quinta-feira, setembro 19, 2019

Virtude e Terror - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 19/09

A polêmica com Justin Trudeau mostra bem como a 'política da virtude' tem limites e guilhotinas


Como não rir da polêmica do momento? Falo de ​Justin Trudeau, o premiê do Canadá que, 20 anos atrás, gostava de pintar o rosto de marrom para se fantasiar de Aladdin. A revista Time publicou a foto. Mas parece que há outras provas visuais do mesmo crime.

Ponto prévio: eu não sabia que era um crime pintar o rosto de marrom para efeitos carnavalescos. Na minha cabeça confusa, carnaval é carnaval. E, para respeitar o espírito do tempo, talvez o grande crime fosse não pintar o rosto —e assim “apropriar”, com a nossa brancura caucasiana, um personagem literário do Oriente Médio.

O mundo discorda. E Trudeau, que enfrenta nova eleição em outubro, já veio fazer o seu “mea culpa”. Ele espera agora pelo perdão dos canadenses.

Fotografia de 2001 mostra o premiê canadense, Justin Trudeau, com 'blackface' - Reprodução


Não sei se haverá perdão. Mas, suspendendo o riso, o caso de Trudeau mostra bem como a “política da virtude” tem os seus limites. E as suas guilhotinas.

Sim, quando nos sentimos mais virtuosos do que os outros, é quase irresistível não exibir os nossos bons sentimentos em público. Mais ainda: exibi-los em público e castigar os outros por não serem tão virtuosos como nós.

O jovem Trudeau, nesse quesito, tem sido imparável: eleito em 2015, ele não se limitou a cumprir a sua agenda progressista, o que seria inteiramente legítimo (e, em certos casos, como na defesa dos direitos dos indígenas, bastante meritório).

Não. Ele notabilizou-se pelo excesso politicamente correto (não se diz “mankind”; diz-se “peoplekind”, corrigiu ele certa vez, para depois garantir que era só uma piada) e pela pose absurdamente condescendente (quando visitou a Índia, fez questão de se vestir como se fosse um ator de Bollywood, para espanto e horror de muitos indianos).

Como se isso não bastasse, os seus adversários não são apenas adversários políticos, que pensam de forma diferente. São cavaleiros das trevas, que obviamente não estão ao mesmo nível de sua santidade Justin Trudeau.

Que o diga Andrew Scheer, o candidato conservador às eleições de outubro, e que ainda não foi perdoado por ter levantado dúvidas, lá na pré-história, sobre o casamento gay.

O problema da “política da virtude” é que ela se sustenta em dois equívocos fatais.

O primeiro, que deveria ser óbvio, é que ninguém é tão virtuoso como pensa. Os seres humanos são imperfeitos e falíveis, o que deveria recomendar alguma humildade na perseguição dos impuros.

Quem nega isso, alimentando vaidades e expectativas irreais, está apenas a cavar a sua própria sepultura. Às vezes, por pecadilhos bem pequenos ou até risíveis.

Mas a “política da virtude” tem outro problema: a virtude falsa, ao contrário da virtude real, que é sempre silenciosa e modesta (Aristóteles “dixit”), muda com as modas.

O que hoje consideramos inofensivo pode ser ofensivo amanhã (ou vice-versa). Como na França de Robespierre, ninguém está a salvo. Nem aquele que se considera o mais virtuoso dos seres.

Eu que o diga: leio a polêmica com Trudeau e depois procuro, temeroso, o meu álbum de fotografias. Encontro. Socorro!

Eu vestido de índio. Eu vestido de caubói. Eu vestido de navegador. Eu vestido de girafa.

Em poucas fotos, sou culpado de apropriação cultural, exortação ao genocídio, defesa do colonialismo, petulância especista —e ainda nem passei da infância.

Terei perdão?

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.