terça-feira, junho 23, 2020

Não há paixão mais letal do que a que sentimos pela nossa virtude - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 23/06

É a mensagem de '1984': a tirania sobre o mundo começa sempre pela guerra à linguagem


1. Soube através desta Folha que o ônibus não está mais lá. Falo do ônibus que fez sucesso no filme “Na Natureza Selvagem”, uma obra-prima inesperada dirigida por Sean Penn. O ano era 2007 e foi uma das melhores introduções ao pensamento utópico que tive na vida.

Então encontramos Chris McCandless (um notável Emile Hirsch) que está cansado da civilização. Tudo é uma mentira aos seus olhos: os pais, a escola, os amigos. O capitalismo. O mundo.

Ele, que procura uma forma laica de santidade, decide partir, abandonar o carro algures. E avançar para o Alasca, onde encontrará a solidão mais radical.

O ônibus aparece nas sequências finais, quando Chris passa a habitá-lo, a dormir nele, a comer, a ler.

Mas o corpo, macilento e frágil, começa a não suportar os rigores do estado da natureza. Nem o corpo nem a alma, sobretudo quando Chris, lendo Tosltói, encontra a frase mais luminosa e mais terrível: “A felicidade só é real quando é partilhada”.

Confrontado com esse pensamento, o rosto de Chris é consumido por um esgar de dor —física e metafísica. Na sua busca de uma pureza imaginária, ele acreditou na sua autossuficiência narcísica e foi sempre cego à presença e à generosidade dos outros. Mas agora é tarde, não há retorno.

Depois do filme, o ônibus converteu-se em atração turística e vários imitadores de Chris procuraram alcançar esse nirvana no Alasca. Alguns morreram.

De duas, uma: ou não entenderam a mensagem do filme e o seu terrível final; ou entenderam, mas o apelo do martírio falou mais alto. Não há paixão mais funesta do que a paixão que sentimos pela nossa própria virtude.

Que o digam os novos zelotes do momento, que pretendem submeter a história, a arte, o pensamento e todas as opiniões heterodoxas ao julgamento inquisitorial do presente.

Tal como Chris McCandless, eles são imunes à ambiguidade, à complexidade ou à compaixão. Querem começar do zero, transformando o presente no Alasca.

Nesse sentido, o filósofo John Gray tem razão quando, recentemente, em artigo para o site UnHerd, desautorizou qualquer comparação entre a violência dos “wokes” e a violência clássica dos bolcheviques.

Para Lênin, a violência era só um meio para atingir um fim —a famosa sociedade sem classes da teologia marxista.

Para os “wokes”, a violência é um fim em si —um momento terapêutico, ou catártico, que tem como objetivo libertar o mundo do pecado.

Se existe uma comparação válida, acrescenta Gray, é entre os “wokes” e os milenaristas medievais, que aterrorizaram a Europa com o mesmo tipo de infalibilidade moral.

A grande diferença é que os milenaristas congregavam os pobres e ofendidos que habitavam a miséria rural ou o “bas-fond” das cidades da Baixa Idade Média.

Os milenaristas de hoje provêm da burguesia urbana, letrada e afluente. Exatamente como o personagem do filme, Chris McCandless, para quem o privilégio e o conforto eram as marcas do demônio.

2. Leio na imprensa que Minnesota removeu das suas escolas “O Sol É para Todos”, de Harper Lee, e “As Aventuras de Huckleberry Finn”, de Mark Twain. Pelas razões conhecidas: existem expressões racistas nessas obras de ficção —e quanto mais depressa elas forem expurgadas do espaço público, mais depressa o racismo propriamente dito acabará por desaparecer.

A lógica é totalmente orwelliana, porque essa é a mensagem de “1984”, um romance que, sintomaticamente, virou best-seller no mundo inteiro, Brasil incluso: a tirania sobre o mundo começa sempre pela guerra à linguagem. Controlando certas palavras e abolindo outras, será possível refundar a natureza humana.

Como afirma um dos personagens mais sinistros de “1984”, o inesquecível Syme, o assalto à linguagem tem como objetivo “restringir o campo do pensamento”. E acrescenta, deliciado: “Ano após ano, [haverá] cada vez menos palavras, e o alcance da consciência [será] cada vez mais limitado”.

Sem termos acesso à linguagem do passado, viveremos literalmente na inconsciência. Até acordarmos um dia e, como o personagem Winston, sentirmos apenas a memória difusa e ancestral de que houve um tempo de liberdade em que as coisas eram diferentes.

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Contrato fabuloso da ex de Wassef com gestão Bolsonaro ecoa poema Quadrilha - REINALDO AZEVEDO

UOL - 23/06




A vida é uma festa: Wassef e Ana Cristina, agora ex-mulher, andando de moto aquática no lago Paranoá, em Brasília. A empresa da ex tem contratos com o governo que chegam a R$ 250 milhões. Ela já foi condenada por improbidade e responde a processo por corrupção ativaImagem: Reprodução


Frederick Wassef, íntimo de Jair Bolsonaro e oportuno ex-advogado de Flávio — só foi destituído da função neste domingo — pode ter adquirido uma imprudência muito típica dos que pertencem ao círculo de influência dos poderosos, mas não é burro. Ele sabe que que mal nenhum lhe advirá por ter acoitado Fabrício Queiroz em uma propriedade sua em Atibaia. De fato, não havia ordem nenhuma de prisão contra o amigão dos Bolsonaros e das milícias. Ele não era um foragido. Nem réu é ainda. Não há crime nenhum em abrigá-lo. O problema não está aí, mas no que parece ser um círculo de amizades que pode ser chamado de explosivo. O UOL chegou primeiro ao que pode ser o paiol de pólvora da turma.

