi indicada por Lula porque é primeira de Sepúlveda Pertence, é fraco para ser ministra do Supremo. Como ficamos? Com a Constituição. Indicação de ministro do Supremo é prerrogativa do presidente da República, submetida à aprovação do Senado. Dá para chamar o saber jurídico de Cármen de “notório”. De um ponto de vista, digamos, empirista, sim. Onde estão dispostos os pré-requisitos para quem alguém seja ministro de Estado?

2 – Cristiane foi condenada numa ação trabalhista. Ainda que sim, e daí? Quantas vezes o Estado brasileiro foi condenado em ações do gênero? Tornou-se, por acaso, ilegítimo?

Cármen Lúcia sabe muito bem onde está se metendo: ela está dando a sua contribuição à guerra contra a reforma da Previdência, porque é esse o pano de fundo. Todos podemos questionar, é claro, se o PTB não poderia garantir os seus votos em favor da mudança com ou sem ministério. É uma questão legítima. Mas isso não anula o fato de que os que se colocam contra a nomeação da deputada estão, na verdade, é tentando inviabilizar essa mudança.

Estes tempos de Lava Jato estimulam o voluntarismo, o faça-você-mesmo-sua-justiça, o pegue-e-esfole. Juízes, nas mais variadas instâncias, resolveram fazer justiça com a própria toga, ignorando o que vai na lei. Como o conceito de “moralidade administrativa” pode ser muito fluido, todo ato de governo fica, agora, sujeito a uma liminar de juiz de primeiro grau. A situação se agrava quando uma ministra do Supremo cai na vala da demagogia.

E, sim, enfrento tranquilamente a questão da liminar concedida por Gilmar Mendes, que suspendeu a posse de Lula como ministro da Casa Civil. Já escrevi aqui uma vez que eu não a teria concedido. Mas calma lá! As diferenças são berrantes, aberrantes, abissais. Sim, Sérgio Moro tornou públicas, de forma indevida, conversas da então presidente da República, Dilma Rousseff — e deveria ter arcado com as consequências de tal decisão. Mas se tornou um dado inequívoco de que Lula estava sendo nomeado para escapar de uma decisão da Justiça. Nada tinha a ver com um ato de governo, com um propósito de governo, com o seu desiderato.

“E Cristiane? Não é por causa da reforma da Previdência, Reinaldo?” É, sim! E é absolutamente legítimo que um governante faça essa escolha. Você pode gostar ou não de Cristiane; pode gostar ou não da reforma; pode apoiar ou não este governo, mas o propósito da nomeação é o interesse público, ainda que você esteja entre aqueles que acreditam que interessa não fazer a reforma.

Cármen Lúcia, por óbvio, não me surpreende.

Sua decisão é uma emblema do buraco em que estamos nos metendo.

O Judiciário se transformou hoje na maior ameaça à segurança jurídica que há no país.

“Vai, ministra! Eta loca tá brincando com o país”

Como Maria engravidou sem relações sexuais com seu marido, José? - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 22/01

Afinal, como Maria apareceu grávida se não tinha ainda tido relações sexuais com seu marido prometido José, o carpinteiro?

Essa resposta sempre foi simples: o anjo avisou a ela que Deus a havia escolhido para ficar grávida sem ter feito sexo porque seu filho seria o Messias, e sua concepção seria "sem pecado", isto é, sem sexo com o marido.

Mas essa resposta está caindo de moda entre cristãos cultos. E esse processo é uma "constante cultural" desde o século 19.

Antes de tratarmos desse tema sério, uma pequena anedota: algum tempo atrás, tive a oportunidade de ouvir um sujeito que se dizia a reencarnação de Jesus. Vive no Brasil. Segundo o que ele explicou na "palestra" que ministrava, sua mãe Maria e seu pai José tinham de fato transado, mas Deus os havia posto em condição sonambúlica, por isso depois disseram que nunca tinham transado, e "inventaram" a história da concepção sem pecado, por intervenção direta de Deus sobre os óvulos de Maria.

Essa "explicação", para ele, era "científica" e "racional", e ele tentava, assim, agradar à sensibilidade cética da plateia. Mas nosso Jesus "fake", com essa história trôpega, não estava tão distante assim de uma sensibilidade de raiz hegeliana de meados do século 19 até hoje.

