sábado, agosto 05, 2017

A meta, a dívida e a tertúlia - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 05/08

Conter a dívida pública é um dos objetivos centrais do mal compreendido programa de ajuste


Conter a desastrosa dívida pública, uma das maiores e mais custosas do mundo, é um dos objetivos centrais do mal compreendido programa de ajuste, embora o assunto raramente seja mencionado quando se fala de política econômica. É essencial lembrar o endividamento quando se discute uma provável mudança da meta e alguns economistas propõem outras formas de balizar a gestão orçamentária. Antes de enveredar por um complicado debate, é bom lembrar alguns fatos prosaicos e fundamentais para qualquer planejamento. Para começar, o governo geral brasileiro deve mais de 70% do Produto Interno Bruto (PIB) de um ano. O governo geral inclui todos os níveis da administração, mas o fundamental, para efeitos práticos, é o federal. A proporção foi de 73,1% em maio, quando a dívida atingiu R$ 4,67 trilhões, pelo critério brasileiro. Pelo critério do Fundo Monetário Internacional (FMI), com inclusão dos papéis em poder do Banco Central, o débito alcançou 78,3% e deverá chegar a 87,8% em 2022.

Usar o critério do FMI facilita as comparações. Na mesma tabela, a dívida média dos países emergentes, no ano passado, era de 47,4% do PIB. A dos latino-americanos, de 58,3%, média que foi obviamente inflada pelo número brasileiro. É essa a comparação relevante. Vários países avançados carregam dívidas públicas maiores, mas em nenhum os juros pesam tanto quanto no Brasil, porque a inflação é muito menor e a classificação de risco de crédito, muito mais favorável. Além do mais, o Brasil foi rebaixado em duas ocasiões, no fim do governo petista, e hoje está dois degraus abaixo do limite do nível de investimento, reservado a países considerados confiáveis.

Desde antes desse duplo rebaixamento a dívida pública vinha crescendo, por causa da deterioração das contas públicas. Nem os juros têm sido pagos integralmente pelo Tesouro, há alguns anos. O setor público tem sido incapaz de pôr de lado o dinheiro necessário para isso. Dinheiro para cobrir os juros – e até para amortizar o principal – só aparece quando surge nas contas públicas o chamado superávit primário. O resultado primário é a diferença entre a arrecadação corrente e o gasto da operação do governo, sem contar, portanto, o custo dos empréstimos levantados e frequentemente rolados.

Para voltar a pagar juros e, em seguida, a amortizar a dívida, o setor público terá de retornar à geração de superávits primários. Pelos planos oficiais, isso deveria ocorrer por volta de 2019 ou 2020, mas hoje até isso é incerto. Além do mais, o saldo primário positivo deve ser no começo muito pequeno, insuficiente para cobrir toda a conta de juros. Para chegar ao saldo positivo, mesmo pequeno, o governo terá de reequilibrar as contas primárias, hoje com enorme buraco. A meta fixada para este ano, um déficit primário de R$ 139 bilhões, parece neste momento inatingível. Daí a conversa sobre a adoção de um alvo mais acessível. Já se fala também de uma alteração da meta de 2018, um déficit por enquanto fixado em R$ 129 bilhões. Será preciso aceitar um prazo mais longo para produzir superávits primários e conter a dívida?

Alguns economistas têm proposto a mudança de balizas para a política fiscal. Fala-se, por exemplo, em concentrar a atenção no controle da despesa. O teto de gasto já em vigor poderia ser o passo inicial. Em outros países, a atenção é voltada para o resultado nominal, com inclusão dos juros.

Pode-se enriquecer a discussão, mas, em qualquer caso, alguns fatos ficam inalterados: 1) para controlar o déficit nominal e conter o endividamento, é preciso reduzir o déficit primário e buscar superávits; 2) esse movimento, essencial para o controle da inflação, é fundamental também para a redução dos juros e, portanto, do custo da dívida; 3) a contenção do gasto é crucialmente importante, mas é dificultada pela rigidez do Orçamento. A reforma da Previdência é só um dos avanços necessários para tornar mais eficientes a gestão fiscal e a administração das funções governamentais.

Qualquer balizamento fiscal servirá, se esses fatos simples forem levados em conta. O resto é pauta para agradáveis tertúlias em noites de inverno.


