sábado, janeiro 11, 2014

Você está “nervosinho”? - RUTH DE AQUINO

REVISTA ÉPOCA

Na construção de um Brasil mais justo, consciente e ético, há críticos de todas as colorações



O ano de eleição e Copa começa com um aquecimento brutal dos ânimos e das temperaturas. O nervosismo nada tem a ver com ideologia, mas com o contínuo desrespeito à cidadania e aos direitos humanos. E com o assalto impune aos cofres públicos. Tem a ver com o deboche de sonsos poderosos que dão desculpa esfarrapada e nos tratam como otários. Erra quem insiste em rotular esse debate de um confronto entre direita e esquerda. Na construção de um Brasil mais justo, mais consciente e mais ético, há críticos de todas as colorações. À exceção do alvissareiro desemprego a apenas 4,6%, eis três motivos para ficar nervosinho na virada de ano.

1. O IOF sobre compras no exterior em cartão pré-pago. O governo meteu escandalosamente a mão no bolso do turista. Com essa conversa fiada de “equiparar imposto do cartão de débito ao de crédito” em compras no exterior, começa a “argentinização” de nosso consumo. É perigoso. Os argentinos fazem de tudo para driblar o cerco fiscal de Cristina Kirchner a seu direito sagrado de lazer e se livrar do dólar paralelo. Eles precisam comprovar renda e ter nas mãos o bilhete de viagem para comprar dólar oficial – e, mesmo assim, o governo limita. No Brasil, a alta do IOF de 0,38% para 6,38% nos cartões pré-pagos pune sobretudo a nova classe média. E provoca uma procura recorde por dinheiro vivo para viajar. Resultado: o dólar turismo chegou, no Rio, a R$ 2,52, na quinta-feira. E por que tudo isso? O ministro calminho Guido Mantega explica: “Os gastos com cartão de turistas brasileiros estavam muito elevados lá fora”. É de lascar. Antigamente, comprava-se pouco no exterior porque tudo era mais caro lá. Podíamos ser nacionalistas no consumo. Hoje, compra-se mais no exterior porque nossos preços estão absurdamente altos e com qualidade bem mais baixa. O ministro Mantega agora promete: “Não vamos estender o IOF para compra de moeda estrangeira”. Deixou todo mundo nervosinho com essa declaração. O mercado e os consumidores.

2. O Maranhão do clã Sarney. Sabemos que Roseana teve uma grande escola em casa. Mas criticar a divulgação do vídeo com a barbárie no presídio de Pedrinhas e dizer que a violência nas ruas de São Luís se deve ao aumento da população porque o “Estado está mais rico”... É demais. Será que a governadora acha que o índice de analfabetismo funcional no resto do país é o mesmo do Estado que ela governa, sempre na rabeira do IDH nos quesitos sociais? “O Maranhão está indo muito bem”, diz Roseana, seguindo fielmente as aulas do pai José Sarney. “Nosso sistema de saúde é muito bom para os presos.” Para os decapitados, os mutilados ou os que fazem suas necessidades uns sobre os outros? Roseana detesta que se fale em clã. “Não existe família. Eu sou a governadora. Quem manda aqui não é a família, sou eu.” Que se decrete então uma intervenção exemplar no Maranhão de Roseana. Não só nos presídios horrendos, mas nas escolas que condenam as novas gerações à inaptidão. Uma apuração rigorosa das contas de Roseana também seria útil, para saber onde toda essa riqueza do Maranhão foi investida. A governadora suspendeu, por enquanto, a licitação para as geladeiras oficiais. Seu cardápio incluía 80 quilos de lagosta fresca, 2 toneladas e meia de camarões frescos grandes com cabeça, 120 quilos de bacalhau do Porto, quase 1 tonelada de sorvete em oito sabores... E por aí vai. Roseana deixa os maranhenses nervosinhos.

3. O amadorismo do Brasil em planejamento, prazos, fiscalização e punição. Esse amadorismo leva cidadãos, contribuintes e eleitores a descrer do sistema e a imitar péssimos exemplos. Ser o país que mais atrasou uma Copa do Mundo... não ter chegado sequer à metade das obras nos estádios das cidades sedes... não ter conseguido melhorar a maioria dos aeroportos... o vexame deixa todo mundo nervosinho. Enfrentar falta de luz e de água num verão escaldante deixa o brasileiro nervosinho. Ver a Baía de Guanabara, as praias e as lagoas com manchas imensas de poluição e cheiro insuportável de esgoto, num Estado que investiu em saneamento apenas 16,8% dos recursos em 2013, deixa os cariocas nervosinhos. Ver em São Paulo a deterioração dos serviços públicos e a proliferação de acampamentos de sem-teto, como o Nova Palestina, na Zona Sul da capital, com 8 mil famílias e lista de espera, deixa os paulistanos nervosinhos. Ver um presidente do Senado pegar um jatinho da FAB para implantar cabelo... e depois achar que resolve tudo devolvendo parte do dinheiro, sem pedir desculpas e fingindo-se de desinformado, deixa o eleitor bem mais do que nervosinho. A descompostura e a impunidade de Renan Calheiros deixam o eleitor irado. Entra ano, sai ano, e o herdeiro político de Sarney não aprende. Ou é a gente que não aprende?

Por seleção artificial - CACÁ DIEGUES

O GLOBO - 11/01

O que não li no jornal, eu mesmo inventei. Uma história verossímil sobre a evolução das espécies por seleção artificial, um passo bem à frente da seleção natural de Darwin



Nesse fim de ano, li mais os jornais e fiquei surpreso com os avanços da humanidade. Parece que já podemos alterar nosso DNA, fotografamos nosso cérebro, achamos cristais que convertem energia solar em eletricidade, descobrimos novas supernovas que explicam a origem do universo e muito mais. Para não falar da televisão de 110 polegadas, megaTVs com UltraHD e resolução 4K, que podem acabar com as salas de cinema, onde passam nossos filmes. Tudo isso eu li nos jornais.

O que não li no jornal, eu mesmo inventei. Uma história verossímil sobre a evolução das espécies por seleção artificial, um passo bem à frente da seleção natural de Darwin, que contei à revista “Piauí” no fim de 2008.

Imagine que, na terceira ou quarta década do século 21, o mapa do genoma humano tenha sido enfim integralmente decifrado. A manipulação de células-tronco servia agora para curar todas as doenças, permitindo maior extensão da vida. A nova medicina se tornou conhecida como genoterapia.

Por ser cara, a genoterapia só estava ao alcance de famílias ricas de países ricos. Mas líderes árabes, altos funcionários asiáticos, ditadores africanos e bilionários latino-americanos também compraram o acesso a ela. As pessoas beneficiadas pela nova terapia foram chamadas de genos.

Em breve, o número de genos crescia, permitindo aos laboratórios viver da nova medicina. Os lucros com ela se tornaram tão elevados que eles deixaram de fabricar medicamentos convencionais, responsáveis por custo-benefício insignificante.

Os que não tinham condições financeiras de se beneficiar da genoterapia se organizaram para evitar que desaparecesse o que havia restado da medicina convencional. A disputa por médicos e medicamentos convencionais provocou ferozes guerras localizadas. Mas os genos não se envolveram nelas, limitando-se a agir por motivos humanitários, impedindo o uso de armas químicas e nucleares de destruição em massa.

A vida já tinha se estendido a possibilidades centenárias para os genos, quando uma crise gigantesca atingiu os não-genos. Vivendo em condições sanitárias lastimáveis provocadas pelas guerras, os não-genos foram assolados por grandes epidemias. Passaram então a tentar se apropriar ilegalmente dos benefícios da genoterapia, praticando roubos, assaltos, sequestros e outros crimes. As autoridades foram obrigadas a declará-los inaptos à convivência democrática e a negar-lhes o direito de cidadania, isolando-os ainda mais.

Por essa época, bioneurocientistas descobriram o infraego, o regente de um mecanismo autônomo que ordenaria o conjunto do corpo humano, o oposto simétrico do superego. O infraego regia a circulação do sangue, o sistema digestivo, a respiração do ser humano, comandando a harmonia necessária entre as atividades orgânicas.

Cientistas mais astutos chegariam à seminal descoberta de que o infraego era também capaz de pôr ordem nas mentes humanas e controlá-las artificialmente, reorganizando o sistema moral de cada um segundo seu próprio programa individual, neutralizando interferências indesejáveis do superego.

A interação entre pesquisas da genoterapia e do infraego aproximou a pequena humanidade que se beneficiava delas de uma existência quase milenar, cujo sentido não cabia mais na simples palavra “vida”. Em harmonia com a natureza, a procriação dos genos logo sofreu uma mutação genética, tornando-se uma nova espécie dentro do gênero humano. Lembrando a origem de sua evolução, biólogos e antropólogos chamaram a nova espécie de homo-ricus.

Enquanto isso, os decadentes homo-sapiens perambulavam em desordem pelos continentes, fugindo com suas famílias das cidades empestadas e em ruínas, a vida cada vez mais curta. Os Estados entraram em colapso e as nações começaram a desaparecer, impossibilitadas de conservar suas fronteiras e os laços entre seus cidadãos. A linguagem começou a sumir por perigosa e as manifestações culturais rarearam por desnecessárias.

Os homo-ricus progrediam rumo uma vida cada vez mais saudável, a mentes mais livres de ilusões, a existências mais longas e despreocupadas, fundamentos de uma cultura de sabedoria e contemplação. A lembrança dos homo-sapiens se restringia à narrativa científica da evolução, como eucariontes bípedes, primatas e ancestrais como tantos outros animais existentes ou extintos. Primeiro para evitar sua aproximação, depois por diversão e esporte, os homo-ricus passaram a caçar os homo-sapiens. Como se caçava macacos num passado longínquo.

Áreas reflorestadas do subcontinente sul-africano, do sudeste asiático e da América do Sul foram transformadas em reservas, onde os homo-sapiens restantes eram mantidos em estado natural. Um mínimo de caçadas autorizadas capturava poucos exemplares para zoológicos, onde eram mantidos para estudos de sábios e diversão das crianças.

Em algumas reservas, a caça mortal aos homo-sapiens era permitida, em temporadas precisas, com absoluto controle do número anual de vítimas. A carne deste animal em extinção havia se tornado rara e nobre, só era servida em circunstâncias muito especiais, sobretudo por ocasião do Natal, quando a iguaria substituía o antigo e já extinto peru.

