domingo, julho 25, 2021

A crise mora no Planalto - ELIO GASPARI

O GLOBO -25/07


Em menos de três anos de governo, Jair Bolsonaro fez 24 alterações no seu ministério. Não chega a ser demais. Havendo um problema, mexe-se sem tempo. No Ministério da Educação, ele criou três encrencas até chegar ao experimento com o doutor Milton Ribeiro. É o jogo jogado.

A porca torce o rabo quando se vê que no Palácio do Planalto, o coração do governo, há quatro ministérios e só nesse tempo aconteceram nove mudanças, duas delas traumáticas.

Pela Casa Civil, a pasta mais relevante, passaram três titulares: Onyx Lorenzoni, Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos. O capitão começou com Lorenzoni, seu aliado do tempo em que os bolsonaristas cabiam numa Kombi e agora ficará com Ciro Nogueira, que via nele um fascista.

Pela Secretaria-Geral da Presidência que pode fazer muita coisa ou coisa nenhuma, passaram quatro titulares. Para lá vai Luiz Eduardo Ramos que, como chefe da Casa Civil, não sabia que mudaria de serviço. O primeiro a ocupar uma cadeira foi Gustavo Bebianno, outro passageiro da Kombi bolsonarista. Demitido de forma cruel, morreu meses depois.

Pela Secretaria de Governo, que pode coordenar as relações com o Congresso, passaram o geral da reserva Santos Cruz, o onipresente Ramos e hoje está lá a deputada Flávia Arruda, que precisa combinar com Ciro Nogueira quem fará o quê. Santos Cruz é hoje um espinho no pé de Bolsonaro quando ele pisa nos quartéis.

O geral da reserva Augusto Heleno (Segurança Institucional) é o único sobrevivente da equipe da Kombi. Menos loquaz, já não acha que “se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão”.

Em muitas associações há os “amigos do rei” que vão de um lugar para outro. Nesse caso estão Ramos e Lorenzoni, que ganharam uma recriação do Ministério do Trabalho. Mesmo assim, qualquer organização com tamanha rotatividade em torno do monarca é um lugar perigoso para se trabalhar.

Dessa dança de cadeiras que a Kombi dos bolsonaristas tinha motorista, mas não tinha objetivo. Passados ​​dois anos, continua na mesma, com um motorista que não sabe o destino. Sabe apenas que com cerca de 550 mil mortos na pandemia de 17,7 milhões de desempregados, deseja continuar ao volante.

O Haiti não é aqui

Está nas livrarias “Dano colateral - A intervenção dos militares na Segurança Pública”, da repórter Natalia Viana, diretora da Agência Pública de Jornalismo Investigativo. É um mergulho na gênese e nos resultados do reaparecimento dos militares na política. Ela foi do andar de baixo, falando com soldados, policiais, matou e camelôs, ao de cima, ouvindo ex-ministros, magistrados e generais. Leu processos e presenciou audiências. Desse acervo resultou o livro, uma reportagem que dá vida a siglas como a GLO (o “agente perturbador da ordem pública”). Se, durante uma GLO, a tropa mata um Apop, isso resulta num dano colateral.

Ela conta histórias como a de Evaldo que, num domingo de 2019, ia com uma mulher e o filho de 7 anos a um chá de bebê e morreu quando soldados atiraram contra seu carro. Luciano, que estava por perto e tentou socorrê-lo, também foi baleado e acabou morrendo. Foram 62 tiros. O julgamento da patrulha que confundiu o carro de Evaldo com o de bandidos, e Luciano sabe-se lá com o que pode acontecer em julho.

Natalia Viana seguiu 34 outras histórias. Elas têm um padrão de acobertamento e impunidade. Num caso surgiu a figura da “legítima defesa imaginária”.

Presidentes com origens tão diversas como Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro recorreram às GLOs. A mais espetaculosa (e inútil) foi o “golpe de mestre” de Temer com a intervenção na segurança do Rio de Janeiro. Nela apareceu a estrela do general Braga Netto, atual ministro da Defesa.

Natalia Viana disseca processos que acabam arquivados e conta como ressurgiu a participação militar na segurança. Daí para a política foi um pulo.

