sexta-feira, maio 01, 2020

E daí, Presidente Morte? - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

O Estado de S.Paulo - 01/05

Não significamos nada para este senhor Jair. Ele tem por nós desdém, desprezo, desapego, desinteresse. Acima de tudo, desamor


Quando ouvi o presidente exclamar “E daí?” diante das mortes provocadas pelo covid 19, tive ânsia de vômito. Em seguida, pensei: é um monstro. Um homem sem aquilo que minha mãe chamava de misericórdia. Na mesma hora, me veio a ordem do governador geral da Polônia, em janeiro de 1942, pouco antes da reunião em Wannsee, Berlim, que determinou a aceleração da Solução Final (nem Bolso nem o chancelar Arruda acreditam nela), destinada a exterminar todos os judeus, todos os inimigos do nazismo. O resultado, 6 milhões de mortos em fornos crematórios, fuzilamentos, e tudo o mais.

Sabemos hoje alguns nomes daqueles que comandaram a operação. Inesquecíveis Himmler, Heydrich, Adolf Eichmann e Josef Mengele, este chamado de o Doutor Morte, pela frieza com que executou as mais perversas “pesquisas” em nome da ciência.

E dai? Daí que me veio acachapante sensação, que não foi de repulsa ante a frieza e a indiferença com os milhões de habitantes do Brasil. Não foi de raiva, nem de ódio. Foi de uma tristeza imensa diante de tal desumanidade e desrespeito à dor alheia, à dor de uma nação. Não significamos nada para este senhor Jair. Ele tem por nós desdém, desprezo, desapego, desinteresse. Acima de tudo, desamor. Fiquei deprimido. Não sou ninguém, minha família nada é, meus amigos nada são, nenhum brasileiro tem qualquer significado, nenhum ser humano tem direito à vida. Nosso presidente não liga um pingo para nós, para nossas existências. Nem pelas vidas daqueles que votaram nele. Porque, se as mortes continuarem nessa progressão, onde vão parar? Se é que vão.

Expressão tão sórdida, me provocou sensação de asco. No mesmo momento, tive um retorno, memória afetiva (afetiva não é bem o termo aqui), que me fez mal, acabrunhou-me. Reação igual de mal estar tive em 1987, quando, em Berlim, como um dos convidados do DAAD para os 750 anos da cidade, decidi percorrer uma exposição chamada Topografia do Terror.

Em determinado espaço da cidade, estavam alguns edifícios que lembravam a zona do terror nazista, a Gestapo, a SS, a Direção de Segurança do Terceiro Reich. Um espaço relativamente (hoje é um memorial) pequeno onde se reunia a mortífera concentração de poder e terror do nazismo, a Prinz-Albecht-Strasse (hoje Niederkirchenstrasse), a Wilhelmstrasse e a Anhalterstrasse. Dali, emanavam as ordens de morte, horror, torturas, prisões, assassinatos, lugar que faria a delícia do famigerado Ustra, ícone do Messias. Dali, saíam as ordens que levaram milhões e milhões de judeus, ciganos, homossexuais, inimigos políticos para a morte em campos de concentração. Esse horror é conhecido.

Havia também o prédio, o Tiergarten 4, onde se procedia o Projeto T4 para Eutanásias, ou seja a eliminação de loucos, deficientes físicos, seres inúteis, tuberculosos, não convenientes a raça ariana. Como os idosos hoje, aqui. Quem estudou a história, há de se lembrar da Hans Frank e sua frase célebre. Em reunião na mansão de Wannseee, lago ameno na periferia de Berlim, em janeiro de 1942, quando se acertaram os ponteiros para a Solução Final, ou seja a morte de todos os judeus, Frank acentuou: “Cavalheiros, devo lhes pedir que se armem contra quaisquer sentimentos de compaixão”. Havia então, na Polônia, 3,5 milhões de judeus. Frank disse: “Não podemos atirar nesses 3,5 milhões, não podemos envenená-los, mas devemos ser capazes de tomar medidas que, de alguma forma, levem ao sucesso no extermínio absoluto”.

Assim, a morte de seis milhões de pessoas foi executada sem compaixão. Neste momento, no Brasil, enquanto hostes humanas – milhares e milhares de médicos, enfermeiros e voluntários – lutam, arriscando a própria vida, para defender a vida, o presidente, condena o isolamento e diz: “E daí?” “É humano esse homem? É isso um homem?”, como perguntou Primo Levi, em um de seus livros mais pungentes. E dai? Daí que nem eu, nem mais de 210 milhões de brasileiros queremos morrer de covid 19. Se sobrevivermos, vamos nos lembrar sempre de você, Jair, como o Presidente Morte.

Brasil fracassa na pandemia - HÉLIO SCHWARTSMAN

Folha de S. Paulo - 01/05

Fracassamos no preparo, nos testes e até na contagem mortos

Hesitei muito antes de escrever esta coluna, mas acho que não há mais como adiar: a forma como o Brasil vem enfrentando a Covid-19 só pode ser classificada como um fracasso completo. Para mencionar apenas os pontos mais essenciais, fracassamos no preparo para lidar com a pandemia, fracassamos em testar nos níveis necessários para identificar os doentes e eliminar cadeias de contágio e fracassamos até mesmo em contar os mortos direito e enterrá-los com dignidade.

Não ignoro que a dificuldade é global. Faltam insumos no mundo inteiro. A carência atinge desde os sempre lembrados ventiladores até reagentes para os testes e itens de proteção pessoal como máscaras e viseiras. Faltam também produtos menos óbvios, como o swab, o "cotonete" usado nos exames moleculares.

Onde estão o governo e os engenheiros de produção? Por que o poder público não negociou com setores da indústria que estão ociosos a conversão de suas linhas para a produção emergencial de alguns desses itens?

Tampouco desconsidero o esforço, com enorme risco pessoal, das equipes de saúde. Minha mulher, Josiane, que é médica intensivista e cardiologista, já pegou o bicho e se recuperou, mas vários de seus colegas estão internados em estado crítico. A incapacidade das autoridades em fornecer equipamentos adequados de proteção custa vidas e desfalca as equipes num momento em que isso não poderia ocorrer.

Profissionais de saúde treinados para atuar em ambiente de UTI são outro gargalo importante.

O mais grave, porém, é nosso fracasso em testar de forma ampla para produzir números que permitam entender o que está acontecendo em cada área do país. Sem boas estatísticas fica impossível planejar os próximos passos, seja para ampliar o isolamento, seja para relaxá-lo, conforme a necessidade. Pior, sem testes em profusão, fica muito mais difícil promover uma estratégia de retomada controlada.

Guedes e a ‘impressão de dinheiro’ - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 01/05

Ministro disse que pode acontecer, mas é hipótese teórica ou o governo já pensa em agir?



Paulo Guedes afirmou que o governo pode “imprimir dinheiro”, maneira “pop” de dizer que o Banco Central pode criar moeda do nada a fim de comprar títulos públicos. Isto é, emprestar dinheiro para o governo. Na prática, grosso modo, o endividamento extra seria financiado com dinheiro criado do nada, para ir no popular.

O troço é mais enrolado, mas a questão mais importante nem é explicar a aparente mágica.

As perguntas são:

1. Guedes apenas mencionou uma hipótese teórica de uma política extraordinária, adotada no Japão dos anos 1990, nos EUA e na Europa depois da crise de 2008 e agora outra vez, por causa da ruína da epidemia?