GOSTOSA


As viúvas de Kennedy - LUCIANA WORMS

GAZETA DO POVO - PR - 11/01

Dante Mendonça que me desculpe, mas esta história eu vou contar antes que meu marido lhe conte no balcão do Ao Distinto Cavalheiro e acabe na coluna de Dante na sexta-feira.

Esses dias fui a um encontro com amigos de turma da faculdade. Lá encontrei a querida Débora Puppo. Eu e ela até já combinamos de escrever um livro com as nossas mancadas. Juntas ou separadas, já demos todos os tipos de fora. E também aceitaremos contribuições antológicas de outros amigos como o grande fotógrafo J. C. Vieira.

No encontro, lembrei-me de vários... Mas, para meu espanto, a Débora não lembrou de nada! Ela se tornou aquele tipo de pessoa abençoada que se esquece do inútil. Minha cartada final foi tentar que ela se recordasse de um “causo” que um colega do Coral da USP – médico que trabalhou no nordeste brasileiro no início dos anos 60 – contara e que me chegou aos ouvidos por ela: “E a história da cumádi Jaqueline, você lembra?”. “Não. Seria alguma louca petista que conhecemos?”. Decidi. A história passaria a ser minha. Contada para mim. Mas por honestidade vou socializá-la aqui.

O ano passado fez 50 anos do traumático assassinato do presidente John Kennedy. O primeiro dos dois presidentes dos EUA que fugiria ao padrão WASP (white, anglo-saxon, protestant – branco, anglo-saxão, protestante). Kennedy era católico. Foi um fenômeno de mídia. Carismático, bonito, sedutor – Marilyn Monroe que o diga –, casado com a mitológica Jackie Kennedy. Governou de 1961 a 1963 – momento em que a Guerra Fria quase esquentou com os episódios da Crise dos Mísseis em Cuba e da fundação dos Vietcongues (Frente Nacional para a Libertação do Vietnã), que se formaram para pôr fim à dominação norte-americana no Vietnã do Sul, o que justificou a invasão dos EUA ao país e detonou a Guerra do Vietnã.

Kennedy não era só idolatrado nos EUA. Onde quer que houvesse um aparelho de televisão havia quem o admirasse.

Pois bem... em uma cidade miserável do sertão nordestino a história se deu. Foi na região do chamado Polígono da Seca (atualmente com 1.108.434,82 km²), logo após as denúncias feitas pelo jornalista e romancista Antonio Carlos Callado no Correio da Manhã, jornal em que fora redator-chefe, de que alguns segmentos da classe dominante brasileira ganhavam dinheiro com a estiagem e a pobreza nordestina.

No meio daquele cenário de Morte e Vida Severina uma mulher, de nome desconhecido, deslumbrou-se pelo presidente Kennedy. Nem os presidentes brasileiros Juscelino Kubitschek – igualmente carismático – e o seu sucessor, em 1961, Jânio Quadros – igualmente (guardadas as devidas proporções) fenômeno midiático – despertaram em nossa protagonista tamanho encantamento.

Também em 1961, a senhora “Severina” foi mãe e, como todas as mães, queria uma vida melhor para seu filho. Claro que o menino foi registrado com o nome de Kennedy. Mas ela queria mais! Queria que Kendinho fosse praticamente da família de origem irlandesa que conquistara o poder nos EUA. Queria que Kendinho fizesse parte daquele mundo de vitoriosos, dos bem nutridos que mandavam. E não deste mundo dos subnutridos, submetidos, subestimados, oprimidos, roubados...

A nossa protagonista resolveu que queria porque queria Kennedy como padrinho de batismo de seu filho. Afinal, os Kennedy eram católicos como ela. Tanto fez, tanto fez que conseguiu! Conseguiu que o padre da paróquia local redigisse todos os papéis para que o pedido fosse feito e remeteu, pela empresa pública dos Correios, a documentação para que Kennedy assinasse e assim aceitasse Kendinho como afilhado. E o presidente o fez. Não se sabe se de forma consciente ou se simplesmente assinou o compromisso de batismo católico em meio a cartas, cartões de felicitações. O fato é que nossa pobre senhora recebeu exultante os papéis que comprovavam o laço e assim pôde exibir a todos da cidade sua conquista (até porque a esmagadora maioria analfabeta jamais poderia conferir a veracidade da documentação). Ela não era uma louca pretensiosa como muitos a chamavam. Sua perseverança a colocou próxima do ídolo mais do que qualquer um naquele fim de mundo seco e esturricado.

Kennedy morreu em novembro de 1963. A cidade parou para levar as condolências à “parente” mais próxima do presidente. Ela recebeu a todos. E chorava, chorava... chorou dias, meses. Kendinho (se hoje vivo, já um cinquentão) já tinha mais de 3 anos, o general Castelo já tinha sido empossado presidente do Brasil, o vice de Kennedy, agora presidente Lyndon Jonhson, já tinha ordenado o bombardeio ao Vietnã do Norte recrudescendo a guerra. E a nossa “Severina” continuava aos prantos.

Um dia, uma amiga mais próxima – como a Débora é pra mim – chegou e disse: “Mas mulher, já tá na hora de você parar de chorar. Você nem conheceu de perto o tal do Kennedy”. E a mãe de Kendinho, fungando, respondeu: “Não choro por mim. Choro por cumádi Jaqueline”.

Antes do 1º de abril - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 11/01

RIO DE JANEIRO - A menos de três meses do dia 1° de abril, vem por aí uma chuva de eventos pelos 50 anos do golpe civil-militar de 1964 --livros, séries de reportagens na imprensa, programas de TV, exposições, debates, palestras, shows. Mas, por mais agitado que seja o trimestre, dificilmente se comparará ao que fervilhava nesse exato período em 1964, em que o intenso zum-zum-zum cultural do Rio disputava com o crescente e sinistro rumor de sabres.

No teatro estavam em cartaz, ao mesmo tempo, Fernanda Montenegro (com "Mary, Mary", de Jean Kerr), Maria Della Costa (com "Gimba", de Guarnieri) e Bibi Ferreira (com "Minha Querida Lady", de Alan Jay Lerner). No cinema, estreavam "Ganga Zumba", de Cacá Diegues, "Os Fuzis", de Ruy Guerra, e --em primeira exibição numa sessão no Vitória, no dia 13 de março, a poucos quilômetros do megacomício daquela noite na Central do Brasil--, "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha.

Dois discos que ficariam para sempre saíram naqueles dias: "Getz/Gilberto", de Stan Getz e João Gilberto, contendo o "Garota de Ipanema" que tomaria o mundo na voz centimétrica de Astrud, e "Nara", o primeiro LP de Nara Leão, contendo "Diz Que Fui Por Aí", de Zé Kéti, e a profética "Marcha da Quarta-Feira de Cinzas", de Lyra e Vinicius. Anibal Machado e Ary Barroso tinham acabado de morrer; Brigitte Bardot logo iria chegar.

Nas livrarias, os novos romances de Clarice Lispector, "A Paixão Segundo G.H.", Carlos Heitor Cony, "Antes, o Verão", e Campos de Carvalho, "O Púcaro Búlgaro". Nas bancas, o último número da revista "Senhor" (fechara em janeiro) e o primeiro de "Pif-Paf", a revista de Millôr Fernandes (nasceria em março). A praia era no Castelinho, em frente ao botequim Mau Cheiro, e fazia sol todos os dias.

Mas, nos dias 31 de março e 1º de abril, iria chover.

Marivaux, Vie d'Adèle - SÉRGIO AUGUSTO

O Estado de S.Paulo - 11/01

Marivaudage. Não se avexe de ignorar o que esta palavra significa. Levei anos para lhe ser apresentado, apesar do muito que nos ensinavam de língua e literatura francesas no velho Colégio Pedro II. Sabia quem fora Pierre de Marivaux (1688-1763) e que impacto suas peças causaram no século 18, mas marivaudage, sinônimo de intrigas amorosas tratadas em tom ligeiro, que custei a distinguir de badinage, neologismo oitocentista legado pelas comédias teatrais de Alfred de Musset, só entrou no meu repertório graças a um crítico da (ou do, como preferíamos dizer) Cahiers du Cinéma, Jean Domarchi, o primeiro a rotular de marivaudages algumas comédias filmadas por George Cukor.

Marivaux é a principal referência literária de Azul É a Cor Mais Quente, o filme mais quente deste verão. Ausente do romance gráfico de Julie Maroh (Le Bleu Est Une Couleur Chaude) que lhe serviu de inspiração, Marivaux é uma antiga admiração do cineasta tunisiano Abdellatif Kechiche, que no início da década passada já havia articulado outro filme, A Esquiva, em torno de uma encenação amadorística de O Jogo do Amor e do Acaso, talvez o mais celebrado dos marivaudages. O de agora não veio da ribalta, mas da ficção pura: o romance inacabado La Vie de Marianne, de onde também derivou o título original do filme: La Vie d'Adèle.

Iniciado 36 anos antes da morte do autor, suas primeiras 11 partes foram publicadas entre 1731 e 1745, e podem ser baixadas de graça na internet. É um romance epistolar, narrado por uma mulher madura que cresceu órfã, virou condessa e, desiludida pelos "jogos do amor e do acaso", recolheu-se a um convento. Não é uma história convencional de corações partidos mas quase um estudo sobre a metafísica do ato amoroso. Marivaux não só adotou a voz feminina, como procurou imitar o jeito de escrever das grandes madames (de Sévigné, de la Fayette) da literatura. Sua influência sobre o estilo romanesco do final do século 19 já motivou várias análises acadêmicas.

São demasiado sutis as similaridades entre as personalidades, as origens sociais e os desapontamentos de Marianne e Adèle. Não vi o telefilme que Benoît Jacquot extraiu de La Vie de Marianne, no final do século passado. A única aproximação (ou apropriação) cinematográfica do romance que conheço é a de Kechiche, que, a exemplo de Marivaux, se alonga nas descrições para melhor explorar e captar os sentimentos e as emoções de suas duas amantes.

Nos quadrinhos originais Adèle se chama Clémentine e sua história nos é revelada através de um diário lido por Emma. Assim como a troca do nome (Adèle quer dizer justiça em árabe), as referências literárias são de inteira responsabilidade de Kechiche, que nos introduz a uma aula sobre Marivaux logo nas primeiras cenas, complementada por uma comparação de La Vie de Marianne com A Princesa de Clèves (de Mme. de la Fafayette) e uma digressão sobre o amor à primeira vista, que em seguida Adèle irá experimentar numa furtiva troca de olhares com Emma, a desconhecida de cabelos azuis, no Baixo Lille. Nas aulas seguintes, o professor de Adèle se refere à Antígona, a rebelde filha de Creonte, e a Lamiel, a jovem órfã do romance póstumo de Stendhal, cujas aventuras e desventuras amorosas encontram eco na educação sentimental de Adèle.