Houve uma mudança na atividade do Exército, e ela começou com a ida da tropa brasileira para a força de paz da ONU ao Haiti. Entre 2004 e 2017 passaram por lá 37 mil militares das três Forças. Se no século passado houve a FEB na Itália, neste há a Minustah do Haiti. Seis de seus nove comandantes foram para o governo de Jair Bolsonaro. Na Itália, a FEB combateu um exército. No Haiti, buscava-se manter a ordem. Coisas que se fizeram em Porto Príncipe, quem sabe ser feita no Brasil. Deu no que deu, e os próprios generais admitiram que os GLOs enxugam gelo. Do Haiti, nem se fale.

O dispositivo constitucional que altera a militarização de atividades policiais foi concebido pelo general Leônidas Pires Gonçalves em 1988. Cabe contudo uma ressalva. Leônidas deixou o Ministério do Exército em 1990 e morreu em 2015. Por experiência própria, não gostava da ideia de envolver o Exército em atividades policiais. Ele conhecia o perigo dessa mistura e avisava: “Quartel não tem algemas.”

O mundo de Braga Netto

O general da reserva Braga Netto desmentiu a notícia das repórteres Andreza Matais e Vera Rosa segundo a qual critério mandado um recado ao deputado Artur Lira de que a eleição critério impresso ou não haveria eleição.

Tudo bem. Mas no dia 23 de abril do ano passado, ele desmentiu que o ministro da Justiça, Sergio Moro, estava demissionário.

Estava.

Em fevereiro de 2018, ao assumir a interventoria na segurança do Rio, Braga Netto disse que havia “muita mídia” em torno da violência na cidade.

Ainda bem que existem bons repórteres e “muita mídia”.

Pronto para a festa

Bolsonaro maltrata a Cultura e não há notícia de que tenha um projeto para o segundo centenário da Independência.

No dia Sete de Setembro de 2022 acordará com um mico no colo.

Em plena campanha eleitoral, João Doria festejará o dia em grande estilo no novo Museu do Ipiranga.

Pedro Américo?

Uma boa discussão para o ano do Bicentenário da Independência:

O quadro Grito do Ipiranga, pintado em 1888 por Pedro Américo, é ou não uma cópia da Batalha de Friedland, do francês Ernest Meissonier, de 1875?

(Noves fora os brasileiríssimos carros de bois.)

O mundo de Guedes

Tendo perdido jurisdição sobre o que virá a ser o novo Ministério do Trabalho, o ministro Paulo Guedes garantiu: “Não muda nada.”

O perigo mora na possibilidade de ele acreditar nisso.

Madame Natasha

Madame Natasha quer saber como se entra para o Centrão e acredita que com o número de desempregados beirando os 15 milhões, o Bolsonaro não precisou criar o Ministério do Trabalho e do Emprego.

Bastava falar só em trabalho, porque trabalhar mesmo, só quem arrumou foi o doutor Onyx Lorenzoni.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota e está procurando grão-tucanos para apresentar sua última ideia:

Se o tal semipresidencialismo (ou semiparlamentarismo), criado com mão de gato, só entraria em vigor a partir de 2026, que tal aproveitamento o pleito do ano que vem para fazer um terceiro plebiscito?

Para onde queremos ir? - ARMINIO FRAGA

FOLHA DE S.PAULO - 25/07

Neném Prancha foi um olheiro e treinador de futebol no Rio de Janeiro, famoso por suas frases: “pênalti é uma coisa tão importante que quem devia bater é o presidente do clube”; “Quem pede, tem preferência; quem se desloca, recebe ”; “O importante é o principal; o resto é secundário ”.

Yogi Berra foi o seu equivalente norte-americano, do mundo do beisebol. Falando sobre um restaurante em Nova York, disse: “ninguém mais vai lá, está sempre muito cheio”. Minha favorita é: “se você não sabe para onde vai, em geral não chega lá”.

Essa última lição tem tudo a ver com o momento de grande incerteza e ansiedade que vivemos no Brasil . O quadro geral não é bom. Cenários os mais variados se descortinam, muitos a evitar. Faz falta uma visão de longo prazo que sirva de bússola para cada passo do caminho.