2. O ministro choveu no molhado, porque o BC já admitiu que pode em tese recorrer a tal política, faz mais de três semanas? Aliás, o instrumento que permite ao BC comprar títulos do Tesouro foi negociado com o Congresso faz um mês;

3. Os economistas do governo já pensam em partir para a ação (embora a decisão, oficialmente, caiba ao BC)?

Até para economistas-padrão, quando a taxa básica de juros da economia, de curto prazo, chega a zero ou perto disso, e a atividade econômica continua morta ou quase isso, uma opção restante para o Banco Central é reduzir as taxas de juro de prazo mais longo. Para fazê-lo, compra títulos do Tesouro, elevando seus preços, derrubando a taxa (é a mesma coisa). Grosso modo, foi o que Guedes disse.

A taxa de curto, a “taxa do BC”, é a Selic, está em 3,75% ao ano, muito e exageradamente longe de zero. Há gente na praça financeira fazendo campanha para evitar que a Selic caia mais. Dizem que mais capital fugiria do país, o dólar ficaria ainda mais caro, não adiantaria nada para reavivar a economia etc. Bidu.

Desde que a pandemia abalou as finanças do mundo, as taxas de longo prazo no Brasil subiram, o que tem dificultado o financiamento e a rolagem da dívida pública, entre outros problemas.

Enfim, Guedes falou no assunto e Roberto Campos, presidente do BC, já admitiu comprar títulos do Tesouro para achatar a curva de juros. A permissão para fazê-lo será em breve concedida pela aprovação da PEC do Orçamento de guerra. O que vai acontecer, então?

O BC vai acelerar a campanha de redução da Selic, até porque as perspectivas são de inflação mínima ou na prática nula, apesar de as expectativas do mercado serem ainda loucamente altas?

O BC poderia tentar reduzir os juros longos (comprando títulos), na marra, mesmo antes da Selic ir a perto de zero? Difícil, seria meio escandaloso entre economistas-padrão e causaria salseiro no mercado.

A política extraordinária do BC poderia ter o efeito óbvio de, no fim das contas, financiar o governo a juro zero ou perto disso, fazendo de resto que a dívida pública seja rolada no curto prazo. A economia continuaria catatônica, mas o déficit e a dívida públicos cresceriam menos, reduzindo o tamanho da desgraça a ser resolvida no futuro.

Dificilmente a gente vai escapar de algo assim, dado o desastre previsto na economia e nas contas públicas. Mas essa não é uma conversa fácil para economistas como esses que estão no governo.

O achatamento da curva de juros, a redução dos juros longos, dificilmente terá efeito na atividade econômica, asfixiada pela pandemia (quem vai investir ou emprestar muito dinheiro, dada a perspectiva de ruína?).

Então, vai ter dinheiro caindo do céu? Vai ter “impressão de dinheiro”? Ou se trata apenas de arma guardada para o Armagedom, de uma ruína terminal do pós-pandemia?

O vírus da paranoia - LUIZ CARLOS AZEDO

Correio Braziliense - 01/05

“Bolsonaro acredita que há uma operação no Congresso para inviabilizar o governo financeiramente, ao barrar projetos do ministro Guedes”

O estresse entre o presidente Jair Bolsonaro e o Judiciário não é um bom sintoma político para a democracia, porém, continua. Ontem, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou, por unanimidade, as restrições à Lei de Acesso à Informação previstas em uma medida provisória (MP) editada pelo presidente da República. A MP havia sido editada em março, motivando o pedido da Rede Sustentabilidade para que o STF suspendesse os trechos da lei que restringiam o acesso à informação. Alexandre de Moraes havia atendido ao pedido; o plenário do STF confirmou a decisão, o que foi interpretado como uma espécie de desagravo ao ministro, diante dos ataques que havia sofrido de parte de Bolsonaro, pela manhã.

O presidente da República pretendia suspender prazos de resposta e a necessidade de reiteração de pedidos durante a pandemia do novo coronavírus. A Lei de Acesso à Informação regulamenta o trecho da Constituição que estabelece como direito de qualquer cidadão receber, do poder público, informações de interesse da sociedade. Na mesma linha da decisão do Supremo, a juíza federal Ana Lúcia Petri Betto, da 14ª Vara Cível Federal de São Paulo, determinou que a Advocacia-Geral da União (AGU) forneça os laudos de todos os exames feitos pelo presidente Jair Bolsonaro para diagnóstico do coronavírus. A decisão, segundo a juíza, deve ser cumprida em 48 horas, sob pena de multa de R$ 5 mil por dia.

Segundo a juíza, o documento enviado pelo AGU “não atende, de forma integral, à determinação judicial”. Na verdade, não eram os resultados dos exames – que Bolsonaro se recusa a revelar, o que aumenta os boatos de que teria contraído o coronavírus —, mas um relatório médico da coordenação de saúde da Presidência, com data de 18 de março, mas sem os exames. A magistrada havia determinado a apresentação dos dois exames feitos por Bolsonaro, que teriam resultados negativos, segundo o próprio.

Magistrado não dá canetada, somente se manifesta quando provocado. No caso da Lei da Transparência, o Supremo foi provocado por dois partidos políticos — a Rede e o PSB — , além do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Em relação aos exames de coronavírus, quem recorreu à Justiça foi o jornal O Estado de S. Paulo. Mas Bolsonaro está convencido de que existe uma conspiração para depô-lo da Presidência, da qual fariam parte o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que tem o poder de aceitar, ou não, os pedidos de impeachment; o governador de São Paulo, João Doria, com quem anda às turras por causa da epidemia de coronavírus; e o ministro Alexandre de Moraes, juiz natural do processo que investiga as fake news e as manifestações que pediam o fechamento do Congresso, do Supremo e a volta do AI-5, a lei de exceção do regime militar, atos políticos aos quais Bolsonaro compareceu, em Brasília.

Conspiração


Na sua paranoia, o ex-ministro da Justiça Sergio Moro e o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, também fariam parte da conspiraçao. Para Bolsonaro, as investigações em curso em Brasília e no Rio de Janeiro pretendem atingi-lo, mirando seus filhos Flávio, o senador fluminense, investigado no famoso caso Fabrício Queiroz, envolvido nas rachadinhas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro; Eduardo, o deputado por São Paulo, que teria organizado, com outros parlamentares, as manifestações a favor de uma intervenção militar; e Carlos, o vereador carioca, que seria o líder do chamado “gabinete do ódio” e responsável pelas fake news lançadas contra os adversários políticos do clã Bolsonaro.

Além disso, Bolsonaro acredita que há uma operação de Maia no Congresso, no sentido de inviabilizar o governo financeiramente, ao estourar o “teto de gastos” e barrar projetos do ministro da Economia, Paulo Guedes. Tudo isso seria apenas uma paranoia se não houvesse as investigações, e se o Congresso não estivesse discutindo uma agenda econômica mais favorável aos governadores e aos prefeitos do que gostaria o ministro da Economia, Paulo Guedes, que fez a cabeça de Bolsonaro e dos ministros militares, de que o governo corre risco de colapsar financeiramente.