Sim, devo minhas desculpas. Misturei crenças "new age" (Jesus reencarnado) com gente de peso como o filósofo alemão G. W. F. Hegel (1770-1831). Mas tenho um motivo pra isso.

Em 1835, David Strauss (1808-1874), um hegeliano da chamada "escola histórica de Tübingen", na Alemanha, publicou um livro chamado "A Vida de Jesus", que criou uma tendência "científica" nos estudos teológicos protestantes liberais, atingindo também os católicos e os judeus na sequência.

O momento era de enorme importância: para você ter uma ideia, figuras como Karl Marx estavam em formação nesse mesmo caldo cultural, mas esse não é nosso assunto aqui.

A propósito: a biografia "Karl Marx, Grandeza e Ilusão" de Gareth Stedman Jones (Cia. das Letras), é uma pérola, não só se você quiser conhecer melhor essa figura essencial que foi Karl Marx, mas também para entender o contexto social, cultural, religioso e político da época.

Não chega a tanto, mas se aproxima em densidade da descrição do painel cultural russo da época descrita na biografia em cinco volumes que Joseph Frank dedicou a Dostoiévski (1821-1881), no Brasil, publicada pela Edusp. Essa biografia de Marx é fundamental para quem quer entender o próprio, sua formação e sua época. Mas voltemos a Jesus.

O trabalho de Strauss visava "curar" o evangelho do "sobrenaturalismo" ignorante do passado. Para Hegel e seus discípulos, o cristianismo era a religião mais avançada porque encarnara Deus num homem e, com isso, indicara que Deus está na história, e nela deve ser encontrado, porque o "Espírito Absoluto", Deus, "é" a história e nossa "autoconsciência".

Com isso, para Strauss, a tarefa era encontrar o Jesus histórico e não o Jesus mítico, "fantástico", muito ao sabor dos conservadores evangélicos, que adoram mágicas e mulheres grávidas por milagre.

É verdade que gente de peso, tanto entre cristãos como judeus (não vou citar mais ninguém para não encher sua paciência no início do ano, ok?), se levantará contra essa tendência "naturalizante" ou "historicizante" de Jesus e da Bíblia como um todo.

Mas, o fato é que tanto o cristianismo quanto o judaísmo pós-Hegel, quando se querem "cultos" ou "progressistas", pensam seu ícones em chave histórica desmitologizada.

E aí chegamos ao debate "culto" sobre como afinal uma menina (Maria) ficou grávida sem ter transado com o marido. Para a tradição "fundada" por Hegel e Strauss, as explicações sempre devem buscar o "racional".

Hoje se fala, por exemplo, que ela foi violentada por soldados romanos, e que seu marido, José, sem nenhuma gota de machismo em seu sangue, a tomou como esposa e assumiu como seu filho o fruto da violência sexual.

Outros, mais radicais, que ela simplesmente traiu seu marido, e que ele, "#superantimachista", a aceitou grávida. Eis os santos pós-modernos.

A batalha de Porto Alegre - DENIS LERRER ROSENFIELD

O GLOBO/ESTADÃO - 22/01

O divórcio entre o PT e a democracia representativa se revela na imagem da ‘morte’


Longínqua é a época em que o PT se vestia de defensor de outra forma de participação política, procurando seduzir não somente os incautos do Brasil, mas também os do mundo. A soberba já naquele então desconhecia limites, mas apresentava-se com as sandálias da humildade.

Era o mundo da dita “democracia participativa” e da mensagem, no Fórum Social Mundial, de que um “outro mundo era possível”. Porto Alegre tornou-se o símbolo que irradiava para todo o País, e para além dele, transmitindo a imagem de uma grande solidariedade, de uma paz que o partido encarnaria.

Para todo observador atento, contudo, a farsa era visível. Porém foi eficaz: levou o partido a conquistar três vezes a Presidência da República. Mas deixando um rastro de destruição, com queda acentuada do PIB, inflação acima de dois dígitos, mais de 12 milhões de desempregados e corrupção generalizada. Dirigentes partidários foram condenados e presos a partir do “mensalão” e do “petrolão”. Antes, o partido tinha um currículo baseado na ética na política; hoje, uma folha corrida.