O azul é um achado cromático e simbólico de que o cineasta se serviu de forma discreta. Maroh o utiliza com exagero em seus quadrinhos; Kechiche o mantém exclusivo dos cabelos de Emma, e apenas na primeira parte (ou capítulo) do filme. Sempre identificamos o azul com harmonia, fidelidade, confiança ("true blue"), alegria ("Blues skies, smilin' at me...", "Nel blu dipinto di blu"), liberdade, com o céu, o mar profundo, Picasso, Virgem Maria, com lembranças agradáveis (no último encontro de Rick Blaine e Ilsa Lund, em Paris, os soldados alemães vestiam cinza e ela, azul) e devaneios saudosistas (como os de Jay Gatsby), ou mesmo, excepcionalmente, com coisas negativas como a tristeza ("Am I blue?"), o luto (só na Turquia), a morte (só na ópera chinesa), mas ao calor afetivo & sexual me pareceu novidade. O que fazer doravante com o vermelho?

Na tela, as transas são infinitamente mais frequentes, passionais, explícitas e impactantes do que na novela gráfica de Maroh. Ela acusou o cineasta de voyeur e fetichista, de explorar o corpo de Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux, em especial a boca e a bunda da primeira. Não foi a única (militante feminista ou não, lésbica ou hétero) a cometer uma avaliação superficial do profundo mergulho nas emoções ousado por Kechiche, com a cumplicidade das suas belas e esplêndidas atrizes. Abstenho-me de um close reading do filme, pois, no fundo, tudo o que talvez tenha a dizer sobre ele aqui já foi dito por Luiz Carlos Merten.

Confesso que temi não suportá-lo até o fim. Com meia hora de bola em jogo, duvidei que a vida de Adèle, até então morosa e insossa, pudesse justificar os 149 minutos que ainda tinha pela frente. Aos poucos, antes mesmo da primeira cena de sexo - longa, tensa e lírica como a segunda - Adèle, Emma, e os closes e pausas de Kechiche já haviam me aprisionado em sua teia de sedução.

Na sessão vesperal em que vi o filme, cercado de espectadores idosos e de morigerada aparência, não ouvi sequer um suspiro de estupor e indignação. Havia na sala um silêncio respeitoso, como se na tela estivesse sendo projetado um ascético drama de Ingmar Bergman. Lembrei-me da proibição pela censura de Os Amantes, de Louis Malle, por causa de uma pudica cunilíngua em Jeanne Moreau, e do escândalo provocado pela amanteigada sodomização de Maria Schneider em O Último Tango em Paris, e pensei comigo: "Puxa, como evoluímos".

Ueba! A quentinha da Roseana! - JOSÉ SIMÃO

FOLHA DE SP - 11/01

E a quentinha da Roseana tá ficando mais rica! Agora, ela licitou: champanhe, uísque escocês e caviar


Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Hoje a sensação térmica é de garrafa térmica! É tanto calor que eu abri a geladeira e encontrei um pinguim escondido no freezer! Aliás, o pinguim é o bicho mais chato: só anda e é monogâmico! E com esse calor, a Miriam Leitão vai virar torresmo! Rarará!

E a manchete do Piauí Herald: "Família Real Maranhense foge pro Amapá". E todos de bigode! E aí perguntaram pro Sarney: "Como os presídios chegaram nessa barbárie?". "Culpa do meu antecessor!". "Quem?". "Dom Pedro 2º". Rarará!

E a quentinha da Roseana tá bombando! Tá ficando mais rica! Depois dos 80 kg de lagosta, agora licitou: champanhe, uísque escocês e caviar.

A Roseana é fofa: é tudo pra incluir nas quentinhas dos presídios! E aí o preso vai gritar: "Cadê meu molho de alcaparras?". Rarará! Quentinha Roseana Gourmet!

E a sigla do Maranhão, MA: Me Ajudem! E eu sempre adorei aquele livro do Sarney: "O Dono do Mar...anhão". Rarará!

Notícias da praia! E um amigo meu tá passando o verão em Fortaleza e disse que tá tendo uma vida sexual intensa: comeu quatro caranguejos!

E essa placa num boteco na Praia do Forte: "Proibido falar porra nessa porra". Então vai ficar todo mundo em silêncio. Pra tudo baiano grita "porra". Quando acorda de mau humor, já grita: "Acordei virado na porra".

E um dia encontrei uma baiana em Arembepe e ela gritou: "Zé Simão por aqui? Que porra é essa?". Essa "porra" sou eu! Rarará!

E em Canoa Quebrada uma sorveteria com a placa: "Chegou o azulzinho. Sorvete de viagra". Pra quebrar qualquer canoa! A canoa e a patroa! Rarará! A praia vai mudar de nome pra Patroa Quebrada!

É mole? É mole, mas sobe!

Os Predestinados! Mais dois para a minha série Os Predestinados! Diretor do cadeião de Alagoas: Temildo das Trevas! Medo! Pânico! Vou pro Maranhão! Rarará!

E em Londrina tem essa advogada: Tranquila Semprebom de Azevedo!

E esse cartaz no poste em Maringá, no Paraná: "Se você orou hoje, buzine!". Buzinaço Gospel!

Já imaginou se todos os evangélicos resolvem buzinar ao mesmo tempo? Rarará!

Nóis sofre, mas nóis goza!

Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

Ossos, ossos e mais ossos - FERNANDO REINACH

O ESTADÃO - 11/01

A abadia de Pozzeveri está abandonada. Sentada em um gramado em Altopascio, no meio do caminho entre Roma e Milão, ela não chama a atenção. Mas, desde 2011, quem passar por lá vai encontrar dezenas de pessoas deitadas em volta da abadia, com os ombros e braços dentro de buracos. São dezenas de cientistas, de diversas nacionalidades. Estão empenhados em estudar todos os esqueletos de um único cemitério, onde pessoas foram enterradas durante quase mil anos. Um trabalho longo e penoso, mas fascinante.

A abadia foi construída por volta do ano 1000, quase 500 anos antes da descoberta do Brasil. Desde sua fundação, até o início do século 20, os monges Calmadolese, da ordem dos beneditinos, viveram neste monastério.

O cemitério de Pozzeveri foi escolhido pois está localizado na beira de uma das estradas mais importantes da Idade Média, a Via Francigena. Essa rota comercial, se trilhada em direção ao norte, levava os viajantes a França, Alemanha e Inglaterra. Se trilhada em direção ao sul, a Roma e aos portos italianos onde chegavam e partiam os navios que faziam a rota do Oriente e do Norte da África. Foi por essa via que passaram os cruzados, e foi por ela que as mercadorias do Oriente chegaram ao Norte da Europa.

Durante quase mil anos, entre 1039 e 1850, Pozzeveri foi uma parada obrigatória. Acolhidos pelos monges, os viajantes paravam para descansar e se recuperar. Foram esses viajantes que trouxeram a cultura do Oriente para a Europa. Mas também foram eles que espalharam doenças como a peste, a lepra, a malária e a cólera pela Europa e pelo Oriente.

Pozzeveri pode ser vista como uma espécie de ponte que ligava os dois continentes, pois não havia caminhos alternativos na Via Francigena ao longo dessa região. Durante mil anos, desde a Idade Média, passando pelo Renascimento, parte dos viajantes que passaram por esta ponte morreu e foi enterrada em Pozzeveri. São os esqueletos dessas pessoas que estão sendo estudados.

Nos últimos três anos, os cientistas mapearam as áreas usadas como cemitério ao longo dos séculos. Eles descobriram como o cemitério cresceu, que parte dos prédios foi demolida, construída ou reformada.

As escavações foram iniciadas e estão progredindo simultaneamente em quatro áreas. Duas foram utilizadas entre 1039 e 1400, uma entre 1300 e 1400, e a última, entre 1400 e 1750. Em cada área cada esqueleto é escavado, identificado, sua idade e sexo são determinados, os ossos são medidos e datados usando carbono 14. Finalmente a provável causa da morte é determinada. Os resultados iniciais são impressionantes.

Comparando os esqueletos de monges e viajantes enterrados entre 1039 e 1400 foi possível inferir o efeito da nutrição sobre o crescimento das pessoas (os monges parecem maiores que os viajantes). Com o passar dos séculos, as pessoas também aumentaram de tamanho (a altura média aumentou de 167 cm para 178 cm em mil anos).

Em outra área, onde foram enterradas pessoas mortas entre 1300 e 1400, foram encontrados esqueletos de pessoas que parecem ter morrido durante a peste negra que assolou a região em 1348, um pouco antes de a peste chegar ao resto da Europa. Os cientistas estão tentando sequenciar o genoma das amostras de Yersinia pestis desses esqueletos para saber como este microrganismo se modificou ao longo dos séculos.

Em esqueletos datados entre 1400 e 1600 foram encontrados dentes quase negros. A análise química do esmalte demonstrou que essas pessoas ingeriam mercúrio (um tratamento para sífilis). Os cientistas que estão estudando esses esqueletos são os mesmos que estudaram o esqueleto de Isabella d’Áragona (que tinha sífilis e os dentes negros), a mulher que provavelmente foi retratada por Leonardo da Vinci na Mona Lisa.

Na área datada de 1850 foram encontradas dezenas de esqueletos cobertos por cal e enterrados às pressas, sinal de que outra epidemia passava pela região (provavelmente cólera). A análise do DNA dessas pessoas vai confirmar a causa da morte. Neste caso, a cal formou uma espécie de molde em volta dos corpos e neste molde podem ser observados detalhes do corpo, como o comprimento das unhas, o formato da face e as marcas das roupas.

Os dados obtidos nestes 3 anos ainda são preliminares, pois uma minúscula fração das pessoas enterradas nestes mil anos foi escavada e analisada. Quando o projeto terminar, talvez na próxima década, vamos saber o que é possível descobrir analisando cuidadosamente todos os ossos de um único cemitério. Tal como os livros, os ossos contam histórias, mas, ao contrário dos autores de livros, eles não emitem opiniões.

O marketing do patriotismo - WILSON TEIXEIRA SOARES

CORREIO BRAZILIENSE - 11/01

Ele foi o melhor jogador de futebol do mundo. O que, por si só, deveria bastar. Após pendurar as chuteiras, no entanto, optou por fazer o que não deveria. Transformou-se em um palpiteiro de má qualidade. A ponto de terem-lhe pespegado o rótulo de pé-frio. Na verdade, ele não é pé-frio.

