domingo, abril 01, 2012

Os vândalos festejam a Lei da Copa - GUILHERME FIUZA


REVISTA ÉPOCA

Com a bebida liberada, eles poderão encher a cara e se matar mais pertinho de seus times do coração


Ato contínuo ao assassinato de dois torcedores do Palmeiras, em confronto com a torcida do Corinthians, o Parlamento brasileiro acertou a votação da Lei Geral da Copa. Trata-se de um conjunto de normas que permitirão, com jeitinho, a venda de bebidas alcoólicas nos estádios e arredores. Essa prática foi proibida no Brasil por causa de todo o sangue que já correu em torno dos jogos de futebol. É uma ótima notícia para os vândalos: eles poderão encher a cara e se matar mais pertinho de seus times do coração.

O problema é que a liberação alcoólica só vale para o período da Copa do Mundo. Em vez de trucidar palmeirenses ou corintianos, os boçais terão de se contentar com os argentinos. Melhor do que nada. Chato vai ser a ressaca depois da Copa. Como dizer aos beberrões que o sonho acabou e que a liberação do porre foi só um soluço da lei?

Dá-se um jeito. Remendos morais são o forte desse povo cheio de ginga. Quem sabe até esse habeas corpus trôpego firme jurisprudência e a tecnologia da Copa seja exportada para o Carnaval. Para não constranger a venda de cerveja, não haveria blitz de Lei Seca nos dias de folia. Trânsito livre para a alegria, as trombadas e os sopapos. O técnico da Seleção Brasileira, que acaba de perder a carteira de habilitação por se recusar a soprar o bafômetro, já não teria o que temer. Com a anistia alcoólica nas ruas e nos estádios, Mano Menezes poderia dirigir seu carro e a Seleção com a mesma calibragem - o que talvez até tirasse seu time do marasmo.

Há quem considere a proibição de bebidas nos estádios uma medida discutível. Indiscutível é a vocação cômica de um país que transforma isso em lei, em nome da segurança dos cidadãos - e depois resolve dar a essa lei umas férias de 30 dias. E a segurança dos cidadãos? Sairá de férias também, é o jeito.

O acordo para votar a Lei da Copa foi regido pelo presidente da República, Marco Maia. Aproveitando que Dilma Rousseff levara o consultor Fernando Pimentel e mais um exército de companheiros para uma volta na Índia, na ausência do vice, o petista gaúcho sentou-se na cadeira da chefe disposto a arrumar a casa. E futebol é sua especialidade. Como presidente da Câmara dos Deputados, a primeira medida de Marco Maia foi convidar o deputado Romário para uma missão na Espanha: assistir ao clássico Barcelona e Real Madrid. Um homem que sabe para que serve o poder.

Quis o destino que o mandato de Marco Maia como presidente do Brasil coincidisse com a guerra fatídica entre corintianos e palmeirenses. Momento propício para o acordo histórico que afrouxará as regras de segurança em torno do futebol. Mas esse acordo não saiu de graça. Em troca da licença para beber, foi oferecida a licença para desmatar. É o primeiro país do mundo onde a base para a Lei da Copa será o código florestal. O time dos ruralistas pôs a bola debaixo do braço e avisou que só devolvia se sua anistia passasse com a dos bêbados.

Aliviar multas de desmatadores e ampliar sua área de ação é, portanto, um dos requisitos para a Copa no Brasil. Com otimismo, sempre se encontra uma lógica: todo pasto é, potencialmente, um campo de futebol.

O novo código florestal é cheio de controvérsias, tem até defensores respeitáveis. A única certeza é que ecologistas do mundo inteiro o abominam. E ele será aprovado às vésperas da conferência de meio ambiente no Brasil (Rio+20). É muita esperteza. De positivo, essa polêmica pode ao menos ajudar a preservar outra selva - a das obras obscuras da Copa.

São muitas, mas nenhuma há de roubar a supremacia do Itaquerão. Qualquer acordo é brinquedo perto desse empreendimento mágico. De uma só tacada, jogou para escanteio o Morumbi (e um pedaço da história do futebol brasileiro), arrancando quase R$ 900 milhões dos cofres públicos para erguer um estádio novinho em folha. Uma tabelinha mortal de Lula, Ricardo Teixeira, Ronaldo Fenômeno, uma empreiteira e um testa de ferro do Corinthians, time de coração do ex-presidente e futuro dono do pedaço. A última notícia é que os sócios estão pegando um vale de R$ 300 milhões no Banco do Brasil para desenguiçar a obra.

Viva a anistia alcoólica! Ver abertura de Copa do Mundo no Itaquerão, só mesmo bêbado.

O Brasil das commodities - ALBERTO CARLOS ALMEIDA


REVISTA ÉPOCA

Dilma acaba de ir à Índia. Nossa presidente governa pouco mais de 190 milhões de habitantes. O governador de Uttar Pradesh, o mais populoso Estado indiano, governa mais gente: 200 milhões. Essa singela comparação nos fornece uma pequena noção de quão pequenos somos diante da população da Ásia. A Índia tem pouco mais de 1,2 bilhão de habitantes. A China tem 100 milhões a mais. O Brasil, se ficasse na Ásia, teria somente 5,4% da população dos dez maiores países daquela região. Somos muito pequenininhos diante daquele mundaréu de gente.

Até há bem pouco tempo, chineses e indianos consumiam pouco. Eles, como nós, vêm melhorando suas condições de vida. Os investimentos em educação podem ser maiores ou menores dependendo do país, mas é fato que todos investem e melhoram o nível de escolaridade de suas populações. Resultado: cresce a produtividade e aumenta a riqueza bruta e per capita. Índia e China vêm gradativamente se urbanizando. A regra geral é que as populações urbanas ocupam empregos melhores e consomem mais que as populações rurais. O crescimento da classe C não é, portanto, um fenômeno exclusivamente brasileiro. É chinês e indiano também.

Melhorar de vida significa, entre outras coisas, deixar de ser submetido à humilhação do transporte público. Por volta dos anos 1930, a classe C emergiu nos Estados Unidos. E o país engarrafou completamente. Foi naquele período que a posse de automóvel atingiu quase toda a população. E foi em resposta a essa experiência traumática que eles construíram, a partir dos anos 1940, sua malha de rodovias e mudaram sua maneira de morar, passando a residir nos subúrbios. No Brasil, somente 40% da população adulta tem automóvel (e já estamos bastante engarrafados). Haverá o dia em que todos, ou praticamente todos, terão. Brasileiros, indianos e chineses querem ter seu carrinho. Isso não é, nem pode ser, um direito exclusivo de uma pequena elite que já o tem.

Toda vez que a classe A não consegue se colocar na posição de quem nada tinha e está entrando agora no mercado consu-midor de massa, ela deixa de entender esse tipo de oportunidade. No Brasil, praticamente a totalidade das pessoas que per-tencem às classes A e B tem automóvel, novo ou usado. Na classe C, somente 25% da população adulta tem carro, uma pro-porção irrisória, perto de 5%, foi capaz de adquirir um carro zero.

Quando os indivíduos melhoram de vida, também passam a consumir mais alimentos. No Brasil, há vários depoimentos de famílias que, recém-chegadas à classe C, melhoraram muito de vida durante o governo Lula. O principal símbolo dessa ascensão é uma mudança física na família. Todos deixam de ser magros e alguns se tornam gordinhos. Ilude-se quem acha que o mesmo não ocorre na Ásia. Só que, lá, o volume é imensamente maior do que aqui. Eis aí uma grande oportunidade que se abriu para o Brasil: exportador de alimentos - commodities agrícolas - para os asiáticos.

