sábado, janeiro 11, 2014

Por seleção artificial - CACÁ DIEGUES

O GLOBO - 11/01

O que não li no jornal, eu mesmo inventei. Uma história verossímil sobre a evolução das espécies por seleção artificial, um passo bem à frente da seleção natural de Darwin



Nesse fim de ano, li mais os jornais e fiquei surpreso com os avanços da humanidade. Parece que já podemos alterar nosso DNA, fotografamos nosso cérebro, achamos cristais que convertem energia solar em eletricidade, descobrimos novas supernovas que explicam a origem do universo e muito mais. Para não falar da televisão de 110 polegadas, megaTVs com UltraHD e resolução 4K, que podem acabar com as salas de cinema, onde passam nossos filmes. Tudo isso eu li nos jornais.

O que não li no jornal, eu mesmo inventei. Uma história verossímil sobre a evolução das espécies por seleção artificial, um passo bem à frente da seleção natural de Darwin, que contei à revista “Piauí” no fim de 2008.

Imagine que, na terceira ou quarta década do século 21, o mapa do genoma humano tenha sido enfim integralmente decifrado. A manipulação de células-tronco servia agora para curar todas as doenças, permitindo maior extensão da vida. A nova medicina se tornou conhecida como genoterapia.

Por ser cara, a genoterapia só estava ao alcance de famílias ricas de países ricos. Mas líderes árabes, altos funcionários asiáticos, ditadores africanos e bilionários latino-americanos também compraram o acesso a ela. As pessoas beneficiadas pela nova terapia foram chamadas de genos.

Em breve, o número de genos crescia, permitindo aos laboratórios viver da nova medicina. Os lucros com ela se tornaram tão elevados que eles deixaram de fabricar medicamentos convencionais, responsáveis por custo-benefício insignificante.

Os que não tinham condições financeiras de se beneficiar da genoterapia se organizaram para evitar que desaparecesse o que havia restado da medicina convencional. A disputa por médicos e medicamentos convencionais provocou ferozes guerras localizadas. Mas os genos não se envolveram nelas, limitando-se a agir por motivos humanitários, impedindo o uso de armas químicas e nucleares de destruição em massa.

A vida já tinha se estendido a possibilidades centenárias para os genos, quando uma crise gigantesca atingiu os não-genos. Vivendo em condições sanitárias lastimáveis provocadas pelas guerras, os não-genos foram assolados por grandes epidemias. Passaram então a tentar se apropriar ilegalmente dos benefícios da genoterapia, praticando roubos, assaltos, sequestros e outros crimes. As autoridades foram obrigadas a declará-los inaptos à convivência democrática e a negar-lhes o direito de cidadania, isolando-os ainda mais.

Por essa época, bioneurocientistas descobriram o infraego, o regente de um mecanismo autônomo que ordenaria o conjunto do corpo humano, o oposto simétrico do superego. O infraego regia a circulação do sangue, o sistema digestivo, a respiração do ser humano, comandando a harmonia necessária entre as atividades orgânicas.

Cientistas mais astutos chegariam à seminal descoberta de que o infraego era também capaz de pôr ordem nas mentes humanas e controlá-las artificialmente, reorganizando o sistema moral de cada um segundo seu próprio programa individual, neutralizando interferências indesejáveis do superego.

A interação entre pesquisas da genoterapia e do infraego aproximou a pequena humanidade que se beneficiava delas de uma existência quase milenar, cujo sentido não cabia mais na simples palavra “vida”. Em harmonia com a natureza, a procriação dos genos logo sofreu uma mutação genética, tornando-se uma nova espécie dentro do gênero humano. Lembrando a origem de sua evolução, biólogos e antropólogos chamaram a nova espécie de homo-ricus.

Enquanto isso, os decadentes homo-sapiens perambulavam em desordem pelos continentes, fugindo com suas famílias das cidades empestadas e em ruínas, a vida cada vez mais curta. Os Estados entraram em colapso e as nações começaram a desaparecer, impossibilitadas de conservar suas fronteiras e os laços entre seus cidadãos. A linguagem começou a sumir por perigosa e as manifestações culturais rarearam por desnecessárias.

Os homo-ricus progrediam rumo uma vida cada vez mais saudável, a mentes mais livres de ilusões, a existências mais longas e despreocupadas, fundamentos de uma cultura de sabedoria e contemplação. A lembrança dos homo-sapiens se restringia à narrativa científica da evolução, como eucariontes bípedes, primatas e ancestrais como tantos outros animais existentes ou extintos. Primeiro para evitar sua aproximação, depois por diversão e esporte, os homo-ricus passaram a caçar os homo-sapiens. Como se caçava macacos num passado longínquo.

Áreas reflorestadas do subcontinente sul-africano, do sudeste asiático e da América do Sul foram transformadas em reservas, onde os homo-sapiens restantes eram mantidos em estado natural. Um mínimo de caçadas autorizadas capturava poucos exemplares para zoológicos, onde eram mantidos para estudos de sábios e diversão das crianças.

Em algumas reservas, a caça mortal aos homo-sapiens era permitida, em temporadas precisas, com absoluto controle do número anual de vítimas. A carne deste animal em extinção havia se tornado rara e nobre, só era servida em circunstâncias muito especiais, sobretudo por ocasião do Natal, quando a iguaria substituía o antigo e já extinto peru.

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