Fala, apenas, sem antes raciocinar. Como atesta a recente missa que rezou em nome da Fifa, no site da entidade, sugerindo que protestos não deveriam ser permitidos durante a Copa do Mundo. Para o grande jogador, o Estado deveria baixar um édito proibindo manifestações de protesto. Deveriam, portanto, ser admitidas apenas demonstrações de ufanismo, de nacionalismo. De patriotismo, enfim.

Disse o grande jogador esperar que o Brasil abrace a oportunidade que lhe foi dada com a Copa do Mundo. Oportunidade de quê? De encaminhar soluções para o sistema educacional capenga? Para a mobilidade urbana inexistente? Para o sistema de saúde precário? Ou para que a seleção fature o hexacampeonato e o populacho acredite que o esporte vive, aqui, um momento de apogeu?

A seleção que jogará a Copa não é o espelho do futebol brasileiro. Será um time competente, formado por atletas aqui nascidos, mas que não refletem o que é jogado pelos clubes do país. Porque o futebol brasileiro perdeu qualidade, refinamento. Perdeu filosofia.

É antiga a frase de Samuel Johnson: "O patriotismo é o último refúgio do canalha". E menos conhecida a de Erich Fromm: "O nacionalismo é a nossa forma de incesto, a nossa demência. O patriotismo é o seu culto". De maneira sintética, Albert Einstein pontificou: "O nacionalismo é uma doença infantil; é o sarampo da humanidade".

Há, hoje, canalhas em excesso. Basta que a seleção atropele uma Botswana da vida para que vaticínios sobre a supremacia do futebol tupiniquim renovem-se. O ano que há pouco começou será marcado por um maremoto de delírios patrióticos. E é até possível que a seleção ganhe o título, porque dispõe de jogadores de alta qualidade, mas que fazem as delícias dos telespectadores que consomem o futebol dos grandes times da Espanha, da Itália, da Alemanha.

Quanto ao futebol jogado pelos times brasileiros, a foto espelha um momento ruim, resultante da incapacidade gerencial dos cartolas brasileiros, que vendem jovens jogadores de talento motor a peso de banana para serem transformados em produtos de qualidade. Estratégia montada para transformar o futebol dos clubes europeus no produto mais atrativo do mercado de entretenimento esportivo.

A qualidade do futebol jogado no Brasil evaporou-se na medida em que os clubes europeus, conscientes de que careciam de matrizes reprodutoras de futebol criativo de qualidade excepcional, passaram a comprar, na mais tenra idade possível, o que de melhor havia por aqui. E também na Argentina, no Uruguai, no Chile, na Colômbia.

Quando o Santos foi goleado na final do Mundial de clubes pelo Barcelona, o treinador Pep Guardiola declarou que o padrão de jogo do time catalão inspirava-se nas características do futebol brasileiro do passado. Então, a bola, por ser de couro, que provem da vaca, corria rente à grama, rolando de pé em pé. Esse futebol, dionisíaco, não existe mais. Porque para o futebol estado da arte existir, jogadores infernais são imprescindíveis. E esses estão além-mar.

A necessidade de comercializar os jogos de futebol exige, contudo, a disseminação de propaganda enganosa, que alardeia o Brasileirão como o maior campeonato nacional de futebol do mundo. Arrasta-se por meses a fio. Mas quem se entrega à tarefa de apurar o que de excepcional foi apresentado, pouco tem a contabilizar.

Se a seleção faturar o caneco, os patriotas de plantão trombetearão a glória do futebol brasileiro per omnia secula seculorum. O enigma da esfinge, no entanto, não terá sido decifrado: o futebol brasileiro é o jogado pela seleção formada por craques que atuam no exterior ou é o apresentado nos campeonatos estaduais, na Copa do Brasil e no Brasileirão?

Há, evitando a praga do nacionalismo e do patriotismo, que têm suas raízes plantadas na xenofobia e no racismo, que se meditar sobre a resposta. Porque, na verdade, o futebol praticado pelos clubes brasileiros não tem a qualidade por muitos trombeteada. É propaganda enganosa, falsa como pirita, que a eventual conquista do hexacampeonato não conseguirá esconder.

Federação falsificada - OSCAR VILHENA VIEIRA

FOLHA DE SP - 11/01

A federação brasileira não foi concebida para aprofundar a democracia ou proteger direitos


A ideia de federação é geralmente reconhecida como uma boa coisa. Assim como os conceitos de democracia, liberdade, direitos, autonomia ou constituição evocam nossa imediata simpatia. Quem, publicamente, seria contra uma coisa dessas? E é exatamente por sua "bondade" intrínseca que esses termos são muitas vezes utilizados como cortina de fumaça para justificar práticas que pervertem seu sentido original.

A federação brasileira não foi concebida para aprofundar a democracia ou proteger direitos. O objetivo dos nossos falsos federalistas, desde o século XIX foi, sobretudo, habilitar o poder das oligarquias locais e proteger os seus interesses. As diversas ondas de modernização promovidas pelo poder central, autoritárias ou democráticas, parecem não ter conseguido transformar o etos básico de nosso federalismo.

Ao longo do tempo as oligarquias regionais se especializaram em obter vantagens do poder central, inclusive a vantagem de não serem incomodadas nos limites de suas jurisdições, em troca de apoio e sustentabilidade política aos governantes de plantão em Brasília.

José Sarney vem exercendo essa função com a excelência de um cardeal fiorentino, por mais de cinco décadas. A única interrupção deu-se quando ele próprio assumiu, ainda que acidentalmente, a presidência.

As masmorras de Roseana, como outras masmorras espalhadas pelo país, demonstram não apenas o baixíssimo compromisso que boa parte dos governadores brasileiros tem em relação aos padrões civilizatórios mínimos estabelecidos pelos direitos humanos, como também denunciam a própria incapacidade do poder central de lidar com o arbítrio, a negligência e os abusos dos governos locais.

O paradoxal é que esta incapacidade não decorre de uma ausência de mecanismos institucionais. A Constituição de 1988 estabeleceu três instrumentos voltados a constranger as autoridades estaduais a cumprir suas obrigações.

O primeiro deles é a intervenção federal, para assegurar a observância dos "direitos da pessoa humana" (art. 34, VII, b).

O segundo, estabelecido pela emenda 45, de 2004, permite o deslocamento para o âmbito federal da competência para investigar e processar casos de graves violações de direitos humanos, ocorridos nos Estados (art. 109, par. 5º.), com o objetivo de assegurar maior imparcialidade na aplicação da lei.

Nas duas situações, de natureza prevalentemente jurisdicional, a figura chave é o Procurador Geral da República, pois é ele que deve representar ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça para obter, respectivamente, a intervenção ou a chamada federalização. O terceiro mecanismo é o impeachment. Este de natureza prevalentemente política.

A capitulação de Procuradores Gerais da República em crises anteriores --em especial no Espírito Santo--, seguidas de cordiais ofertas de apoio por parte do governo federal (FHC e Lula), tem servido de forte incentivo para que governadores continuem empurrando com a barriga suas obrigações de garantir o direito à segurança dos cidadãos, dentro dos estritos limites do Estado de Direito.

Rodrigo Janot, atual Procurador Geral, não pode mais permitir que uma falsificada ideia de federação continue sendo empregada para garantir a impunidade de governantes que contribuem para a prática de graves violações de direitos.

GOSTOSA


Pornografia explícita - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 11/01

SÃO PAULO - Deu na "Ilustrada" que o cinema cult redescobriu o sexo explícito. As salas mais respeitáveis da cidade estão exibindo fitas como "Ninfomaníaca", "Azul é a Cor Mais Quente" e "Tatuagem", que não recorrem a lençóis nem à contraluz na hora de mostrar as coisas como elas são. Isso é arte erótica ou pornografia? E será que existe uma diferença transcendental entre ambas?

Creio que não, mas, se há, ela é bem mais tênue do que se imagina. Uma boa definição é a proposta pelo filósofo e historiador da arte Sarane Alexandrian em sua deliciosa "História da Literatura Erótica". Para Alexandrian, o erótico nada mais é do que o "pornográfico revalorizado em função de uma ideia do amor ou da vida social". O erótico seria, em bom português, a pornografia com grife.

O interessante do livro de Alexandrian é que ele mostra que as coisas nem sempre foram assim. Embora vejamos a Idade Média como um período de obscurantismo --e na maioria dos contextos era mesmo--, na esfera sexual reinava bastante tolerância. Um exemplo eloquente é o de Gian Francesco Poggio (1380-1459), que, enquanto secretariava o papa Bonifácio 9°, escreveu "Facécias", obra que traz historietas de forte caráter sexual contadas em bom latim.

O ponto central, me parece, é que pelo menos desde Freud já não deveríamos precisar de pretextos elevados para consumir sem culpa obras que tratem de sexo. Não tenho nada contra grandes cineastas e artistas tratarem do assunto, mas também não tenho nada contra as abordagens escancaradamente vulgares.

Se a função da ficção é fazer com que o observador experimente as sensações retratadas de modo a prepará-lo para a vida, então a pornografia é a mais eficaz das narrativas, já que a reação fisiológica de quem é exposto a ela tende a ser igual à de quem está diante do objeto real. Assistir a um filme erótico é uma experiência mais próxima do original do que ver encenado um homicídio.

De olho na província - ILIMAR FRANCO

O GLOBO - 11/01

A base aliada está irritada com os ministros Aguinaldo Ribeiro (Cidades), Gastão Vieira (Turismo) e Antônio Andrade (Agricultura). Eles privilegiaram seus estados na liberação de créditos extras. No Turismo, de R$ 479,9 milhões, o Maranhão levou R$ 66,3 milhões. No das Cidades, de R$ 331 milhões, a Paraíba ficou com R$ 41,6 milhões. Na Agricultura, Minas ganhou R$ 50,1 milhões, de R$ 186,4 milhões.

Sai Eike, entra Eurnekian
A presidente Dilma vai a Minas, na próxima semana, para a assinatura de contrato referente à instalação de uma fábrica de semicondutores em Ribeirão das Neves. Esse empreendimento, de R$ 1,1 bilhão, com participação da IBM, do BNDES e do BDMG, esteve ameaçado quando um de seus sócios, Eike Batista, entrou em crise. A instalação da SIX vai ser mantida, e isso será possível com a entrada, como acionista, do empresário Eduardo Eurnekian (Corporação América), que é radicado na Argentina. Seu investimento será de R$ 200 milhões. Para tanto, o ministro Fernando Pimentel (Desenvolvimento) e o governador Antonio Anastasia trabalharam lado a lado.