Um dos grandes debates do momento é a desindustrialização do Brasil e o que o governo deve fazer para detê-la. Podería-mos adicionar a esse debate outra questão: o que o governo poderia fazer para dinamizar ainda mais nossa capacidade de abastecer Índia, China e seus vizinhos de commodities? Desindustrializar resulta em perda de empregos. Exportar mais e mais commodities resulta em criação de empregos.

Os críticos devem esquecer o argumento falacioso de que a indústria gera mais empregos do que os serviços e a agricultura. Há hoje inúmeras fábricas com um número irrisório de operários. A grande maioria já foi substituída há muito tempo por robôs. Lula não teria atualmente o público numeroso que teve em seus comícios na época das greves do ABC paulista. Em compensação, os alimentos que exportamos são produzidos graças a um enorme investimento em pesquisa e desenvolvi-mento tecnológico. Isso acaba por gerar muitos empregos de qualidade em outros segmentos da economia.

Não faz sentido produzir bens manufaturados no Brasil para exportá-los aos mais de 3,5 bilhões de asiáticos. É evidente que, se eles produzirem por lá, terão ganhos de escala que aqui jamais alcançaremos, a não ser que tenhamos a proteção do governo à custa da maioria dos consumidores.

Igualmente importante: para ter indústria exportadora, é preciso ter poupança. Os pobrezinhos da Índia poupam 35% do PIB, enquanto os chineses atingem a espantosa marca de 50% do PIB. Nós, brasileiros, poupamos algo em torno de 17%, muito pouco para viabilizar a existência de uma indústria exportadora pujante.

É compreensível que uma geração formada nos anos 1950 e 1960 esteja ainda apegada à ideia de que o Brasil precisa de uma indústria exportadora para ser uma potência mundial. Essa geração foi testemunha dos anos JK e da implantação da indústria automobilística no Brasil. Viu o período áureo de nossa urbanização e os empregos industriais típicos desse processo. Isso é passado. O futuro é o aumento da demanda por commodities na Ásia. Temos tudo para aproveitar essa oportunidade. Podemos ser o Uttar Pradesh das commodities: um Estado da Índia (na América do Sul) que enriqueça graças a sua capacidade de abaste-cer os mais de 3 bilhões de novos consumidores asiáticos.

Não custa lembrar que teremos todos de lidar com a possibilidade de catástrofes ambientais e ecológicas, resultado do aumento do consumo. Que o Brasil seja o celeiro do mundo é o que todos queremos. Tudo leva a crer que dependemos da preservação da Amazônia para que isso se torne realidade. Há estudos sólidos mostrando que o regime de chuvas que sustenta a agricultura do nosso país em muito depende da umidade gerada pela Amazônia e levada de lá para o Sudeste e o Sul por meio dos "rios voadores".

A mesma perspectiva racional e ponderada nos conduz ao caminho de nação exportadora de commodities. O Brasil tem a chan-ce de aprender com os erros de outras nações. Montesquieu chamou a atenção, com uma metáfora perfeita, para a diferença entre a civilidade e a selvageria: o não civilizado, quando quer colher um fruto da árvore, a derruba.

Pesca em águas turvas - EDITORIAL O ESTADÃO


O Estado de S.Paulo - 01/04/12


Bem que o então presidente Lula avisou: "O que o PT fez, do ponto de vista eleitoral, é o que é feito no Brasil sistematicamente". À época, em meados de 2005, ele falava do caixa 2 dos partidos e seus candidatos. Tratava-se de uma marota tentativa de calar a denúncia do mensalão, reduzindo o escândalo sem precedentes da compra sistemática de votos de deputados em benefício do seu governo ao que seria o pecadilho - amplamente difundido - do recebimento e dispêndio de "recursos não contabilizados" para ganhar eleições, conforme o eufemismo do memorável tesoureiro petista Delúbio Soares.

Mas não será por falta de empenho de sua gente que o álibi confeccionado por Lula há quase sete anos perderá atualidade. Que o digam, por exemplo, os seus companheiros de Santa Catarina. E que o diga a ministra de Relações Institucionais, Ideli Salvati, alçada pela presidente Dilma ao cargo de coordenadora política do Planalto depois de ocupar, entre janeiro e junho do ano passado, o semiclandestino Ministério da Pesca - como parco prêmio de consolação por ter perdido a disputa pelo governo do Estado, em outubro de 2010. Em recursos contabilizados, o PT estadual bancou 81% dos R$ 3,6 milhões que a campanha custou. No meio do caminho, o partido recebeu uma doação de R$ 150 mil.

Aí que a história começa a ficar parecida com tantas outras que fazem parte dos usos e costumes políticos do País - com a suposta diferença de que o PT "tem na ética uma de suas marcas mais extraordinárias", nas palavras de Lula para exorcizar o mensalão. Entre 2009 e 2010, sendo o titular da Pesca o também catarinense Altemir Gregolin, a pasta encomendou a uma empresa local, Intech Boating, um total de 28 lanchas-patrulha, ao custo de R$ 31 milhões. Nesse meio tempo, o sócio majoritário da Intech, o paulista José Antonio Galízio Neto, de longa data filiado ao PT, recebeu o irrecusável convite de doar os referidos R$ 150 mil ao comitê financeiro do partido - o que aceitou prazerosamente.

"Não achei nada demais", disse Galízio ao Estado, "porque no governo para quem eu estava trabalhando, faturando naquele momento R$ 23 milhões, R$ 24 milhões, não havia (sic) nenhum tipo de irregularidade." No entanto, como quem quer que o interlocutor confunda popa com proa, ele ora afirmou que "a solicitação de doação veio pelo Ministério da Pesca, é obvio", ora que veio de um político local, que estaria querendo "se aproveitar do negócio" e cujo nome ele se recusou a dar. "Com a insistência, falei: 'tudo bem, vou fazer a doação para o partido'." Seria o toma lá dá cá das enlameadas relações entre a área pública enfeudada pelos partidos e os seus fornecedores, não fossem alguns agravantes.

Primeiro, o Ministério não tinha nada que comprar lanchas para coibir a pesca irregular, simplesmente porque isso ainda não fazia parte de suas atribuições. Segundo, a pasta não foi capaz de encontrar nem serventia nem abrigo para a flotilha. Tanto que 23 das 28 embarcações ficaram no estaleiro dos próprios fornecedores. "O Ministério me deve quase R$ 400 mil porque fiquei guardando os barcos, limpos e funcionando", reclama Galízio. Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) comprovou a enormidade. Em terceiro lugar, a investigação apontou indícios de superfaturamento e licitação dirigida. Sintomaticamente, no último dia de seu mandato, em 2010, o ministro Gregolin encomendou à Intech mais cinco lanchas, embora não soubesse o que fazer com as outras.

Dificilmente a ministra Ideli Salvatti conseguirá navegar politicamente ao largo do escândalo. Se é verdade que não era ela quem conduzia o momentoso Ministério da Pesca, é verdade também que ela não ficou alheia ao arrastão do dinheiro público na pasta. Com bons motivos, decerto, ela aparece no centro da foto da assinatura de uma compra das inúteis lanchas-patrulha - bem no ano em que tentou se eleger governadora de Santa Catarina e pouco antes de substituir o companheiro Gregolin.