Reportagem publicada no domingo informa que Maria Cristina Boner Leo, ex-mulher de Wassef, sua amiga ainda hoje — os dois são sócios em outro empreendimento —, é dona de uma empresa que já faturou, neste ano e meio de governo Bolsonaro, em contratos com a administração federal e com estatais, a bolada de R$ 41,6 milhões. A Global Outsourcing trabalha há tempos com o governo federal. Na gestão anterior, Dilma-Temer, levou quatro anos para atingir valor parecido: R$ 42 milhões.

Segundo a apuração do Ministério Público de Contas, o valor pago na gestão Bolsonaro é, na verdade, maior: R$ 26.085.973,18 no exercício de 2019 e R$ 20.014.583,61 em 2020, totalizando R$ 46.100.556,79.

O total dos contratos chega a R$ 250 milhões. A desculpa de que as relações são antigas não cola. Contratos foram renovados no governo Bolsonaro com aditivos que somam R$ 165 milhões. E outros novos foram celebrados no valor de R$ 53 milhões. Um espetáculo!

Dado notável: a Global Outsourcing não está mais em nome de Maria Cristina. Quem responde agora pela empresa é Bruna Boner Leo Silva, sua filha, junto com sócios da empresária em outros empreendimentos. Ela já foi condenada por improbidade administrativa em primeira instância, mas recorreu da decisão.

Também é ré por corrupção ativa em processo que corre na 7ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal relativo ao chamado mensalão do DEM — o escândalo que derrubou José Roberto Arruda, ex-governador do Distrito Federal. O MPF a acusa de 168 atos de corrupção e pede pena de 15 anos e dez meses de prisão, além de ressarcimento de R$ 43 milhões aos cofres públicos.

Maria Cristina e Wassef estão oficialmente separados, mas são muito próximos. No dia da prisão de Fabrício, por exemplo, o advogado estava em sua casa. A Global Outsourcing, claro!, repudia qualquer insinuação de privilégio.

AFINIDADES ELETIVAS
Já escrevi aqui sobre as afinidades eletivas da turma. Em 2015, o então deputado Jair Bolsonaro comprou uma Land Rover preta, blindada, modelo 2010, por anunciados R$ 50 mil, embora o valor de mercado, à época, fosse de R$ 77 mil. Quem vendeu? Uma empresa chamada a Compusoftware, que pertencia a Maria Cristina. O veículo foi posto à venda em abril do ano passado.

Bruna, a filha, tem o mesmo sangue empreendedor da mãe. É dona de uma outra empresa, a Dinamo Networks, que também conseguiu faturar um contrato com um órgão público — no caso, o Banco Central — no valor de R$ 1 milhão.

O enredo das afinidades não para por aí. Paulo Emílio Catta Preta, ex-advogado do miliciano Adriano Magalhães e que agora tem Fabrício em sua carteira de clientes, é amigo de Maria Cristina e a representa em dois de seus processos.

Lembra aquele poema de Carlos Drummond chamado Quadrilha: "João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili..."

No caso, o enredo é mais complexo: Bolsonaro comprou um carro de Maria Cristina, que era mulher de Wassef, que era advogado de Flávio, que empregava Fabrício, que contratou Catta Preta, que advogava para o miliciano Adriano, que tinha mãe e mulher lotadas no gabinete de Flávio, que tinha como advogado Wassef, que abrigava Fabrício, que é amigo de Bolsonaro.

Para continuar com Drummond, agora apareceu no meio do caminho dessa quadrilha junina uma montanha de dinheiro: R$ 46,1 milhões já desembolsados pelo governo e por estatais e um montante em contratos fabuloso: um quarto de bilhão de reais. Que se faça o levantamento: poucas empresas, creio, sozinhas, mantêm vínculos tão profícuos com o governo federal.

O subprocurador geral Lucas Rocha Furtado, do Ministério Público de Contas, entrou com uma representação junto ao Tribunal de Contas da União pedindo que se apure se Wassef teve alguma interferência na relação entre a Global Outsourcing e o governo. Na representação, ele discrimina a penca de contratos em vigência.

No "Quadrilha" de Drummond, um elemento chega de fora e desestrutura a cadeia de relações. Vamos ver nesse caso.

Paciência - ANA CARLA ABRÃO

ESTADÃO - 23/06

Na ausência de planejamento, a recuperação no Brasil deverá frustrar as expectativas


O mundo parou, o Brasil parou. A atividade econômica foi desligada pela pandemia e agora começa a ser religada – de forma mais ou menos organizada, a depender da existência ou não de um plano estruturado de gestão das medidas de isolamento.

Nesse processo de volta, várias pesquisas estão sendo feitas com o objetivo de se entender o que mudou no comportamento das pessoas e qual será a intensidade da retomada econômica. Há algo de boa notícia em boa parte delas. Assim como há uma clara alteração nos padrões de comportamento das pessoas. Essas alterações deverão afetar de forma relevante as decisões econômicas dos agentes.

Pelo lado da boa notícia, há alguns sinais de recuperação da confiança. Eles estão presentes, por exemplo, no Observatório da Febraban, um tracking nacional realizado entre 1.º e 3 de junho, com uma amostra de 1.000 entrevistados que visa a representar a população adulta brasileira bancarizada. Os resultados não deixam de surpreender positivamente ao sugerirem que 49% dos entrevistados acreditam que suas finanças voltarão ao que eram antes da pandemia no prazo de até 1 ano. Desses, 21% acham que isso acontecerá ainda este ano. Quando a pergunta se volta para o Brasil, percebe-se um otimismo menor, mas algo positivo se considerarmos que 24% acreditam numa recuperação da economia brasileira em até 1 ano e outros 43% em 2 anos, ou seja, até 2022. Homens e jovens se mostram mais otimistas nas duas dimensões. Certamente porque também foram menos impactados pela crise que reforçou as desigualdades sociais, em particular as de gênero.

