Se encontrar o telefone do doutor e
perder a vergonha de vez, também vou exigir uma bolsa-ditadura
Na tarde de 11 de agosto de 1969, no bar em frente da Faculdade Nacional de Direito, eu festejava o reencontro com a namorada que saíra de circulação havia um mês, ao saber que a Justiça decretara sua prisão preventiva. Tinha 19 anos, um copo de chope na mão e ideias lascivas na cabeça: além do fim do sumiço, comemorava antecipadamente outra noite de pecados. O castigo chegou primeiro, anunciado por um leve toque no ombro e formalizado por um substantivo: ” Polícia”, resumiu um dos quatro homens repentinamente hasteados em torno da mesa.
Usavam os paletós compridos demais e apertados demais que os sherloques brasileiros muito apreciam por se acharem mais altos e menos gordos do que efetivamente são. Só depois fiquei sabendo que estavam lá para capturar a moça. Resolveram levar-me como brinde ao descobrirem que também era diretor do Caco Livre. Separados, embarcamos em fuscas disfarçados de táxis rumo à sede da PM na Rua Frei Caneca. Nunca mais voltaria a encontrá-la.
Isso já vale uma bolsa-ditadura, certo? A coisa não era ideologia nem opção política, mas investimento, constatou Millôr Fernandes. Se muita gente que só ficou presa em congestionamento de trânsito virou bolsista, um dia de cadeia no inverno de 1969 merece imediata reparação em dinheiro vivo. Pois foram quatro dias e meio. Como as horas na gaiola são mais longas, posso arredondar para cinco.
Na noite de 15 de agosto, depois de duas escalas de dois dias no prédio da Aeronáutica ao lado do Aeroporto Santos Dumont e na Base Aérea do Galeão, o major que acabara de me interrogar ordenou que eu desse o fora. Saí com a roupa que usava no momento da captura. COMUNISTA, ele antes havia anotado com letras graúdas e escuras na minha ficha.
Procure esse papel, sopra meu lado escuro ao escutar, de novo, o apito do trem-pagador pilotado pela Comissão de Anistia. A farra não pode parar, há milhares de passageiros a recolher. Aquela anotação em letra de forma pode valer o dianteira na fila dos jornalistas pedintes. Para acomodar-me na poltrona mais espaçosa do vagão, convém esquecer que não fui submetido a sessões de tortura. Melhor lembrar apenas que passei horas a fio de cócoras, mãos algemadas sob a perna, ouvindo perguntas tediosas e redundantes feito letra de samba-enredo. Como estou vivo, não custa caprichar na cara de zumbi e falar com voz de condenado à danação perpétua.
É verdade que meio mundo viveu experiências parecidas. É verdade que nove em 10 militantes do movimento estudantil souberam o que é o silêncio imposto a presos incomunicáveis, o cheiro de animal sem banho, a sensação de impotência absoluta, a vida suspensa no ar. E daí? Que sejam todos premiados. Os contribuintes nem vão notar que mais 1 bilhão saiu pelo ralo. Nenhuma despesa é desperdício se destinada a garantir aos sócios do Clube dos Heróis da Resistência o direito a indenizações milionárias, mensalidades de bom tamanho, empregos federais e outras condecorações em dinheiro.
Como a turma toda, também teria ido longe na vida se escapasse daquele agosto. O diretor da faculdade, que soubera de tudo, avisou em dezembro que me expulsaria se não tratasse já no dia seguinte da transferência para outras paragens. Só o Mackenzie me engoliu. Não engoli o Mackenzie daquele tempo e virei jornalista. Fica estabelecido, portanto, que não pendurei na parede o diploma de bacharel porque a ditadura me perseguiu por motivos políticos.
Só por isso não fui advogado, juiz, desembargador e ministro do Supremo Tribunal Federal. Muita pretensão? Não é: até Nelson Jobim já andou usando a toga. Mereço ser aposentado com o salário de ministro do STF. É pedir demais? Engano: o ex-capitão Carlos Lamarca foi promovido a general depois de morto, o que garantiu uma velhice tranquila à mulher que abandonou.
Argumentos tenho de sobra. Só está faltando achar o número do telefone do doutor Luiz Eduardo Greeenhalgh, que merece a porcentagem que leva de cada indenizado porque ganha todas, e perder a vergonha de vez.