Já ao partido só resta agarrar-se à boia lançada por Lula em 2005: "Não é por causa do erro de um dirigente ou de outro que você pode dizer que o PT está envolvido em corrupção".

Corrupção na Saúde é sistêmica - EDITORIAL O GLOBO


O GLOBO - 01/04/12

Vistos só pelos números, os índices de atendimento médico pelo SUS em São Francisco de Itabapoana indicariam que o pequeno município do Norte Fluminense, penúltimo no ranking do IDH do Estado do Rio, estaria promovendo uma revolução no seu sistema de saúde. Com uma população de 41 mil habitantes, a prefeitura chegou a apresentar ao Ministério da Saúde planilhas registrando a realização de 40 mil exames mensais de rotina (sangue e urina) - quase 100% da população, percentual superior, por exemplo, ao de campanhas de vacinação.

Mas, dissecados pela Polícia Federal, os supostos indicadores de primeiro mundo revelaram-se o resultado de uma sangria de verbas públicas. Em vez de curar doenças, repasses do governo federal, através do SUS, engordavam contas privadas. A drenagem era comandada, segundo a PF, pelo prefeito Beto Azevedo, preso sob acusação de chefiar uma quadrilha que, desde 2009, embolsou R$ 3 milhões.

A malversação de verbas do SUS não é exclusividade de São Francisco de Itabapoana. O episódio no pequeno município fluminense segue um protocolo de ações criminosas. Nele, o programa de saúde pública do país torna-se refém de quadrilhas organizadas para tirar proveito da frouxidão dos mecanismos oficiais de fiscalização dos repasses de verbas e de gerenciamento da aplicação do dinheiro repassado aos parceiros (estados e municípios) da União.

Levantamento do governo federal mostra que, entre 2002 e 2011, a Saúde perdeu um orçamento paralelo de R$ 2,3 bilhões, dinheiro que escorreu para bolsos privados por dutos que nutrem a corrupção. De acordo com dados do Tribunal de Contas da União, o setor responde por um terço dos recursos federais que, no período, se perderam pelos desvãos de negociatas arranjadas por agentes públicos, maus empresários e atravessadores de influência para drenar dinheiro do Erário. Pior: o valor estimado da roubalheira corresponde apenas a processos sobre fraudes identificadas pelo Ministério da Saúde. Num sistema que não prima pelo zelo no controle de repasses, é de se imaginar a extensão real da sangria.

O próprio sistema, pela dimensão e falta de estrutura, estimula os desvios. Entre os principais agentes da corrupção no SUS aparecem prefeitos, secretários de Saúde, estaduais e municipais, e clínicas particulares conveniadas. Os bilhões escorrem por tubos marcados por falta - ou no mínimo falhas - de protocolos de defesa contra malversações, por deficiências graves nos processos de controle financeiro, de pessoal e de procedimentos efetivamente realizados (na maioria dos casos comprovados de assalto a verbas da Saúde, registram-se superfaturamento de preços, licitações viciadas e dissonâncias entre serviço prestado à população e prestação de contas ao Ministério da Saúde, como no episódio de Itabapoana).

A questão dos ralos da corrupção e do mau gerenciamento deve pautar qualquer discussão sobre a criação de novas fontes de financiamento para o setor. Por princípio, é simpática a ideia de se destinar mais verbas para cuidar da saúde da população, mas desde que os dutos das fraudes sejam previamente lacrados. Pôr mais dinheiro nesse buraco não resolverá os graves problemas encontrados na ponta do atendimento aos pacientes na rede pública e conveniada. Apenas engordará ainda mais os esquemas que se especializaram em avançar sobre os repasses oficiais.

O senador desce aos infernos - REVISTA VEJA


REVISTA VEJA


Gravações da Polícia Federal, obtidas com exclusividade por VEJA, revelam novas conversas sobre negócios entre Demóstenes Torres e o contraventor Carlos Cachoeira e complicam ainda mais a situação do parlamentar

Rodrigo Rangel


Mesmo no tolerante mundo da política brasileira, certos tipos de relacionamento costumam ser fatais para a reputação de homens públicos. Um congressista usar do cargo para defender interesses privados em troca de benefícios materiais é inaceitável em qualquer ambiente que preze minimamente os valores republicanos. A situação torna-se ainda mais insustentável quando o congressista pilhado nesse tipo de comportamento é, aos olhos do grande público, o mais ardoroso defensor da moral e dos bons costumes. Coloque-se do outro lado da relação promíscua um contraventor acusado de comandar uma máfia especializada em jogos ilegais e negócios suspeitos com o poder, e abrem-se para o congressista os portões dos mais profundos círculos infernais de Dante — os da fraude e da traição. Estrela da oposição, intransigente defensor da ética e crítico ferrenho do comportamento dos colegas, o senador Demóstenes Torres é um político nessas circunstâncias, que só pioram para ele à medida que se revela a natureza de sua relação com o contraventor goiano Carlinhos Cachoeira, que está preso.

Pilhado em uma investigação da Polícia Federal que mapeou os negócios de Cachoeira, Demóstenes Torres viu sua biografia virar pó desde que começou a ser revelada a amplitude de suas relações com o contraventor. Descobriu-se que o senador — que em público tinha um comportamento reto, vigilante — possuía uma conduta bem diferente no ambiente privado. Conforme VEJA revelou em sua edição de 7 de março passado, Demóstenes gozava da intimidade do contraventor, com quem falava em média duas vezes por dia, e dele recebeu de presente uma geladeira e um fogão importados avaliados em 30 000 reais. Amigos de posses podem muito bem se presentear com fogões e geladeiras desse valor. Mas a situação do senador se complicou com a revelação de que entre ele e o contraventor existia mais do que amizade. Existia uma sociedade de interesses mútuos — o contraventor dava presentes e dinheiro; o senador retribuía advogando em favor dos negócios do sócio.

VEJA obteve cópias de áudios gravados pela polícia que evidenciam a natureza da relação comercial entre os dois. Nas gravações, Demóstenes se comporta como sócio de Cachoeira.

DIÁLOGO GRAVADO EM 14 DE ABRIL DE 2011

Demóstenes usa o cargo de senador para ajudar o contraventor Carlinhos Cachoeira, também dono de laboratório farmacêutico, a resolver problemas da empresa na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Demóstenes — Fala, professor!
Cachoeira — Doutor, aquele negócio daquele rapaz do Enio que trabalha na Anvisa, pô. Podia pôr ele com o Wladimir aí pro Wladimir olhar nossas coisas com ele. O tal de Rech (segundo a PF, Norberto Rech, diretor adjunto da Anvisa).

Cai a ligação e em seguida eles voltam a se falar:
Demóstenes — Ô, professor! Tá ouvindo aí?
Cachoeira — Tô ouvindo. Aquele... o Norberto... Você teve com ele ontem pra olhar aqueles trem que eu te pedi?
Demóstenes — Tive com ele e ele me disse o seguinte: ele quer fazer com vocês uma coisa até melhor. É... Quer fazer uma agenda programada. Cê vai pegar tudo o que cê tem que vai ser renovado e já vai começar a tocar agora (...) E o que que eu disse para ele? Que você tem uma possibilidade de montar uma indústria lá em Santa Catarina, certo? Aí alimenta essa esperança no sujeito aí e vai tocando o bonde. Vou falar pra ele receber o Wladimir, falou?
Cachoeira — Aí hoje ele vai com... ele... O Wladimir tá indo lá hoje. Aí o Adriano vai com ele, entendeu? Aí já vê tudo!
Demóstenes — Tá. Eu vou marcar lá. Falou? E te ligo.