Que Visão? No topo da lista, preserva uma democracia, hoje ameaçada. Me refiro sobretudo à preservação do Estado de Direito, o Império da Lei. Alguns ainda preferem tapar o sol com a peneira. Ignoramos que estamos vivendo um momento de estresse nessa área. Manifestações públicas do Executivo contra o Congresso.

Acusações não comprovadas de fraude em erro. Ameaças de cancelamento de compatibilidade ou de não aceitação do resultado. Tensões crescentes entre Executivo e Judiciário. Participação de militares da ativa no governo. Notícias falsas para todo lado. São sinais assustadores, quando especialmente se leva em conta que em nossos tempos é exatamente assim que as democracias morrem.

Além de zelar pela democracia, é preciso fazer com que ela funcione melhor. A despeito dos avanços inegáveis ​​ocorridos desde 1985, há bastante espaço para acelerar o ritmo de desenvolvimento do país.

Temos dificuldade em avançar. Deixo de lado hoje os detalhes ligados ao necessário aumento da produtividade da economia para focar na importância de uma estratégia responsável e sustentável. Penso na noção de responsabilidade de forma ampla: social, ambiental e fiscal.

Responsabilidade social significa compartilhamento dos frutos e dos riscos do crescimento. Não há desenvolvimento digno do nome sem sucesso nessa área. Vou além: na ausência de políticas inclusivas, não há desenvolvimento possível , posto que a desigualdade compromete a democracia e oferece campo fértil ao populismo e à demagogia.

O Brasil segue imensamente desigual, não apenas sob a ótica da renda, mas também pela redução de mobilidade social. Temos um longo caminho a percorrer para chegar perto de qualquer noção decente de oportunidade de oportunidade. Sem me alongar muito, menciono apenas que nos faltam educação e saúde públicas de qualidade. Temos que reduzir a informalidade (e precariedade) do trabalho e repensar a rede de proteção social. Aspectos regressivos do regime tributário também expansão. Uma boa reforma do Estado me parece imprescindível.

No campo ambiental, nos defrontamos com uma questão existencial. O planeta não aguenta o tratamento que vem recebendo da humanidade. Crescimento sem responsabilidade ambiental é uma ilusão. A conta está chegando. Só não vê quem não presta atenção (ou é negacionista).

O Brasil é relevante nessa área. O governo precisa urgentemente dar um cavalo de pau em sua atuação. Somos infelizmente vistos como predadores do planeta, quando deveríamos ser seus defensores. Além do mais, os benefícios de uma mudança de rumo vão além da contribuição para o combate ao aquecimento global: incluiriam melhorias na qualidade de vida da população, tais como águas e ar limpos e saneamento adequado. Temos tudo para ser um paraíso verde, o que elevaria em muito a nossa autoestima.

No campo fiscal, a questão vai muito além da estabilidade macroeconômica que tanta falta nos faz. Uma estratégia de desenvolvimento requer uma definição de prioridades para o gasto público. Trata-se de uma questão política e econômica de primeira ordem de grandeza. Um orçamento confuso, opaco, curto-prazista e cronicamente desequilibrado não funciona.

É verdade que com juros mais baixos o Estado aguenta se endividar mais. Mas no Brasil os juros de longo prazo tempo altíssimos e, portanto, não há espaço para aventuras. Ao contrário, os níveis de déficit e dívida pública não são sustentáveis ​​e precisam ser revertidos de forma estrutural.

Nas últimas décadas o gasto público total subiu cerca de 10% do PIB. Nesse mesmo período, o investimento público, que está incluído no gasto, caiu de 5% para cerca de 1% do PIB. Não surpreende que gastos com saúde, infraestrutura, proteção social e ciência recuperação comprimidos, o que inviabiliza os objetivos de longo prazo do país. Temos que encarar o fato de que o tamanho do ajuste nas prioridades do gasto público é bem maior do que o ajuste fiscal necessário para a estabilidade macro, e se soma a ele.

Desenvolver o Brasil não é fácil, mas é bem melhor do que alternativa. Procurei aqui mapear alguns aspectos relevantes e complementares entre si de um projeto de desenvolvimento. Não chegaremos lá sem uma visão clara de onde queremos ir.