Bolsonaro viajou ontem para Porto Alegre, comparecendo à posse do novo comandante militar do Sul, general de exército Valério Stumpf Trindade, cuja área de atuação abrange Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Ao falar com a imprensa, responsabilizou governadores e prefeitos pelo aumento do número de mortos na epidemia de coronavírus e criticou o isolamento social. Pela manhã, ao sair do Palácio do Alvortada, havia se queixado: “O Supremo decidiu que quem decide essas questões são governadores e prefeitos. Então, cobrem deles. A minha opinião não vale. O que vale são os decretos dos governadores e prefeitos.”

Em Brasília, o ministro da Saúde, Nelson Teich, diante do aumento de número de mortos e risco de colapso do sistema público de saúde em vários estados, pela primeira vez, admitiu que ainda não é hora de apresentar uma estratégia de relaxamento do distanciamento social. “Neste momento, o distanciamento permanece como orientação. E vamos avaliar cada lugar, cada região, quanto de recurso para atender pessoas”, disse. Admitiu que o número de mortos, no pico da epidemia, pode chegar a 1.000 por dia. Ontem, foram 435 mortos a mais, num total de 5.446 até agora. Com 85.380 casos confirmados, ultrapassamos a China, que registrou 83,9 mil. Isso sem contar a subnotificação.

Sem bússola no olho do furacão - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 01/05

Desemprego pode ser maior, todos os indicadores do IBGE estão ameaçados por impasse que a direção não consegue resolver



Hoje é dia do trabalho e só se viu até agora a ponta do iceberg do que poderá vir a ser o desemprego no Brasil. O país navega sem qualquer visibilidade no meio de uma tempestade. O mercado de trabalho já está em forte deterioração, e a economia corre o risco concreto de ficar sem indicadores para orientar as políticas públicas em qualquer área. O Caged não está sendo divulgado desde dezembro, e o IBGE dificilmente conseguirá trazer o retrato do desemprego ou dos outros índices econômicos.

A ex-presidente do IBGE Wasmália Bivar acha que a direção do Instituto deveria estar se mobilizando, falando com a sociedade brasileira para superar o impasse que se formou:

– É preciso ir ao Supremo, Congresso, trazer a OAB, fazer seminário virtual, falar com a imprensa, enfim, explicar a todos a necessidade de ter acesso a dados que permitam ao IBGE construir uma nova forma de trabalho.

A pandemia fez com que, em todo o mundo, houvesse a suspensão das pesquisas domiciliares. Wasmália acha que o IBGE está corretíssimo em ter também suspendido para proteger as famílias e a equipe de trabalho. O problema é que em seguida o governo baixou a MP determinando que o instituto tivesse acesso aos dados individuais que teriam que ser fornecidos pelas companhias telefônicas. Por ser uma MP, e pela maneira como foi feita, produziu uma onda de reação. Partidos diferentes, a OAB e outras instituições procuraram o STF, e a ministra Rosa Weber suspendeu o repasse de dados das telefônicas.

– A questão toda foi a forma, uma MP, e que ainda deixou muitas lacunas porque não mostra direito a necessidade dos dados. Era preciso ser explicado para que fosse entendido por todos os usuários do IBGE. Uma MP pedindo acesso a informações individualizadas de todos os brasileiros, de todas empresas, provocou uma reação compreensível, mas era possível ser explicado. O que me surpreende é que vejo os dias passarem e nada ser feito – alerta Wasmália.

Ontem o IBGE divulgou que a taxa de desemprego no trimestre encerrado em março ficou em 12,2%, um aumento de 1,2 milhão de pessoas desempregadas em relação ao trimestre terminado em dezembro. Todo mundo sabia que aumentaria, mas o fato é que houve uma queda em relação ao ano passado. Alguém acha que em março de 2019 o país estava pior? No meio do mês já havia muita paralisação, e a última semana de coleta já teve que ser feita via telefone.

O dado deve estar subestimado, de acordo com o economista Cosmo Donato, da LCA Consultores.

– A redução da população ocupada foi muito mais forte do que o esperado. Com as medidas de isolamento as pessoas ficaram em casa e pararam de procurar emprego. Dessa forma saíram da estatística de desemprego, mascarando o número – explicou.

Os dados mostram o aumento de 1,2 milhão de desempregados na comparação com o último trimestre, e ao mesmo tempo uma queda de 2,3 milhões na população ocupada.

Segundo Donato, o desemprego teria saltado para 13,2% caso a força de trabalho tivesse mantido o mesmo ritmo de crescimento anterior. A falta de indicadores confiáveis será um dos grandes problemas nesta crise. A Pnad é uma pesquisa feita por amostra de domicílio e dificilmente conseguirá ser feita por telefone. O repórter Bruno Villas Boas, do jornal “Valor Econômico”, escreveu sobre isso esta semana.

– As pesquisas do IBGE como um todo, não só as domiciliares, porque as empresas também estão fechadas, não dá para fazer pesquisa de comércio com tudo fechado. O mundo inteiro enfrenta o problema, mas os países buscaram alternativas, e a maioria tem registros administrativos que nós não temos – disse Wasmália Bivar.

O outro termômetro do mercado de trabalho é o Caged, que mede o mercado formal. Mas o indicador não é divulgado desde dezembro. O governo fez uma mudança de método de envio dos formulários, que passou a ser eletrônico, mas as empresas não aderiram a tempo. Com isso, os dados de janeiro e fevereiro foram postergados. Em março, veio a crise do coronavírus, e, com o trabalho remoto, as informações também não foram encaminhadas ao Ministério da Economia.

No meio de uma crise econômica da proporção da que estamos vivendo, o pior que pode acontecer é não ter indicadores. É como navegar sem bússola no meio de uma tempestade.

As epidemias, início e morte dos impérios - CELSO MING

ESTADÃO - 01/05

Episódios comprovam contribuição de doenças para o surgimento ou para a derrocada de superpotências globais


No dia 28 de abril, a edição em inglês da revista alemã Der Spiegel publicou preciosa entrevista do especialista em História da Medicina Frank Snowden, professor da Universidade Yale.

Lá ele menciona episódios que comprovam a grande contribuição das epidemias para o surgimento ou para a derrocada de superpotências globais.

Entre os casos citados, ele inclui os próprios Estados Unidos. No início do século 19, os escravos do Haiti, então colônia francesa, se revoltaram e constituíram governo próprio. Napoleão mandou para lá um exército de 60 mil homens que, no entanto, foram dizimados não pelos escravos, mas pela febre amarela. O fracasso da campanha do Haiti foi suficiente para levar Napoleão, então com planos expansionistas na Europa, a desistir de suas possessões na América. Foi quando se apressou a vender a Louisiana para os Estados Unidos, que, então, dobraram seu território, fato que marcou o início de sua ascensão a superpotência global.


Entre os fatores que causaram a derrota de Napoleão Bonaparte na Rússia, estão o tifo e disenteria pegos pelo exército francês Foto: Adolph Northen

Snowden citou outros casos. O do alastramento da peste em Atenas no século 5.º antes de Cristo, que deve ser visto como o início do declínio da Grécia Antiga. Na Inglaterra, a sífilis ajudou a derrubar a dinastia dos Stuarts. A enorme derrota de Napoleão em 1812, quando invadiu a Rússia, deve ser atribuída menos a enfrentamentos militares ou ao chamado general inverno, e mais à disseminação do tifo e da disenteria entre seus soldados.