Dez minutos depois, o senador retorna o telefonema, já com a resposta. Ao se referir aos interesses do laboratório de Cachoeira, Demóstenes fala na primeira pessoa do plural:

Demóstenes — O Norberto tá esperando os dois lá às 2 da tarde. Eu falei pra ele (...) que a empresa está disposta a montar uma unidade lá em Santa Catarina. Então fala pro Wladimir dar corda nisso aí e depois nós descemos lá em Santa Catarina e falamos com o Enio, falamos com ele. Cê entendeu? Faz um acerto mais amplo. Entendeu?

Cachoeira — Excelente, doutor. Obrigado!


DIÁLOGO GRAVADO EM 11 DE ABRIL DE 2011

Desta vez, é Demóstenes quem procura Cachoeira, interessado em arrumar contratos em Mato Grosso para uma agência de publicidade amiga.

Demóstenes — Mestre, é o seguinte: a gente tem uma agência de publicidade querendo entrar lá no Mato Grosso. Você acha que consegue?
Cachoeira — Quem tem?
Demóstenes — Amigo nosso.
Cachoeira — Pode ser. Vou olhar isso agora. Se for interesse seu...
Demóstenes — Tá licitando para a Copa. Acho que é um negócio bacana.
Cachoeira — Acho que eu consigo. Vou olhar agora.
(...)
Demóstenes — Vou dar uma passada aí então para falar sobre isso, pode?
Cachoeira — Tá bom, tô te esperando.



Cachoeira — No Ibama. Já tá marcado lá. Você podia acompanhar ele lá.
Demóstenes — Ah, tá. Que horas?
Horas depois, a dupla volta a tratar do assunto:

Demóstenes — Tô achando que este trem de Ibama não vai resolver nada pra ele, não. Tô às ordens, mas acho que é melhor ir por cima. Eu tenho acesso bom à ministra.
Cachoeira — À ministra?
Demóstenes — Ministra! A ministra lá do Meio Ambiente. O Ibama é subordinado a ela, uai!
Cachoeira — Agora. Vou falar pra ele te chamar aí. Obrigado aí!

Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal abriu inquérito para investigar Demóstenes. "Meu cliente é vítima de uma investigação ilegal", afirma o advogado do senador, Antonio Carlos de Almeida Castro. A investigação promete causar danos também em outras frentes. Os grampos telefônicos põem na cena da máfia os governos de Brasília, comandado por Agnelo Queiroz (PT), e de Goiás, controlado por Marconi Perillo (PSDB). Em Brasília, as escutas indicam que o grupo tinha acesso ao gabinete de Agnelo. Inclusive para fazer indicações políticas. "Esse documento aí é para botar na mão do Marcelão (...) Ele vai direto no gabinete do governador", diz o araponga Idalberto Matias, o Dadá, um dos capangas de Cachoeira. "São os nomes que a gente quer", afirma.

O governador Agnelo negou a VEJA qualquer relação com a tropa de Cachoeira. Em Goiás, as investigações mostraram que o ponto de contato entre Ca­choei­ra e o governador Marconi Perillo era um ex-vereador de Goiânia. Também lá o contraventor decide nomeações — e diz até que cargos cada indicado vai ocupar e quanto vai ganhar. O governador de Goiás também nega ligação com Cachoeira e diz que combate "toda sorte de crimes e contravenções".

PROGRAMAÇÃO ESPORTIVA NA TV


7h - Mundial de superbike, Etapa da Itália, Bandsports

7h30 - Roma x Novara, Campeonato Italiano, ESPN Brasil e Sportv

9h30 - Newcastle x Liverpool, Campeonato Inglês, ESPN Brasil

10h - Inter de Milão x Genoa, Campeonato Italiano, RedeTV!, ESPN HD e Sportv

10h30 - Hannover x B. M'gladbach, Campeonato Alemão, ESPN

11h30 - Vitesse x AZ, Campeonato Holandês, ESPN Brasil

12h - Tottenham x Swansea, Campeonato Inglês, ESPN HD

12h - Lille x Toulouse, Campeonato Francês, Sportv 2

12h30 - Hoffenheim x Schalke, Campeonato Alemão, Bandsports e Esporte Interativo

13h - Valencia x Levante, Campeonato Espanhol, ESPN

14h - Masters 1.000 de Miami, Tênis (final masc.), Sportv 2 e Sportv HD

15h30 - GP do Alabama, Indy, Bandsports

15h45 - Juventus x Napoli, Campeonato Italiano, ESPN e ESPN HD

16h - Oeste x Corinthians, Campeonato Paulista, Band e Globo (para SP)

16h - Flamengo x Bangu, Estadual do Rio, Band e Globo (menos SP)

18h30 - Ituano x São Paulo, Campeonato Paulista, Sportv

19h20 - Estudiantes x Boca Jrs., Campeonato Argentino, Esporte Interativo

20h - NY Rangers x Boston Bruins, Hóquei, ESPN

GOSTOSA


Bem vindo o Funpresp - SUELY CALDAS


O ESTADÃO - 01/04/12

Com a ajuda da oposição e em votação simbólica, o Senado aprovou, na quarta-feira, a criação do Fundo de Previdência Complementar do Servidor Público Federal (Funpresp), que a presidente Dilma Rousseff tem o maior interesse em sancionar o quanto antes. Agora, quem ingressar no serviço público federal terá sua aposentadoria garantida até um limite de R$ 3,9 mil (o teto do INSS). Acima disso, terá de contribuir com uma quantia mensal para o Funpresp, ao longo de 30 anos.
A contribuição do governo para o fundo foi fixada em 8,5% do salário, mas a do funcionário será de livre escolha: quanto maior, mais elevado será o valor de sua aposentadoria. É um bom negócio para o servidor, como há mais de 30 anos o é para funcionários de estatais que têm fundo de pensão. Se ele escolher contribuir com uma alíquota igual à do governo, de 8,5%, poderá se aposentar com o mesmo salário que recebe na vida ativa.
Para o País, os brasileiros e o governo também é um bom negócio: os R$ 60 bilhões de déficit da previdência pública que hoje pagam aposentadorias caras de servidores ricos poderão ser direcionados para aliviar o drama da população que precisa de saúde, educação, saneamento, habitação, segurança. Mas isso só vai ocorrer em futuro bem distante, entre 2040 e 2050. Até lá o déficit vai até crescer e só a partir de 2030 inicia a trajetória de queda. Isso porque a despesa do governo será duplicada: continuará pagando os benefícios dos atuais inativos e dos que se aposentarem nos próximos 30 anos e ainda vai alimentar o caixa do Funpresp com 8,5% do salário de cada novo funcionário.
Então por que mudar? As futuras gerações agradecem. Mesmo de efeito gradativo e de longo prazo, o Funpresp abre caminho para distribuir verba pública com maior justiça social, já que o crônico e crescente rombo da previdência pública - dobrou, de R$ 29,5 bilhões para R$ 60 bilhões, nos últimos dez anos - se transformou numa perversa forma de concentração de renda no País. Mesmo que o alívio só comece a ser sentido por volta de 2030 e o déficit, eliminado em 2050, é fundamental estancar a sangria, resolver estruturalmente o problema.
Seria possível antecipar esses prazos, se o projeto enviado ao Congresso trouxesse regras de incentivo para os atuais servidores migrarem para o Funpresp. Como ocorreu com fundos de pensão de estatais quando mudaram seus planos de benefício definido para contribuição definida. Mas, como o interesse eleitoral sempre prevalece no governo do PT, a opção foi não criar polêmica com o funcionalismo.
Essa não é a única falha do projeto. Há outra, de responsabilidade da Câmara dos Deputados, que modificou o texto original, tirando a gestão financeira do Funpresp de instituições profissionais e especializadas, transferindo-as para diretores, em geral eleitos por sindicatos ou indicados por partidos políticos. Essa mistura já resultou em muitos negócios fracassados e enormes prejuízos para o patrimônio dos fundos de pensão de estatais. No mundo inteiro, e também no Brasil, empresas estatais e privadas que criaram esses fundos entregam a gestão a profissionais especializados e concentram a ação dos diretores em fiscalizar e cobrar resultados lucrativos. Mas o olho grande dos políticos já mira o Funpresp antes mesmo de ser constituído. Em Brasília, partidos e sindicatos já se engalfinham disputando indicações de filiados para a diretoria.
Os novos servidores que entregarão seu dinheiro para o fundo que fiquem de olhos bem abertos.
Hoje só 2,2 milhões de brasileiros (de empresas estatais e algumas privadas) têm aposentadoria complementada por fundos de pensão. O Funpresp promete engordar a estatística. E seria um bom caminho para equilibrar suas contas se governos estaduais e grandes prefeituras também criassem fundos que os liberassem do compromisso de gastar boa parte do orçamento com o pagamento de aposentadorias. Sobraria mais dinheiro para educação, saúde, saneamento, segurança e governadores e prefeitos ajudariam a construir um Brasil melhor para as próximas gerações.