No dito orçamento participativo das administrações petistas de Porto Alegre já se apresentavam o engodo, a enganação e, sobretudo, o desrespeito à democracia representativa, tão ao gosto dos petistas atuais. Reuniões de 500 pessoas em bairros da cidade, nas quais um terço dos participantes era constituído por militantes, decidiam por regiões inteiras de mais de 150 mil ou mesmo 200 mil habitantes. Impunham uma representação inexistente, numa espécie de autodelegação de poder. O partido tudo instrumentava, arvorando-se em detentor do bem, o bem partidário confundido com o público.

Num Fórum Social Mundial, os narcoterroristas das Farc foram recepcionados no Palácio Piratini, sob o governo petista de Olívio Dutra. Lá, numa das sacadas do prédio, em outra ocasião, discursou, com sua arenga esquerdizante, Hugo Chávez, líder do processo que está levando a Venezuela a um verdadeiro banho de sangue, com a miséria e a desnutrição vicejando como uma praga – a praga, na verdade, do socialismo do século 21.

Eis o “outro mundo possível”, louvado pelos atuais dirigentes do PT. A vantagem hoje é a de que a máscara caiu. O partido, pelo menos, tem o benefício da coerência.

A máscara caindo mostra com mais nitidez que a democracia representativa nada vale e que a violência é o seu significante. A mensagem de paz tornou-se mensagem de sangue. A presidente do partido não hesitou em afirmar que a prisão de Lula levaria a “prender” e a “matar gente”. A tentativa de conserto posterior nada mais foi do que um arremedo.

Conta o fato de ter ela expressado uma longa tradição marxista-leninista de utilização da violência, da morte, acompanhada, segundo essa mesma tradição, de menosprezo pelas instituições democráticas e representativas, na ocorrência atual, sob a forma de desrespeito aos tribunais. A democracia, para eles, só tem valor quando os favorece. Desfavorecendo-os, deve ser liminarmente deixada de lado. Mesmo que seja sob a forma jurídica de pedidos de liminares, para que a luta continue.

Não sem razão, contudo, o PT e seus ditos movimentos sociais consideram este dia 24 como decisivo, o de seu julgamento. Para eles, tal confronto se exibe como uma espécie de luta de vida e morte. Nela, ao jogar-se a candidatura de Lula à Presidência da República e caindo, em sua condenação, o ex-presidente na Lei da Ficha Lima, está em questão a “vida” do candidato e do seu partido. Este, aliás, escolheu identificar-se completamente com seu demiurgo, selando com ele o seu próprio destino. O resultado é uma batalha encarniçada, o seu desenlace constituindo-se numa questão propriamente existencial.

A imagem da “morte”, segundo a qual os militantes fariam sacrifício por seu líder, por não suportarem a prisão dele, nada mais faz do que revelar o profundo divórcio entre o partido e a democracia representativa, com as leis e suas instituições republicanas. Pretendem sujar a Lei da Ficha Limpa com o sangue de seus seguidores.

Assim foi na tradição leninista: os líderes mandavam os seguidores para o combate e a morte, permanecendo eles vivos; e depois, uma vez conquistado o poder, usufruindo suas benesses. O sangue do ataque ao Palácio de Inverno e a vitória da revolução bolchevique levaram aos privilégios da Nomenklatura, dominando com terror um povo que veio a ser assim subjugado.

Segundo essa mesma lógica “política”, sob a égide da violência, Lula e os seus dividem apoiadores e críticos nomeando os primeiros como “amigos” e os segundos, “inimigos”. Sua versão coloquial é a luta do “nós” contra “eles”, dos “bons” contra os “maus”, dos “virtuosos” do socialismo contra os “viciados” pelo capitalismo. Ora, tal distinção, elaborada por um teórico do nazismo, Carl Schmitt, é retomada por esse setor majoritário da esquerda, expondo uma faceta propriamente totalitária. Lá também a morte, o sangue e a violência eram os seus significantes.

O desfecho do julgamento do dia 24, estruturante da narrativa petista, será vital para o destino do partido. Em caso de condenação, o que é o mais provável, o partido continuará correndo contra o tempo, numa corrida desenfreada por meio de recursos jurídicos, procurando esgotar os meios à sua disposição do Estado Democrático de Direito.