"Esse negócio de que os estrangeiros estão com medo de vir para o Brasil é conversa fiada, é só terrorismo" 

Fernando Pimentel Ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio

Mudança de rumo

Circula no Rio a informação de que o deputado Brizola Neto não será candidato à Câmara dos Deputados. Contam que seu projeto é recuperar o o acervo do ex-governador Leonel Brizola e desvincular sua imagem do desgastado PDT.

Olho vivo
O presídio de Pedrinhas, no Maranhão, palco de recente rebelião, não é o único que está na mira da Secretaria de Direitos Humanos. A pasta, dirigida pela ministra Maria do Rosário, já acompanha outros casos de graves violações dos direitos humanos. Estão no foco os presídios: Central de Porto Alegre (RS), Aníbal Bruno (PE) e Urso Branco (RO).

Chega para lá
A direção do PT vai ter trabalho para administrar os chiliques dos candidatos petistas nos estados. O partido quer evitar que eles impeçam na Justiça que aliados usem a imagem da presidente Dilma. O argumento é o de que os petistas já têm Lula.

Os preferidos
Os ministros parlamentares foram privilegiados nas liberações de emendas no final do ano. Segundo um deles, o Planalto garantiu a cota máxima de R$ 15 milhões, prevista no Orçamento de 2013, para cada um. Líderes e membros da Comissão de Orçamento tiveram bônus extra. Os demais parlamentares ganharam R$ 10 milhões.

É sempre assim
A última vez em que o STF rejeitou um pedido de intervenção num estado foi em 2010. Depois da Operação Pandora da PF, o governador de Brasília, José Roberto Arruda, e seu vice, Paulo Octávio, foram obrigados a renunciar aos cargos.

Lendas urbanas

Está sendo atribuído ao poder da família Sarney o fato de o STF não decretar intervenção no Maranhão. A vida real é diferente. O Tribunal nunca decretou intervenção num estado. Atualmente há 122 pedidos em tramitação.



SOLUÇÕES CASEIRAS Os secretários executivos das pastas cujos ministros sairão para concorrer estão com a bola toda. Figurões foram descartados.

Nas asas de Cabral - BERNARDO MELLO FRANCO - PAINEL

FOLHA DE SP - 11/01

Depois de transportar as crianças, a babá e o cachorro Juquinha, o governador Sérgio Cabral (PMDB) agora empresta helicópteros do Estado para estrangeiros em visita ao Rio. Em dezembro, os governadores de Maryland (EUA) e Buenos Aires (Argentina) decolaram três vezes com aeronaves oficiais. Os voos ocorreram no mesmo mês em que Cabral, depois de uma pausa motivada pelos protestos, voltou a requisitar os helicópteros para passar fins de semana em sua casa de praia.

Voo panorâmico Em 7 de dezembro, a comitiva de Maryland embarcou para um "sobrevoo no Grande Rio", segundo relatório da Subsecretaria Militar da Casa Civil do Estado. O helicóptero decolou da Lagoa, onde turistas pagam até R$ 1.400 por pessoa para sobrevoar a cidade.

A regra é clara O governo diz que o empréstimo dos helicópteros está "de acordo com as regras de uso de aeronaves oficiais". Em agosto, decreto de Cabral limitou os voos a poucos passageiros: governador, vice, secretários e presidentes de empresas públicas. As únicas exceções são os chefes do Legislativo e do Judiciário estadual.

Vai ou fica? Após prometer pela terceira vez entregar os cargos no governo Cabral, o presidente do PT no Rio, Washington Quaquá, voltará a discutir o assunto com a cúpula nacional do partido. Ele pega a ponte aérea na terça-feira para se reunir em São Paulo com Rui Falcão.

Mesmo barco Líder nas pesquisas do Estado, Anthony Garotinho (PR) ironizou a indecisão e voltou ontem a chamar os petistas de "turma da boquinha". "Cabral e o PT vão sair do Palácio Guanabara pela porta dos fundos", atacou o deputado.

Voz do Brasil Depois de três dias de silêncio, Dilma Rousseff recorreu ontem ao Twitter para comentar a barbárie no Maranhão. Foi o mesmo expediente usado há um mês após a pancadaria entre as torcidas de Vasco e Atlético-PR em Joinville (SC).

Monólogo Ao se refugiar no microblog em vez de dar entrevistas, a presidente evita ter que responder a perguntas incômodas. Um exemplo: "A senhora ainda pretende apoiar a campanha de Roseana ao Senado?"

Escambo Do presidente da Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN), sobre a guerra na base aliada por espaço na reforma ministerial: "Aceitamos trocar o Ministério da Integração Nacional pelo das Cidades, em um gesto de desprendimento e colaboração com a presidente Dilma."

Basta O ex-presidente do PT José Eduardo Dutra não quer mais ouvir reclamações de dirigentes do PSB sobre a nota petista com ataques a Eduardo Campos. "Tudo bem, esse texto foi uma lambança, mas já deu de mimimi', né?", disse, no Twitter.

Luz... Campos encomendou novas pesquisas para medir o potencial das candidaturas de secretários cotados para sucedê-lo. Estão no páreo Tadeu Alencar (Casa Civil), Paulo Câmara (Fazenda) e Danilo Cabral (Cidades).

... própria Campos sabe que estará ocupado com a corrida presidencial, que o afastará da disputa em Pernambuco. Por isso, dessa vez terá mais dificuldades de eleger um "poste" que em 2012.

Fico O presidenciável avisou a aliados que o governador do Piauí, Wilson Martins (PSB), deve permanecer no cargo até o fim do mandato, em vez de disputar o Senado.

Visita à Folha Rodrigo Garcia, secretário de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, visitou ontem a Folha. Estava com Alexandre de Moraes, advogado.

TIROTEIO
"A pressão não nos incomoda. A presidente saberá reconhecer a dimensão de cada partido na hora da reforma ministerial."

DO DEPUTADO MÁRIO NEGROMONTE (PP-BA), sobre a disputa entre seu partido e o PMDB pelo comando do Ministério das Cidades na reforma da Esplanada.

CONTRAPONTO


Comida de tubarão
Candidato do PV ao Planalto em 1998, o deputado Alfredo Sirkis (PSB-RJ) fazia uma "barqueata ecológica" na costa do Recife quando seu motor enguiçou. Atrasado para um compromisso, ele avisou à mulher e a uma aliada:

-Vou voltar para a praia a nado!

Na chegada à areia, o verde se empolgou ao notar que todos os banhistas olhavam para ele. Pensou que finalmente estava sendo reconhecido, até que viu as placas avisando que o mergulho estava terminantemente proibido.

-Logo imaginei a manchete de jornal: "Candidato a presidente é devorado por tubarão"...

A guerra pelos votos - DENISE ROTHENBURG

CORREIO BRAZILIENSE - 11/01

Do ponto vista eleitoral, 2013 foi embora sem qualquer gesto mais ostensivo do PT em favor dos aliados. Não houve um milímetro em favor da candidatura de Luiz Fernando Pezão (PMDB) ao governo do Rio de Janeiro. O mesmo ocorreu em relação às pretensões do PTB de Pernambuco, com a candidatura do senador Armando Monteiro Neto. No Ceará, o PT está mais próximo, hoje, do governador Cid Gomes (Pros) do que do senador Eunício Oliveira (PMDB), pré-candidato ao governo estadual. Cid dá a impressão de estar “enrolando” Eunício e, no fim das contas, não pretende fazer do peemedebista seu sucessor.

Esses exemplos levam os aliados a abrirem os trabalhos políticos de 2014 na próxima semana com algumas certezas. A primeira delas é a de que o PT, como sempre, olhará mais para os próprios interesses. No caso do Rio de Janeiro, o PMDB já se prepara para ter os petistas na linha adversária. Os demais não perderam as esperanças. Mas, se a mágoa dessa turma for muito grande, será um terreno fértil para os oposicionistas Aécio Neves e Eduardo Campos.

Mercado futuro
A maioria dos partidos está em silêncio absoluto sobre a tragédia no Maranhão e ainda se mostra solidária à governadora Roseana Sarney (PMDB). Por um simples motivo: ninguém quer perder o apoio do ex-presidente José Sarney. Entre os peemedebistas mais afeitos à oposição, há quem diga que Sarney pode, inclusive, ajudar a derrotar Dilma Rousseff se essa crise maranhense ficar debitada apenas nas mãos da administração estadual.

É geral
Uma das apostas dos maranhenses é mostrar que a crise na segurança não ocorre apenas ali. Os aliados da governadora vão começar a bater na tecla de que o Rio Grande do Sul vive momentos difíceis e outros estados também já tiveram mazelas nesse setor.

PB e as teles I
O ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, e o diretor-geral da Anatel, João Rezende, tiveram um encontro com o milionário egípcio Naguib Sawiris, político e empresário do setor de telecomunicações, da Orascom. Nos bastidores desse setor, comenta-se, no governo, que não há saída a não ser vender a TIM.

PB e as teles II
O objetivo, dizem os especialistas no setor, é evitar que a Telefónica controle 55% do mercado das operadoras no Brasil. A Telefónica está assumindo o controle acionário da Telecom Itália, portanto, além de dona da Vivo, será ainda dona da TIM, ou seja, cuidará de metade do mercado brasileiro.

Surfe socialista/ Enquanto Roseana Sarney atravessa essa fase de desgaste na segurança, o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (foto), vai a Washington na semana que vem. Ele receberá um prêmio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) por causa do trabalho de gestão na área de segurança pública, o tal “Pacto pela Vida”.

Alta temporada/ Em Brasília, mais de 50 malas foram extraviadas pela TAM esta semana. Recentemnte, em Navegantes (SC), o ator Rafael Cardoso também ficou sem a bagagem na Azul.

Aécio, o retorno/ No papel de presidente do PSDB, o senador Aécio Neves passa por Brasília na semana que vem para fazer o primeiro mapeamento do ano nas alianças em construção pelo partido nos estados. Na quarta, segue para São Paulo.

Aécio, a pausa/ Depois, pretende tirar uma semana de férias. O senador passou o fim de ano de plantão, por causa do precário estado de saúde da irmã mais nova, Ângela. Ela foi vítima de um AVC em dezembro e continua hospitalizada.

Anastasia vem aí! - JORGE BASTOS MORENO

O GLOBO - 11/01

O governador de Minas, Antonio Anastasia, deixa o governo em abril para assumir a coordenação do programa de governo da campanha do senador Aécio Neves à Presidência da República.

