segunda-feira, abril 13, 2020

No "Ranking da Infâmia da Era do Coronavírus", Aras ocupará o segundo lugar - REINALDO AZEVEDO

UOL - 13/04


No "Livro das Infâmias na Era do Coronavírus", um notável lugar de desonra estará reservado a Augusto Aras, procurador-geral da República. Figuras com relevantes serviços e desserviços prestados ao país já passaram por ali, mas a função nunca se deslocou para o centro da narrativa histórica, com o protagonismo que lhe é devido. Com Augusto Aras será diferente. Afinal, o país estará a fazer a contabilidade dos mortos destes dias tenebrosos.

Jair Bolsonaro, hoje presidente da República, terá a lhe pesar nas costas a memória de milhares de mortos. Seu ombro amigo, o segundo nessa hierarquia do horror, será Aras. A personagem antes marginal no Ministério Público Federal foi alçada pelo presidente ao topo da instituição e evidencia por que jamais havia chamado a atenção dos meios jurídicos ou de seus pares. Por caminhos tortos e trágicos, a história lhe forneceu a oportunidade de corrigir com a honra a mediocridade da carreira. Ele preferiu fazer o contrário. Um Senado que honrasse plenamente as suas prerrogativas o deporia por meio de um processo de impeachment, conforme prevê a Lei 1.079, nos Artigos 40 a 73.

Como é notório, por palavras e atos pessoais, mas não de ofício, Bolsonaro tem desafiado as diretrizes e determinações do Ministério da Saúde, da Organização Mundial da Saúde, da totalidade dos médicos — mesmo dos que se opõem às medidas de distanciamento social — e das autoridades estaduais e municipais encarregadas de tomar medidas para conter a expansão do vírus.

Não estivesse a realidade a confirmar os piores prognósticos sobre a expansão da doença, vá lá. Mas a gente vê precisamente o contrário. Neste domingo, o país atingiu a marca de 1.223 mortos, com 22.169 casos da doença. O primeiro óbito foi confirmado no dia 17 de março. Em menos de um mês, o salto é assustador. Os números são brutalmente maiores. Na sexta-feira, só a cidade de São Paulo aguardava o resultado de 670 exames de pessoas que morreram com síndrome respiratória aguda grave.

E o que faz o presidente da República, um de apenas quatro chefes de Estado em todo mundo que negam a gravidade da Covid-19 e desprezam a sua letalidade — os outros três são os ditadores, respectivamente, da Nicarágua, da Belarus e do Turcomenistão? Sai por aí a promover aglomerações — até quando vai anunciar a criação de um hospital de campanha para doentes, como fez em Águas Lindas, em Goiás, no sábado; convida a população a desobedecer às regras do distanciamento social; ataca governadores e prefeitos que implementam as medidas; promove o uso irresponsável da cloroquina, cuja eficácia ainda está em estudo, e incita a população a protestar contra governadores e prefeitos que implementam as medidas de distanciamento social oficialmente adotadas por seu próprio governo por intermédio do próprio Ministério da Saúde.

Como afirmou o ministro Luiz Henrique Mandetta em entrevista ao Fantástico, neste domingo, "isso leva para o brasileiro uma dubiedade. Ele não sabe se escuta o ministro da saúde, se escuta o presidente, quem é que ele escuta". Assim, por óbvio, o comportamento de Bolsonaro não é inócuo e não se inscreve apenas no terreno, como ridiculamente pretende Aras, da "liberdade de expressão". O modo como Bolsonaro se comporta e o que ele diz trazem consequências práticas, independentemente dos documentos que ele assine.

Não só o procurador-geral da República deixou de tomar uma atitude para tolher esse comportamento irresponsável do presidente como, no âmbito da PGR, procurou impedir que prosperassem ações que forcem o mandatário a se adequar ao que dispõe a Constituição. Ao ser ou omisso ou parceiro de Bolsonaro no comportamento irresponsável, pode estar colaborando para o cometimento de um crime e cometendo um outro ele próprio.

Dado que o pais vive as consequências do distanciamento social, obviamente negativas para a economia e para a vida das pessoas; dado que se reconhece ser tal distanciamento necessário para não contaminar pessoas, evitando a disseminação do vírus; dado que se trata de decisão orientada pela ciência e pelas autoridades sanitárias do mundo inteiro e do próprio país, a começar do Ministério da Saúde; dado que a Constituição protege o direito à Saúde nos Artigos 6º, 196 e 197, pergunta-se: pode o presidente da República, como encarnação máxima do Poder Executivo, ignorar tais disposições em nome da liberdade de expressão, quando o suposto exercício de tal liberdade se traduz por uma incitação a que se desrespeitem os padrões firmados pela ciência, por órgãos técnicos e por seu próprio governo?

A resposta, obviamente, é "não!".

Corinthians, o ‘equilibrista’ - MAURO CEZAR PEREIRA

ESTADÃO - 13/04

Clube sofre para manter as finanças em dia e investir no time mesmo com dívidas altas


O Corinthians lembra aqueles equilibristas que mantêm vários pratos girando sobre as hastes. Exige muito esforço e fôlego, mas enquanto eles estão girando a plateia aplaude.

A manutenção da dependência da venda de atletas é um sintoma ruim, assim como a redução de valores a receber em publicidade, sem contar a falta que a receita de bilheteria faz.

Ainda assim o clube voltou a investir mais fortemente em 2018. Além disso, o futebol ainda tem de carregar os custos da área social, e este é um buraco no caminho do equilibrista. Não é de hoje que essa é a realidade do clube paulista.

A seguir dessa maneira, não será tão cedo que mudará. Enquanto isso, a distância para os rivais mais fortes aumenta, mas é encoberta por títulos no meio do caminho. O risco é o equilibrista tropeçar neste caminho. Recolher os cacos é sempre mais difícil.

Um dado ruim foi a importante queda nas receitas com publicidade (47% de redução), que consumiram o ganho com a Copa do Brasil. Como nesta conta entram tanto os patrocínios de camisa quanto o valor a receber do fabricante de material esportivo, a situação se mostra ainda mais preocupante, pois o clube não conseguiu transformar sua representatividade em receita.

O Corinthians voltou a crescer em custos e despesas, acompanhando o incremento de receitas líquidas. Isto fez com que o EBITDA (Lucros antes de Juros, Impostos, Depreciação e Amortização) fosse ligeiramente inferior a 2017 (...) negativo em R$ 3 milhões.