Assim fazendo, tem como objetivo produzir uma instabilidade institucional que venha a propiciar-lhe a reconquista do poder, produzindo um fato consumado numa eventual eleição sub judice. Seria consumar a morte da democracia representativa, solapando seus próprios fundamentos.

Resta saber se o partido conseguirá, para a concretização de seu projeto, realizar grandes manifestações de rua. Se lograr, a democracia representativa correrá sério risco. Se malograr, o partido estará fadado a divorciar-se ainda mais da sociedade. A narrativa soçobraria na falta de eco.

*Professor de filosofia na UFRGS

O que está em jogo no dia 24 - ROBERTO LIVIANU

ESTADÃO - 22/01

A declaração de Gleisi Hoffmann nega a essência da República e chantageia a democracia


“Para prender o Lula, vai ter que prender muita gente. Mas, mais do que isso, vai ter que matar gente. Aí vai ter que matar.” O pensamento, que se refere ao julgamento do próximo dia 24 pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), remete-nos aos tempos da pistolagem, do cangaço, da matança impune. É uma ameaça criminosa ao Estado e às instituições republicanas, feita sem cerimônia pela senadora Gleisi Hoffmann, do PT do Paraná, que também preside nacionalmente o Partido dos Trabalhadores.

A declaração mostra a magnitude da degradação ética das instituições. O quanto inexiste, em primeiro lugar, o compromisso de um parlamentar com o decoro – afinal, Gleisi Hoffmann ocupa uma cadeira no Senado e tem deveres no plano da dignidade comportamental em relação ao Parlamento e aos representados. Se bem que a pesquisa Latinobarómetro 2017 detectou que, para 97% dos brasileiros, os políticos no Brasil exercem o poder em benefício próprio, despreocupando-se do bem comum. Em segundo lugar, a declaração patenteia também a decadência dos partidos políticos no País, que a pesquisa Lapop da Universidade Vanderbilt 2017 verificou terem atingido o pior grau de credibilidade como instituições, comparando todas as edições da pesquisa.

No comando do PT, Gleisi afirma que será necessária matança para realizar uma prisão determinada pela Justiça. Ou seja, instiga a militância do partido e a própria sociedade à beligerância.

Na mesma linha de degradação, há poucas semanas Antônio Carlos Rodrigues, o presidente nacional do PR, foi preso por corrupção. Ele não renunciou e a executiva do partido não exigiu sua renúncia. Com Aécio Neves não foi diferente no PSDB.

Vale lembrar que o PT foi fundado, em 1980, sob o comando de Lula, um retirante nordestino obstinado, uma ascendente liderança do mundo sindical que se tornou conhecida liderando greves no ABC na categoria dos metalúrgicos.

Em plena ditadura, o PT veio trazendo a promessa do novo, apresentando-se como um partido para representar a classe trabalhadora, a classe média, a intelectualidade, o mundo artístico, contra o coronelismo. Pregou a ética e apresentava algo aparentemente inovador na cena política brasileira.

Nas primeiras tentativas eleitorais, Lula falava em romper com o FMI e simplesmente não pagar a dívida externa, entre outros temas que amedrontavam o mercado. Em candidaturas seguintes o discurso foi se modificando e amoldando às diretrizes dos marqueteiros antenados às expectativas dos eleitores, até, finalmente, a chegada à Presidência, em 2002.

Mas o processo do mensalão, por fatos ocorridos já no primeiro mandato, logo revelaria que as promessas não correspondiam exatamente à prática concreta quando da conquista do poder, o que, aliás, Antônio Palocci, que pertencia ao núcleo duro petista, escancarou na histórica carta de saída, quando chegou a afirmar que o PT tinha métodos que lembravam seita religiosa. Aliás, não se tem notícia de punições do PT aos corruptos do partido condenados em definitivo pela Justiça.

Ali ficou claro que a prática política petista não era diferente da dos demais grupos que assumiram o poder, perdendo-se a oportunidade de mudar o rumo da História do País, que, infelizmente, logo se viu imerso em gravíssimas denúncias de corrupção por atos cometidos por pessoas ligadas ao PT e a muitos outros partidos, na maior investigação de que se tem notícia no mundo, em magnitude de valores – a Lava Jato, em que, por sinal, Gleisi é investigada.

No mensalão evidenciava-se a atrofia do Legislativo. Os deputados eram comprados com mesadas e quem legislava na prática era o Executivo, totalmente hipertrofiado, violando-se o princípio da separação dos Poderes, essencial no sistema republicano democrático.