O Observatório segue com outras informações onde também surgem sinais de que há uma demanda que os meses de isolamento não fez sumir. Dentre os entrevistados, 14% afirmam que seu volume de compras vai crescer e 15% pretendem buscar financiamento para adquirir um imóvel residencial. Outros 14% declararam intenção de comprar um carro ou uma moto financiados. O crédito consignado aparece como a linha de desejo para 15% dos entrevistados. Desejo que certamente deixará de ser atendido se prosperar o Projeto de Lei 1.328/2020 de autoria do senador Otto Alencar (PSD-BA) e aprovado no Senado Federal na última semana. Assim como serão afetados todos os demais que indicaram a intenção de buscar linhas de financiamento e os outros 16% que demonstram intenção de recorrer a empréstimos bancários. Sim, o populismo sai muito caro e prejudica a população.

Na dimensão comportamental, segue o Observatório, 46% da população bancarizada tende a priorizar as soluções digitais, ante apenas 14% que vão se manter fiéis ao atendimento presencial. No consumo, as respostas apontam na direção de manutenção ou aumento de hábitos, como as idas ao supermercado (78%), a salões de beleza (66%) ou a comércios de rua (55%). O resultado é contudo ambíguo quando a pergunta se volta a bares e restaurantes ou shoppings, com parcelas quase iguais das pessoas entrevistadas afirmando que vão manter/aumentar ou diminuir sua frequência nesses serviços.

Há outras pesquisas circulando, todas com algum grau de otimismo e sinalizando mudanças comportamentais relevantes. A pesquisa feita pela revista Fortune, com presidentes das 500 maiores empresas mostra uma expectativa de recuperação um pouco mais lenta, iniciando-se em 2021, mas se concentrando no início de 2022. Ali também, há claras indicações de mudanças comportamentais, em particular no que tange a volta ao local de trabalho, à retomada das viagens a trabalho e à aceleração digital, todos fatores que continuarão impondo desafios às companhias do mundo todo e com grandes impactos em alguns setores econômicos.

Os desafios são muitos aqui e lá fora. Mas na ausência de planejamento, a recuperação no Brasil deverá frustrar as expectativas daqui e ficar aquém da realidade de lá. A mesma paciência que tem nos mantido em isolamento social e tantas vidas já salvou deveria se reverter em impaciência com a ausência de uma coordenação, pelo Executivo, das agendas nos diversos níveis federativos e entre os três Poderes constituídos.

Uma crise dessa magnitude exige que o Executivo defina e apresente à sociedade com clareza quais são suas prioridades no Parlamento e quais serão as ações nas áreas social, econômica e de crédito para tirar o País da crise. No campo federativo, há que se discutir como Estados e municípios poderão sair da crise fiscal que já os assolava e que agora se agravou. Não há como contar só com o otimismo do mercado e as expectativas positivas da população como motores de recuperação. À economia que já vinha frágil, juntou-se o agravamento das condições sociais e o tombo que jogou produtividade e crescimento para o campo negativo. A continuar esse quadro, nem as expectativas terão paciência.

ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN

Começam as baixas na caserna - ANDREA JUBÉ

Valor Econômico - 23/06

Prisão de Queiroz amplia desconforto no Exército


Apesar de esforços de vários atores em várias frentes para arejar a cena política, a prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), aumentou a tensão em todos os ambientes, inclusive em uma das bases mais caras de Jair Bolsonaro: as esposas dos oficiais militares.

Uma evidência do derretimento da popularidade do presidente é a progressiva perda de apoio nesse segmento, refletida nos vários grupos de WhatsApp em que as mulheres dos oficiais da ativa e da reserva trocam impressões sobre os fatos políticos. A prisão de Queiroz e as circunstâncias que a envolveram provocaram uma debandada nesse grupo, inclusive de defensoras obstinadas do presidente.

Nem a saída do ex-juiz Sergio Moro do governo nem a postura negacionista de Bolsonaro sobre a pandemia - e a indiferença diante das mais de 50 mil vítimas fatais da covid-19 - haviam espantado essas apoiadoras.

Mas o esconderijo no escritório do advogado Frederick Wassef, que não saía dos dois palácios, Planalto e Alvorada, é visto como um detalhe estarrecedor. Ainda que Wassef tenha deixado a defesa do senador, até ontem suas digitais estavam lá, próximas da família, e suas declarações para tentar blindar o presidente são consideradas artificiais.

Outra convicção do grupo de mensagens das esposas é de que mais do que um auxiliar, Queiroz era um personagem do entorno do presidente, frequentador de churrascos e pescarias da família. Em um dos primeiros episódios em que se viu obrigado a esclarecer esses laços, Bolsonaro teve de responder por que Queiroz depositou um cheque de R$ 24 mil na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro.
Um general que viu algumas das mensagens trocadas entre elas assegura que até “o grupo mais radical sumiu”. Os grupos de mensagens das esposas dos oficiais antecipam tendências, diz este general.

É uma análise sem dúvida empírica. Mas em 2018, antes dos institutos de pesquisas e dos analistas políticos, as trocas de mensagens nesses grupos já indicavam a vitória de Bolsonaro.
Se o presidente amarga as primeiras baixas no estrato feminino da caserna, generais da ativa afirmam que a prisão de Queiroz acentuou o desconforto da cúpula com a persistente vinculação do governo ao Exército.

A imagem mais clara desse vínculo para o grupo do comandante Edson Leal Pujol é a permanência de dois generais da ativa no primeiro escalão: os ministros Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, e Eduardo Pazuello, da Saúde.

É com esse pano de fundo que a cúpula militar espera que nesta semana, em que o Alto Comando do Exército está reunido para definir promoções e analisar a conjuntura, o ministro Ramos finalmente anuncie a sua transferência para a reserva.

Há 15 dias, Ramos anunciou a aposentadoria, mas não falou em data. Na próxima semana ele completará um ano como general da ativa em um cargo civil, para desassossego de Pujol.