Exemplo não citado pelo professor Snowden é o da destruição do maior império da antiguidade, com a morte de Alexandre, o Grande, vitimado por certas febres, quando retornava de sua campanha vitoriosa pela Ásia.

Uma das perguntas da hora consiste em saber qual será o impacto geopolítico produzido por este coronavírus. Alguns observadores vêm advertindo para a aproximação de uma provável depressão global, a maior desde os anos 30. A principal vítima poderá ser os Estados Unidos, que hoje correm o risco de ficar com mais de 50 milhões de desempregados. A outra talvez seja a velha Europa, que terá de emergir e redefinir as bases de suas alianças.

Esse não é o filme inteiro, porque já se vê que a China deve sair mais inteira dessa catástrofe. Os países emergentes, entre os quais o Brasil, ficarão mais enfraquecidos do que já estão, altamente endividados e, se tudo continuar na direção conhecida, ainda mais desorganizados politicamente.

Os cursos da política e da História não são traçados por determinismos. A última proposta séria nessa direção, a do marxismo, se mostrou insustentável. Outros fatores ou outras forças poderão intervir e mudar tudo, entre elas até mesmo novas pandemias. Pode ser uma guerra nuclear, tão temida nos últimos 70 anos, ou, mesmo, o apressamento do aquecimento global, que pode destruir grandes economias e importantes alianças políticas. No entanto, o fato de ser impossível prever a dimensão desses impactos e seu desenlace não significa que não acontecerão. A melhor maneira de um país se preparar para enfrentá-los é disseminar na sociedade o conhecimento e a capacidade de compreensão. No entanto, estamos mal nessa empreitada. Uma das maiores tragédias do Brasil é o baixo nível do ensino.

CONFIRA

Os números do colapso

Os primeiros resultados da atividade econômica do primeiro trimestre ao redor do mundo são catastróficos. Em bases anuais, o PIB dos Estados Unidos recuou 4,8%; o da França, 5,8%; o da Itália, 4,7%; e o da Espanha, 5,2%. E esse é apenas o começo do colapso, porque o impacto da pandemia entrou nos cálculos das contas nacionais apenas em fevereiro e março. Há abril e o que virá depois, especialmente nos Estados Unidos, que aparentemente não atingiram o auge da crise do coronavírus.

Tiro no STF e no pé - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 01/05

Há margem para discutir a decisão do STF, mas Bolsonaro trabalhou contra ele próprio


O presidente Jair Bolsonaro deu uma de Jair Bolsonaro: fingiu que foi, mas não foi. Moldado pelos generais e pela assessoria direta não ligada ao “gabinete do ódio”, ele reagiu com moderação e rapidamente ao revogar a nomeação de Alexandre Ramagem para a Polícia Federal, que havia sido suspensa pelo Supremo, mas, à tarde, mandou recados sobre a independência entre Poderes e no fim da quarta-feira já avisava que mudaria tudo. Por quê? “Quem manda sou eu.”

Antes de embarcar para Porto Alegre, para mais uma solenidade militar, Bolsonaro admitiu na quinta-feira, 30: “Quase tivemos uma crise institucional. Faltou pouco”. Ou seja, o presidente pensou seriamente em desobedecer uma decisão do Supremo, descartando a regra de que “decisão judicial não se discute, cumpre-se” – e, se for o caso, recorre-se.

Se o presidente agora não pensa em outra coisa senão em nomear Ramagem como diretor-geral da PF, o mundo político parecia se dividir. A primeira reação, assim que Alexandre de Moraes suspendeu a posse, foi de amplo apoio à decisão do ministro do Supremo. Na quinta, começaram as ressalvas. Pelo twitter, o ex-presidente Fernando Henrique disse que “os choques entre poderes não ajudam a democracia” e opinou: “Acho que cabe ao PR (presidente) nomear o diretor da PF”.

No centro do embate entre Supremo e Planalto, ou entre Moraes e Bolsonaro, está o confronto entre, de um lado, o dispositivo de que é “atribuição exclusiva do presidente”, a nomeação de ministros e do diretor-geral da PF e, do outro, os princípios de “impessoalidade, moralidade e interesse público”.

Há margem, portanto, para questionar a decisão de Moraes. Quem interdita a discussão é Bolsonaro, ao fazer um ataque pessoal a um ministro do Supremo, dizendo que a decisão de Moraes foi “política” e que ele foi indicado para a função por ser amigo do presidente Michel Temer. Bolsonaro interrompeu, assim, a possibilidade de um debate entre sua atribuição exclusiva e o critério de impessoalidade. Trabalhou contra ele próprio e atraiu nova avalanche de críticas para ele e de manifestações em defesa de Moraes e do STF.

Há outra questão importante, como alerta o ex-ministro da Justiça e do Itamaraty Aloysio Nunes Ferreira, tucano como FH. O problema não seria o presidente exigir acesso aos relatórios de inteligência, mas sim às investigações judiciárias.

Bolsonaro tem razão quando diz que a PF integra o Sistema Brasileiro de Inteligência e, se seus relatórios já podem ser encaminhados à Abin, órgão de assessoramento direto ao presidente, por que não poderiam ser divididos com o próprio presidente? Isso, porém, não significa ampliar esse acesso do presidente, ou de qualquer pessoa, ao conteúdo de investigações sigilosas determinadas pelo Judiciário. Isso é outra coisa, muito diferente.

Relatórios de inteligência contêm informações da atuação explícita da PF nas fronteiras, no combate ao crime organizado e no tráfico de armas, drogas e pessoas, que podem ser importantes na definição de estratégias do governo. Já as investigações judiciais são sobre organizações, pessoas, aliados ou adversários do presidente. Logo, poderiam não ter uso de interesse público, mas sim político e até pessoal nas mãos do presidente – qualquer presidente.

O mais grave, assim, é o que Moro expôs à nação no seu celular: a intenção de Bolsonaro de intervir em investigações da PF contra “dez a doze deputados bolsonaristas”. Não tem nada a ver com inteligência nem segurança nacional, mas com o mais comezinho interesse político de salvar a pele de aliados. É isso o que baseia a decisão de Moraes e vai alimentar o inquérito sobre Bolsonaro e Moro. E pode ter mais...

Quem é este terço que apoia o presidente? - NELSON MOTTA

O GLOBO - 01/05

Os que votaram nele por ódio ao PT e à esquerda estão decepcionados


Nada mais assusta ou surpreende nos seus coices na razão e nas suas bombas de merda verbais. Nem seu autoritarismo e sua ganância de poder, de ter controle sobre tudo e não dar satisfações a ninguém, afinal, “o presidente sou eu, eu é que mando, talkey?” Seu principal objetivo é livrar os filhos da lei a qualquer preço.

O que assusta é saber que um terço do país (ainda) o apoia incondicionalmente.

Apesar do bombardeio da mídia, do Congresso e do Judiciário, e dos recentes revezes e desgastes, que fizeram 17% de seus eleitores se arrependerem, 33% do país se mantêm fiéis a ele. São cerca de 50 milhões entre os 150 milhões de eleitores. Uma Espanha.

Mas quem é esse terço no Brasil?

Muita gente muito pobre e muito ignorante junto com gente muito rica e poderosa, por motivos opostos, estão com Bolsonaro. Os evangélicos também, embora não sejam uma massa homogênea; já se ouve gente dizendo “sou evangélico mas não sou burro” e gritando fora Bolsonaro. Os que votaram nele por ódio ao PT e à esquerda estão decepcionados, envergonhados e batendo panelas.