O legislador e o fora da lei - REVISTA ÉPOCA

REVISTA ÉPOCA


Novos documentos e escutas mostram a intensa troca de favores entre o senador Demóstenes Torres e o bicheiro Carlinhos Cachoeira – da saúde pública às licitações da Copa

MARCELO ROCHA, MURILO RAMOS E ANDREI MEIRELES


Qual é o papel de um líder? Conseguir que outros o sigam. Inspirar seus subordinados por meio de suas próprias ações. Servir de exemplo para as futuras conquistas de um corpo coletivo. O senador Demóstenes Torres, do DEM de Goiás, liderava seu partido no Senado Federal. Suas palavras e atitudes, apoiadas num passado de credibilidade no mundo jurídico e como secretário da Segurança Pública de seu Estado, eram respeitadas na cena política nacional. Não mais. Documentos e escutas telefônicas revelados nas últimas semanas mostram que, em vez de representar seus mais de 2 milhões de eleitores, Demóstenes se concentrou em defender os interesses de um único cidadão brasileiro: o empresário Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira. Demóstenes fez lobby para Cachoeira no Congresso Nacional, na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e na Infraero, empresa responsável pela infraestrutura dos aeroportos do país. Uma transcrição obtida com exclusividade por ÉPOCA mostra que Demóstenes também pedia favores a Cachoeira. Ele queria que o bicheiro, influente no Centro-Oeste, ajudasse a agência de publicidade de um amigo a conseguir contratos em Mato Grosso para a Copa do Mundo (leia o documento acima). Acumulam-se as evidências de uma relação promíscua entre um legislador e um fora da lei.

Investigações da Polícia Federal mostram que essa relação incluía inúmeras conversas amistosas, acompanhadas de troca de favores. Um desses bate-papos ocorreu num final de tarde, exatamente às 16h38, do dia 11 de abril de 2011. Os dois conversaram sobre negócios ao telefone. Demóstenes pediu ajuda a Cachoeira para vencer uma licitação em Mato Grosso. Estava em disputa a prestação de serviços de marketing relacionados à Copa do Mundo de 2014. Demóstenes diz a Cachoeira que um “amigo nosso”, dono de agência de publicidade, está interessado. “Cê acha que consegue?”, pergunta Demóstenes. “Acho um negócio bacana. Se for do interesse seu... (de Demóstenes)”, responde Cachoeira. “Eu acho que consigo.” Quatro minutos depois, os dois voltam a se falar, e Demóstenes afirma que passará na casa de Cachoeira para conversar mais sobre o assunto. A ocasião realmente merecia uma discussão mais profunda: estavam em jogo dois lotes, de R$ 13 milhões cada um. Mais tarde, Cachoeira tratou do mesmo assunto com Cláudio Abreu, representante da empresa Delta Construções no Centro-Oeste. “Pega uma (um dos lotes) pra nós”, diz Cachoeira. Em milhares de páginas, o inquérito da Operação Monte Carlo expõe em detalhes como Demóstenes Torres conciliou – e muitas vezes misturou – sua função de senador da República com a de prestador de serviços e parceiro privado de Cachoeira. Tais serviços incluíam lobby, tráfico de influência e corrupção.

Demóstenes defendeu, por exemplo, os interesses da Vitapan Indústria Farmacêutica, laboratório de Carlinhos Cachoeira. Era uma vida dupla. Em público, Demóstenes cobrava rigor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) nas licenças concedidas na área de medicamentos. Pelo caminho legal, um laboratório desenvolve um medicamento, submete o trabalho à Anvisa e pede autorização para fabricá-lo. ÉPOCA teve acesso a documentos internos e atas de reunião da Anvisa, a registros e planilhas da Vitapan e à troca de correspondência entre o gabinete de Demóstenes, o laboratório e a agência reguladora. Esses papéis mostram que, nos bastidores, Demóstenes mudava de lado. Ele usava seu prestígio de senador e a estrutura do Senado para pressionar a Anvisa a atender os pleitos de Cachoeira. Entre eles, apressar o registro de uma dúzia de medicamentos.

Um caso exemplar da miscelânea entre público e privado foi o processo de registro de um medicamento similar ao Algy-Flanderil, um anti-inflamatório indicado para o tratamento de reumatismo. Depois de ingressar, em maio de 2009, com o pedido na Anvisa, o laboratório de Cachoeira terceirizou o acompanhamento do processo. De acordo com os registros da Vitapan, cada passo era informado aos interessados pela assessoria parlamentar da Anvisa. Tudo como se fosse apenas um mero pleito político – e não a liberação de um medicamento. Um balanço dessas tratativas foi apresentado pela Vitapan a Demóstenes em 9 de fevereiro de 2011. Ali consta que o registro do anti-inflamatório e de outros 11 remédios continuava a enfrentar resistências técnicas dentro da Anvisa.