Quanto o general Braga Netto, ainda na ativa, tomou posse como ministro-chefe da Casa Civil, para assumir a gerência do governo, em menos de um mês formalizou sua transferência para a reserva.
Aposentando a farda, entretanto, Ramos perde a oportunidade de ser indicado para a próxima vaga para o Superior Tribunal Militar (STM), que será aberta no segundo semestre de 2022, com a aposentadoria compulsória do ministro Luís Carlos Gomes Mattos.

A cúpula da caserna, entretanto, distingue a situação de Ramos e Pazuello. Ambos ainda têm um ano e meio na ativa para galgar outros postos na carreira. Mas há uma leitura de que como general de Exército, Ramos atingiu o topo da carreira - acima, só o posto de Pujol.

Enquanto Pazuello, oficial de intendência (especializado em tarefas administrativas ou logísticas), teria a prerrogativa de buscar outras colocações porque como ministro interino da Saúde estaria cumprindo missão das mais espinhosas, sem chance de deserção.

Mas se há o desconforto com o vínculo direto do governo Bolsonaro com o Exército, a cúpula militar também não está satisfeita com as recorrentes insinuações de que tentariam um golpe militar, tampouco com o que classificam como excessos de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

Foi por esse motivo que o ministro do STF Gilmar Mendes pediu a audiência com o comandante do Exército na semana passada. A reunião foi salutar, mas a conversa nem de longe foi conclusiva.
Os generais reconhecem os excessos de Bolsonaro, mas da mesma forma enumeram episódios em que a seu ver, os ministros do STF teriam extrapolado.

O episódio mais recente que irritou os generais foi a declaração do ministro do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, de que a nomeação de militares para vários cargos era a “chavização” do governo. “Ele praticamente nos chamou de bandidos”, indignou-se um general da ativa.

Outro gesto considerado desrespeitoso é atribuído ao decano do STF, Celso de Mello. ele incluiu no mandado para ouvir Ramos e o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, a advertência de que se não comparecessem na data agendada para a oitiva, estariam sujeitos “como qualquer cidadão à condução coercitiva ou debaixo de vara”. Eles seriam ouvidos sobre a acusação de Moro da suposta interferência política de Bolsonaro na Polícia Federal.

“Bolsonaro tem excessos, mas o Supremo está fora da casinha, o tribunal está politizado há muito mais tempo”, ressaltou um general.
A cúpula do Exército avalizou a declaração de Ramos à revista “Veja” de que os militares não cogitam nenhum golpe, mas a oposição não pode esticar a corda. O entendimento na cúpula da caserna é de que as instituições devem ser preservadas: o Judiciário, o Legislativo e o Executivo.

Investigações e processos que mirem o presidente e algum de seus familiares devem seguir o curso normal, sem açodamentos nem ardis. A reiteração do que a cúpula classifica como excessos será compreendida como cutucar a onça com vara curta. E a onça está dormindo com um olho aberto.

Entre parentes e milicianos - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 23/06

Vínculos a Queiroz e ao falecido capitão do Bope Adriano da Nóbrega levaram o clã Bolsonaro a introduzir o submundo das milícias na rotina do Planalto e do Congresso


Resumir o atual governo talvez não venha a ser difícil para historiadores. Há 20 meses a prioridade de Jair Bolsonaro tem sido a mesma de três décadas na política, proteger a parentela, nutrida no orçamento público. “Defendemos a família”, escreveu no domingo 7 de outubro de 2018, no epílogo da primeira etapa da campanha. “Tratamos criminosos como tais e não nos envolvemos em esquemas de corrupção.”

Lá se foram 80 semanas, e o presidente continua refém da agenda que aprisionava o candidato.

Ela começa no uso do erário para acolher parentes e amigos. Vício antigo. Nos últimos 28 anos, ele e seus filhos parlamentares abrigaram mais de uma centena de pessoas com parentesco ou relação familiar.

Somaram a afinidade com lobbies de armas e de cassinos, neste caso refletindo a disputa entre grupos americanos, como o de Sheldon Adelson, e asiáticos, como o Shun Tak. Na campanha Bolsonaro se reuniu com Adelson, financiador do Partido Republicano. Entrou no hotel pela cozinha.

Até agora, o governo só conseguiu acenar ao país sob pandemia com um futuro baseado na abertura de cassinos e no comércio de armas, com isenção de rastreamento.

A retrospectiva mostra o presidente concentrado na guarida ao filho senador e ao antigo companheiro paraquedista Fabrício Queiroz, hoje em Bangu 8. Vínculos a Queiroz e ao falecido capitão do Bope Adriano da Nóbrega levaram o clã Bolsonaro a introduzir o submundo das milícias na rotina do Planalto e do Congresso.

As iniciativas presidenciais desses 20 meses foram balizadas pela proteção à parentela e amigos. Daí o repentino silêncio sobre o fim da prisão para condenados em segunda instância, a remoção do Coaf da Justiça, os acordos para bloqueio da CPI da Lava-Toga, o rompimento com o governador Wilson Witzel e a crise da demissão do ex-ministro Sergio Moro.

Na raiz está uma peculiar visão de Estado, sintetizada pelo filho Flávio numa homenagem a milicianos: “Não podemos generalizar, dizendo que esses policiais, que estão tomando conta de algumas comunidades, estão vindo para o lado do mal. Não estão.”

Anjo do anjo - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 23/06

Será Wassef o Queiroz do futuro?


Quem ouvir o senador Flávio Bolsonaro terá de repente a impressão de que nunca foi deputado estadual e de que o gabinete na Alerj era de Fabrício Queiroz. Não era; isto embora — justiça seja feita — fosse mesmo o ex-policial quem trabalhasse à vera ali. Nada a ver com a atividade parlamentar.