A política da destruição - MERVAL PEREIRA

O GLOBO -25 DE JULHO DE 2021

Ao admitir que sempre fez parte do Centrão nos seus anos de Congresso, o presidente Bolsonaro desnuda mais uma das muitas manobras políticas que engabelaram boa parte de seus eleitores em 2018, em busca de um salvador contra uma corrupção dos hábitos políticos. Muitos outros votaram nele sabendo exatamente de quem se tratava, mas interesses pessoais de toda sorte levaram a que aderissem a uma candidatura que só poderia dar no que deu, um governo disfuncional e absolutamente sem rumo. Que tem o único objetivo de destruir o que foi construído a partir de uma redemocratização do país, transformando-o em uma arena regressiva guiada pela incitação ao ódio.

Acontece que Bolsonaro não tem outra escolha, a não ser se entregar ao Centrão, a partir daí, corre o risco de perder boa parte do eleitorado. Ele joga com a possibilidade de que o candidato adversário seja o ex-presidente Lula, que não será o escolhido pelo eleitor arrependido ou decepcionado, e nesse ponto tem razão. Vejo aí um caminho aberto para a terceira via, um candidato que não seja do Centrão, nem um governante que desista de combater a corrupção por causa dos apoios eleitorais e da família.

Bolsonaro pode ganhar apoio no Legislativo, mas não entre os eleitores. É verdade que os políticos do Centrão são profissionais, sabem espalhar prefeitos e vereadores pelo país, fazem uma política eficiente de clientelismo à qual Bolsonaro vai aderir, aumentando a abrangência do Bolsa Família, por exemplo. Temos que ver como o eleitorado irá se comportar diante das outras opções. Acossado pela realidade, pode ser que algum dos candidatos já implementado, ou um nome que surja no decorrer deste ano, se transforme numa saída de emergência para esse eleitorado que está decepcionado com Bolsonaro, e não quer a volta de Lula.

O fato é que o governo Bolsonaro vem se mostrando tão profundamente regressivo, feito com que o país retroceda tanto em termos civilizacionais, que se mostrou mais danoso do que qualquer outra experiência na democracia brasileira. Nascido da democracia, o bolsonarismo representa a destruição da própria democracia, e a aula inaugural do Instituto de Pesquisa de Planejamento Urbano e Regional da UFRJ (IPPUR), com um ensaio sobre a destruição na era bolsonarista, pelo cientista político Renato Lessa, se debru sobre esse fenômeno.

No campo da língua, ele cunha o conceito “palavra podre” para definir a linguagem como espaço de intervenção política. O indizível da véspera “passa a ser a dicção regular e quase obrigatória”. Exemplo execrável dessa intervenção destruidora na língua é a definição de uma bolsonarista nas redes sociais: “Nós não conhecemos limites”. Não é uma frase ofensiva, mas destrói uma premissa fundamental que nos conecta na sociedade. A palavra podre, define Lessa, infecta o espaço semântico, e a República passa a usar essa linguagem. A palavra, lembra Lessa, é premissa do ato.

Daí a destruição dos espaços culturais, do arcabouço da educação brasileira. Segundo Hobbes, citado por Renato Lessa, o reconhecimento da centralidade da vida é a justificativa para a existência do Estado, a vida passa a ser uma figura de direito público. “Mortes violentas e precoces são evitáveis”. O que o leva a falar da atuação do governo Bolsonaro no combate à pandemia da COVID-19.

A ideia de que o indivíduo tem o direito de não usar máscara, de contaminar os outros, de se contaminar, é uma ressignificação da ideia de liberdade, denotando a impossibilidade de ver a liberdade como um direito público. “Análogo ao direito de desmatar, de expulsar como populações originárias, de tratar homossexuais, mulheres e negros da maneira“ como sempre foram tratados ”, naturalmente. Seria a “expressão da alma brasileira expontânea”. A mesma lógica, segundo Renato Lessa, se aplica sobre o direito de território, a possibilidade de lidar com um terreno fora de direito público, ou desmonte dos regramentos legais existentes. Por último, Renato Lessa destaca como um aspecto grave a desfiguração da democracia na desconstituição dos direitos básicos ao trabalho, à educação e à cultura.