Demóstenes decidiu, então, cuidar pessoalmente do caso. Pediu uma audiência com o presidente da Anvisa, Dirceu Barbano, marcada para o dia 22 de fevereiro. O propósito da reunião apareceu na agenda pública de Barbano: “Processos da empresa Vitapan”. Demóstenes não gostou dessa exposição no site da Anvisa. Queria manter suas atividades como lobista em segredo. Segundo a Anvisa, Demóstenes não compareceu à reunião agendada. Em setembro, Demóstenes usou um artifício para esconder a defesa dos interesses de Cachoeira. Pediu uma nova audiência com Barbano para tratar de um “protocolo de câncer da próstata”. Foi o que ficou registrado na agenda da agência. Na verdade, Demóstentes foi à sede da Anvisa acompanhado da diretora executiva da Vitapan, Silvia Salermo. Um documento interno da agência revelou o verdadeiro motivo da reunião: “3 processos da empresa Vitapan Indústria Farmacêutica Ltda. 1º 23351.004/99/2009-11 – 2º 25352. 75493/2011/98 – 3º 25351. 004199/20009-11 ”. A Anvisa diz que sua presidência não recebe representantes de laboratórios. Pelas normas internas, eles são atendidos apenas por técnicos, e as conversas são gravadas. Não é o que acontece no mundo das pressões movidas por interesses comerciais. Como no caso de Demóstenes, diretores de laboratórios burlam as regras da Anvisa e acompanham parlamentares em audiências com a presidência da agência. No caso de a assessoria parlamentar da Anvisa ter sido usada para informar o laboratório sobre o andamento de seus pleitos, a agência disse que por uma deferência diplomática respondeu aos pedidos de informação do gabinete do senador. De acordo com a Anvisa, isso não interferiu nas decisões técnicas – apesar dos esforços de Demóstenes Torres, os pedidos da Vitapan continuam pendentes.

Em meio às discussões entre Vitapan e Anvisa, Demóstenes criou dificuldades para a recondução do diretor da Anvisa José Agenor Álvares. Demóstenes afirmou a Álvares que haveria problemas para confirmar sua sabatina, etapa necessária para a aprovação de seu nome no Congresso, porque empresários do polo de Anápolis – entre eles, Cachoeira e sua Vitapan – estavam descontentes com o tratamento que Álvares lhes dispensara. Demóstenes, então, sugeriu que Álvares marcasse uma reunião para atender os empresários insatisfeitos. Diante do aceno positivo de Álvares para a reunião, a agressividade de Demóstenes se dissipou. O encontro não ocorreu, mas a defesa da turma de Cachoeira por Demóstenes ficou exposta.

Conhecidas suas relações com o bicheiro, Demóstenes tentou minimizá-las. Disse que apenas conversava “trivialidades” com Cachoeira. Admitiu ter ganhado do contraventor, como presente de casamento, fogão e geladeira importados. Sua situação se complicou quando epoca.com.br revelou que ele recebera um aparelho de rádio Nextel, habilitado nos Estados Unidos, exclusivamente para conversar com Cachoeira.

CONEXÕES PROMÍSCUAS
A partir daí, o altivo senador da oposição esmoreceu. As conexões promíscuas de Demóstenes e Cachoeira foram escancaradas pela imprensa. Entre elas o pedido de Demóstenes para que Cachoeira arcasse com R$ 3 mil do uso de um serviço de táxi-aéreo. Em conversas com seu contador, Geovani Silva, e com Cláudio Abreu, representante da Delta e apontado pela polícia como seu sócio em uma empresa, Cachoeira fala sobre “1 milhão” (de reais) para Demóstenes. O trecho da fita foi mostrado pelo Jornal Nacional. Em outra conversa, Demóstenes promete trabalhar pela aprovação de um projeto de lei que regularizaria o bingo – fundamental para os negócios de Cachoeira. Demóstenes interferiu no andamento de processos de interesse de Cachoeira na Justiça. Prospectou contratos públicos para empresas ligadas a Cachoeira, conforme o jornal O Globo noticiou na sexta-feira passada. Procurou até um ex-presidente da Infraero, estatal que administra os aeroportos do país, para saber sobre processos de licitação.


No ano passado, o ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda disse que Demóstenes lhe pedira que contratasse uma empresa de cobrança de pagamentos atrasados. Dias antes de ÉPOCA publicar a entrevista de Arruda, Cachoeira pediu ao sargento da Aeronáutica Idalberto Matias, conhecido como Dadá – apontado pela Polícia Federal como um dos integrantes da quadrilha do bicheiro –, que tentasse saber o que Arruda dissera a seu respeito. Cachoeira estava preocupado com a Delta Construções, que mantém contrato de coleta de lixo com o governo do Distrito Federal. A Polícia Federal suspeita que o contrato tenha sido um meio de o então governador do DEM passar dinheiro a Demóstenes. Entre 2007 e 2010, a Delta recebeu R$ 65 milhões pelo serviço. Arruda perdeu o cargo e foi expulso do DEM após a revelação da existência de uma rede de corrupção no Distrito Federal. No episódio, Demóstenes defendeu a expulsão de Arruda do DEM.

As relações entre Delta e Cachoeira são investigadas pela polícia. No ano passado, Demóstenes defendeu uma investigação – e até uma CPI – que atingiria a Delta. Cachoeira criticou Demóstenes pelo tom das críticas. Nas escutas da Polícia Federal, há um diálogo em que Cachoeira pede a Demóstenes para não ser rigoroso com a Delta, principal fornecedora do governo federal e destaque no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). De acordo com a polícia, a Delta abastecia empresas ligadas a assessores de Cachoeira. A Polícia Federal afirma haver “indícios de que parte dos recursos da empresa Delta transferidos para empresas ‘fantasmas’ são destinados (sic) a pessoas físicas e jurídicas vinculadas direta ou indiretamente à estrutura do jogo de azar”.

A PF conclui que, por intermédio de Cláudio Abreu, a Delta atuou no financiamento do esquema de Cachoeira. Segundo a polícia, Cachoeira era sócio de Abreu, representante da Delta, e dava dicas de negócios à construtora. A Delta nega e afirma não ter nenhuma ligação com a organização criminosa. Diz que o Ministério Público Federal ofereceu a denúncia relativa à Operação Monte Carlo e que a empresa não está entre os denunciados. A Delta afirma, ainda, que empresas apontadas pela PF na investigação como “fantasmas” são suas fornecedoras e que contratos foram firmados com elas. A Delta diz que Abreu foi desligado da empresa no dia 8 de março para cuidar de sua defesa, em razão de seu “relacionamento pessoal” com Cachoeira.

VINHOS, PLÁSTICA E MÚSICA
Carlinhos Cachoeira tornou-se conhecido em todo o Brasil em 2004. Na ocasião, ÉPOCA revelou uma gravação em que ele negociava com Waldomiro Diniz, assessor do então ministro José Dirceu, contribuições financeiras para o caixa dois de campanhas petistas e pagamento de propina. Além de Demóstenes, Cachoeira tem prestígio com outros políticos influentes. Um deles é o governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB). No ano passado, Cachoeira foi recebido por Perillo no Palácio das Esmeraldas. O bicheiro pediu incentivos fiscais para a sua Vitapan, o mesmo laboratório defendido por Demóstenes na Anvisa. O pedido foi encaminhado por Perillo à Secretaria de Indústria e Comércio. Perillo afirma que recebeu Cachoeira em audiência para tratar de assuntos relacionados a investimentos e à geração de empregos no Estado. Tal proximidade não é nova. Em 2005, em sua outra encarnação como chefe do Executivo goiano, Perillo também prestou auxílio ao grupo de pessoas em torno de Cachoeira. Declarou a Fundar, uma ONG ligada à ex-mulher do bicheiro, Andrea Souza, como de utilidade pública. Dessa forma, a Fundar passou a estar habilitada a receber recursos públicos.