Ficou claro que jamais saberemos o que significa legado - MARILIZ PEREIRA JORGE

FOLHA DE SP - 05/08

A cena original pensada para o desfile de Gisele Bündchen na abertura da Olimpíada incluía um assalto. Ela seria vítima de um trombadinha, haveria perseguição policial e ele seria salvo pela top. A ideia era mostrar que o Rio tem seus problemas, mas tudo acaba bem. Houve tanto protesto que essa parte foi abolida.

Naquele momento de euforia era como se a cidade não vivesse esse tipo de violência. Faz um ano neste sábado (5) que assistimos embasbacados a esse momento que ficou marcado na memória de 3,5 bilhões de pessoas. Mesmo sem dinheiro e luxo, foi um espetáculo emocionante. O que vemos agora é o triste filme de uma tragédia anunciada.

Tenho ojeriza de ouvir, ler, pensar na palavra legado. Ficou claro que jamais saberemos o que significa na prática. A "ciclovia mais bonita do mundo", uma das heranças olímpicas prometidas, matou duas pessoas, antes dos Jogos. Continua interditada, sem que ninguém tenha sido indiciado ou preso. Esta semana, a Justiça do Rio precisou intimar os responsáveis pelo andamento de uma das ações penais que corre o risco de ser extinta por abandono de causa.

"Como se gasta tanto dinheiro e o resultado é uma pista irregular, cheia de desníveis? O piso é vagabundo." Disse essas palavras no dia 23/01/2016, três meses antes da tragédia, ao questionar os R$ 44 milhões gastos apenas nessa obra. A colunista deve ser paulista, criticaram. Não sou paulista, talvez vidente.

Na mesma época, o governo do Rio anunciou que deixaria de pagar o salário dos aposentados. Escrevi que era uma vergonha falar nos bilhões gastos para bancar o evento e não ter dinheiro para honrar a folha de pagamento. A situação do funcionalismo é ainda pior atualmente.

Falei das isenções escandalosas, que sabemos hoje foram cedidas de forma irregular, inclusive para joalherias que ficaram famosas quando o ex-governador Sergio Cabral foi preso.

Fico pasma quando leio que a violência explodiu no Rio. Não é verdade. Dezenas de episódios já aconteciam na cidade, em especial na Baixada Fluminense, com uma frequência assustadora. As pessoas não se informavam ou não se interessavam, mas já era realidade.

Em maio do ano passado trouxe a informação de que o número de homicídios no Estado tinha subido pelo quarto mês consecutivo. E o aumento em relação ao ano anterior era de 33,6%, com o registro de 339 mortes. Em que país civilizado morrem 300 pessoas e ninguém se dá conta de que as coisas estão indo muito mal? Só está pior, mas explodiu faz tempo.

Já tinha guerra de facção em ao menos duas dezenas de bairros, bala perdida, UPP falida, assalto com morte, PMs executados, baixa no número de policiais na ativa, falta de pagamento de adicional de serviço, carros sem manutenção e dinheiro para gasolina.

Junte-se a tudo isso, a saúde e a educação em frangalhos. Qual é a parte que as pessoas não entenderam que ia dar merda?

Mas não se engane. A situação do Rio seria a mesma com ou sem a Olimpíada. A única diferença é que não estaríamos vendo as instalações olímpicas apodrecendo, a vila dos atletas se mostrar um empreendimento falido (só 204 dos 3.604 imóveis foram vendidos), não teríamos alimentado a esperança de ver a Baía da Guanabara e a as lagoas limpas.

Deveriam ter mantido o trombadinha na abertura. Talvez assim o susto agora não fosse tão grande.


Todos os deputados do mundo - BOLÍVAR LAMOUNIER

ESTADÃO - 05/08

Nem todos são preguiçosos, ignorantes e venais, veja-se o caso de Justin S. Morrill



O que mais se ouve atualmente é que todos os deputados do mundo são preguiçosos, ignorantes e venais (não necessariamente nessa ordem). Não concordo com tal argumento, mas admito que refutá-lo está ficando cada vez mais difícil. Vinha procurando um método, mas nenhum me ocorria. Sair em viagem pelo mundo a fim de assistir a sessões legislativas até poderia ser agradável, mas dificilmente compensaria as despesas.

A certa altura tive uma ideia. O jeito seria recorrer à lógica elementar que aprendi nos bancos escolares. Vejam bem: as três qualidades negativas a que me referi têm sido atribuídas aos deputados em caráter geral. “Todos” eles seriam preguiçosos, ignorantes e venais. Nenhum presta. Ora, se assim é, um caso contrário é tudo o que se requer para invalidar o argumento. Optei, pois, por esse método e creio havê-lo aplicado com bons resultados. Foi trabalhoso, claro. Pesquisei centenas de arquivos de vários países, li milhares de biografias, analisei um sem-número de projetos, mas encontrei, finalmente, o que procurava: um americano chamado Justin S. Morrill, que em 1854 teria chegado a Washington como representante conservador do pequeno Estado de Vermont.