A base de custos com pessoal se manteve praticamente inalterada, mas surgiu uma conta chamada “Futebol” com valor de R$ 35 milhões, e que não há mais informações a respeito dela. Além disso, os demais custos cresceram R$ 16 milhões.

Nos dois últimos anos, o clube social apresentou déficit de R$ 16 milhões em 2017 e R$ 22 milhões em 2018. E quem cobre esse déficit são as receitas geradas pelo futebol.

Depois de conter investimentos em 2017, o Corinthians voltou a acelerar em 2018. Foram investidos R$ 72 milhões, sendo quase todo o valor em elenco profissional.

Importante: nesses dados não estão as dívidas da Arena, que está em outro balanço. Podemos observar impactos em redução de receitas de bilheteria e eventuais repasses de caixa. As dívidas totais do Corinthians apresentaram aumento de 12% em relação a 2017.

O grande aumento das dívidas operacionais está no aumento da conta de salários e encargos a pagar, que inclui os valores de direitos de imagem.

Para fechar o fluxo de caixa, o clube captou R$ 29 milhões junto a bancos.

Essas informações são trechos da Análise Econômico-Financeira dos Clubes Brasileiros de Futebol, detalhando estudo anual feito pelo Itaú/BBA com base nos balanços. Este é o mais recente trabalho da equipe liderada por César Grafietti.

Agora, em abril, os clubes devem apresentar seus demonstrativos financeiros de 2019. Alguns, como Flamengo e Bahia, já o fizeram. O do Corinthians vem aí, e depois de um ano sem grandes conquistas e mais investimentos no futebol, a expectativa não deve ser otimista.

Ainda mais com o estádio, que consome parcela nada desprezível das receitas corintianas, fechado, sem gerar dinheiro, mas oferecendo despesas e não se sabe quando isso irá mudar. O cenário é mais do que preocupante.

Com a paralisação forçada do futebol devido à pandemia, todos os clubes, como os diversos setores da economia, sentem o baque. O impacto nas finanças é forte e inevitável. Se no cenário pré-quarentena a situação corintiana já era essa, um tsunami pode estar a caminho. E aí não há como o equilibrista manter girando tantos pratos.

Desacelerar para progredir? - RONALDO LEMOS

FOLHA DE SP - 13/04

A pausa permite pensar sobre os comportamentos que vamos querer manter após a crise


Mesmo com o mundo andando em velocidade frenética antes da Covid-19, já se falava em “estagnação” e até em “estagnação secular”. De um lado, a economia dos EUA fervendo; de outro, países adotando juros negativos para forçar o dinheiro a circular ainda mais depressa, como se o mundo precisasse de ainda mais velocidade.

Esse paradoxo em que se vivia ao mesmo tempo aceleração e estagnação nunca pode ser bom sinal. Mesmo que profissionais do otimismo como Steven Pinker continuassem a pregar que vivíamos o “melhor dos mundos”, o fato é que já havia uma sensação (e números) mostrando que as condições de vida no planeta estavam se deteriorando. Podia até haver consumo, mas não havia progresso.

Um exemplo é que, quando se olha para inovação, mesmo com um mundo conectado em polvorosa, nunca mais houve um grande avanço tecnológico disruptivo com impacto econômico e social profundo, como a descoberta dos antibióticos ou a invenção do vaso sanitário.

Mesmo com o surgimento da internet, seu impacto na produtividade econômica continuou negligenciável. “A era do computador está em toda parte, menos nas estatísticas sobre produtividade”, já dizia Robert Solow em 1987. Além disso, apesar de toda a conectividade, nunca o distanciamento de visões entre as pessoas foi tão grande.

Com a Covid-19, estamos sendo obrigados a reduzir subitamente a velocidade. Essa frenagem, diferentemente do que se imagina, em vez de gerar só mais estagnação, permite também alguns poucos progressos impensáveis em tempos “normais”.

Por exemplo, em bancarização. Até a semana passada, 1 de cada 3 brasileiros adultos não tinha conta bancária. Diferentemente da Índia, da China, do Quênia e de outros países em desenvolvimento, o Brasil não incluiu seus segmentos mais pobres no setor bancário nos últimos anos.

Com a necessidade de transferir renda para os mais vulneráveis, é possível que de 10 milhões a 15 milhões de pessoas sejam incluídas no sistema bancário em três semanas. Em face disso, cabe perguntar: por que não fizemos isso antes?

Recuperamos até alguma capacidade de produzir consenso. O distanciamento social é um exemplo. Apesar dos seus detratores, um contingente enorme de pessoas no planeta hoje sabe que ele é a única medida eficaz agora para evitar o avanço da doença e está agindo de acordo com esse consenso.

Esse tipo de ato mostra que, quando somos capazes de concordar, podemos realizar ações extraordinárias como humanidade.

A Covid-19 aguça também a visão. A pausa permite pensar sobre os comportamentos com os quais vamos querer continuar e quais vamos descartar quando a crise regredir.

É claro que o risco de tragédias políticas se arma também no horizonte. Traumas, individuais ou sociais, podem gerar distúrbios. Se não tratados desde logo, esses distúrbios deitam raízes e se tornam longevos.

Ao mesmo tempo, há a possibilidade de surgirem modos de vida mais satisfatórios e solidários. O desafio da Covid-19 pode ajudar a curar outras doenças profundas que se acumulavam aos montes sem percebermos.

Em “Um Fogo sobre as Profundezas”, o escritor de ficção científica Vernor Vinge fala sobre uma doença que se alastra pelo universo. A única forma de interrompê-la é reduzir o curso do próprio tempo. Pode ser exatamente disso que precisamos. Desacelerar talvez seja a única forma de voltar a progredir.

Reader

Já era
 Reuniões deliberativas apenas presencialmente

Já é Congresso e STF decidindo e votando virtualmente

Já vem Reuniões de condomínio virtuais

Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Reaprendendo a vida - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 13/04

Passada a pandemia, vamos começar a valorizar os mais inocentes prazeres

Há algumas semanas, quando já se ouviam tambores distantes, recebemos dois casais amigos para jantar. Um deles trouxe um vinho, o outro, sorvete. Passei vídeos de musicais dos anos 30. Falamos de filmes, livros, gatos e outros triviais. Foi divertido. Na véspera, Gérson, Arrascaeta, Éverton Ribeiro, Bruno Henrique e Gabigol tinham esmagado mais um. Na tarde seguinte, fomos a uma roda de choro numa praça, e, à noite, à inauguração de uma pequena livraria de rua, em que as pessoas riam e se abraçavam ao se rever. E, então, voltamos para casa. Onde estamos desde então —há exatamente um mês.