Cachoeira também conversava com Eliane Pinheiro, assessora do governador Perillo. De acordo com as investigações, Cachoeira passou a ela informações que obtivera com seus contatos na Polícia Federal. Eliane fez bom uso do que ouviu: avisou Geraldo Messias, prefeito de Águas Lindas, Goiás, de que a polícia faria uma operação de busca e apreensão em sua casa. Avisado, Messias sumiu. Apesar do rastreamento das ligações telefônicas entre sua assessora e Cachoeira e do conteúdo das conversas, Perillo não afastou Eliane do cargo. Por intermédio de sua assessoria de imprensa, Perillo afirmou que sua determinação ao secretário de Segurança foi ser “rigoroso na repressão ao crime organizado”.

O senador Demóstenes Torres é um apreciador refinado de música – especialmente MPB e jazz –, orgulhoso de sua coleção de discos de vinil e organizador de saraus. O sisudo Demóstenes também organizava karaokês para parlamentares em sua casa. Chegou à política depois de ser promotor e procurador-geral de Goiás. Em 1999, foi nomeado secretário de Segurança Pública pelo governador Perillo, então em seu primeiro mandato. “A ordem do governador é eliminar a contravenção”, afirmou Demóstenes na ocasião. Demóstenes mostrava-se durão. O comportamento paradoxal revelado agora só não surpreende seus velhos amigos.

Eles contam que, quando secretário, Demóstenes conciliava condutas opostas. Depois do expediente, saía para tomar uísque com amigos em botecos badalados de Goiânia. Segundo esses amigos, às vezes, depois de algumas doses a mais, Demóstenes determinava à Polícia Militar que fechasse as ruas de algum quarteirão próximo a sua casa. Queria aproveitar o espaço livre para dar cavalos de pau com seu carro – assim ao menos minimizava o risco para pedestres e outros motoristas. Depois de se eleger senador em 2002, Demóstenes mudou gradativamente seus hábitos. Passou a se preocupar com a aparência, submeteu-se a uma cirurgia para emagrecer e tornou-se apreciador de vinhos finos e caros. É considerado um dos maiores conhecedores de vinhos do Congresso Nacional e dono de uma vasta adega. Em julho do ano passado, casou-se com a advogada Claudia Gonçalves Coelho. Como epoca.com.br revelou, entre os presentes de casamento do casal estavam um fogão e uma geladeira importados – do amigo Carlinhos Cachoeira.

MARAJÁS E VASSOURINHA
Demóstenes fez carreira no Congresso com projetos para endurecer leis de combate ao crime e com a bandeira da defesa da ética na política. Aproveitou-se de um tradicional nicho moralista, propiciado pela secular presença da corrupção e da roubalheira na política brasileira. Em 1960, Jânio Quadros foi eleito presidente da República tendo uma vassoura como símbolo. O jingle da propaganda dizia Varre, varre, vassourinha!/Varre, varre a bandalheira!. Jânio logo desistiu de colocar em prática seu lema e varreu a si mesmo do Planalto, meros sete meses depois. Em 1989, o candidato Fernando Collor de Mello chegou à Presidência, entre outras coisas, graças à imagem de “caçador de marajás” estabelecida como governador de Alagoas. Eleito, Collor também acabou renunciando diante de um processo de impeachment no Legislativo, desencadeado pela atuação corrupta de uma quadrilha formada por seus mais próximos assessores.

O discurso de Demóstenes durou mais: ele conseguiu sustentá-lo por nove anos. Não perdeu nenhuma chance de ser implacável com colegas acusados de corrupção. Foi assim com Renan Calheiros, acusado de usufruir ajuda financeira de uma empreiteira para bancar uma amante. Fez o mesmo com José Sarney, acusado de recorrer a atos secretos para nomear parentes no Senado. Foi agressivo com petistas e com escândalos de corrupção protagonizados pelos governos Lula e Dilma. Ganhou notoriedade por seus discursos calcados na correção no serviço público, postura que o fez ser incluído na lista de ÉPOCA dos 100 brasileiros mais influentes no ano de 2009. Poucos imaginavam que sua influência dentro do poder público tinha um contraventor como principal favorecido. “Ele explorou a ausência de parâmetros éticos na política”, afirma o filósofo Roberto Romano, professor de ética da Universidade de Campinas (Unicamp). “Mas esqueceu os próprios problemas e se tornou vítima dessa dialética.” Em 2004, Demóstenes subiu à tribuna do Senado e discursou sobre a reportagem de ÉPOCA que mostrava Cachoeira e Waldomiro Diniz. Pediu punição para Waldomiro, o então ministro José Dirceu e até para o então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva. Sobre Cachoeira, nem uma palavra.

Poucos parlamentares fazem da ética a sua causa. Menos ainda são os ousados como Demóstenes. Tal ousadia lhe deu espaço na mídia, credibilidade, um segundo mandato como senador e – talvez – a certeza de que suas atividades secretas nunca seriam expostas. Na semana passada, insatisfeito com a renúncia de Demóstenes da liderança do DEM no Senado, o partido queria que ele se desfiliasse. Demóstenes se recusava a renunciar ao mandato, por acreditar que assim eliminaria suas chances de, num futuro próximo, disputar uma nova eleição e retomar a sua carreira política. A queda de Demóstenes, cujo sigilo bancário foi quebrado pelo Supremo Tribunal Federal na semana passada, é proporcional à rapidez de sua ascensão. Retornar ao ponto que já ocupou no cenário político nacional será uma missão quase impossível.

Dor de garganta - SÉRGIO AUGUSTO


O Estado de S.Paulo - 01/04/12


Muito antes de Demóstenes Torres vir ao mundo a prudência já recomendava que não podemos confiar em ninguém, que todos são suspeitos até prova em contrário. Se até o Demóstenes original, o grande orador grego, vendeu-se a um ministro da Macedônia de Alexandre, por que um orador goiano, amigo de bicheiro, haveria de ser diferente?

Certo, nem todo herói de hoje é o vilão de amanhã, mas a história está cheia de revertérios similares ao do nosso encachoeirado senador. O exemplo mais recente é William Mark Felt, o misterioso informante do Escândalo Watergate, que morreu herói em 2008 e acaba de ressuscitar vilão num livro do jornalista Max Holland.

Felt, o segundo na hierarquia do FBI em 1972, ganhou fama com o codinome Deep Throat (Garganta Profunda), ao qual, diga-se, jamais se acostumou. Leak: Why Mark Felt Became Deep Throat intitula-se o livro. Na língua do Demóstenes Torres, "Vazamento: Por que Mark Felt virou Garganta Profunda". Lançado há três semanas pela University Press of Kansas (304 págs., US$ 19,77 na Amazon.com), não arranha só a reputação do informante, mas também de outros coadjuvantes do mais célebre caso de espionagem política ocorrido na América.

O escândalo está fazendo 40 anos. Entre maio e junho de 1972, durante a campanha presidencial que culminaria com a reeleição de Richard Nixon, em novembro, um grupo de cinco pessoas tentou fotografar documentos e instalar aparelhos de escuta na sede do Comitê Nacional do Partido Democrata, no Complexo Watergate, em Washington. Na noite de 17 de junho, a quadrilha foi presa com a mão na botija. No Washington Post do dia seguinte o assalto ganhou a primeira página como um fait divers policial, logo transformado numa intrincada trama política envolvendo diretamente a Casa Branca.

Pelo menos quatro dos cinco espiões trabalhavam para a CIA, de resto proibida por lei de atuar dentro do país, jurisdição do FBI. Um acúmulo de abusos e desacertos, que, investigado à exaustão pela dupla de repórteres do Post Bob Woodward-Carl Bernstein, culminou com a renúncia de Nixon, em agosto de 1974. Deep Throat foi o fio de ariadne até o presidente, mas não o único informante secreto de Woodward, que conhecia Felt desde 1969 e só revelou sua verdadeira identidade depois que o próprio Felt o fizera, num artigo para a revista Vanity Fair, em 2005, na verdade escrito por John O’Connor, pois àquela altura Felt, com Alzheimer, não se lembrava de nada.