Nesse contexto, Lula é acusado criminalmente em sete processos e num deles foi já condenado a uma pena de nove anos e seis meses de reclusão por lavagem de dinheiro e corrupção. Sua condenação, sem sombra de dúvida, fere a sociedade brasileira. Mas, por outro lado, representa o amadurecimento do sistema de Justiça brasileiro, que hoje não mais se verga a intocáveis.

Não é admissível que qualquer indivíduo, da direita ou da esquerda, reivindique a condição de intocável. Precisamo-nos livrar urgentemente do foro privilegiado, para a prevalência da igualdade de todos perante a lei.

Uma democracia sólida funciona com instituições sólidas, com valores sólidos, com respeito ao povo. O eixo fundamental das atenções é o ser humano, e não o Estado ou a Igreja, como era no tempo do Absolutismo, de direito divino dos reis.

Essa ideia dos intocáveis e da cultura dos privilégios remete aos tempos da monarquia absolutista, em que tudo era determinado pelos humores do rei.

Hoje temos Judiciário independente, Ministério Público forte e corajoso e a distribuição de justiça tem evoluído a cada dia, não se intimidando com as velhas raposas.

No próximo dia 24 haverá o julgamento da apelação de Lula pelo TRF de Porto Alegre. Ele não é melhor nem pior que ninguém. Deve ser julgado na forma da lei. E a condenação por essa instância poderá torná-lo inelegível, nos termos da Lei da Ficha Limpa, e levá-lo à prisão, nos termos de posição firmada no STF em fevereiro de 2016.

A declaração de Gleisi nega a essência da República. Nega o Estado Democrático de Direito. Chantageia a democracia. É uma afirmação no sentido de não se submeter o acusado ao império da lei. Como se dissesse: Lula é um ser que não pode ser preso jamais, é imune perenemente, quase como um deus, inalcançável pela lei.

Mas ainda há juízes no Brasil!

*Doutor em direito pela USP, é promotor de Justiça em São Paulo - atua na Procuradoria de Justiça de Direitos Difusos e Coletivos -, idealizador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção

Não apostem contra economias de mercado - LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

Valor Econômico - 22/01

O título desta minha primeira coluna do ano de 2018 nasceu da experiência como analista das coisas da economia por mais de 40 anos. Neste longo período de tempo, vivenciei várias vezes os mercados financeiros decretarem a crise terminal de uma - ou de várias - economias de mercado em função de graves desajustes macroeconômicos que ocorreram. Lembram os leitores do Valor quando em 2012 o colapso final da Grécia era para muitos uma questão de dias e os juros dos títulos em dólares emitidos pelo governo grego chegaram a mais de 20% ao ano? E que, com o derretimento da economia grega, iriam juntos a Itália e a Espanha, arrastando de forma definitiva o modelo da Europa Unida em torno do euro?

A mesma leitura catastrofista tinha acontecido poucos anos antes sobre os Estados Unidos, com a crise do chamado Sub Prime que levou à quebra de bancos e grandes empresas como a Ford e a GM. Alguns chegaram até a sugerir que os títulos de 10 anos de prazo do tesouro americano perderiam sua nota máxima de qualidade de crédito, afundados por um déficit fiscal que chegou a 10% do PIB. Lembram-se? E o Japão que, engolfado em longa depressão econômica, na previsão de muitos teria um fim terrível para uma sociedade que não conseguia aumentar seus gastos em consumo com medo do futuro?

Mas o alvo preferido para os arautos de uma crise terminal nas economias de mercado nos últimos anos tem sido a China. Pelo menos uma vez ao ano os mercados elegem um tema para especular com o colapso de economia chinesa. O mais recente, em 2017, foi a desvalorização do yuan em relação ao dólar americano em função de uma fuga de capitais que reduziu em mais de US$ 1 trilhão o volume de reservas do Banco da China. Medidas tomadas pelo governo de Beijing estabilizaram a taxa de câmbio do yuan e provocaram uma valorização de mais de 6% nos últimos meses.