- Desde a minha primeira eleição de governador que o Anastasia coordena meus programas de governo. Agora, ele vai ampliar os contatos, que aliás nunca deixou de ter, com setores produtivos nacionais, a fim de recolher as sugestões que nos chegam das mais diversas partes do país e condensá-las num projeto de governo - afirma o próprio Aécio Neves.

Em junho, Anastasia volta a se ocupar de Minas, lançando-se candidato à única vaga que cada estado terá para o Senado nas eleições deste ano.

- O mineiro não se antecipa aos fatos. É inegável que o governador tem hoje a preferência espontânea da maioria dos mineiros para o Senado. Mas isso só aumenta a nossa responsabilidade.

Placar

Enquanto Aécio Neves e Eduardo Campos estiverem pensando em alinhamento automático, caso um deles vá ao segundo turno contra a Dilma, o PT terá sempre duas respostas a cada
ataque a um deles.
Haverá momentos, e muitos, em que, para o PT, valerá a pena esse 1X2.
O da semana que se encerra foi um desperdício, desautorizado até por quem manda na campanha.

Gafe

FH, cuja trajetória rumo ao Planalto foi marcada pelo excesso de “buchada de bode”, quase perde a namorada, quando a família da moça o recebeu no Rio Grande do Sul com uma carneirada.
Não por rejeitar o prato, mas por confundir os
nomes.
Nem ao Serra, FH poderia apelar. Este não conhece nem vaca.

Nota 10

O vice-presidente Michel Temer criou um grupo de estudos informal, mas altamente seleto, para meditar sobre grandes temas e personalidades da História.
Participa desse sacro colégio gente culta dos três poderes.

Nota Zero
Em contraponto, agentes do mal também criaram seu grupo.
Semanalmente, debruçam-se sobre o Diário Oficial e, com lupa, fiscalizam as nomeações do governo.
A súcia é comandada por ladinos do Congresso.

Quem chega
Amanhece nesta segunda-feira no Rio o governador Sérgio Cabral.
Será recebido no Laranjeiras pelo vice-presidente Michel Temer.

Conflito
Temer e Cabral só não assinarão acordos bilaterais porque o PT se recusou a participar do almoço, por considerá-lo mais político que diplomático.

‘Busto’

Sem obras novas para inaugurar, o comando nacional do PMDB e Cabral vão fincar o Pezão numa marca de cimento na entrada do Palácio.

Passe livre
O prefeito Eduardo Paes participa do almoço, mas não como regra três para a vaga de governador do Rio. Ele vai pedir de volta a chave da cidade que Cabral, na última visita, esqueceu de devolver. Como não houve pacificação no Laranjeiras, entre PT e PMDB, “Coisa ruim” pode subir ao palácio sem a presença da polícia do estado.

Lazer
Voltando a FH, outro que está passando férias no país, depois de conhecer as delícias dos Pampas, o ex-presidente vai agora conhecer o litoral nordestino.
Mas, para evitar indignações justas da população, vai passar
longe das lagostas palacianas.
Em Alagoas, por exemplo, na praia do morro de São Miguel, vai fazer uma costura
política com o
governador Teotônio Vilela, com agulhas fritas e cervejas.

Última nota
O escritor Lira Neto falou na semana ao grupo de Michel Temer, com direito à presença de Joaquim Barbosa, sobre Getúlio Vargas.

Um nariz de Pinóquio no índice de inflação - ROLF KUNTZ

O Estado de S.Paulo - 11/01

Como um nariz de Pinóquio, o número final da inflação, 5,91%, desmentiu as promessas de um resultado melhor que o do ano anterior, desmoralizou mais um pouco a intervenção nos preços e comprovou, mais uma vez, a inépcia de uma política populista, voluntarista e irresponsável. A letra V, de verdade, mostra graficamente, com a graça de um desenho animado, a evolução do índice oficial de preços ao consumidor. Na primeira fase, de janeiro a julho, os números decrescem de 0,86% até 0,03%, muito perto de zero. Na segunda, há uma subida quase contínua, a partir do vértice, até 0,92%, uma taxa surpreendente. No mercado financeiro, a mediana das projeções para dezembro indicava uma variação de 0,75%. Seria uma elevação muito grande pelo padrão de qualquer país bem administrado, mas ainda insuficiente para levar a alta acumulada no ano aos 5,84% de 2012. Na primeira parte do V aparecem o efeitos da manipulação dos preços da eletricidade, da gasolina e do transporte público e dos cortes de impostos. Na segunda, os truques se esgotam, as pressões inflacionárias se manifestam mais abertamente e o nariz pinoquiano se expande com rapidez.

Se a estatística, como dizem os incréus, é a arte de mentir com números, faltou arte a quem tentou administrar, pelo voluntarismo, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). O governo errou, dirá talvez algum companheiro, ao fazer só uma parte do serviço. Interveio na fixação de alguns preços, mas deixou livre a elaboração dos índices. Na Argentina da família Kirchner o trabalho foi mais ambicioso: a intervenção nos preços, além de muito mais ampla e quase rotineira, foi complementada pela manipulação das estatísticas oficiais e pela censura aos índices privados. A inflação medida por especialistas independentes anda perto de 30%. É o triplo da apresentada pelas fontes oficiais.

A situação no Brasil ainda é outra, apesar do culto, oficiado no Palácio do Planalto, aos modelos cubano, bolivariano e kirchneriano. O pessoal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) continua trabalhando sem restrições políticas e produz números e relatórios sem censura. Até o Banco Central (BC) tem divulgado avaliações e projeções constrangedoras para o Executivo, como as estimativas de inflação acima da meta ainda por longo tempo. Bom para o governo: embora prejudicada, sua credibilidade é maior, por enquanto, que a da administração Kirchner.

A presidente Dilma Rousseff e seus auxiliares - pelo menos alguns deles - passaram a cuidar com mais atenção, nos últimos tempos, da credibilidade. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, prometeu fechar o balanço fiscal de 2013 sem recorrer à contabilidade criativa. A promessa foi recebida com sinais de otimismo no mercado financeiro. Mas é difícil consertar em pouco tempo, e apenas com base numa declaração de bons propósitos, uma reputação comprometida por uma longa série de trapalhadas e de truques malsucedidos.

Para acalmar os nervosinhos, como ele mesmo afirmou, o ministro anunciou com antecipação de umas três semanas o resultado das contas do governo central. Foi alcançado, segundo ele, um superávit primário de R$ 75 bilhões. Ficou R$ 2 bilhões acima da meta, mas só obtido com a ajuda de pelo menos R$ 15 bilhões de receitas atípicas. O anúncio pode ter impressionado a velhinha de Taubaté. Para os menos generosos, o governo continua devendo demonstrações mais convincentes. Mas até a fixação da meta fiscal para 2014 foi deixada para mais tarde, como se a presidente e o ministro da Fazenda tivessem medo, na virada do ano, de prometer um resultado muito difícil.

O problema da credibilidade continua sem solução. A agência Moody's anunciou nesta semana a manutenção da nota de crédito do Brasil, já levando em conta as hipóteses de um crescimento econômico medíocre em 2014 (cerca de 2%) e de um superávit primário pouco melhor que o do ano passado (aumento de 1,8% para 2,1%). Mas o anúncio foi acompanhado de uma advertência: a decisão poderá ser revista, nos próximos meses, se o quadro for pior que o previsto e a deterioração econômica se acentuar. A Standard & Poor's, na mesma semana, reafirmou a possibilidade de um corte da nota antes das eleições. Essa possibilidade havia sido indicada no trimestre final de 2013.

Um bom complemento do cenário foi o leilão de títulos federais na quinta-feira. Para vender seu novo papel de longo prazo, a NTN-F-2025, o Tesouro teve de oferecer a taxa de 13,3899%, a mais alta já registrada no lançamento de um título desse tipo. O mercado absorveu todas as notas e o responsável pela operação classificou a venda como um sucesso: o custo foi até um pouco menor que o esperado pelo governo. Do outro lado do balcão as opiniões foram diferentes: as condições do mercado mudaram e o financiamento da dívida pública tende a ser mais caro. Isso se explica tanto por fatores externos - um mercado internacional menos folgado - quanto por problemas internos, a qualidade da política econômica e a baixa credibilidade do governo.

O histórico do governo inclui a tolerância à inflação, a tendência à gastança, a incapacidade de promover um crescimento econômico mais veloz e a má administração das contas externas, em visível deterioração. O aperto financeiro externo, consequência previsível de uma política monetária menos frouxa nos Estados Unidos, nem de longe pode servir como desculpa. Quem tinha juízo e alguma competência tratou de se prevenir e de se manter atraente para o capital estrangeiro. Isso é mais complicado que fazer discursos eleitorais em palanques arrumados pelos companheiros e diante de plateias amigas. A presidente e sua equipe só parecem ter descoberto essa diferença há pouco tempo. Ainda estão, tudo indica, assimilando a novidade.

Ambientalismo improdutivo - KÁTIA ABREU

FOLHA DE SP - 11/01

A cada dia se batem recordes de produção, enquanto o desmatamento cai e a área plantada é quase a mesma


Aristóteles dizia que a lei é a razão livre de paixões. Não foi o que praticou Marina Silva ao longo dos cinco desastrosos anos em que comandou o Ministério do Meio Ambiente. Nesse período, a agora candidata a presidente ou a vice dedicou-se a mover perseguição feroz e fundamentalista à agropecuária nacional. E não parou mais.

Hoje, já não surpreende os produtores rurais com seus ataques e o discurso batido do retrocesso ambiental. A grande marca de sua gestão foi rotular o agro de atrasado e destruidor do ambiente. Uma mancha irreparável à imagem internacional do setor, que a duras penas tentamos restabelecer.

Felizmente, o agro está sendo reconhecido e as mentiras tornam-se insustentáveis. São novos recordes de produção a cada dia, enquanto o desmatamento cai e a área plantada e de criação segue praticamente a mesma.

O Brasil está cumprindo todos os acordos ambientais internacionais, garantindo produção com preservação. Por onde se olha, veem-se avanços. Nos últimos 40 anos, a produção de grãos multiplicou-se por seis, enquanto a área de lavoura aumentou apenas uma vez e meia. Isso é inovação e tecnologia. É sustentabilidade em sua forma mais cristalina.

Depois que Marina deixou o governo, em maio de 2008, o desmatamento foi reduzido a menos da metade (-55%). Ao longo dos cinco anos e meio em que ela comandou o Ministério do Meio Ambiente, a redução foi menor: 45%. No período Marina Silva, desmataram-se em média, na Amazônia, 18 mil quilômetros quadrados por ano. De lá para cá, a média anual caiu para 6.000 quilômetros quadrados.