Mas quem são esses 50 milhões que ainda acreditam nele? Não são só os burros, ignorantes, fanáticos, boçais, moralistas, terraplanistas, militaristas, mas também os inteligentes, informados, liberais e bem (ou mal ) intencionados a serviço da elite empresarial e da direita.

Como um terço é oposição radical, sem o terço do centro, Bolsonaro pouco pode fazer, além de atrapalhar. Não basta só comprar o centrão no Congresso, é preciso ganhar o centro da opinião pública, que exclui lulistas e bolsonaristas, por extremos. Os isentões estão deixando de sê-lo para virar oposição. É o centro que vai fazer a diferença.
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“Logicamente que a gente quer, se um dia morrer, ter uma morte digna, né? E deixar uma boa história para trás”, disse Bolsonaro.

Digna como a dos 5.500 mortos da gripezinha, né? Sua história vai ser boa para rir e chorar, para debochar, se indignar e se envergonhar por ele e pelo Brasil, se um dia ele morrer.

Um presidente atordoado - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 01/05

A insistência em nomear Ramagem só confirma o que Moro alegou como motivo para sua saída do ministério

O presidente Jair Bolsonaro está dando munição contra ele mesmo para o inquérito aberto no Supremo Tribunal Federal (STF) que investiga a denúncia do ex-ministro Sergio Moro de que ele tentou interferir nas ações da Polícia Federal, e por isso demitiu o delegado Mauricio Valeixo para nomear Alexandre Ramagem, que foi chefe de sua segurança.

A insistência em nomear Ramagem, mesmo depois de o ministro Alexandre de Moraes ter suspendido sua posse, só confirma o que Moro alegou como motivo para sua saída do ministério da Justiça.

O presidente Bolsonaro declarou que o caso quase gerou uma crise institucional, indicando que pensara em não respeitar a decisão do Supremo, ou em indicá-lo novamente, o que seria uma afronta ao Judiciário.

Ao mesmo tempo, duas investidas do presidente em outros órgãos de Estado, como o Exército e a Receita Federal, demonstram que ele não tem noção institucional dos limites que cada Poder tem entre si, e da diferença das políticas de Estado das do governo.

Os órgãos de Estado não são braços da ação politica dos governos, são permanentes e devem ser guiados por atuação imparcial do ponto de vista político. Bolsonaro determinou ao secretário da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, uma anistia de dívidas tributárias das igrejas evangélicas devido a autuações pelo não recolhimento de tributos na distribuição de lucros e outras remunerações a seus principais dirigentes.

No Exército, ele determinou a revogação de três portarias sobre rastreamento de balas e munições. Nos dois casos, agiu como presidente da República para favorecer grupos de seguidores políticos, como as igrejas evangélicas e os clubes de tiro, os atiradores e colecionadores de armas.

O que estava ruim só piorou para o presidente Bolsonaro com o confronto que está alimentando com o Supremo Tribunal Federal (STF) por causa da liminar do ministro Alexandre de Moraes que suspendeu a posse do delegado Alexandre Ramagem na diretoria-geral da Polícia Federal. “Polícia Federal não é órgão de inteligência da Presidência da República”, ressaltou o ministro do STF em seu despacho concedendo a liminar.

Moraes atendeu a um pedido do PDT, que impetrou mandado de segurança no STF usando como argumento as declarações do ex-ministro da Justiça Sergio Moro sobre as tentativas do presidente da República de interferir politicamente na PF, pois Ramagem tem ligações pessoais com os Bolsonaro.

Para determinar a suspensão, o ministro alegou que “em tese, apresenta-se viável a ocorrência de desvio de finalidade do ato presidencial de nomeação do Diretor da Polícia Federal, em inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”.

O presidente Bolsonaro, depois de ter tornado sem efeito a nomeação de Ramagem, parece ter se arrependido e partiu para ataques pessoais a Alexandre de Moraes. Acusou-o de ter adotado uma decisão politica, e ressaltou que ele alegou “impessoalidade” para barrar a nomeação quando só teria sido nomeado ministro do Supremo por ser amigo do ex-presidente Michel Temer.

Propositalmente, Bolsonaro se referiu à “impessoalidade”, esquecendo-se de “moralidade” e do “interesse público”, que definem melhor a decisão. Como era de se esperar, provocou um movimento de solidariedade interna ao ministro Alexandre de Moraes, além de ter revelado um interesse exagerado na manutenção da nomeação.

A liminar concedida nem tocou na questão da amizade entre ele e Ramagem, mas sim na possibilidade de interferência na Polícia Federal. A razão do deferimento da liminar no mandado de segurança foi a possibilidade de haver um “desvio de finalidade” na nomeação, baseado nos relatos que o ex-ministro Moro fez ao deixar o cargo.

Quanto à permanência do delegado Alexandre Ramagem na Abin, que Bolsonaro aponta como uma incoerência de Moraes, é preciso ressaltar duas coisas: o mandado de segurança não pediu nada em relação à ABIN, por isso o STF não pode analisar.

Além do mais, a Abin é órgão de assessoria de informação da Presidência da República, e não do Estado, como a Polícia Federal. O presidente pode nomear um amigo para o ministério, mas não para a PF ou outro cargo de Estado.
O presidente da República no Brasil é ao mesmo tempo Chefe de Estado e Chefe de Governo. Mas é preciso saber não confundir as duas coisas.

É preciso cultivar nosso jardim e punir os anjos da morte - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 01/05

Estamos esmagados sob a égide de espíritos homicidas, mas nem tudo está perdido

Sinto desconforto ao ter de escrever sobre certas vigarices políticas quando o caos da Covid-19 já engolfou Manaus e Belém, avizinha-se de Fortaleza e São Luís, preparando-se para tragar Rio e São Paulo. Desconforto e sensação de impotência. Como todo mundo. Nada disso está bem. É preciso, então, cultivar nosso jardim. Volto ao ponto mais adiante, depois de tratar do fim de uma quimera, de que o triunfo da morte é parte.

Sergio Moro deixou o Ministério da Justiça ambicionando o papel de mocinho no duelo com Jair Bolsonaro. Um completo ausente em tempos de coronavírus, demitiu-se cinco dias antes de o Monitor da Violência apontar nova escalada de homicídios. O índice cresceu 8% no país —22% no Nordeste— em janeiro e fevereiro na comparação com igual período do ano passado. A incompetência é apanágio da mistificação.

Saiu atirando contra o chefe, com quem formalizou uma aliança de pornografia política explícita há meros 17 meses. O rompimento foi didático. Expôs sem filtro a natureza da Lava Jato e o seu poder de corromper instituições sob o pretexto de caçar corruptos. Foi aquele serpentário que nos relegou às trevas.

A aliança informal da operação com a extrema direita antecedia em muito o novembro de 2018, quando o então presidente eleito convidou o juiz para o cargo. No ministério, Moro condescendeu com o obscurantismo armamentista de Bolsonaro —e o resultado, tudo indica, já se traduz em corpos—, fez a defesa esganiçada e cruenta da licença para matar e se opôs ao juiz de garantias.