Nenhuma destas previsões ocorreu e chegamos agora em 2018, 10 anos depois da crise do sub prime, com a maior economia do mundo novamente perto do pleno emprego e com juros pelo menos 100 pontos abaixo do padrão de períodos semelhantes no passado. As Bolsas de Valores em Wall Street atingem números recordes refletindo o entusiasmo dos investidores com os resultados operacionais das empresas em vários setores.

Do mesmo modo, a Europa venceu os obstáculos que encontrou pelo caminho e inicia o Ano Novo também sob o signo do otimismo, com a economia crescendo a taxas próximas de seu potencial, inclusive nos países mais frágeis como Itália e Espanha. Também os preços das ações europeias estão nas nuvens, embalados pelo otimismo com os resultados das empresas. O euro recuperou sua força em relação ao dólar e nem mesmo a saída do Reino Unido da comunidade europeia interrompeu este movimento. Até os títulos públicos emitidos pelo governo grego voltaram a ser negociados a taxas consideradas normais e o Plano de ajuda financeira, articulado pelo FMI e a Comunidade Europeia no auge da crise de confiança, está sendo liquidado normalmente pelo governo em Atenas e com recursos próprios.

Apesar de pouco noticiada, no Japão a economia saiu do abismo da recessão em que se encontrava desde a década dos noventa do século passado e apresenta um crescimento adequado para uma sociedade com as características da japonesa. E a China voltou a acelerar seu crescimento depois de vários anos de desaceleração e que foi diagnosticado, pelos pessimistas de sempre, como o início de um período de crescimento bem mais reduzido.

Em outras palavras, depois de um longo período de crises o mundo sincronizou o crescimento econômico global perto de seu potencial e deixou para trás os murmúrios e previsões sobre o fim do capitalismo. Mesmo no Brasil, embora a crise e a recuperação cíclica que estamos vivendo tenham uma natureza diversa da que atingiu o mundo desenvolvido, podemos sentir a força de uma economia de mercado quando submetida a uma gestão de qualidade.

Na reflexão de hoje, procuro entender como é possível ocorrer uma mudança tão radical na percepção sobre o funcionamento das economias de mercado, apesar de todo o arcabouço teórico existente para orientar os analistas em sua missão. Pergunto: como explicar as flutuações selvagens nos preços das ações, das taxas de câmbio e de juros que ocorrem em curto espaço de tempo sob o impacto de previsões que acabam não ocorrendo? No caso das bolsas americanas, nestes últimos cinco anos, ocorreu uma valorização de mais de 80% depois que o Fed adotou a política de ultra expansão monetária para estimular a economia americana. O mesmo fenômeno ocorreu na Europa depois que o BCE, sob o comando do italiano Mario Draghi, mandou às favas a oposição dos monetaristas radicais do Banco Central alemão e adotou a mesma política do Fed.

Para encontrar uma explicação razoável para esta questão, vou recorrer ao comentário de John Maynard Keynes durante um debate sobre os defeitos do capitalismo, como era chamado o regime de economias de mercado. Para ele, o capitalismo tem uma fragilidade intrínseca que é a influência de erros de política econômica cometidos pelas autoridades na administração do ciclo econômico e que provocam importantes desequilíbrios nos mercados. Nestes momentos, a influência das fragilidades humanas dos agentes econômicos podem transformar desequilíbrios de curto prazo em crises sistêmicas mais graves e mais longas, como nos Estados Unidos em 2008. Ao citar esta fragilidade das economias de mercado Keynes sempre terminava com uma observação otimista. Mas se as economias de mercado criam suas próprias crises elas também acabam por desenvolver forças autônomas para sua superação.

Foi o que ocorreu neste período dramático que vivemos.

Curando a cegueira - PAULO GUEDES

O Globo - 22/01

Popularidade não garante impunidade: vamos derrotar a Velha Política pelo aperfeiçoamento institucional, pois ninguém está acima da lei


A semana é decisiva para nossa história política. Sob o império da lei, o Poder Judiciário independente, após o Grande Despertar de um passado de cumplicidades e omissões, leva o político mais popular do país ao julgamento em segunda instância que pode removê-lo da corrida presidencial. As incitações à desordem e à violência feitas por seus correligionários evocam a tragédia venezuelana. “Para prender

Lula vai ter de matar gente”, intimida Gleisi Hoffmann. “A gente tem de ter uma esquerda preparada para o enfrentamento, para as lutas de rua”, ameaça Lindbergh Farias. A brutalidade política, o colapso econômico, a asfixia das instituições democráticas e o desastre humanitário do socialismo bolivariano seriam o nosso destino caso seguíssemos essas irresponsáveis exortações. Mas nosso caminho é outro. Vamos derrotar a Velha Política pelo aperfeiçoamento institucional, pois ninguém está acima da lei. Popularidade não garante impunidade, princípio elementar de justiça em um estado de direito.