Quem ouvir, nos próximos dias, a família Bolsonaro terá de repente a impressão de que o destituído Frederik Wassef nunca foi advogado de Flávio e Jair Bolsonaro, e de que sua presença nos palácios onde mora e trabalha o presidente da República jamais houve. Houve; isto embora — justiça seja feita — nada de errado haja em cliente se reunir com defensor, tanto mais sendo este um amigo daquele.

Junta-se o útil ao agradável; assim se ergueu o patrimonialismo neste país.

O destino já uniu Queiroz e Wassef, o novo ex. Tudo a ver com o fato de este ter escondido aquele. Será Wassef o Queiroz do futuro? E quem seria, no caso, o Wassef de Wassef? Wassef deseja saber. Como Queiroz no passado, o advogado manda recados. Não quer ser abandonado. Teria até celular exclusivo para contatos com a família. Verbaliza mesmo a fé — pura mensagem — de que armariam contra ele para atingir o presidente. A acusação de armadilha é gentileza para com Bolsonaro; mas não turva a clareza da missiva: “eu sou você”.

Funcionou com Queiroz — logo lhe apareceu o anjo. Quem será o anjo de um anjo falador que — debatendo-se contra o fado — não parece ter vocação para Queiroz?

Seria mesmo Wassef o anjo de Queiroz?

Queiroz não foi descoberta de Flávio; uma aquisição sua para a gestão, em dinheiro vivo, do gabinete. Não. Queiroz, amigo de Jair desde que 01 era guri, foi designado pelo pai — que sempre dispôs dos mandatos dos filhos como extensões do seu. Queiroz é tanto Jair Bolsonaro quanto Flávio é Jair Bolsonaro.

Wassef tampouco foi descoberta de Flávio; uma revelação sua para a defesa judicial da família. Não. Wassef foi designado pelo pai para a defesa do clã — e ora reivindica ser Jair tanto quanto Queiroz é Jair. Intui que será investigado. A fotografia captura flagrante comprometedor: o então advogado de Flávio guardando em casa, homiziado, um outro investigado no inquérito, cuja detenção preventiva impôs-se por estar ele, desde o covil, movendo-se para obstruir a Justiça.

Isto mesmo: Wassef, defensor de Flávio até ontem, abrigava Queiroz — operador num esquema de corrupção no gabinete de seu cliente — enquanto o abrigado cuidava de interferir para dirigir testemunhas; nenhuma delas maior do que a mãe do miliciano Adriano da Nóbrega.

A senhora Raimunda Veras Magalhães esteve — longamente, assim como a nora — na folha de pagamento do gabinete; e sua movimentação em espécie é capítulo à parte. É quando entra na equação a mulher de Queiroz, Márcia Oliveira de Aguiar, ora foragida, talvez a principal agente no esforço para lesar as investigações, possivelmente incumbida de comandar o silêncio dos que compunham a vertente miliciana em que também se investiria o dinheiro amealhado por aquele modelo de rachadinha.

Lembremos. No único depoimento que deu ao MP, em fevereiro de 2019, Queiroz admitiu que o sistema de rachadinha era regra no escritório de Flávio. Apresentou, porém, ressalva que supunha atenuante: os recursos colhidos ali não iriam para o bolso do chefe, mas para um caixa paralelo destinado a ampliar, informalmente, o número de colaboradores do mandato. Ao serem contratados, os assessores eram informados de que teriam de dar parte da remuneração para sustentar aquela expansão. Tudo pago por fora — num exercício que chamou de “desconcentração de remuneração” e que seria desconhecida pelo deputado.

Com Queiroz preso, será natural que os investigadores lhe cobrem a lista desses auxiliares informais — e quanto ganhavam. Isto porque, em face do volume girado no esquema, ainda que gabinete estendido houvesse, seria algo marginal; e o MP tem como norte que esse programa de rachadinha alimentaria — aí, sim — uma indústria de lavagem de dinheiro por meio sobretudo de operações imobiliárias, entre as quais estariam contidos investimentos no ramo empreiteiro das milícias.

Exatamente: o dinheiro daquele caixa paralelo seria destinado também a financiar construções ilegais de prédios em localidades como a Muzema — ali onde dois edifícios irregulares caíram em 2019.

Rachadinha é recurso delinquente comum em legislativos Brasil adentro — já dizem os passapanistas para relativizar o crime. A prática, no entanto, agrava-se quando se questiona com que frequência terá servido para financiar a atividade econômica de milícias. Essa é, aliás, a razão por que sou cético acerca da possibilidade de Queiroz delatar. Para quê? Qual vantagem teria? Ou não será o delator aquele que entrega outrem em busca de se safar? E que alívio teria em liberdade aquele que delata uma organização criminosa conhecida por ter mui eficiente esquadrão da morte?

Haja anjo.

Medo e barbeiragem - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 23/06

De erro em erro, Bolsonaros embolam Queiroz, Adriano, Wassef e demonstram medo


Nesse oceano de pessoas e fatos inacreditáveis, destacam-se as barbeiragens da família Bolsonaro ao tratar do amigão Fabrício Queiroz e de todas as questões nebulosas, e sob investigação do Ministério Público, que envolvem o agora senador Flávio Bolsonaro e resvalam perigosamente para o próprio presidente Jair Bolsonaro.

Tudo começa com a rachadinha operada por Queiroz no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio, chega a funcionários fantasmas ali e também no gabinete de Jair na Câmara em Brasília, evolui para suspeita de lavagem de dinheiro e traz à tona as ligações de Jair, Flávio e Queiroz com um líder da milícia fluminense, o capitão Adriano, morto pela polícia. Engrossa esse novelo Frederick Wassef, falastrão, exibicionista e longe de ser um criminalista com dimensão para representar um senador, quanto mais o presidente.