Por algum motivo, houve um alerta naquele fim de semana. Ninguém de nossas relações caiu doente, mas foi como se, de repente, os tambores tivessem ficado próximos, o Brasil perdesse a inocência e despertássemos para o inimigo do qual os outros países já estavam tentando se proteger. Nunca mais saímos.

Os saraus de música em casa, o futebol pela TV do botequim, na calçada, entre pessoas que nunca vimos, e as tardes e noites na rua, tudo isso parece agora pertencer a outra era, uma era mágica. E, no entanto, era tão natural quanto respirar e, por ser assim, nunca tínhamos pensado a respeito. Nem poderíamos —não existia uma possibilidade contrária. Como imaginar que, subitamente, olhando para trás, aquilo nos pareceria tão remoto? E foi outro dia mesmo.

Surgem pensamentos sombrios. E se naqueles últimos dias já houvesse risco de contágio? E se estivéssemos nos passando mutuamente o inimigo? Claro que nada aconteceu. Mas a cabeça é espírito de porco e vive de pensar.

Inclusive sobre o futuro, que não lhe compete. Passada a pandemia, quando nos sentiremos de novo confiantes para receber amigos? Quando voltaremos às ruas onde se assiste ao futebol, ouvem-se choros e se inauguram livrarias? Vamos ter de reaprender a vida —e seus mais inocentes prazeres.

Mandetta iguala Bolsonaro a diabético que come doce e perde visão e perna - JOSIAS DE SOUZA

 UOL - 13/04

Henrique Mandetta é ortopedista. Mas mantém com Jair Bolsonaro um relacionamento de acupunturista. Trata-o na base da agulhada. O ministro voltou a espetar o presidente.

Em entrevista à TV Globo, odiada pelo chefe, Mandetta disse que, na guerra contra o coronavírus, o brasileiro "não sabe se escuta o ministro da Saúde ou o presidente." Comparou os críticos do isolamento social, como Bolsonaro, a diabéticos indisciplinados.

"Tem pessoa que come doce sistematicamente mesmo sendo diabético. A gente pode dizer pra ela: 'Olha, você vai ter problema. Seu rim vai parar, você pode ter déficit de visão, amputação de perna. E a pessoa continua comendo doce."

O "déficit de visão" de Bolsonaro já é nítido. Neste domingo, em videoconferência com religiosos, o presidente tratou a pandemia como uma página praticamente virada: "Parece que está começando a ir embora essa questão do vírus, mas está chegando e batendo forte a questão do desemprego."

A contabilidade do Ministério da Saúde demonstra que o pior cego é um presidente que não quer ouvir o seu próprio governo. Neste domingo, os diagnósticos positivos para o coronavírus somavam 22.169. Os mortos, 1.223.

Tomado pelas palavras, Mandetta parece prever que a retórica de Bolsonaro, já meio cambaleante, logo ficará perneta, pois o pior está por vir: "A gente imagina que os meses de maio e junho serão os 60 dias mais duros para as nossas cidades."

Enquanto Bolsonaro confraterniza com pastores e se apega ao misticismo, Mandetta ecoa os cientistas: "Infelizmente não vai ser num passe de mágica que a gente vai passar por isso. A gente tem que se pautar por foco, disciplina, ciência. E ficar muito firme nesse tripé, com planejamento, para sair disso."

Mandetta continua se expressando como um ministro em estado crônico de demissão: "Sabemos que serão dias duros, seja conosco ou seja com qualquer outra pessoa."

Se Bolsonaro fosse um personagem lógico, ele exerceria a coragem que diz possuir, enviando Mandetta para o olho da rua. Entretanto, a coragem do capitão revela-se uma qualidade fugidia.

É como se, no fundo da alma, o presidente da República cultivasse o medo de ter que usar óculos escuros e muleta.

Cloroquina segue à risca o roteiro da trama populista - MATHIAS ALENCASTRO

FOLHA DE SP - 13/04

Testado inicialmente na China, remédio passa a causa política


Como bem disse a ombudsman Flavia Lima neste domingo (12) na Folha, o debate sobre a cloroquina só será resolvido com o avanço da pesquisa científica. No entanto, já é possível reconstituir a sua trajetória política, que segue à risca o roteiro da trama populista.

Testada inicialmente na China, a cloroquina foi introduzida na discussão internacional pelo cientista e médico francês Didier Raoult, um conceituado pesquisador de doenças infeciosas que, nos seus dias livres, também exerce o papel de guru de infectologistas amadores nas redes sociais.
O presidente americano Donald Trump durante entrevista coletiva na Casa Branca - Jim Watson - 10.abr.20/AFP

A sua batalha pelo reconhecimento da cloroquina, apresentada como uma cura milagrosa, ganhou na França ares de reprise do movimento dos coletes amarelos.

Dando de ombros para o debate científico, o carismático doutor terceirizou a defesa do produto ao seu exército de militantes virtuais.

Rapidamente, eles transformaram a polêmica em mais um episódio do confronto da província contra a cidade, da sabedoria do povo contra a tecnocracia científica, da “França do andar de baixo” contra a “França do andar de cima”.


Traumatizado pela crise dos coletes amarelos, Emmanuel Macron evitou a armadilha. Numa manobra para manter a paz com os manifestantes que quase arruinaram sua presidência, Macron se deslocou a Marselha para conhecer o laboratório do sábio cabeludo.

Dias antes, hospitais começaram a receitar a cloroquina para pacientes em estado grave. Uma concessão política que contraria as recomendações dos especialistas.

A controvérsia da cloroquina migrou para os Estados Unidos seguindo um enredo semelhante. Vladimir Zelenko, que se apresenta como um “simples doutor do interior” é a versão pandemia de Joe the Plumber, ou “Zé, o encanador”, o ativista conservador que personificava a disputa entre o trabalhador popular e a elite financeira na crise econômica de 2008.

As teses de Zelenko prosperaram na comunidade alt-right, esse universo paralelo organizado por Steve Bannon onde populistas e extremistas abrem novos fronts de batalha.

Sempre atento aos novos caminhos do populismo, Donald Trump abraçou a causa. A tese da cloroquina e a conspiração do vírus chinês são dois coelhos da mesma cartola que permitem a Trump acenar ao seu eleitorado cativo enquanto opera uma reviravolta.

Outrora um negacionista convicto, o presidente agora só fala de coronavírus rodeado por especialistas.