A “esquerdização” da intelectualidade brasileira foi uma compreensível consequência do fechamento político de 1964. Se o regime militar era de “direita”, seu desdobramento gradual seria uma vitória digna de Gramsci sobre nossa vida intelectual, culminando com uma ocupação pela “esquerda” de todo o espectro partidário. Mas já era tempo de uma reflexão honesta como a de Tony Judt, em “Passado imperfeito: um olhar crítico sobre a intelectualidade francesa no pós-guerra” (1992): “Toda uma geração de intelectuais foi tragada pelo vórtice do comunismo. Seu engajamento político trouxelhes pesado custo moral. Não podemos ler sem constrangimento sua ambivalência moral e sua leniência diante do sofrimento e da violência. Por que defenderam coisas tão estúpidas? O que os cegou ao que estava diante de seus próprios olhos? Interesso-me por sua falta de preocupação com a ética pública e a moralidade política”.

Há mais de três décadas, social-democratas controlam a política e dirigem a economia pela ocupação de empresas estatais e bancos públicos, “fábricas de propina” que corromperam a democracia e derrubaram o crescimento. A verdadeira mudança seria uma aliança entre conservadores e liberal democratas na política em torno de um programa liberal na economia.

A política do ressentimento - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 22/01

Não há registro de regime autoritário que não tenha subjugado a Justiça e a imprensa independentes. Pois o sr. Lula da Silva põe ambas sob suspeição


Não há registro histórico de um regime autoritário que não tenha subjugado ao menos uma de duas instituições basilares da democracia: Justiça e imprensa independentes. Pois o sr. Luiz Inácio Lula da Silva põe ambas sob suspeição no Brasil. É um perigoso sinal emitido por alguém que, a despeito dos gravíssimos crimes pelos quais responde judicialmente – já tendo sobre si uma condenação, em primeira instância, a 9 anos e 6 meses de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro –, quer voltar à Presidência da República.

Na quinta-feira passada, o ex-presidente concedeu uma entrevista coletiva à imprensa estrangeira. Lula da Silva falou com a arrogância de quem já tira as medidas para um novo terno de posse, e não como um condenado que se vê diante da possibilidade crescente de ir para a cadeia.

Sua fala reflete um delírio megalomaníaco e leva a imaginar como seria um novo governo lulopetista pautado por uma política embebida em ressentimento que, a julgar pelo que Lula vem dizendo, nortearia suas ações do primeiro ao último dia de mandato.

Antes de tudo, Lula da Silva acredita ser vítima de uma implacável perseguição engendrada por um conluio de agentes, alguns indeterminados, como o “mercado”, a “elite”, a “mídia”, os “coxinhas”, em suma, “eles”; e outros com nome e sobrenome, como o juiz Sérgio Moro e os três desembargadores da 8.ª Turma do TRF-4, Leandro Paulsen, João Pedro Gebran Neto e Victor Laus, que na próxima quarta-feira irão julgar um recurso interposto por sua defesa que, a depender do resultado, pode torná-lo inelegível pela Lei da Ficha Limpa.

“Eu acho que essas pessoas que estão lidando com o meu processo não me conhecem direito. Se me conhecessem, não teriam a coragem e a desfaçatez de dizer que eu sou ladrão. Como eu tenho orgulho de tudo o que eu fiz, eu quero que um dia eles peçam desculpas para mim”, disse Lula da Silva aos jornalistas, deixando claro que a única Justiça legítima é aquela que o absolve. Afinal, é ele o juiz de si mesmo, o senhor das moralidades e das virtudes cívicas. Não tem de dar satisfações a ninguém, pois é superior a todos.