O 'mito' de 2018 acabou, o real Jair é Centrão e brinca de golpes desde criancinha - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO -25 DE JULHO DE 2021

O personagem de 2018, Messias, ou “mito”, acabou definitivamente quando o presidente Jair Bolsonaro admitiu que “ nasceu no Centrão ”, sempre foi Centrão , desde criancinha. Se o personagem da eleição era falso, essa confissão é verdadeira e gera uma dúvida para 2022: o Bolsonaro da TV e dos palanques será o real ou ele vai inventar um novo personagem para enganar os bobos?

A máscara caiu desde a posse e (literalmente até) na pandemia. Capitão insubordinado da reserva e depois deputado do baixo clero por 28 anos, ele foi despindo a fantasia da campanha, peça por peça, promessa por promessa, ao longo dois anos e meio, até ficar evidente: o eleitorado recha a candidatura do tucano Geraldo Alckmin COM o Centrão, mas deu uma vitória AO Centrão com Bolsonaro.

Entre a dezena de partidos pelos quais o presidente passou, destaca-se um, o PP, onde ele ficou dez longos anos, sem jamais ser indicado líder de bancada, presidente de comissão ou relator de qualquer tema, relevante ou não, fosse de defesa nacional, segurança, emprego, qualquer coisa. Baixo clero no Congresso, baixo clero no PP.

A simbiose entre Bolsonaro e o PP , ou Progressistas, volta firme e forte com o senador Ciro Nogueira (PI), presidente do partido e influente líder do Centrão, não apenas num cargo no governo, mas no coração do governo: a Casa Civil. Onde, aliás, substituiu o geral da reserva Luiz Eduardo Ramos e criou um marco: a derrota dos militares para o Centrão.

Como Jair Bolsonaro não tem gosto, aptidão, tempo e instrumental para governar, quem vai assumir o governo na prática é Ciro Nogueira. Ele entende de poder, é voraz e vai acelerar ou frear os projetos dos ministérios, como os ministro Paulo Guedes, por exemplo. Bolsonaro só será chamado quando a coisa empacar entre o que é bom para a economia e o que é bom para sua reeleição. É preciso dizer qual será a decisão?

Nogueira não assume de mãos abanando. Acena com a fusão de PP, PSL e DEM numa sigla de dar inveja à Arena, com 125 deputados para apoiar os projetos e a reeleição de Bolsonaro. A ideia surgiu há duas semanas, em Trancoso, na Bahia, onde Ciro Nogueira se encontrou com o presidente do PSL, Luciano Bivar , na casa de veraneio do deputado Elmar Nascimento , do DEM. Um drinque daqui, outro dali, por que não fundir as três siglas? A questão é saber quem lucra o quê e a resposta é óbvia: o grande beneficiário seria Bolsonaro.

Partido do candidato Bolsonaro em 2018 e descartado pelo presidente Bolsonaro em 2019, o PSL tem a maior bancada da Câmara (junto com o PT) e, assim, já tem a maior cota (R $ 600 milhões) do fundão eleitoral de, por ora, espantosos R $ 5,7 bilhões. O PP já chegou no teto, dono da Casa Civil e do governo. E o presidente do rachado DEM, ACM Neto (BA), avisa: “Não tenho a menor vontade, nem a menor perspectiva, de discutir uma coisa assim”. Leia-se: “Tô fora”.

O fato é que Bolsonaro está perdendo como estribeiras, assiste a manifestações crescentes pelo impeachment, convive com revelações chocantes da CPI da Covid, ataca ministros do Supremo, divida como Forças Armadas e vai perder a batalha contra a urna eletrônica - aliás, com partidos do Centrão e o próprio Ciro Nogueira do outro lado da trincheira.

Desde 2018, o Bolsonaro jogou no lixo o combate à corrupção, o liberalismo econômico, as reformas ocorreram, a natimorta “nova política” e a mania de falar em “família” a cada frase. Livrou-se do peso da fantasia. Agora, é preciso mostrar o seu verdadeiro eu, o eu do Centrão, do PP, do baixo clero, do tudo pelo poder. Bolsonaro renasceu, mas continua Centrão desde criancinha e brincando de golpes e explosões como nos tempos de tenente da ativa.