Os memes e hashtags a favor da cloroquina eventualmente chegaram às telas dos smartphones dos assessores de Bolsonaro.

O remédio virou uma arma na guerra do bolsonarismo contra as instituições. Para ministros, governadores e deputados, ficou claro que o apoio público ao tratamento era o preço a pagar por uma trégua com o gabinete do ódio.

Em suma, a história da cloroquina é a de uma terapia genuinamente promissora que passou pela máquina de moer fatos dos populistas antes de entrar na vida dos pacientes.

As próximas semanas dirão se o remédio, além de preservar a popularidade dos governantes, também salva as pessoas infectadas.

As últimas notícias vindas da Europa não são promissoras. Se a cloroquina se revelar uma perigosa fraude terapêutica, Macron estará, pela primeira vez, unido a Trump e a Bolsonaro em uma coisa: um escândalo de Estado.

Mathias Alencastro
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

Servidor público também precisa pagar a conta da crise - LEANDRO COLON

FOLHA DE SP - 13/04

Governo propõe cortes no setor privado, mas há um silêncio sobre medidas para o funcionalismo

O Senado tem ao todo cinco funcionários no “serviço aeroportuário”. As remunerações partem de R$ 25 mil, segundo registros oficiais.

A atribuição deles é cuidar do planejamento das viagens das autoridades e de seus convidados que desembarcam no aeroporto de Brasília.

O serviço é subordinado à Polícia Legislativa do Senado, que fornece 19 servidores, com bons salários, para o “serviço de plenário e comissões”.

Outros 22 policiais legislativos trabalham na proteção do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Ao todo, a Casa tem cerca de seis mil funcionários de carreira e comissionados. Em tempos de sessões virtuais, com senadores votando de casa pela internet, e voos restritos, é inútil o “serviço aeroportuário”.

Assim como não há necessidade para 19 policiais cuidarem da segurança do plenário e das comissões, que estão inoperantes fisicamente.

Mas enquanto o governo federal propõe o corte de jornada e dos salários do setor privado para enfrentar a crise do coronavírus, há um silêncio sobre medidas que atinjam o bolso do funcionalismo público.

Os três Poderes —Executivo, Judiciário e Legislativo— não se mexem para buscar uma saída legal que corte na própria carne.

O presidente do STF, Dias Toffoli, por exemplo, tratou de acalmar a tropa da Justiça quando a hipótese de redução salarial foi aventada.

Reportagem publicada no domingo (12) na Folha mostra que haveria um caixa de R$ 6 bilhões se houvesse uma diminuição de 25% na jornada e nos salários por três meses na administração federal.

Somando os funcionalismos estadual e municipal, o valor subiria a R$ 36,8 bilhões, de acordo com estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Um dinheiro que poderia ir para o combate à pandemia.

Grande parte desses são servidores de carreira, que compõem uma elite com estabilidade trabalhista em meio a uma crise econômica que promete ser sem precedentes. Que ao menos então recebam menos por trabalhar menos nesse período.

Leandro Colon
Diretor da Sucursal de Brasília, foi correspondente em Londres. Vencedor de dois prêmios Esso.

O emergencial e o definitivo - DENIS LERRER ROSENFIELD

ESTADÃO - 13/04

Medidas imediatas para tapar buracos mais urgentes não podem comprometer o futuro



No pandemônio em que se encontra o Brasil, com o governo tateando e hesitando, quando não atirando contra si mesmo, começa a ficar cada vez mais difícil distinguir o que é necessário numa crise extrema do que é definitivo. O que vale num momento não tende a valer em outro. Acontece que os descontentes com as reformas liberais podem se aproveitar da atual circunstância para bombardeá-las, em nome de uma pandemia a ser combatida.

A agenda liberal, o saneamento fiscal do Estado, a reconfiguração do seu papel, a redução dos gastos públicos e dos privilégios dos estamentos estatais, a reforma tributária e as privatizações permanecem no domínio do definitivo. Se não forem considerados como tal, o País pode ficar inviável no futuro.

Acontece, porém, que uma pandemia exige armas específicas para combatê-la, que não se encontram nos arsenais das iniciativas liberais. Nada novo, todavia, na medida em que Estados em guerra recorrem também a instrumentos excepcionais. Os gastos estatais sobem exponencialmente, não mais se enquadram em parâmetros fiscais. A luta contra uma epidemia exige hospitais bem equipados, utensílios de proteção, remédios, pesquisas, testagens em massa e ajuda pública aos mais carentes. A prioridade é a luta contra um inimigo real, mas invisível: o coronavírus.

No imediato, isso significa que a agenda liberal está suspensa, sem que se saiba ao certo quando voltará. O decreto de calamidade pública e o dito orçamento de guerra tomaram o lugar da Lei do Teto dos Gastos Públicos e da Lei de Responsabilidade Fiscal. As novas despesas públicas estarão legal e socialmente justificadas, mas pagarão seu preço no futuro. A matemática não se deixa enganar! No futuro, os orçamentos serão unidos, apesar de serem contabilizados diferentemente. O bolo é um só: o conjuntos das contribuições e dos impostos pagos pelos cidadãos, seja como pessoas físicas ou jurídicas.

No afã de buscar recursos, o governo optou por reexaminar recursos disponíveis, porém de outras áreas, para tapar os buracos mais urgentes. Muitas vezes, as lâminas que deveriam ser afiadas fazem cortes bruscos, cujos efeitos podem estender-se para além do tempo presente. De um lado, o governo tem razão em agir assim, em nome da saúde pública; de outro, medidas imediatas não podem vir a comprometer o futuro. Tomemos dois exemplos: o Sistema S e o FGTS.

O Sistema S tem sido fundamental para o aprendizado de trabalhadores, sua qualificação profissional, a assistência técnica e a proteção, inclusive, da saúde dos que produzem. Por exemplo, produtores rurais, via Senar, dependem dessas medidas para que as empresas agrícolas, sobretudo pequenas e médias, que não possuem recursos próprios suficientes, possam se manter e expandir. Nossos alimentos dependem de todo esse trabalho e esforço coletivo, que muitas vezes aparece como invisível para quem não conhece o setor.

Ainda agora foi noticiado que o Sesi estaria trabalhando na recuperação de ventiladores, hoje tão necessários, para os hospitais. Houve, é bem verdade, excessos em alguns setores, cuja espetacularização terminou, em certos momentos, por velar o principal. Não se pode confundir o bebê com a placenta!