Não bastasse a barbeiragem de abrir as portas dos palácios da Alvorada e do Planalto a Wassef, que tal permitir (ou pedir?) que ele escondesse Queiroz na sua casa de Atibaia? Não foi Queiroz que se meteu lá. Logo, meteram o Queiroz justamente na casa do advogado do presidente da República e do seu filho senador. Equivale a jogar Queiroz definitivamente no colo de Bolsonaro e Flávio. Coisa de gênio.

A barbeiragem seguinte vem com as reações de ambos. Numa live para tentar dizer que não tem nada com Queiroz, Jair põe-se a defendê-lo. A prisão foi “espetaculosa”, o amigo não estava foragido e não havia mandado de prisão contra ele, mas “pareciam estar prendendo o maior bandido do mundo”. Bolsonaro está solidário com o amigo que quebrava os maiores galhos do filho? Ou não pode atirá-lo às feras porque Queiroz tem muito revelar?

Segundo depoimentos, Queiroz chegou chorando e muito abalado à prisão no Rio, o que é uma péssima notícia para Jair e Flávio Bolsonaro. Nada pior do que um potencial homem bomba imprevisível e desestruturado emocionalmente, inclusive porque sua mulher, Márcia, fugiu e pode entrar para a lista de procurados da Interpol. Aliás, ela própria tem muito o que contar, se contar.

Outra barbeiragem é o advogado de Queiroz. Nada contra ele, mas contra a simbologia. Paulo Emílio Catta Preta era advogado do miliciano Adriano. Aprofundar os elos entre Queiroz, Adriano, Flávio e Jair Bolsonaro? Depois de Flávio condecorar o líder da milícia, Jair elogiá-lo publicamente e a família empregar a mãe e a mulher dele em seus gabinetes?

A primeira família tem de se preocupar também com Wassef, que está em evidência – e adorando. Se usufruía da intimidade dos Bolsonaro a ponto de abrigar Queiroz em casa, ele sabe de muita coisa. E não tem cara de guardar segredos, nem de dar a vida por alguém. Daí porque enxotaram Wassef dos casos de Flávio, mas o senador fez rasgados elogios ao enxotado em redes sociais: “A lealdade e competência do advogado Frederick Wassef são ímpares e insubstituíveis”. A cobrança de “lealdade” e o adjetivo “insubstituível” para quem está sendo substituído têm um sinônimo: medo.

E aí vem a última barbeiragem - até agora. O substituto do insubstituível Wassef é respeitável, mas foi advogado de Sérgio Cabral e de militares acusados de “excessos” na ditadura. Cabral é um dos maiores símbolos de corrupção. E a sensação de que generais sugeriram advogado para o caso Flávio-Queiroz vai na contramão do desejável: que eles fiquem (ficassem) a léguas dessa lambança toda.

É hora de todos desconfiarem de todos e de todos quererem se livrar de todos – presidente, Flávio, militares, Queiroz, Márcia, Wassef, advogados, a mãe e a mulher de Adriano -, mas quanto mais barbeiragens vão fazendo, mais eles se embolam perigosamente. O clima é de medo. E isso tudo ainda vai muito longe.

Uma retumbante banana ao STF e ao Brasil - CRISTINA SERRA

FOLHA DE SP - 23/06

Esse foi o último ato de Abraham Weintraub ao escafeder-se na calada da noite


Em um ano e quatro meses na cadeira de ministro da Educação, o que fez Abraham Weintraub? Boneco de ventríloquo de um astrólogo de araque, dedicou-se a atacar os pilares da universidade genuinamente democrática: a inclusão, a diversidade e a autonomia de gestão. Cortou verbas, programas, bolsas de pesquisa. Tentou nomear interventores, iniciativa felizmente anulada.

Antes de escafeder-se na calada da noite, revogou portaria que reservava cotas para negros, índios e portadores de deficiência em cursos de pós-graduação. E deixou no Congresso o mal formulado projeto de lei “Future-se”, que muda a forma de financiamento do ensino superior. Por vício de origem, tal “legado” merece apenas um destino: a lata do lixo.

Weintraub semeou desvarios ideológicos e distorções históricas, como a infame referência à “noite dos cristais”, na Alemanha nazista. De sua boca suja porejaram ofensas, conforme registrado no vídeo da indecorosa reunião do dia 22 de abril: “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF”. Como é próprio dos covardes, fugiu para não ter que responder a dois inquéritos na corte.

Weintraub e educação não combinam na mesma frase. Que isso tenha acontecido, nesse desvão da história em que estamos atolados, é uma desonra à memória de gente como Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e Paulo Freire, pensadores da educação como forma de emancipação civilizatória.

Em janeiro de 1989, o Brasil parou para assistir ao último capítulo da novela Vale Tudo. Na última cena, um executivo mau caráter fugia do Brasil num jatinho, dando uma banana para o país. A cena me ocorreu quando soube da fuga de Abraham Weintraub para Miami, usando indevidamente a condição de ainda ministro para burlar a proibição da entrada de brasileiros nos EUA. Ao que tudo indica, Weintraub cometeu mais um crime, segundo ele mesmo, com a ajuda de “dezenas” de pessoas. Seus cúmplices. Em seu último ato, Abraham Weintraub deu uma retumbante banana ao STF e ao Brasil.

Os tuítes de Weintraub



Cristina Serra
Cristina Serra é jornalista.

'Eu não sabia' tornou-se um código da desfaçatez - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 22/06


A coreografia executada na troca do defensor de Flávio Bolsonaro acentua a degradação da situação política do clã presidencial. No momento, o principal álibi dos Bolsonaro no caso da rachadinha é o cinismo. A exemplo de Lula, que "não sabia" da existência do mensalão; ou de Dilma, que não sabia que o PT e seus aliados plantavam bananeira dentro dos cofres da Petrobras; Flávio e Jair Bolsonaro, que nunca souberam das estripulias financeiras de Fabrício Queiroz, também não sabiam que o faz-tudo estava guardado num simulacro de escritório que o advogado da família, Frederick Wassef, mantinha em Atibaia.