Não pretendo endeusar o rapaz. Colhi indícios de que, em seus primeiros meses de mandato, ele padeceu tormentos semelhantes aos que diariamente observamos em Brasília. Hesitava entre escolher o nome de uma rua ou batalhar por uma emenda parlamentar para financiar melhoramentos em sua cidadezinha natal. A sorte dele foi que, naqueles tempos, só existia imprensa escrita. Podia dar toda a atenção necessária aos jornalistas, pois muito tempo lhe sobrava para ir à biblioteca, visitar alguma repartição ministerial e consultar especialistas sobre alguma questão que lhe viesse à mente.

E foi então que o simpático Morrill teve um autêntico estalo de Vieira. Extraordinária e relevantíssima para o Brasil, a história está magnificamente relatada no capítulo 52 do livro Americans – The Democratic Experience, de Daniel J. Boorstin. Meditando sobre a lamentável situação educacional de seu país naquele tempo, o deputado Morrill convenceu-se de duas coisas. Primeiro, que o acesso à educação era extremamente restritivo. Era imperativo ampliá-lo, massificá-lo, democratizá-lo. Segundo, de latinórios e letras clássicas o país estava bem servido. As vetustas universidades do leste, notadamente Yale e Harvard, davam perfeitamente conta do recado. Partindo dessas duas constatações, Morrill deitou mãos à obra. Leu relatórios, escreveu um monte de notas, elaborou um projeto de lei e aí, sim, fez um trabalho de formiguinha, angariando apoios para sua proposta.

Sua ideia era um autêntico ovo de Colombo. Naquela década – a que precedeu a Guerra de Secessão, 1861-1865 – existia no país uma vasta quantidade de terras públicas, das quais o governo federal podia dispor livremente, sem necessidade de tributar os indivíduos ou entidades que eventualmente as recebessem. Em 1859 o presidente Buchanan vetou o projeto, mas Morrill não se deu por achado. Insistiu, insistiu, até que em 1862 o presidente Lincoln sancionou a Lei Morrill. E foi assim, com o país vivendo uma guerra sangrentíssima, que se veio a implantar uma das mais audaciosas reformas educacionais de que o mundo tem notícia.

O objetivo, que ficou conhecido como land-grant colleges, era implantar um college (uma universidade com o nível comparável ao nosso bacharelado) em cada Estado. A terra fornecida pelo governo seria utilizada ou parcialmente vendida a fim de financiar o empreendimento. Em contrapartida, os Estados comprometiam-se a imprimir a tais colleges uma orientação definida: o aprimoramento da agricultura e o desenvolvimento das “artes mecânicas” (leia-se: tecnologias), tudo em termos eminentemente práticos. Ofereceriam modalidades de instrução capazes de produzir um impacto imediato na economia e de promover a ascensão social das “classes industriais” (entenda-se: gente com aptidão empresarial, notadamente entre as camadas de menor renda).

Por volta de 1880, o sucesso creditável à Lei Morrill era nada menos que espetacular. As terras doadas tinham ajudado não só a aumentar algumas das universidades tradicionais, como também a edificar uma inteiramente nova – a Universidade Cornell, no Estado de Nova York – e a implantar dezenas de novos estabelecimentos, incluídos seis voltados especificamente para a parte negra da população. Daniel J. Boorstin afirma, com toda a razão, que o programa dos land-grant colleges desencadeou uma mudança cultural sem precedentes no país. Dali em diante, firmou-se a convicção de que todo cidadão americano teria direito não apenas à educação, genericamente falando, mas a um sistema de educação superior de alta qualidade.

Do acima exposto, meus eventuais leitores e leitoras haverão de convir que, se tivesse tido uma ideia semelhante, Vladimir Illich Lenin teria embarcado em outra canoa, não na que levou à sua “ditadura do proletariado” e a sete décadas de um regime totalitário que deixou um séquito inacreditável de cadáveres. Os land-grant colleges foram a espinha dorsal de uma revolução democratizante inteiramente compatível com o liberalismo político. Se tivesse vivido o suficiente para assistir à implementação do programa, o nunca assaz louvado Alexis de Tocqueville não teria perdido tantas noites de sono procurando uma fórmula que harmonizasse as tensões inevitáveis na redução de desigualdades sociais com a vigência de um regime livre e democrático, assentado no Estado de Direito.

*Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, membro das academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, é autor do livro ‘Liberais e Antiliberais: a Luta Ideológica de Nosso Tempo’ (Companhia das Letras, 2016)

As reformas necessárias - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 05/08

É mais do que hora de atuar na vida pública com decência. Dinheiro do contribuinte para bancar campanhas políticas luxuosas é uma tremenda indecência


Ao negar na quarta-feira passada prosseguimento à denúncia contra o presidente da República, a Câmara dos Deputados abriu caminho para a continuidade das reformas, especialmente a da Previdência e a política. No entanto, parece que alguns parlamentares viram no novo cenário político tão somente uma oportunidade para barganhar e, conforme relata reportagem do Estado, querem aprovar, com a máxima urgência, a criação de um novo fundo, feito com dinheiro público, para financiar campanhas políticas. Alheios ao interesse do País e ao estado das contas públicas, eles têm a desfaçatez de apresentar a interesseira manobra, que pode vir a custar até R$ 6 bilhões, como parte da reforma política e ainda chantageiam, dizendo que a destinação desses novos recursos públicos aos partidos será condição para a aprovação da reforma previdenciária.

Logicamente, a criação de um novo fundo público para campanhas políticas não faz parte da necessária e urgente reforma política. Destinar mais dinheiro público aos partidos políticos é simplesmente agravar a atual situação de distanciamento entre política e sociedade. O que faz falta é, por exemplo, modificar extensa e profundamente o sistema partidário, garantindo um mínimo de densidade ideológica e programática e de conexão com a população. Outra área que merece pronta reforma é o pacto federativo, para que suas regras de funcionamento expressem um mínimo de equilíbrio entre autonomia e responsabilidade de cada ente federativo. Também é preciso discutir com seriedade a oportunidade de se adotar o sistema parlamentarista de governo.

Já existem no Congresso, deve-se reconhecer, algumas propostas capazes de contribuir para a reforma política, a começar pela cláusula de desempenho para os partidos políticos e o fim das coligações nas eleições proporcionais. Ainda que insuficientes, elas podem ajudar a diminuir o número de partidos nanicos, que só servem a seus caciques e transformam a política num balcão de negócios. Pois, ao contrário do que muitos pensam, a criação de partidos não ajuda a renovação do ambiente político. São os hábitos e costumes que precisam mudar. Afinal, a cada eleição tem-se uma renovação da Câmara, por exemplo, da ordem de 40% de seus membros, e nem por isso a política se regenera. Tais alterações não têm qualquer vinculação com a proposta de novo fundo público para as campanhas eleitorais. Sua aprovação só serviria para manter o perverso sistema de partidos – que são entidades privadas – sustentados com dinheiro do Estado.

Diante da atual crise, não há espaço para barganhas nem para falsas disjuntivas. As duas reformas – a política e a da Previdência – são importantes e é preciso que sejam implementadas de verdade. Por exemplo, a reforma da Previdência não se resume a alterar algumas regras. Ou se instala um novo equilíbrio entre receitas e despesas previdenciárias ou se estaria tão somente a lograr a população. O mesmo raciocínio aplica-se à reforma política. Suas alterações devem colaborar para uma real melhora do sistema político. Para ser uma manobra que atenda, por outros caminhos, aos nefastos interesses de sempre é preferível não mudar nada.

Engana-se quem julga não haver condições para reformas reais no País. O Congresso foi capaz de aprovar a reforma trabalhista em momento de muito maior instabilidade política que o atual, quando ainda estava pendente de análise a denúncia contra o presidente Michel Temer. Trata-se, portanto, de uma perigosa ilusão, que só favorece os que lucram com os atuais descaminhos do País, achar que a solução dos problemas que assolam a vida dos brasileiros deve ser buscada quando a crise estiver amainada.

A ocasião mais propícia para as reformas é agora, pois a crise revela, em toda sua nitidez, a necessidade e a urgência de um novo marco legislativo em áreas vitais do Estado.

Adiar as reformas é atrasar a saída da crise, pois são elas o caminho para tirar o País desse enrosco no qual o PT o colocou de forma deliberada, ao manejar as instituições e perverter as relações políticas para seus fins particulares. É mais do que hora de atuar na vida pública com decência. Dinheiro do contribuinte para bancar campanhas luxuosas é uma tremenda indecência.