O FGTS é um fundo dos trabalhadores, voltado para o seu atendimento, em particular nos casos de dispensa profissional. São indenizados e têm à mão um colchão de proteção. Imaginem, como alguns estão apregoando, que todos esses recursos fossem agora distribuídos. Haveria, bem entendido, uma aceitação generalizada, porém o presente não pode obscurecer o futuro: quem pagaria as indenizações futuras?

O fundo é remunerado para que cresça e possa atender adequadamente os trabalhadores hoje e amanhã. E uma das formas de fazê-lo consiste em investimentos na construção civil que dão precisamente esse retorno. O déficit habitacional brasileiro é gigantesco, atinge principalmente os mais pobres e carentes e tende ao aumento, pois o suprimento presente é insuficiente. Ademais, o setor é um dos grandes empregadores, com repercussões vitais em emprego, salário e renda.

Cada vez mais habitações populares são necessárias. O programa Minha Casa Minha Vida, nesse sentido, é um instrumento de justiça social. Vociferar que tal programa favorece os empresários é fruto de uma visão míope que não cessa de mal compreender a relação capital-trabalho, vista não como parceria, mas como enfrentamento. Não há, evidentemente, por que financiar habitações de luxo com esse programa, o que pode ser feito por bancos particulares. A função da Caixa Econômica Federal é fundamental e, saliente-se, mesmo neste momento de crise vem cumprindo suas obrigações, sem descontinuar esse programa.

Logo, os saques atuais do FGTS, embora possam ser vistos como necessários num momento de extrema urgência, não se podem tornar uma praxe, pois se isso for feito, haverá um comprometimento das habitações populares, do emprego e da proteção dos trabalhadores.

PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFGRS.

Pobreza no Brasil faz da quarenta uma tendência dos ricos e famosos - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 13/04

Um dos sintomas do coronavírus é o oportunismo do horror, outro é achar que humanidade vai mudar após a peste


A quarentena virou tendência de comportamento. O chique é estar de quarentena brincando de aspirador de pó, conversando com plantas, cozinhando brócolis, fazendo ioga e lendo russos. Não fazer quarentena é coisa de pobre, bolsonarista, ignorante e fumante. De repente, o chique é posar de igualdade social. Imitar as empregadas enquanto faz live. Peste “instagramworthy” (peste que vale uma live).

É claro que isso passa ao largo do desespero real e vira uma espécie de gourmetização da peste, criando algo como um surto psicodélico em escala social.
Ilustração para coluna de Luiz Felipe Pondé - Ricardo Cammarota

De onde esse povo inteligente tirou a ideia de que o mundo vai mudar depois da peste? A primeira prova de que não vai mudar nada é que os inteligentinhos coronials já estão em ação.

Nunca vi tanto self-marketing se vendendo como se fora amor à vida. E disseram que o mundo não ia voltar ao normal? Já voltou, em parte. A vaidade, o oportunismo, o marketing de comportamento, o mercado dos horrores afetivos, as feministas dizendo que dominarão o mundo, tudo aí, pra quem quiser ver. Alguém já provou que vírus só existe em sociedades patriarcais e carnívoras? Logo coletivos de ciências sociais o farão. Enfim, o ridículo voltou às ruas.

Olhemos de mais perto a sintomatologia. Sempre achei a disciplina de clínica médica fascinante: uma espécie de trabalho de detetive mergulhado em sinais e sintomas pra identificar possíveis causas.

Um dos sintomas do corona no plano cognitivo e intelectual é o oportunismo do horror. Esse já identificamos. Vamos adiante. Outro, também no plano das funções cognitivas, é achar que a humanidade vai mudar depois da peste.

Uma possível explicação para esse sintoma talvez seja o desespero e o tédio que a quarentena gera em nós. É compreensível. Mas a humanidade já passou por inúmeras pestes piores que esta e nunca mudou. Esta é, apenas, a primeira “instagramworthy”.

Depois da espanhola e de outras piores, a humanidade saiu do mesmo jeito que sempre foi. E por que raios a saída dessa seria diferente? Vou explicar a razão.

A ciência primeira hoje é o marketing. Por isso, muitas pessoas querem passar a imagem que o coração delas é lindo e que depois da epidemia, o mundo ficará lindo como elas. A utopia fala sempre do utópico e não do mundo real. É sempre uma projeção infantil da própria beleza narcísica de quem sonha com a utopia.

A epidemia de utopias fala coisas como: vamos respeitar mais os mais humildes. Seremos mais solidários —durante a epidemia, muitos, sim, com certeza, ainda bem, mas passada a peste, a maioria voltará a ser como sempre foi. Os humanistas de quarentena voltarão a fazer lives dos hotéis caros que frequentam. Seremos menos consumistas? Vida mais simples? Como assim? Se até pra escolher comida somos o povo mais chato da história. Um estoicismo gourmet?

O mundo estará mais pobre, provavelmente. Os pobres mais pobres, menos dinheiro circulando. A economia será uma ciência ainda mais triste. Isso dará um baque no debate Keynes x Hayek, em favor do primeiro, grosso modo. Mais gasto do Estado —já está acontecendo. Passaremos por um momento parecido com a reconstrução da economia da Europa pós-Segunda Guerra: foco em diminuição de tensões sociais, com razão. O Estado de bem-estar social nasceu desse foco.

O mundo será mais competitivo ainda, porque mais inseguro. Mecanismos de controle invasivo valorizados agora por tanta gente bacana poderão ganhar ares de maior segurança social e de saúde. A segurança dará de 7 x 1 na liberdade.

O mundo será mais remoto. Mundo remoto é mundo de solitários. As relações entre as pessoas já estão difíceis, agora o serão com as bênçãos dos coronials.

Encaremos os fatos: no Brasil só classe média alta e alta podem fazer quarentena. Só eles têm reserva financeira. A esmagadora maioria da população vai pedir esmola, seja do Estado, seja nas ruas. A pobreza no Brasil faz da quarenta uma tendência de comportamento dos ricos e famosos. Perguntar por que os pobres não fazem quarentena é perguntar por que eles não comem bolo, já que não têm pão.

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

Um certo capitão Bolsonaro - ALMIR PAZZIANOTTO PINTO

ESTADÃO - 13/04

Que fazer, prosseguir com atividades não essenciais ou preservar vidas?