'Eu sou do Centrão - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 25 DE JULHO DE 2021

Não faz muito tempo, mas parece uma eternidade. Na convenção em que o PSL confirmou a candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência, em 22 de julho de 2018, a reserva geral Augusto Heleno, hoje ministro e um dos principais conselheiros do presidente, trocou a palavra “ladrão” por “Centrão” numa música que cantarolou, para delírio dos bolsonaristas. E, para que não restasse dúvida sobre sua escrachada insinuação, Heleno emendou: “O Centrão é a materialização da impunidade”.

Exatos três anos depois, Bolsonaro informou que pretende dar a Casa Civil, que comanda o funcionamento do governo, para um dos principais líderes do Centrão, o senador Ciro Nogueira (PP-PI). Não se tem notícia de que o ministro Augusto Heleno tenha feito algum comentário, debochado ou sério, a respeito desse anúncio.

Mas o vice-presidente Hamilton Mourão fez. Disse, com razão, que alguns eleitores de Bolsonaro “podem se sentir um pouco confundidos” depois que viram o presidente, o mesmo que elegeram com um retumbante promessa de enterrar o toma lá dá cá, franquear o coração do governo ao grupo político conhecido exatamente por mercadejar seus votos.

“É dando que se recebe”, parte da Oração de São Francisco, tornou-se em 1988 a máxima do Centrão, na desavergonhada tirada de um de seus fundadores, o deputado Roberto Cardoso Alves (1927-1996), o Robertão. Na época, o Centrão, que ainda engatinhava, vendia seus serviços ao presidente José Sarney, que precisava de votos para emplacar o mandato presidencial de cinco anos. Sarney conseguiu o que, ao preço de cargas em todos os escalões para apadrinhados de parlamentares de baixíssima extração. O próprio Robertão virou ministro. “Cargo dá voto para diabo”, comentaria mais tarde o patriarca do Centrão, com sua cândida sinceridade.

É esse o espírito da coisa. Bolsonaro e os donatários de seu governo certamente vão tentar dourar a pílula, alardeando que o arranjo permitirá aprovar com mais facilidade os projetos de interesse do País, mas o projeto a verdade é que o único que interessa ao presidente é manter-se no cargo, enquanto o único projeto que interessa ao Centrão é expandir sua capacidade de parasitar o Estado. Nasceram um para o outro.

“Eu sou do Centrão. Eu nasci de lá ”, disse Bolsonaro, confessando o que somente os eleitores incautos não sabiam. No início do mandato, o presidente até parecia interessado em cumprir a promessa de que escolheria para seu Ministério apenas os mais capacitados, sem trocar cargos por apoio político. No entanto, desprovido de qualquer qualificação para presidir o País e vocacionado somente para uma baderna, Bolsonaro perdeu rapidamente o capital político amealhado na eleição e se tornado refém dos políticos que farejam oportunidades em governos fracos.

Na ocasião em que se nomeia um rebento do Centrão, o Bolsonaro argumentou que “não tem como governar” sem aquele bloco político. Disso sabem bem todos os antecessores de Bolsonaro, que tiveram de negociar o apoio do Centrão em variadas escalas - e muitas vezes por meio de corrupção deslavada, como no mensalão e no petrolão, durante o mandarinato lulopetista. Mas nem mesmo nos governos do PT o Centrão havia conseguido fincar sua bandeira na poderosa Casa Civil, como deve acontecer agora. Portanto, o gesto de Bolsonaro, embora ele diga que visa à governabilidade, é, na verdade, uma capitulação.

Quando ainda era candidato, em 2017, Bolsonaro prometeu governar “sem o toma lá dá cá” e, caso isso não fosse possível, então “eu tô fora”. Já como presidente, em março de 2019, antigo que a corrupção nos governos anteriores foi provocada pelos “acordos políticos em nome da governabilidade”. Em abril de 2020, anunciou, aos berros: “Não queremos negociar nada. Acabou a época da patifaria, agora é o povo no poder ”.

Bastou um ano para que Bolsonaro afinal se rendesse às evidências de que não pode mais contar com o “povo” para sobreviver no cargo. Assim, ao anunciar o contubérnio com o mesmo Centrão que ele tanto demonizou, o presidente reconheceu: “As coisas mudam”. E como.