À revelia dos números, porém, a ex-ministra insiste na tese do retrocesso. Em recente entrevista ao jornal "Valor", deu sua receita sonhática para alimentar 9 bilhões de pessoas: "Não é aumentando a pressão sobre as florestas, sobre os recursos hídricos, sobre as áreas agricultáveis. É aumentando a produção por ganho de produtividade. São novas lógicas que vão se estabelecendo a partir do ideal de uma cultura de sustentabilidade".

Quanta singeleza! Ela renega a irrigação em um país que tem 12% da água doce do planeta e no mínimo 20 milhões de hectares a serem irrigados, dobrando a produção nas área atual sem danos à natureza.

Abomina a tecnologia dos alimentos geneticamente modificados, que demandam menos agroquímicos. Escamoteia da opinião pública que o Brasil tem, intocados, 61% do território, enquanto a agropecuária ocupa apenas 27,7%.

Aliás, na Amazônia, o Código Florestal que ela reputa um retrocesso só permite o plantio e a criação em 20% das propriedades privadas. E não remunera o produtor que mantém, preservados, os demais 80% de sua área.

Mas o discurso desaba mesmo é quando a confrontamos com sua própria "produtividade" à frente do Meio Ambiente.

Em junho de 2003, por exemplo, ela criou a sua primeira unidade de conservação: a Reserva Biológica da Mata Preta, no Jequitinhonha (MG). Cinco anos depois, quando deixou o ministério, a Mata Preta não estava sequer demarcada e muito menos tinha plano de manejo.

A lei manda regularizar as unidades de conservação em até cinco anos após sua criação. Marina Silva foi embora sem tirar do papel nem mesmo a primeira das dezenas de unidades que criou, revelando a prática do ambientalismo improdutivo por ela instaurada.

Esse exemplo, por sinal, é paradigmático. Uma comunidade quilombola habitava a Mata Preta, com mais de 700 pessoas vivendo do extrativismo. O Ministério do Meio Ambiente exigiu, à época, a expulsão dos nativos.

Não conseguiu, devido à reação e ao enorme problema social que o gesto insano causaria. Até hoje, a área não foi regularizada, e o Observatório Quilombola considera a futura demarcação uma "hecatombe social".

Não houve retrocesso na política ambiental brasileira. Está havendo bom-senso depois da fúria preservacionista ideológica dos últimos 20 anos, período em que 124 milhões de hectares --quase 15% do nosso solo-- foram convertidos em unidades de conservação "de papel". Tanto que, segundo o Instituto Chico Mendes (ICMBio), só 44 das 312 unidades haviam sido demarcadas até março de 2013. O restante delas é mera ficção.

Demais da conta - CELSO MING

O ESTADO DE S. PAULO - 11/01

Espere que alguém no governo Dilma ainda diga que, para os padrões brasileiros, a inflação de 5,91% em 2013 não foi desastrosa e reafirme que desastroso é o pessimismo insuflado pelos analistas econômicos.

Mas, desta vez, o governo não tem nem mesmo a desculpa de que essa inflação aí é conseqüência da crise global, porque nos principais países em 2013 não passou de alguma coisa entre zero e 3%. Tanto o avanço nanico do PIB como essa inflação alta demais (de 0,92% em dezembro) devem-se mais a problemas nossos do que às mazelas do mundo.

O Banco Central também chegou a apontar o dedo para causas externas de inflação, mas, nos últimos documentos, tanto nos Relatórios de Inflação como nas Atas do Copom prefere dizer que a inflação está sendo causada por um ritmo forte da demanda, pela expansão dos custos da mão de obra muito acima da produtividade e pelos mecanismos automáticos de reajuste de preços (indexação).

Tanto quanto o crescimento econômico insatisfatório, essa inflação aí, renitente e excessivamente espalhada (alto índice de difusão, de 69,3%), é o resultado dos desequilíbrios provocados pela atual política econômica. E só não foi mais alta porque o governo está represando artificialmente os preços administrados, aqueles que dependem de vontade política para serem reajustados, como as tarifas de energia elétrica, de combustíveis e de transportes urbanos. Ao longo de todo o ano de 2013, os preços livres avançaram 7,27%, enquanto os preços administrados, que pesam 25% na cesta de consumo, avançaram apenas 1,5% (veja gráfico no Confira).

Não está claro até que ponto o governo pretende recompor os reajustes desse segmento de preços. De todo modo, começam o ano como foco adicional de pressão. Todos lutam por aumento de postos de trabalho, mas não dá para ignorar que a persistência de uma situação de pleno-emprego com baixa produtividade do trabalho continuará a puxar os preços para cima.

O Banco Central já deu inúmeras indicações de que está incomodado com o repasse da alta do dólar (desvalorização do real) para os preços internos. É outro foco.

Os protestos de junho chamaram à atenção do governo Dilma a respeito do estrago causado por uma inflação alta demais sobre o poder aquisitivo e sobre a disposição do eleitor de votar nos candidatos oficiais. Se as previsões da maioria dos analistas se confirmarem, 2014 terá uma inflação mais alta do que 2013. A última pesquisa Focus do Banco Central, por exemplo, aponta para 5,97%.

Se optasse por uma condução mais austera das contas públicas, o governo Dilma teria mais condições de derrubar a inflação, porque níveis mais baixos de despesa pública também contêm o consumo. Mas até agora não há indicação disso, especialmente num ano eleitoral.

Isso significa que sobra na vanguarda na luta contra a alta de preços a política do Banco Central que, no entanto, tem apenas uma arma à sua disposição: a alta dos juros básicos (Selic). Mas até onde precisam ir os juros para segurar a inflação em níveis civilizados?

A resposta dos juros

O Banco Central também se viu frustrado em suas expectativas. Contava em 2013 com uma inflação mais baixa do que os 5,84% de 2012. Quem esperava por imediata redução da dose dos juros básicos (Selic), até agora de 0,5 ponto porcentual ao ano, terá de rever suas posições. Também fica para ser esclarecido até onde o governo Dilma pretende deixar tudo para o Banco Central. A próxima reunião do Copom está agendada para o dia 14.

Inflação supera meta BC - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 11//01

O Banco Central não cumpriu a meta que estabeleceu para si mesmo. Era um objetivo menos ambicioso que o mandato que a sociedade delegou a ele. Para o BC, tudo estaria bem se a inflação de 2013 fosse menor do que a de 2012, que foi 5,84%. Deu, 5,91%. O resultado é ruim por muito mais que isso. Nossos vizinhos Chile e Colômbia fecharam com inflação de 3% e 1,9%.

O Brasil tem sido leniente com a inflação alta demais. Outros países que enfrentam os mesmos impactos da economia internacional, que cresceram mais do que o Brasil e têm metas de inflação bem menores do que a nossa, chegaram ao resultado, e nós, não.

Oficialmente, o governo Dilma gosta de dizer que cumpriu a meta todos os anos. A verdade é que a meta é 4,5% e desde o primeiro momento o Banco Central jogou a toalha dizendo que só atingiria esse número no final do segundo ano do governo. Depois, postergou e agora isso ficou para o próximo período presidencial. O BC decidiu que para ele era bom se fosse qualquer coisa abaixo da inflação do ano anterior. Como em 2012 foi 5,84%, ele disse que prometeu ficar abaixo disso. Um leitura enviesada do seu trabalho. Mas nem isso conseguiu.

O governo ajudou da pior forma: manipulou os preços de produtos e serviços que ele controla. Só a queda do preço de energia representou uma redução de 0,5 ponto percentual no índice. No acumulado do ano, energia residencial ficou 15% mais barata. Ótimo alívio para os orçamentos domésticos, mas a energia mais barata para residência e, principalmente, para a indústria, custou mais de R$ 10 bilhões aos cofres públicos. Foi o dinheiro que o Tesouro teve que repassar para as distribuidoras de energia. Seria maravilhoso se a queda do preço da energia fosse conseguida de outra forma, por aumento de eficiência. Mas foi parte da campanha eleitoral antecipada e custou caro ao contribuinte. De novo, será preciso repassar mais R$ 9 bilhões para as empresas este ano, mesmo assim os preços devem ser reajustados.

Os preços dos ônibus que em 2012 tinham ficado acima de 5% tiveram peso zero em 2013. Em 2014, será impossível evitar novamente o reajuste. Ao todo, os preços administrados, que são um quarto do índice, tiveram alta de apenas 1%.

Houve uma pressão forte de alimentos no começo do ano, mas parte disso aconteceu no mundo inteiro porque foi efeito da seca que destruiu a safra americana de 2012. Os preços de milho, trigo, soja entraram em alta forte em 2013. Normalmente, o clima no começo do ano eleva os preços de frutas, verduras e legumes. Eles subiram, como sempre, e encontraram os grãos e a carne também em alta, o que levou a inflação de alimentos a 14% em 12 meses, em abril. De lá para cá, começou uma trajetória de queda, mas chegou ao fim do ano em 8,5%.

- Apesar disso, vários aumentos de grãos e derivados foram devolvidos. Milho, trigo e soja tiveram queda de preços no atacado no fim do ano - disse Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio.

No acumulado do ano, óleo de soja fechou com 17% de queda, açúcar com queda de quase 10%, feijão com queda de 17%. E o conjunto de alimentos ficou menor do que os 9,86% de 2012. Apesar da redução do atacado, a farinha de trigo teve alta de 30% no varejo ao longo do ano. O tomate não foi o pior vilão. Teve no ano, aumento de 14%. Viagens aéreas só em dezembro subiram 20%. O índice de difusão - percentual de itens que tiveram aumento - chegou a 69%. Muito alto.

Um Banco Central comprometido com a meta e com credibilidade, uma política fiscal cuidadosa e uma política monetária vigilante teriam conseguido levar a inflação para a meta de 4,5%. E isso não será alcançado no governo Dilma, nem mesmo com todos os truques.

Diplomacia inconsistente - JOSEF BARAT

O Estado de S.Paulo - 11/01

No comércio internacional há países que assumem o papel de locomotivas e uma grande maioria que se contenta à condição de vagões. Locomotivas geram novas dinâmicas mundiais, produzem conhecimento e inovação, apresentam altos níveis de produtividade e difusão do que produzem, seja na indústria, serviços ou agricultura moderna. Vagões, desde os tempos coloniais, se acomodaram a ficar atrelados à capacidade de tração de certas locomotivas ou se condenaram a essa posição. Há ainda os que se debatem em contradições e dúvidas quanto a se acomodarem de forma oportunista à locomotiva do momento ou ganhar alguma condição de também tracionar vagões.