Longe estou de pretender traçar paralelo entre o capitão Jair Bolsonaro com o galante capitão Rodrigo Cambará, nascido da imaginação de Érico Veríssimo na trilogia O Tempo e o Vento. Tratarei do presidente da República que derrotou Fernando Haddad em duelo incruento e democrático, após terçarem armas e vencerem no primeiro turno políticos experientes como Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles, Álvaro Dias, Marina Silva e outros de menor projeção que me dispenso de nomear.

A História mostra como são difíceis e imprevisíveis as disputas eleitorais. Recordo-me da surpreendente derrota do brigadeiro Eduardo Gomes para o general Eurico Dutra, em 1945, e do retorno de Getúlio Vargas, em 1950. A vitória de Fernando Collor, em 1989, foi inesperada. O mesmo aconteceu na primeira eleição de Lula. Não nos esqueçamos das condições políticas reinantes em janeiro de 1985, quando, em pleno regime militar, Tancredo Neves impôs dura derrota a Paulo Maluf no colégio eleitoral.

Em maio de 2018 Jair Bolsonaro era tido, no jargão turfístico, como azarão, destinado a ficar em quarto ou quinto lugar. Despontava como favorito Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, candidato pelo Partido da Social Democracia Brasileira. A seguir viria Ciro Gomes. Mais atrás, Marina Silva e Álvaro Dias. Correndo por fora, o empresário João Amoêdo, do Partido Novo.

Não repisarei o que já se disse sobre o triunfo de Jair Bolsonaro. Aconteceu e basta. Foi eleito para exercer mandato de quatro anos, conforme prescreve a Constituição. Poderá candidatar-se à reeleição. Ao tomar posse prestou compromisso “de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”.

Promessa idêntica fizeram os presidentes anteriores. A fórmula encerra o óbvio. Sabemos, entretanto, que jamais foi respeitada. O juramento de defesa da Constituição tem sido pro forma. Não evita que a Lei Fundamental seja alvo de emendas retalhadoras. A de 1988 exibe mais de cem cicatrizes e, em nome de reformas, aguarda por muitas outras. A todo momento se ouve falar em nova Assembleia Constituinte ou em emenda parlamentarista.

Quanto ao bem geral do povo brasileiro, abstenho-me de comentar. Somos pobres e subdesenvolvidos. Se alguém alimentasse dúvida, a pandemia do coronavírus bastaria para eliminá-la. Com falta de recursos materiais e humanos, a assistência à população se sustenta graças à dedicação do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, dos auxiliares imediatos e mediatos, dos secretários da Saúde e médicos dos Estados, de grandes e pequenos municípios, da solidariedade de empresários e trabalhadores.

Quando votamos em Jair Bolsonaro – e me incluo entre os eleitores –, sabíamos o que estávamos fazendo. Conhecíamos os riscos de conduzir à chefia do Poder Executivo alguém que não se encontrava habilitado por completo para o cargo. Como paraquedista treinado para o combate corpo a corpo, afeito ao uso de armas brancas e de fogo, S. Exa. se revela incapacitado para conservar alianças que exijam tolerância e serenidade. Não sabe dialogar, ignora a arte oriental do silêncio e não tem a humildade beneditina para ouvir antes de argumentar.

O perfil paradoxal do presidente Bolsonaro mais se evidencia quando declara guerra ao ministro Mandetta pela exemplar correção no exercício do cargo. Devotado aos princípios da hierarquia e da disciplina, inerentes à organização das Forças Armadas, S. Exa. não compreende serem eles incompatíveis com a vida civil. Compete ao presidente da República, segundo a Constituição, a prerrogativa de nomear e exonerar ministros de Estado. Nunca, porém, de forma abusiva, como simples demonstração de autoridade. Afinal, a ele também se aplicam as exigências do artigo 37, cabendo-lhe observar, no interesse da República, os princípios de impessoalidade, moralidade e eficiência.

À falta de vacina, os países que melhores resultados colhem no combate à pandemia são os que adotam severa política de isolamento, ressalvados os serviços indispensáveis à satisfação das necessidades permanentes da sociedade. É impossível combinar a proteção à saúde, para garantir a sobrevivência do maior número possível de pessoas, com a plena continuidade do transporte, da comunicação, do turismo, da diversão, dos esportes, da grande e pequena indústria, do comércio atacadista, varejista e ambulante. Países que subestimaram o isolamento pagam alto preço em número de infectados e mortos.

Estamos cientes de que a pandemia trará prejuízos inevitáveis. Para o Brasil significa mais uma década perdida. Não há como evitá-lo. Empresas estão sendo fechadas e numerosos trabalhadores têm o contrato de trabalho suspenso ou são demitidos. O que fazer em tais circunstâncias? Privilegiar o prosseguimento de atividades não essenciais ou preservar vidas? A palavra é do leitor que se mantém enclausurado.

ADVOGADO, FOI MINISTRO DO TRABALHO E PRESIDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO

Cloroquina sem paixão - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 13/04

Na Aids ficou mais ou menos evidente que nenhum remédio era bala de prata. Os remédios eram combinados num coquetel

Não sou médico, nem cientista. É uma temeridade escrever sobre a cloroquina agora que sua composição química ganhou componentes ideológicos. Abordo o tema com minha experiência da campanha contra a Aids, que pude seguir ativamente, com mandato e sem estar preso em casa.

Desconfio também da experiência do general que vê na batalha de hoje uma repetição da batalha do ano passado, do político que vê na campanha atual uma réplica da campanha anterior.

Ainda assim, vou tateando. No combate à Aids ficou mais ou menos evidente que nenhum remédio em si era uma espécie de bala de prata contra o vírus. Os remédios eram combinados num coquetel.

Imagino que alguma coisa assim esteja acontecendo no combate ao coronavírus. Quando surgiram os rumores da pesquisa francesa liderada por Didier Raoult, Trump ainda não havia anunciado sua predileção pela cloroquina.

Os rumores na internet eram de que a hidroxicloroquina estava associada à azitromicina e que estava sendo usada no Hospital do Coração.

Liguei para confirmar, e o hospital desmentiu, dizendo que aquilo era fake news. Não noticiei nada, porque achava que, mesmo com desmentido, haveria corrida.

Nos EUA, Anthony Fauci, o homem que comanda a luta contra o coronavírus, fez também uma advertência sobre o perigo da notícia, pois os estoques poderiam ser esgotados.