Os bolso-moro-fascistoides iam às ruas cobrar o emparedamento militar do Congresso e do Supremo, e o ministro se limitava ao sorriso de uma Monalisa sem mistérios. Apostava que Bolsonaro, cedo ou tarde, iria se confrontar com a sua biografia e a da família, e ele, Moro, herdaria o lamaçal de memes e a indústria de difamação. Afinal, o chefe havia sido tolo o bastante para entregar ao subordinado o controle do Papol (Partido da Polícia).

Na greve de setores da PM do Ceará, passou a mão na cabeça de criminosos amotinados e armados, apontando o seu cavalheirismo. Imperdoável e irredimível sob qualquer parâmetro civilizado que se queira! Mas eu o saúdo ao menos na derrocada. O rompimento foi útil à República. Crimes de acusado e acusador vieram à luz.

O rififi na extrema direita teve outro desdobramento positivo. Contribuiu para que o Supremo lembrasse, como quer Jacques Chevallier —citado pelo ministro Alexandre de Moraes ao impedir a posse de Alexandre Ramagem como diretor-geral da PF— que “o objetivo do Estado de Direito é limitar o Estado pelo direito”. Estamos esmagados por uma montanha de mortos e sob a égide de espíritos homicidas, mas nem tudo está perdido. É preciso cultivar nosso jardim.

A exemplo de todo mundo, tenho repetido que um dia isso passa, mas exorto desde já a que façamos da memória uma arma de ajuste de contas com a história. Em benefício dos que estão por vir. E em memória dos que se foram. Pareceu barateamento de retórica jacobina? A proposta é muito objetiva. Se há óbices legais, e os há, para a criação de um Tribunal Penal Especial para punir os criminosos da Covid-19, nada impede que se instale um Tribunal Russell para os Crimes da Pandemia.

É preciso que se proceda ao menos à responsabilização moral daqueles que concorreram, por palavras, atos e omissões, para a morte dos brasileiros. A opinião é livre. Colaborar com atos, ou incentivá-los, que favoreçam a disseminação do vírus, precipitando o colapso no sistema de saúde, atenta contra o pacto civilizatório e os direitos fundamentais, especialmente dos mais pobres.

Que seja o mais plural e amplo possível. É preciso identificar os que ousaram substituir a ciência pela bruxaria ideológica, o direito à saúde pelo convite ao suicídio coletivo, o dever que tem o Estado de zelar pelo bem-estar dos cidadãos pela desídia calculada. Há momentos na história em que o mal se banaliza. E precisamos nos proteger, e às gerações futuras, da banalidade do mal. E dos embusteiros em pele de profetas.

Bolsonaro força atrito com Supremo para encobrir interferência na PF - BRUNO BOGHOSSIAN

FOLHA DE SP - 01/05

Presidente não reclamou do STF quando ministros decidiram a favor de Flávio e do governo



Não houve chiadeira no Palácio da Alvorada quando Luiz Fux aproveitou o recesso do STF e decidiu, sozinho, suspender as investigações do caso Fabrício Queiroz, no início do ano passado. Ninguém saiu à portaria para dizer que aquele era um juízo político ou que o ministro abusava do poder de sua caneta.
Seria ingenuidade esperar coerência de Jair Bolsonaro. O presidente bateu palmas quando o Supremo tomou decisões que beneficiavam sua família e o governo. Agora, força uma confusão com a corte para encobrir sua tentativa escancarada de interferir na Polícia Federal.

Depois que Alexandre de Moraes barrou a nomeação de seu escolhido para o comando do órgão, o presidente disse que o ministro impedira a posse só porque Alexandre Ramagem era seu amigo: "Por que não posso prestigiar uma pessoa que eu conhecia com essa profundidade?".

Não era nada daquilo. Bolsonaro foi impedido de trocar a chefia da PF porque demonstrou interesse em intervir politicamente em investigações que rondam seus filhos e aliados. As relações com Ramagem surgiram apenas como agravantes.

Bolsonaro atacou Moraes para embaralhar essas circunstâncias e posar de vítima de uma intromissão do Judiciário sobre seus poderes. Acrescentou que não seria "refém de decisões monocráticas de quem quer que seja", em referência aos despachos emitidos por um único juiz.

Ele não se incomodou com esse detalhe quando Fux, Gilmar Mendes ou Dias Toffoli assinaram decisões que aliviaram temporariamente a barra de Flávio Bolsonaro nos inquéritos sobre o esquema da "rachadinha". Ninguém fez campanha nas redes contra os ministros.

O presidente também não criou atrito com Moraes quando o ministro aceitou (sozinho) torcer a Lei de Responsabilidade Fiscal e autorizou Bolsonaro a criar despesas sem apontar a origem das receitas durante a crise do coronavírus. O pedido havia sido feito pelo próprio governo. Ninguém chamou um cabo e um soldado para fechar o Supremo.

Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

Os fatos vão além da peste - FLÁVIO TAVARES

ESTADÃO - 01/05

Bolsonaro vê a Presidência como exibição de poder pessoal


O Brasil já viveu momentos difíceis, mas nunca uma crise tão vasta e profunda como agora, em que a devastação sanitária se une à insanidade política.

Nada surge do nada, porém. Nem as nuvens que parecem viajantes perenes, sem origem ou destino. A data de 1.º de maio, por exemplo, não tem, neste 2020, o estilo de reivindicação do Dia do Trabalho. O horror do coronavírus desmobiliza tudo, do lar à economia, e nos leva a novo olhar sobre a vida.

Improvisamos hábitos para fugir à peste e à morte. Reivindicar no 1.º de maio seria aglomerar-se, algo impensável em quarentena e isolamento, quando o contágio ataca como inimigo invisível. No Brasil, como se não bastasse o novo vírus, o presidente da República provoca uma múltipla crise, que, primeiro, força a demissão do ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e, logo, a de Sergio Moro do Ministério da Justiça.

Ambos os casos mostram a predisposição ditatorial (consciente ou não) de Bolsonaro. Resta saber se é um plano político ou se é mera consequência do desequilíbrio do presidente, como entende o jurista Miguel Reale Júnior. O autor do pedido de impeachment de Dilma Rousseff chega a sugerir, até, que o presidente se submeta a um exame de “sanidade mental” para permanecer no poder.

A demissão de Mandetta surgiu do ciúme do presidente, que preferia um ministro inerte a alguém que descesse do pedestal e dialogasse com a população. Bolsonaro viu a Presidência como mera exibição de poder pessoal, não como ato de servir ao País e ao povo.

A demissão de Moro foi ainda mais brutal. O juiz que, pela primeira vez no Brasil, levou à prisão grandes ladrões enquistados no empresariado e na política, não teve condições de continuar no governo que prometia fazê-lo “superministro” para combater a corrupção. Em menos de 16 meses Sergio Moro foi relegado à sarjeta ao relutar em transformar a Polícia Federal em obediente criadagem da prole presidencial.

O próprio Moro revelou que o presidente queria mudar o diretor da Polícia Federal (lá colocando alguém de sua confiança pessoal) para ter acesso à marcha das investigações. E as investigações chegam a um dos filhos do presidente…

No momento em que a catástrofe da covid-19 afeta o planeta, aqui o presidente da República se dedica a derrubar a estrutura do próprio governo que formou. O absurdo vai além: Bolsonaro ressuscita notórios corruptos condenados no mensalão e na Lava Jato e os transforma em escoras políticas. É o caso do chefão do PTB, Roberto Jefferson, que na era Collor comandou a “tropa de choque” e, com Lula, se incriminou ao delatar o mensalão, do qual foi beneficiário.