O Brasil se enquadra bem nesse último perfil. Tem demonstrado capacidade de gerar novas dinâmicas e desbravar oportunidades no agronegócio e em alguns segmentos industriais e de serviços, mas também convive com a velha sedução pela dependência. Uma balança comercial de tipo colonial é a que temos com a China. É extremamente atraente para preservar a condição de exportador de bens primários (com baixos níveis de processamento) e importador de bens industriais. Bem ao gosto de empresários atrasados e governos acomodados à visão de que isso será bom enquanto durar.

Já nosso comércio com os EUA, mais equânime e equilibrado em termos de trocas de bens agrícolas, industriais e serviços, sempre é mal visto pelos ideólogos "progressistas" que, na verdade, fazem o velho jogo da dependência. E quando a ideologia se sobrepõe ao pragmatismo, os resultados são incertos e medíocres. Cabe lembrar que os modernos trens unitários, com grande extensão de vagões, são tracionados por três ou até quatro locomotivas. Assim, o Tratado Transpacífico, atualmente em negociação, reunirá EUA, Japão, Canadá e Austrália, além de, entre outros, Nova Zelândia, Chile, México e Peru. Por outro lado, já está em negociação o Acordo Transatlântico, entre EUA e a União Europeia. Os países envolvidos nesses acordos responderão por mais de 2/3 do PIB mundial. Esses grandes acordos comerciais consolidarão novas regras, englobando padrões para produtos industriais e serviços, especificações de bens de alta tecnologia, acesso a compras do governo e barreiras fitossanitárias.

Lamentavelmente, o "lado locomotiva" do Brasil só se manifestou na persistência em crer que lidera o Mercosul e na suposta vantagem de negociar "em bloco" com as grandes alianças econômicas. O problema é que nesse bloco o Brasil tem de carregar vagões que são verdadeiras "malas sem alça": Argentina, Venezuela e Bolívia. A primeira, além das constantes mudanças nos procedimentos no comércio com o Brasil, vem colocando sucessivos empecilhos à abertura de mercado para o acordo com a União Europeia. Quanto à segunda mala, empresários brasileiros não recebem há meses pagamentos das suas exportações, o que não surpreende, pois o país não tem como pagar. Quanto à terceira, a ocupação de uma refinaria da Petrobrás foi um fato que expressou por si mesmo a impossibilidade de relações comerciais normais. Consideradas as barreiras impostas e a concorrência direta da China, a liderança do Brasil no Mercosul está deixando de ser relevante.

Por todas essas razões, foi realista e pragmática a proposta da Confederação Nacional da Indústria para que o Brasil firme um acordo de livre-comércio com os EUA e deixe em segundo plano o Mercosul. Com isso, teria mais liberdade para avançar em outros tratados globais importantes. É sabido que os EUA compram principalmente manufaturados do Brasil e é chegada a hora de discutir seriamente a abertura de mercado com aquele país. Não são medidas protecionistas nem visões acomodadas que garantirão competitividade à indústria brasileira, mas, sim, a sua maior integração às cadeias produtivas mundiais, evidentemente com níveis mais elevados de produtividade e inovação. Infelizmente, a postura da diplomacia brasileira continua inconsistente quanto à tomada de decisões estratégicas importantes e complexas.

O arco, a flecha e o avião - DEMÉTRIO MAGNOLI

FOLHA DE SP - 11/01

A política indígena é uma pedagogia de 'reetinização' que se nutre das carências sociais e fabrica o conflito


Dois índios nus, pintados de urucum, arcos retesados, apontam suas flechas para o avião que os fotografava. A força magnética daquela imagem, divulgada em 2008, deriva de suas ressonâncias culturais, que tocam nos nervos do binômio natureza/civilização, o núcleo pulsante da narrativa romântica ocidental. Eis a Amazônia, sussurra uma voz dentro de nós. A voz está errada. Aqueles índios isolados existem, mas a Amazônia é outra coisa: o fruto do encontro entre ondas migratórias recentes e indígenas deslocados por quatro séculos de colonização. O conflito étnico em Humaitá, ponta emersa de tensões explosivas e difusas, decorre da decisão política de rejeitar a história em nome do mito.

Esqueça a lenda do paraíso isolado: a economia-mundo englobou a Amazônia no sistema de intercâmbios globais desde que Manaus tornou-se um porto de navios oceânicos, no anoitecer do século 19. Esqueça a lenda dos "povos da floresta": a Amazônia foi ocupada por pioneiros do Nordeste e do Centro-Sul em dois ciclos sucessivos, entre 1880 e 1920 e de 1942 em diante. Esqueça a lenda das tradições imemoriais: as festas folclóricas da região, surgidas décadas atrás, refletem as extensas mestiçagens entre os colonos e deles com os povos autóctones. A pureza está na foto, o vislumbre de uma relíquia, um instantâneo vestigial. Os Tenharim, conta-nos o repórter Fabiano Maisonnave, são evangélicos, moram em casas de madeira com eletricidade, deslocam-se em motos, torcem pelo Flamengo e pelo Corinthians. Por que traçar uma fronteira étnica intransponível separando-os dos demais habitantes de Humaitá?

Quem é índio? De acordo com o Retrato Molecular do Brasil, de Sérgio D. Pena, 54% dos "brancos" da Região Norte apresentam linhagens maternas ameríndias. O Censo 2010 registrou taxas espantosas de crescimento anual da população indígena do Acre (7,1%), de Roraima (5,8%) e do Amazonas (4,1%), interpretadas pelo IBGE como "etnogênese" ou "reetinização": o resultado de mudanças em massa na opção de autodeclaração étnica estimuladas pelas políticas raciais. Na Amazônia, redefinir-se como indígena tornou-se uma estratégia destinada a obter segurança fundiária, cotas preferenciais e privilégios extraordinários (como o de cobrar pedágios em rodovias federais). Os caboclos amazônicos, que são meio-índios, reagem declarando-se inimigos dos índios. Aí estão as raízes políticas da "guerra de Humaitá".

Quem é índio? Telma Tenharim, mulher do cacique cuja morte acendeu a faísca das violências em Humaitá, "uma mulher miúda com poucos traços indígenas", é filha do primeiro branco que teria entrado em contato com o grupo, nos anos 1940. Segundo a clássica definição de Darcy Ribeiro, índio é o indivíduo "reconhecido como membro por uma comunidade pré-colombiana que se identifica etnicamente diversa da nacional" e, ainda, "considerado indígena pela população brasileira com quem está em contato". A política indígena oficial, capturada por ONGs racialistas e entidades missionárias, é uma pedagogia de "reetinização" que se nutre das carências sociais e fabrica o conflito étnico.

"Em nenhum momento a gente falou que meu pai foi assassinado. A gente viu que ele caiu da moto." As palavras de Gilvan, filho do cacique morto, confirmam as conclusões da perícia policial, mas contrastam com o texto do coordenador regional da Funai, Ivã Bocchini, postado no blog do órgão, que sugeria a hipótese de assassinato. O cacique "era como um chefe de Estado", escreveu Bocchini, exigindo que "seja apontada a verdadeira causa da morte" e celebrando "a luta do povo Tenharim".

Um "chefe de Estado" com o arco retesado e a flecha apontada para o avião dos intrusos "brancos": nessa imagem falsa, construída pelas políticas estatais de raça, encontram-se as sementes do ódio entre caboclos-índios e índios-caboclos.

A ilha de felicidade chamada Maranhão - ALBERTO DINES

GAZETA DO POVO - PR - 11/01

Se acontecesse no Rio, São Paulo, Minas, Paraná ou Pernambuco os respectivos governadores já estariam enfrentando multidões na porta de suas casas e a indignação federal estaria no nível de comoção internacional.

Feliz ou infelizmente, o Maranhão – como Haiti – não é aqui. Está distante, longe do afluente sudeste, protegido pela modorra de um verão tão inclemente que torna penosa a composição de uma simples manchete expressando horror e revolta com o que acontece naquele paraíso.

Primeiro foi o cacique do clã e vice-rei do Brasil, José Sarney, afirmando que estava contida a violência nas prisões do estado governado pela filha querida, Roseana. Como a bandidagem de hoje também lê jornais e acessa a internet dos celulares mesmo atrás das grades, a violência ganhou as ruas de São Luiz num claro desafio ao imortal ficcionista. Incendiaram um ônibus, uma criança morreu queimada, sua mãe e irmã estão internadas sofrendo as severas consequências das queimaduras.

A patética desculpa do pai ex-presidente, inspirou a discípula ex-presidenciável, que nesta quinta, ao lado de um ministro da Justiça envergonhado com aquela despudorada exibição de cinismo, teve o desplante de afirmar que a violência do Estado resulta do fato que o Maranhão “está mais rico”.

Acrescente-se que a viagem do ministro – uma das poucas ações federais nesta catástrofe humanitária – decorreu de uma veemente denúncia da ONU no dia anterior exigindo do governo brasileiro ações imediatas para a restauração da ordem e o respeito aos direitos humanos no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, na capital do Maranhão. A ação da ONU resultou da exibição mundial de um vídeo feito pelos próprios detentos mostrando a decapitação de três desafetos. Uma das vítimas, segundo o seu pai (que examinou o corpo no IML) recebeu pelo menos 180 facadas.

A charmosa Roseana se disse surpresa e chocada com o que se passa no seu quintal, porém, vem sendo advertida desde 2008 – há cinco anos! – pelo Conselho Nacional de Justiça e outros entes oficiais ou ONGs para os perigos da irrupção do vulcão.

Desta vez, a presidente Dilma não parece perplexa como aconteceu com a agitação junina. Ontem tuitou que está alerta. Tão alerta que determinou à brava ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, que tomasse cuidado com suas indignadas falas e ações. Qualquer descuido – leia-se desagrado aos Sarney – poderá ser fatal. Estamos na temporada de reformas ministeriais, logo teremos eleições e Sarney é o grande eleitor, dono do PMDB, o mais importante aliado do governo.

O respeito aos direitos humanos já foi bandeira de grandes movimentações: no inexpugnável regime militar chegou a derrubar generais de quatro estrelas e até ministro da Guerra. Hoje virou moeda de troca: você me apóia e eu esqueço que a guilhotina está funcionando dentro da Bastilha maranhense: Pedrinhas.

Neste Brasil entediado e satisfeito, estas Bastilhas não caem. A riqueza é tanta e tão bem distribuída que o terror e a violência já não contam. Nem produzem manchetes.