A concepção de um sistema de Justiça ao qual todos devem se submeter em prol da harmonia social é uma das mais brilhantes criações do gênio humano, pois eliminou a barbárie do justiçamento e nos trouxe um elevado estágio civilizatório. O que Lula da Silva faz não deve ser confundido com o legítimo direito de questionar uma decisão judicial. A afronta está na escolha que faz dos tipos de “justiça”: aquela a que admite se submeter, sendo ele próprio o juiz e o formulador único de seu código de justiça; e a “outra”, ilegítima por natureza, pois não saiu de sua cabeça. Lula contesta agora a legitimidade do TRF-4 porque sabe que seu caso, do ponto de vista legal, não lhe permite esperanças de absolvição.

Perguntado pelo jornalista do El País se não precisaria fazer uma “autocrítica”, se tinha algum “arrependimento”, Lula da Silva disse que sim: não ter implementado a censura que ele, ardilosamente, chama de “regulação da mídia”. Em um recente evento com artistas no Rio de Janeiro, destacou o tema que lhe é tão caro ao pedir à imprensa que trabalhasse para ele não voltar, “porque se eu voltar vai haver uma regulação dos meios de comunicação”.

É compreensível que Lula da Silva se sinta mesmo um perseguido. Para alguém que deixou a Presidência com índice de aprovação acima de 80% deve ser difícil compreender as agruras por que passa agora. Só mesmo causas externas para infortúnios tão grandes, deve pensar. O que mais explicaria? Certamente, não os seus próprios erros.

Os brasileiros que não fazem parte do grupo que apoia o ex-presidente incondicionalmente devem refletir sobre o ânimo de Lula da Silva em relação ao futuro. Seria um exercício de vingança contra injustiças imaginárias que desgraçaria a Nação além do suportável.

É claro que nem tudo o que Lula diz pode ou deve ser levado a sério. Mas também não se pode ignorar que ele vem fazendo, com inusitada desenvoltura, uma campanha de descrédito das instituições republicanas. Lula atenta contra a ordem democrática e isso, venha de onde vier – até de um mentiroso fanfarrão como ele –, é um perigo.

Mundo em crescimento - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 22/01

A economia mundial inicia 2018 na melhor situação em mais de uma década. A julgar pelas projeções mais recentes, o crescimento pode se aproximar de 4% neste ano, com as principais regiões acelerando em sincronia, o que parece conferir certa durabilidade ao movimento.

Não por acaso, os mercados financeiros continuam a desafiar prognósticos negativos e sobem sem pararna antecipação de vendas e lucros crescentes para as empresas. Mesmo a perspectiva de juros mais altos nos EUA e, mais adiante, na Europa não tem sido suficiente para conter o otimismo.

A questão é o quanto há de real nessa animação. A história tende a ser impiedosa com excessos financeiros. A expectativa de prosperidade continuada muitas vezes acaba por semear a próxima recessão, ao induzir comportamentos imprudentes de famílias, empresas e, especialmente, do sistema financeiro.

Por ora, no entanto, os dados parecem corroborar a visão favorável. Os EUA e a Europa crescem acima de 2,5%, taxa alta para seus padrões recentes, com inflação baixa. Estima-se que o desemprego nas economias desenvolvidas cairá abaixo de 6% em 2018, em média, o menor nível em 50 anos. Nos EUA, além disso, o significativo corte de impostos para as empresas aprovado no final do ano passado coloca mais lenha na fogueira do crescimento.

Da mesma forma, a situação se afigura aquecida entre emergentes. O PIB chinês se expandiu 6,9% no ano passado, tendo acelerado pela primeira vez desde 2010. Mais importante, foram reduzidos os temores de uma ruptura em seu padrão de crescimento por conta de excesso de dívidas. Outros países relevantes, como Índia, Rússia e Brasil também estão em rota de crescimento e ganhando velocidade.

Parecem superadas algumas das amarras da crise das hipotecas, como o endividamento excessivo das famílias nos EUA e a fragilidade financeira em nações emergentes. Mesmo os sinais de instabilidade do euro deram lugar à expectativa de uma nova etapa de integração no continente.

Há riscos, por certo, como a possibilidade de que a inflação acelere em algum momento. Mas, de maneira geral, tudo parece indicar um ano promissor para a economia mundial. Justamente por isso, convém ter em mente os riscos e as fragilidades financeiras, que tendem a crescer em períodos de alta, em meio à sensação de que tudo vai bem e não há motivo para se preocupar com questões estruturais, como o desequilíbrio fiscal.