Sem se amparar na maioria dos eleitores que o elegeram de boa-fé (ao acreditarem que combateria a corrupção), Bolsonaro age no sentido oposto. Busca apoiar-se no “centrão”, que reúne no Parlamento variados arrivistas. Quando deputado e membro do chamado “baixo clero” da Câmara, Bolsonaro tinha livre acesso a esse grupo e hoje aprofunda o tosco contubérnio.

Tal qual os rios vão para o mar, a barafunda desemboca na nomeação de André Mendonça como ministro da Justiça e na de Alexandre Ramagem, velho amigo da família Bolsonaro, como diretor-geral da Polícia Federal. Concluía-se o arco idealizado pelo presidente?

Ao pular da Advocacia-Geral da União para o Ministério da Justiça, Mendonça (que é pastor presbiteriano) amplia a credencial para ser o futuro ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) “tremendamente evangélico” mencionado por Bolsonaro tempos atrás. Ramagem seria a figura íntima que informaria o presidente sobre a investigação em torno do filho. Confirmava-se a revelação de Moro ao deixar o Ministério.

O ministro Alexandre de Moraes, do STF, interrompeu a festança ao suspender a nomeação de Ramagem, interpretando-a (de fato) como tentativa de obstrução de Justiça. O caso era similar à nomeação de Lula da Silva como chefe da Casa Civil da então presidente Dilma, que o STF impediu por ser mera manobra. Ciente de que o plenário do Supremo acataria a liminar de Moraes, de imediato Bolsonaro retrocedeu, anulou a nomeação de Ramagem e o recolocou na Abin, órgão de inteligência subordinado à Presidência.

A posse de André Mendonça no Ministério da Justiça completou-se, em Brasília, num misto de velório, culto religioso e carnaval, com o novo ministro chamando Bolsonaro de “profeta”.

Nessa balbúrdia, enquanto em São Paulo, Manaus e onde for a peste faz improvisar hospitais e cavar sepulturas à espera de doentes ou cadáveres, o Supremo Tribunal julgará o pedido do procurador-geral para investigar o presidente por crimes de falsidade ideológica, coação, prevaricação e obstrução de Justiça, a partir das revelações de Moro. O próprio ex-ministro será investigado por eventual “calúnia” e “crime contra a honra” pelo que disse ao sair.

A realidade substitui, com vantagem, todo comentário ou previsão. Os fatos mostram além da peste.

JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Pergunte ao coronavírus - FERNANDO GABEIRA

ESTADÃO - 01/05

O Brasil politizou o vírus. O governo mergulhou na cegueira ideológica


Num momento de ansiedade e incertezas, multiplicam-se as previsões e os cenários sobre o mundo pós-pandemia. Mas todos esses cenários, creio, dependem da evolução da mesma variável que nos pôs nesta situação tão difícil: o coronavírus.

Uma das minhas referências nas previsões sobre o coronavírus é Bill Gates. Ele dedica parte de sua fortuna ao financiamento de projetos de saúde pública. Precisa ser bem informado, no mínimo, para não jogar dinheiro fora. Em curto artigo sobre as perspectivas, Gates acha que uma vacina eficaz contra o coronavírus estará pronta até 2021. Os caminhos da pesquisa indicam duas direções. Uma delas é a vacina tradicional, que utiliza um vírus desativado. A outra, aproveitando os avanços da genética, poderia informar as células para que bloqueiem o vírus.

Existe uma possibilidade mais rápida, anunciada pelos cientistas de Oxford no jornal The New York Times. Eles acham que conseguem lançar sua vacina ainda em setembro de 2020. Fizeram experiências com seis macacos e foram bem-sucedidos. Pretendem agora experimentá-la em 5 mil pessoas e obter a licença.

Nesse cenário, o mais otimista possível, até o final do ano já estaria em circulação uma vacina eficaz contra o coronavírus. Além de algumas centenas de milhares de mortes, apenas o ano de 2020 estaria perdido.

Outra variável que Gates aborda é a dos remédios. Ele considera ter havido um subinvestimento em pesquisas de remédios antivirais, comparadas com os antibacterianos. Acho que vai se mover nesse campo. Não existe hoje uma bala de prata. Como não existiu na luta contra o HIV-aids, para o qual, finalmente, se chegou a um coquetel de drogas.

Talvez as coisas sejam mais promissoras no campo dos testes. A tendência é que evoluam, possam ser vendidos com mais facilidade e ser usados em casa. Como já o são alguns outros testes, como o de gravidez.

Gates acha que, assim como depois de 1945 foi necessário criar uma instituição internacional para garantir a paz, será também necessária uma organização internacional para combater as pandemias, novos vírus que podem vir tanto de morcegos como de pássaros. Esse desdobramento internacional não é fácil. Uma declaração da ONU de cooperação em torno de vacinas, remédios e testes não foi apoiada por EUA, Brasil e mais 12 países.

Imagino que uma das razões da reserva norte-americana seja o direito de exploração conferido pelas patentes. Suas grandes empresas investem milhões de dólares em pesquisas e, naturalmente, querem receber esse investimento de volta, com os devidos lucros.

Esse foi um grande debate travado também no período da aids, quando se questionou o respeito às patentes numa situação excepcional. O Brasil tinha razões para questionar. Adotou uma lei que garantia o coquetel gratuito aos portadores de HIV e isso custava caro ao País. O ministro da Saúde na época era o hoje senador José Serra. Ele defendeu o que me parece ter sido a posição correta de acordo com o interesse nacional.

Hoje, em plena pandemia de coronavírus e diante de outras que podem vir, o Brasil se distancia da ideia de cooperação internacional para se alinhar com os EUA, que têm interesses bem específicos. A julgar pela posição do chanceler Ernesto Araújo, estamos diante de um “comunavírus”, que tende a acentuar a influência internacional sobre os países, reduzindo sua autonomia.

É um raciocínio que se assemelha às posições do Brasil sobre o esforço internacional para atenuar os efeitos do aquecimento planetário. Assim como é difícil, hoje, prever uma nova situação sem levar em conta a trajetória da covid-19, será muito difícil também excluir a variável ambiental de qualquer cenário futuro.

Ao contrário de países como a Nova Zelândia e a Austrália, o Brasil politizou o vírus. Eles foram bem-sucedidos, assim como, de certa forma, Portugal, onde governo e oposição se uniram diante do inimigo comum.

Num dos primeiros artigos que escrevi sobre o vírus, quando ele estava circunscrito a Wuhan, na China, afirmei que para combatê-lo seria necessária uma visão nacional e solidária. Não foi isso o que aconteceu. Assim como pesou para as civilizações antigas na América ter uma visão mítica sobre os invasores, ou deve pesar no Haiti encarar com o vodu os grandes desastres naturais, o Brasil mergulhou na cegueira ideológica.

Durante muito tempo, discutiu-se se era um vírus comunista destinado a enfraquecer o governo. Da mesma forma, discutiu-se se a cloroquina era ou não um remédio de direita.

O vírus é apenas uma proteína envolvida numa capa de gordura. E a cloroquina, uma substância química usada contra malária e outras doenças.