A prisão de Queiroz, na semana passada, deixou Fred, como o agora ex-advogado dos Bolsonaro é chamado na intimidade do Alvorada, mais próximo da condição de investigado do que da posição de defensor. A troca de advogado tornou-se inevitável. Fred ainda não explicou como Queiroz foi parar no seu imóvel. Mas ele matou a encrenca no peito. Assumiu toda a responsabilidade pela irresponsabilidade ainda pendente de explicação.

Ironicamente, a lambança foi elogiada por Flávio Bolsonaro, que enalteceu "a lealdade e a competência do advogado Frederick Wassef". E lamentou que, contra a sua vontade, o doutor tenha deixado a causa. Os elogios do Zero Um são tão sinceros quanto o medo de que o agora ex-defensor se torne um detrator, jogando segredos no ventilador. O novo advogado de Flávio, Rodrigo Roca, atuará em parceria com a colega Luciana Pires, que já auxiliava a defesa do filho do presidente.

A dupla requereu ao Ministério Público do Rio de Janeiro que Flávio seja ouvido. Trata-se de uma mudança de estratégia. Até aqui, o primogênito fugia dos depoimentos. Agora, quer acomodar nos autos do processo a versão segundo a qual seu patrimônio é compatível com a renda e que não tinha conhecimento do que Queiroz fazia no seu gabinete na época em que era deputado estadual.

Nesse ritmo, o "eu não sabia" passará à história como uma espécie de código da desfaçatez. Sempre que a expressão é mencionada, a plateia já sabe que aqueles políticos que se apresentavam como exemplos de retidão pedem para ser vistos como cegos abobalhados, incapazes de enxergar o que acontece ao seu redor.

Confundindo as coisas - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 23/06

Talvez não passe pela cabeça do presidente que os problemas que ele e os bolsonaristas enfrentam na Justiça sejam fruto de suspeitas de malfeitos diversos


O presidente Jair Bolsonaro enviou três representantes graduados para conversar com o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes na sexta-feira passada. Consta que foi um gesto político de Bolsonaro para tentar construir um canal de diálogo com o Supremo, depois de sucessivos reveses judiciais de bolsonaristas, do próprio presidente e de seus familiares.

Bolsonaro parece, mais uma vez, confundir as coisas. Talvez imagine que seus dissabores no Judiciário tenham sido motivados por ressentimento dos magistrados diante dos constantes reptos que há tempos lança contra o Supremo – inspirando inclusive seus seguidores e até um ministro de Estado a defender explicitamente o fechamento da Corte e a prisão de seus ministros.

Talvez não passe pela cabeça do presidente que os problemas que ele e os bolsonaristas enfrentam na Justiça sejam na verdade fruto de consistentes suspeitas de malfeitos diversos, que devem ser devidamente investigadas. Bolsonaro parece julgar que um gesto seu de apaziguamento seria suficiente para interromper esses processos, que os bolsonaristas entendem ser “políticos”.

Nesse sentido, a escolha do ministro Alexandre de Moraes para receber a visita dos emissários de Bolsonaro tinha o objetivo específico de afagar aquele que hoje concentra alguns dos mais espinhosos casos envolvendo bolsonaristas no Supremo. Não se sabe se o ministro Alexandre de Moraes se deixou comover pela atitude de Bolsonaro, mas é improvável que a embaixada bolsonarista tenha o efeito desejado pelo presidente.

Tampouco há notícias de que o ministro pretenda mudar o curso dos processos que preside depois que Bolsonaro, como suposta prova de disposição ao diálogo, sacrificou seu ministro mais bolsonarista, Abraham Weintraub, porque este havia ofendido os integrantes do Supremo.

O Supremo já deixou claro, em diversas oportunidades, que não se dobra nem às ameaças nem às artimanhas de Bolsonaro. Há hoje na Corte clara disposição de seguir adiante com as investigações que podem comprometer os camisas pardas bolsonaristas, alguns dos parlamentares mais fiéis ao presidente e um punhado de empresários acusados de financiar a máquina de destruição de reputações a serviço do bolsonarismo. Um dos processos, inclusive, pode levar a questionamentos a respeito da lisura da campanha que elegeu Bolsonaro em 2018.

A esta altura, é preciso ser muito ingênuo para acreditar que o presidente queira realmente distender sua relação com o Supremo, especialmente depois de ter dito, quase sempre aos gritos, que era preciso impor “limites” àquela Corte, que não cumpriria ordens judiciais “absurdas” e que “está chegando a hora de tudo ser colocado no seu devido lugar”. E ingenuidade não parece ser um traço encontradiço entre os ministros do Supremo.

Bolsonaro não está, como nunca esteve, interessado em “harmonia” com os demais Poderes, pois essa palavra não consta do léxico de um movimento que surgiu com o objetivo explícito de desmoralizar as instituições democráticas que se interpuserem em seu caminho. É o confronto permanente que justifica e alimenta esse movimento liberticida, razão pela qual todo recuo é apenas tático, quando não simplesmente um embuste para enganar incautos.

O aceno do presidente ao Supremo é, assim, somente uma encenação de maus atores, incapazes sequer de fingir que aceitam a democracia. Um presidente que espera que a mais alta Corte do País se submeta a seus caprichos só porque mandou ministros para uma visita de cortesia ou porque demitiu um ministro inconveniente é um presidente que não entendeu nem seu papel institucional nem a Constituição do País que governa.

Confiar na disposição de Bolsonaro para buscar uma “trégua” é o mesmo que crer em sua capacidade de se tornar o estadista que ele jamais foi. O único propósito do presidente é atrair o Supremo para seu pantanoso território, em que os interesses privados de sua encrencada família são confundidos com os mais altos interesses públicos.