Em seguida, li a história de um médico chinês de pouco mais de 30 anos, imigrante nos EUA. Ele foi contaminado pelo coronavírus e esteve entre a vida e a morte. A colônia chinesa estabeleceu os contatos com Wuhan, cujos médicos tinham já uma grande experiência. Recomendaram hidroxicloroquina com Kaletra, um remédio usado também contra a Aids. Isso fortaleceu para mim a ideia de que a cloroquina estava associada a um outro remédio, uma tática combinada como foi, guardadas as proporções, no caso da Aids.

Continuei atento ao movimento dos chineses, com os poucos recursos que tenho para segui-los. Li que a China pirateou outro remédio experimental contra o coronavírus, o Remdesivir.

A patente é da empresa americana Gilead, que deve faturar mais de US$ 2,5 bilhões com ele, apesar do avanço chinês sobre sua fórmula.

O Remdesivir é um antiviral mas não pode também ser considerado uma bala de prata. Seu uso foi aconselhado pela Agência Europeia de Medicina em casos muito graves, como um tratamento compassivo.

De novo, apesar de serem batalhas diferentes, a experiência da luta contra a Aids ilumina o caminho, até que uma outra luz mais forte e direta me conduza.

O Brasil resolveu inicialmente o problema da cloroquina comprando-a da Índia. Esse país vende remédios assim como a China vende equipamentos médicos. O Ocidente se aproveita dos preços baixos de ambos até que descobre sua dependência.

Mas em breve poderemos chegar à possibilidade de um coquetel ou uma simples associação de remédios. Nesse momento, veremos a possibilidade de distribuí-los gratuitamente.

Foi assim com o coquetel da Aids. Muita discussão com a equipe econômica por causa dos custos. O problema seguiu adiante mesmo depois da vitória da gratuidade.

Apareceu então, com intensidade, o problema das patentes. Até que ponto um respeito religioso pelos direitos dos laboratórios multinacionais não era um obstáculo para a salvação das vidas?

Felizmente, na época, tínhamos um ministro da Saúde, José Serra, que compreendeu bem o dilema e soube defender o que me parece uma posição correta no debate planetário sobre patentes.

A cloroquina, graças ao empenho de Trump e Bolsonaro, ganhou destaque na cena, mas o Remdesivir, a julgar pela apropriação chinesa, também merece um exame.

Na verdade, há pelo menos oito atores, remédios em teste, que foram ofuscados pela cloroquina e mereciam mais atenção. Nenhum deles é de direita ou de esquerda. São fórmulas químicas, e sinto-me meio acaciano a formular essa frase.

No entanto, o vírus já foi politizado, os remédios são politizados de uma forma equivocada. A questão que nos espera é testá-los adequadamente e garantir que cheguem às pessoas e discutir os direitos de patente num mundo devastado pela pandemia.

O bom exemplo dos políticos - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO -  13/04

Em sua maioria, políticos têm sido, no momento, parte relevante da solução para enfrentar a pandemia do novo coronavírus. Não convém desprezar tal realidade


Ainda que haja algumas penosas exceções, os políticos em sua grande maioria têm dado exemplo de responsabilidade, de coordenação e de trabalho no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. A população tem se mobilizado em torno de várias iniciativas de solidariedade, para amenizar o prejuízo e o sofrimento decorrentes da atual crise. Mas seria equivocado aplaudir apenas a reação positiva da sociedade. Se muitos têm do político a imagem de quem pensa apenas em seus próprios interesses, a pandemia do novo coronavírus oferece como contraponto a atuação propositiva e responsável do Congresso. Tal como se viu no ano passado, com a aprovação da reforma da Previdência, deputados e senadores manifestam agora, em meio à dramática situação do País, compromisso com o interesse público, muito além de questões partidárias e eleitorais.

São abundantes os exemplos de atuação responsável de políticos. No início de fevereiro, antes mesmo de haver casos de infecção pelo novo coronavírus no País, o Congresso aprovou a Lei 13.979/2020 dispondo sobre as medidas relativas à emergência de saúde pública decorrente da covid-19.

O Poder Legislativo foi também diligente na aprovação da Lei 13.982/2020, que estabeleceu auxílio emergencial de R$ 600 para trabalhadores informais e intermitentes de baixa renda, bem como a microempreendedores individuais (MEIs). Com duração prevista de três meses, podendo ser prorrogada, a medida é de fundamental importância para reduzir os danos sociais e econômicos provocados pela pandemia do novo coronavírus. Elaborada pelo Executivo, a redação original da proposta previa auxílio mensal de R$ 200.

Além de ágil na votação de projetos de lei (PLs) apresentados pelo Executivo, o Congresso tem sido zeloso na redação de propostas legislativas referentes à pandemia. Por exemplo, o senador Antonio Anastasia (PSD-MG) apresentou projeto de lei propondo a criação do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado, para o período da pandemia. Entre outras medidas, o PL 1.179/2020 dispõe sobre regras de despejo, prazos de prescrição, direito de devolução de mercadorias, procedimentos para assembleias de pessoas jurídicas e o adiamento da entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), prevista originalmente para viger em agosto deste ano. Aprovado no Senado, o PL 1.179/2020 está sob a análise da Câmara.

Outra iniciativa relevante para o enfrentamento da pandemia é o Projeto de Lei Complementar (PLC) 39/2020, estabelecendo uma ação coordenada entre União, Estados e municípios no combate à pandemia. A proposta regulamenta o art. 23 da Constituição, que estabelece a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios no cuidado da saúde e da assistência pública. “Trata-se de regulamentar o processo de discussão e de deliberação dessas medidas de saúde pública, com vistas a encontrar um regramento que, além de vincular todos os entes da Federação, garanta a unicidade de objetivos e de meios de atuação contra tais situações emergenciais”, afirmou o senador Anastasia.

Também no âmbito estadual se verifica a diligência dos políticos. Por exemplo, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou, por votação remota, decretos legislativos reconhecendo o estado de calamidade pública no Estado de São Paulo e em todos os municípios paulistas. Entre outros efeitos, a medida confere maior autonomia ao gestor público para realizar investimentos nas áreas mais afetadas pela pandemia.

O reconhecimento do bom trabalho dos políticos no combate ao novo coronavírus não significa fechar os olhos à ocorrência de erros, tal como o jabuti incluído pela Câmara Municipal de São Paulo no PL de emergência. Ao votar medidas para enfrentar a covid-19, os vereadores aprovaram uma extemporânea e imoral alteração do funcionamento da Controladoria-Geral do Município (ver editorial O vírus do corporativismo, 31/3).