Portanto, quando se escrever a história dessa peste no Brasil, não se pode apenas culpá-la pelos estragos que fez. O governo digeriu mal a tese da imunização pelo amplo contágio e refugiou-se nela na esperança de tocar a economia.

Se continuar se comportando com o meio ambiente com a mesma cegueira ideológica com que encara o coronavírus, os cenários do futuro, não importa quão sofisticado for o seu desenho, terão de contar com o pano de fundo de uma terra arrasada.

JORNALISTA

O significado do trabalho - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 01/05

Raras vezes foi tão importante refletir sobre o tema. O 1.º de Maio é oportunidade, na emergência da pandemia, para reconhecer o mérito de todos os trabalhadores


Raras vezes, como agora, foi tão importante refletir sobre o trabalho. Incertezas de diversas naturezas afligem os trabalhadores em todo o mundo – as transformações tecnológicas, as novas organizações do trabalho, as mudanças nas relações trabalhistas, além, é claro, da própria crise causada pela covid-19, que forçou a interrupção de muitas atividades e transformou o dia a dia de todos os trabalhadores. Afetado drasticamente pelo presente, o trabalho vê-se envolto também nas grandes incógnitas a respeito de como será o mundo após a pandemia.

A Constituição de 1988 define, entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa. O trabalho é alicerce do Estado porque antes é alicerce da sociedade, da família e do próprio indivíduo. A atividade laboral é muito mais que uma fonte de renda. Ela é expressão e construção da dignidade e da liberdade humana. Privar alguém de seu trabalho é limitar sua autonomia e sua participação na sociedade.

As mulheres sofrem especialmente a privação do trabalho. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a força de trabalho ativa das mulheres no mundo é de 47%, enquanto a dos homens é de 74%. Na América Latina, o nível médio de educação das mulheres é relativamente alto, mas elas recebem salários 17% menores que os homens, porcentual contrastante com o aumento do número de lares sustentados por mulheres.

Antes da crise da covid-19, o País já tinha um enorme desafio, econômico e social, de gerar postos de trabalho. Ao longo do ano passado, o total de desempregados, subempregados e desalentados esteve em torno de 25 milhões de pessoas. Especialmente dramática é a taxa de desemprego crônico. Mais de um quarto dos desempregados procura emprego há mais de dois anos. É a deterioração das condições do mercado de trabalho afetando de forma permanente a parcela mais vulnerável da população.

A pandemia agravou ainda mais o quadro do desemprego, bem como as condições de trabalho. Trabalhadores tiveram a renda ou o salário reduzido, chegando em muitos casos à suspensão do contrato de trabalho. É um horizonte de prejuízos e de incertezas, a afligir todos.

Na retomada após a crise, o desafio de promover o trabalho deve ser prioritário. Não basta diminuir encargos patronais, como às vezes o governo Bolsonaro deu a entender que faria. É preciso ter um diagnóstico amplo sobre o panorama do trabalho no mundo atual, em profunda transição, identificando e atuando nos gargalos, ineficiências e oportunidades – e, de posse desses dados, fazer o complemento consciencioso da reforma trabalhista iniciada no governo Temer.

Cada vez mais, trabalho não é sinônimo de emprego. Não apenas as oportunidades profissionais são diferentes, como também as aspirações das novas gerações em relação à profissão são muito distintas das dos seus pais. Tal cenário exige uma resposta abrangente, que passa necessariamente por melhorar a qualidade do ensino e da formação profissional. É ilusão supor que o País poderá enfrentar a contento os desafios do trabalho do século 21 sem uma profunda melhoria da educação.

O trabalho não deve alimentar uma espécie de casta, que divide e hierarquiza as pessoas por renda, importância ou protagonismo social. Ao contrário, toda atividade profissional – intelectual ou manual, complexa ou simples, que desperta aplausos ou passa despercebida aos olhos da maioria – é âmbito de promoção da dignidade e da autonomia. É no trabalho realizado com seriedade e competência que cada um se desenvolve, aperfeiçoando sua personalidade e fortalecendo os vínculos sociais, e pode oferecer, de forma muito prática, sua melhor contribuição à família e à sociedade. Seja qual for a tarefa, o sentido do trabalho é sempre servir, somar, construir.

O feriado do 1.º de Maio é oportunidade, na emergência da pandemia, para reconhecer o mérito de todos os trabalhadores – os que atuam em atividades essenciais, os que estão trabalhando em casa e também os que estão parados, mas, sobretudo, os que se entregam, nos serviços médicos, à missão de confortar os doentes e salvar vidas.

Presidente desrespeita famílias dos mais de 5 mil mortos pela Covid-19 - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 01/05

Bolsonaro também tem responsabilidade no combate à pandemia do novo coronavírus


Na terça-feira, quando o Brasil registrou 474 mortes em 24 horas e ultrapassou a China em número de baixas pela Covid-19 (5.017 contra 4.643), o presidente Jair Bolsonaro não só se eximiu de responsabilidades como ainda desdenhou das mortes. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.

Ontem, Bolsonaro culpou governadores e prefeitos. Afirmou que, por decisão do STF, estados e prefeituras têm autonomia para determinar medidas de contenção. “Questão de mortes, a gente lamenta as mortes profundamente. Sabia que ia acontecer. Agora, quem tomou todas as medidas restritivas foram governadores e prefeitos”.

Além do inconcebível desrespeito com as famílias de mais de 5 mil brasileiros que perderam suas vidas pelo novo coronavírus — muitos deles sem sequer receber atendimento —, Bolsonaro cometeu equívocos em seus argumentos. Evidentemente, governadores e prefeitos têm responsabilidade. Mas ela é compartilhada com a União.

O que fez Bolsonaro desde que os primeiros casos de Covid-19 foram registrados no país, levando governadores e prefeitos a decretarem o isolamento? Criticou a quarentena, a que já se referiu várias vezes como exagero. Está preocupado com o impacto na economia, que pode afetar seu projeto de reeleição. Sua ação mais visível foi a imprudente troca de Luiz Henrique Mandetta por Nelson Teich, na Saúde, em plena fase de aceleração da epidemia.

O presidente se equivoca também ao culpar as medidas de restrição pelas mortes. O isolamento não é uma invenção brasileira. Foi adotado em praticamente todos os países, em alguns de forma bem mais rigorosa. Não há outra maneira de conter a doença. Se não está dando melhores resultados é devido ao discurso dúbio num país em que governadores e prefeitos falam uma coisa e o presidente diz outra, incentivando a quebra das quarentenas.

Numa fase crítica da epidemia, o ministro Nelson Teich passa a ideia de imobilidade. Precisa apresentar logo o seu plano e resultados, mesmo que prévios, inclusive de medidas em curso, como o rastreamento da doença em todo o país. A sensação de inércia que as entrevistas do Ministério — acertadamente mantidas — têm passado não ajuda a população, e nem o ministro.

Enquanto Bolsonaro prega incessantemente o fim do isolamento, em São Paulo a prefeitura faz bloqueios educativos no trânsito. Caminha-se, de forma correta, para um lockdown. Nada muito diferente de outras metrópoles.

Ainda que Bolsonaro os rejeite, os números contundentes da Covid-19 no Brasil serão inexoravelmente colocados também em sua conta. Não por governadores, prefeitos ou pela imprensa, como diz. Mas pela História.