Espera-se que o Supremo resista a mais essa tentativa do presidente de envolvê-lo em politicagem rasteira e, estritamente conforme a lei, determine diligentemente a punição dos que cometeram crimes, sejam eles quem forem.

Um golpe que passa do delírio à farsa - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 23/06

Com a descoberta de Queiroz, devem ganhar nitidez ligações perigosas do clã Bolsonaro com o submundo das milícias


Os delírios golpistas do bolsonarismo que surgiram com ares de tragédia se aproximam da farsa. O fraseado do ex-capitão, modulado nos 28 anos de baixo clero na Câmara, em favor de torturadores do ciclo de chumbo da ditadura militar, as ameaças ao Supremo, as palavras de ordem de pequenos grupos por um novo regime de exceção verde-oliva gritadas em manifestações bolsonaristas, mantendo o ex-capitão no Planalto, prenunciavam um impossível retorno ao início dos anos 1960, sem Guerra Fria e sem comunistas escondidos em todos os lugares, mas prontos para conseguir o que não foi possível no levante fracassado de 35, a Intentona.

Ainda houve tentativas de criá-los usando redes sociais e seus robôs. Sem sucesso, porque não há mais União Soviética e nem existe o comunismo. A verdade é que não se sustenta algum discurso pretensamente civilizado para justificar o estrangulamento da democracia. Uma das virtudes inalcançáveis deste regime é que ele pode ser aperfeiçoado sem cataclismos políticos, econômicos, sociais, humanitários. No Brasil, o golpe bolsonarista, se fosse possível, implicaria um regime de força, truculento, isolado no mundo, com uma economia já conectada a mercados globais, em um país com mais de 200 milhões de habitantes, repleto de desníveis sociais, mas com todas as condições de reduzi-los dentro das liberdades constitucionais.

Bolsonaro sempre foi transparente ao pregar inconstitucionalidades. Não deveria surpreender. Na crise da saída de Moro, afirmou que desejava fazer trocas na sua “segurança” — era na Polícia Federal, nunca se teve dúvida —, porque queria “interagir” com o comando da PF, a diretoria-geral e a superintendência do Rio, área sensível para o presidente e família — sabe-se cada vez mais por quê —, sempre preocupado com que investigações e denúncias pudessem ser feitas contra “amigos” e filhos.

Porém, amigos e um filho já haviam entrado no radar de instituições que coíbem crimes, o que explica a sensibilidade presidencial ao tema. Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz são investigados pelo Ministério Público do Rio, e Fabrício desde o final de 2018. O noticiário sobre o roubo de dinheiro público por meio do esquema na Assembleia Legislativa fluminense batizado de forma singela como “rachadinha” concorreu por espaço na imprensa com a formação do governo e a posse do presidente.

Não deixaram de ser veiculadas informações sobre o caso, mas o novo governo era insuperável como fator de atração das atenções. O caso da “rachadinha” criou tensões no Supremo, depois da decisão monocrática do presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, tomada a pedido da defesa de Flávio, de paralisar todas as investigações iniciadas com base em relatórios do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), sobre movimentações bancárias atípicas que não houvessem tido autorização da Justiça em todas as suas etapas de elaboração.

Muitos inquéritos sobre lavagem de dinheiro ficaram em suspenso junto com os de Flávio e Queiroz, já então desaparecido. O Brasil chegou a ser ameaçado com a saída de acordos multilaterais que facilitam a troca de informações entre os Estados nacionais, para coibir crimes financeiros, crescentemente globais, cometidos para esconder grandes volumes de dinheiro gerados na corrupção, no tráfico de drogas e armas, em todo tipo de operação gerenciada pelo crime organizado. O plenário da Corte reviu aquela decisão, e o próprio Toffoli recuou no julgamento final.

O processamento das informações sobre as traficâncias financeiras de Flávio Bolsonaro, com a ajuda de Fabrício, terminou sendo retomado no MP do Rio de Janeiro, e parte das descobertas foi conhecida com o resgate de Queiroz, que se escondia numa casa em Atibaia, próximo a São Paulo, de propriedade de Frederick Wassef, advogado do presidente da República. O imóvel parecia receber uma maquiagem para parecer um escritório de advocacia do novo frequentador assíduo do Alvorada e do Planalto, e dessa forma se beneficiar da inviolabilidade legal do espaço de trabalho dos advogados. Mas a polícia chegou antes, na quinta-feira.

O PM aposentado, amigo de Jair Bolsonaro e depois dos filhos, comprovadamente pagou despesas de Flávio e família com dinheiro de origem desconhecida. Todas as evidências indicam que veio do desfalque nos cofres públicos dado com a subtração de parte dos salários dos assessores do ainda deputado estadual Flávio, muitos deles da família de Queiroz e de Bolsonaro. Este tem de ser um negócio em família, literalmente.

Junto com a descoberta de Queiroz sob proteção do advogado presidencial devem ganhar nitidez ligações no mínimo arriscadas do clã Bolsonaro com o submundo das milícias cariocas. O próprio Queiroz explorava transporte de vans em Rio das Pedras, Zona Oeste do Rio, QG de uma quadrilha de bandidos fardados — da ativa ou da reserva. É preciso muita intimidade com os homens fortes do pedaço para entrar nesses negócios.

O bolsonarismo entra agora em nova fase, pelo menos em um primeiro momento menos voluntariosa. Diante do que já se sabe e do que está por vir, é natural que todos se perguntem — incluindo militares que emprestam a honorabilidade da instituição ao governo — qual mesmo o objetivo do golpe de que tanto se fala. Ou pelo menos se falou. Se não há comunistas, e o país demonstra ter instituições que garantem a governabilidade, resta a suposição muito plausível de que tudo é mesmo para proteger família e amigos, num puro estilo caudilhesco. Esta é a farsa.