Há muitos erros e disfuncionalidades na política. Mas os fatos mostram que, em sua maioria, os políticos têm sido, neste momento, parte relevante da solução para enfrentar a pandemia do novo coronavírus. Não convém desprezar tal realidade.

O melhor de Bolsonaro na pandemia é sua ausência na gestão da crise - CELSO ROCHA DE BARROS

FOLHA DE SP - 13/04

Parece ter havido esforço coordenado entre os brasileiros de bom senso para mantê-lo isolado até o fim da epidemia

​A reversão da demissão do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, na semana passada deu a impressão de que Jair Bolsonaro havia se tornado uma espécie de rainha da Inglaterra com menos experiência militar relevante. A jovem Elizabeth de Windsor, como se sabe, foi mecânica de caminhões durante a Segunda Guerra Mundial.

Parece ter havido um esforço coordenado entre os brasileiros de bom senso para manter Bolsonaro isolado até o fim da pandemia. Congressistas, militares, ministros do STF e mesmo alguns ministros do próprio governo parecem ter atuado para impedir que o presidente da República sabotasse o esforço dos governadores para achatar a curva de contágio.

Se o Brasil sobreviver à epidemia, vai ser graças aos esforços dessa turma.

Mas ainda há um risco grande de tudo dar errado. Porque não basta que o presidente da República não atrapalhe. No sistema brasileiro, é preciso que ele trabalhe, pois há coisas que só ele pode fazer.

Bolsonaro, que fique claro, continua atrapalhando o máximo que consegue. Vai às ruas para sinalizar que o isolamento é desnecessário, conspira abertamente contra o próprio ministro da Saúde, vende para seu público as mentiras vagabundas de Osmar Terra. Fala em “isolamento vertical”, mas, na hora de dizer como os velhos seriam isolados, diz que é problema das famílias. Compra briga com os chineses, grandes produtores de material médico de que precisamos desesperadamente.

No fundo, a mensagem de Bolsonaro para os doentes e parentes das vítimas é a mesma de Augusto Heleno para os congressistas um mês atrás. Bolsonaro não trabalha 15 minutos por dia para combater a epidemia. A revista britânica The Economist citou Bolsonaro como um dos quatro líderes mundiais que menosprezam a ameaça da Covid-19 (os outros são os ditadores de Nicarágua, Belarus e Turcomenistão).
Tão trágica quanto o discurso e o exemplo do presidente da República é sua omissão nas áreas em que só o Poder Executivo pode agir. É o caso da economia.

Bolsonaro gasta seu tempo brigando com os governadores enquanto deveria estar liderando a conversão da indústria nacional em produtora de máscaras, remédios, respiradores. Ao invés de fazer lives com propaganda de remédio, deveria ter pressionado pela liberação mais rápida da renda básica emergencial.

Estudo do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getulio Vargas, mostra que as medidas tomadas até agora, por mais importantes que tenham sido, não são suficientes para preservar a renda dos brasileiros. O Brasil ainda não conseguiu garantir aos trabalhadores brasileiros a capacidade econômica de ficar em casa durante o isolamento, e isso é tarefa para a Presidência.

A iniciativa, a ousadia, a visão de longo prazo e a cobrança de eficiência que estão faltando à equipe econômica deveriam estar vindo do Planalto. Mas o Planalto não tem outro plano senão a volta ao trabalho e a aceitação da mortandade em massa. Resta torcer para que Guedes ou alguma coalizão de ministros assuma as rédeas do processo e escape da sabotagem presidencial.

De Jair Bolsonaro, o melhor que se pode esperar continua sendo a ausência. Ele é isso aí, o exato oposto do líder de que o Brasil precisa agora.

Celso Rocha de Barros
Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

A chance de reerguer o país e evitar uma repetição de erros - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 13/04

Crise abre oportunidades para avançar na direção de um Brasil mais eficiente e equânime

Na emergência sanitária é natural que as atenções se concentrem na saúde. Porém, em algum momento adiante — o mais breve possível, espera-se — a pandemia será vencida pela Ciência. Será, então, a hora da reconstrução, muito provavelmente um divisor de águas na política e na economia. Isso porque o vírus deixou singularmente expostas fragilidades do modelo de desenvolvimento sustentado nas últimas sete décadas, desde a Segunda Guerra Mundial.

No Brasil, o primeiro desafio será equacionar a conta dessa crise. Pelas projeções governamentais apresentadas na semana passada, o rombo nas contas de União, estados e municípios deve somar R$ 500 bilhões ao final deste ano, equivalente a 6% do Produto Interno Bruto. Para comparação, no ano passado foi de R$ 61 bilhões. Não é pouco, mas é necessário, porque o importante é a vida.

Governo, Congresso e Judiciário, deve-se reconhecer, empreendem esforços para mitigar as consequências da pandemia. Ao mesmo tempo, sinalizam preocupação com a transição para a etapa pós-crise. Esse debate ainda é incipiente e está descoordenado, mas é fundamental. Ideias avançam nas reuniões virtuais de bancadas e nas sessões remotas da Câmara e do Senado, a partir do acervo de projetos existentes.

O adiamento da reestruturação das finanças estaduais obedece a essa lógica. Foi, prudentemente, remetida à agenda pós-crise, com as reformas tributária e administrativa.

Caminho inverso adotou-se para a renda mínima. O debate começou nos anos 60, impulsionado pelo economista americano Milton Friedman. No Brasil dos anos 90 ganhou forma legislativa com os então senadores Fernando Henrique Cardoso e Roberto Campos, atualizada depois pelo senador Eduardo Suplicy. A pandemia levou-a à prática, em caráter transitório, mas é tema com o qual Congresso e governo têm encontro marcado depois da crise.

A reconstrução vai exigir nova perspectiva sobre a arbitragem da carga tributária para cidadãos e empresas, estímulo a investimentos e empregos. Será preciso repensar os gastos públicos com reforço de saúde, saneamento, pesquisa, tecnologia e inovação, vitais ao desenvolvimento em segurança. Há vários projetos, também, para modernização do Estado. O foco deve estar na prioridade aos serviços diretos ao público, à redução da burocracia via tecnologia digital, com liquidação de artifícios como supersalários.

O debate sobre o futuro está começando, mas é preciso cautela para não se repetirem erros, já clássicos, como a concentração de recursos na União, de renda dentro do Orçamento público, tributação máxima e serviços mínimos, e concentração da propriedade do capital combinada com amarras ao empreendedorismo. A crise abre oportunidades para avançar na direção de um país mais eficiente na produção e mais equânime na distribuição da riqueza acumulada.