O filme Todos os Homens do Presidente mitificou além da conta a figura do informante que marcava encontros com Woodward numa garagem. Até lhe atribuiu um conselho, "Follow the money" (Siga o dinheiro), que virou mantra em investigações de casos de corrupção mundo afora e nunca saiu da boca de Deep Throat, foi invenção do roteirista William Goldman. Ao tirar a máscara, Felt afirmou que não se considerava um herói, mas um patriota que apenas tentara "ajudar" o país, proteger o FBI e evitar que abusos de poder ainda maiores pudessem afetar a reputação da presidência.

Bonito, nobre, mas pura bazófia, segundo Holland. Como na língua do Demóstenes Torres, garganta também é sinônimo de gabola e fanfarrão, o cognome dado a Felt ganhou, aos meus olhos, uma nova dimensão. Também o considerava um servidor público corajoso, desapegado ao cargo, mais fiel à sua consciência do que ao patrão que de forma decisiva ajudou a derrubar.

O patrão na mira de Felt, porém, não era, segundo Holland, o presidente Nixon, mas seu superior na hierarquia do FBI, L. Patrick Gray, interino no trono vagado por Hoover em maio de 1972. Felt cobiçava a direção do Bureau e teria agido o tempo todo com a intenção de detonar o chefe, demonstrando ao presidente que Gray não conseguia controlar seus subordinados. A queda de Nixon teria sido, portanto, um simples dano colateral.

No livro Secret Agenda, Jim Hougan acusou Felt de desviar o Post das pegadas da CIA, fornecendo a Woodward pistas e informações falsas. Com as atenções voltadas para o FBI, a participação da CIA no arrombamento do Comitê Democrata ficou em segundo plano. Pouco importa. Sobrou castigo para todos. Gray rodou da chefia, Felt não pegou seu lugar, os arrombadores foram presos, Nixon teve de entregar a rapadura e os democratas venceram as eleições presidenciais de 1976.

Não foi, para Felt, uma vitória de pirro. Afinal de contas, ele morreu como herói, ainda que de mentira ou por acidente como os personagens de Eddie Bracken e Dustin Hoffman nas comédias Hail a Conquering Hero e Hero. Seu maior feito voluntário foi manter secreta a identidade de Deep Throat durante três décadas e meia, driblando o assédio e a vigilância de agentes do FBI e jornalistas.

Edward Jay Epstein quase o entregou em julho de 1974, nas páginas da conservadora Commentary. Foi o primeiro a intuir que os vazamentos não visavam a Nixon e sim à direção do FBI, mas perdeu o rumo ao acreditar que Deep Throat era um compósito de informantes, não uma pessoa. Por isso desprezou a informação de que alguns procuradores acreditavam que a misteriosa fonte do Post fosse, "provavelmente, Mark W. Felt, Jr.". Errou na grafia, mas acertou na pessoa; faltou correr atrás do suspeito. Ninguém correu.

E o real cobra seu preço - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 01/04/12


A saída é cortar os gastos supérfluos com a máquina estatal e desonerar de taxas o custo da produção


Informações recentes parecem indicar que a economia brasileira caminha inexoravelmente para uma situação crítica, de difícil solução. A se efetivar tal previsão, dela resultaria uma crise política que poria em questão a hegemonia lulista sobre o sistema de poder.

A título de especulação, vamos tentar avaliar a natureza dessa crise futura e suas consequências. Mas, para isso, será necessário examinar o processo político e econômico que ajudou a criar a situação crítica a que se referem economistas e analistas da matéria.

Ninguém põe em dúvida o fato de que os governos de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso introduziram mudanças importantes no processo econômico brasileiro, criando condições para um crescimento saudável e sustentado.

Graças a essas medidas, o Brasil se livrou da inflação crônica que inviabilizava o crescimento da produção e consumia o valor dos salários. Aquelas foram medidas necessárias, mas não suficientes.

Lula assumiu a Presidência da República em 2003 e, muito embora tenha combatido todas aquelas medidas, resolveu adotá-las e usá-las como um modo de consolidar seu prestígio político e ampliá-lo. Graças a isso, pôde eleger Dilma Rousseff sua sucessora e, com isso, estender para diante seu projeto político.

A verdade, porém, é que, como não tinha um programa de governo nem muito menos um projeto estratégico para o país, valeu-se da estabilidade econômica e do momento propício do crescimento mundial para ampliar seus programas assistencialistas e propiciar aumentos salariais que beneficiaram amplas camadas da população mais pobre.

O crescimento do mercado interno, entre outros fatores, permitiu que o país passasse relativamente ileso pela crise que atingiu a economia mundial a partir de 2008.

Noutras palavras, desde que o petismo assumiu o governo, nenhuma medida foi tomada para atender às novas condições criadas pelo próprio crescimento da economia. De fato, o que se fez foi onerar os setores produtivos, ampliar a máquina estatal e aumentar as despesas públicas. O número de ministros subiu de 27 para 39 -ou 40, já nem sei- e, com eles, o número de funcionários concursados e não concursados.

Seguindo o exemplo do Executivo, a Câmara, o Senado e o Judiciário criaram novos encargos para o Tesouro, aumentando o deficit público. Naturalmente, todas essas medidas -que ampliaram o consumo e mantiveram o crescimento da economia- deixam a população otimista, disposta a gastar, ainda que se endividando a cada dia.

E tudo isso, sem que se pague salário justo a professores e médicos, que desempenham papel vital para a sociedade. Mas essa gastança aproxima-se do fim, porque ou se põe termo a ela, ou o país caminhará para o impasse.

As mais recentes informações, colhidas nos institutos de pesquisa, compõem um quadro preocupante, a começar pelo índice de crescimento da economia que, no último ano, ficou em apenas 2,7%, abaixo de quase todos os país da região, exceto Guatemala e El Salvador.

Esse dado poderia ser visto como um fato conjuntural, não fossem outros, igualmente preocupantes, como o índice de investimento, que ficou em 19% do PIB, contra o índice de 23% da região, enquanto a produtividade do trabalhador brasileiro ocupa o 15º lugar na América Latina. Por outro lado, nossa produção industrial perde competitividade, devido à desvalorização do dólar, mas também aos encargos que oneram a folha de pagamento.

Noutras palavras, o país chega ao limite de seus gastos, quando a solução para o impasse seria investir na infraestrutura (portos, estradas de ferro, rodovias) e na formação de profissionais de alto nível técnico.

A saída é cortar os gastos supérfluos com a máquina estatal e desonerar de impostos e taxas o custo da produção. Mas, para isso, teria que contrariar os interesses dos partidos da base aliada e o poder das centrais sindicais, aliados do governo. Dilma teria que topar essa briga.

Se esse diagnóstico está correto, a lua de mel lulista com o poder parece aproximar-se do fim. Podem até ganhar as eleições deste ano e as de 2014. Não sei. O certo é que, cedo ou tarde, a realidade cobra seu preço.

Tomografia do poder - CARLOS HEITOR CONY

FOLHA DE SP - 01/04/12

RIO DE JANEIRO - Ali Abn Beroel pulou o muro da casa de Mustafá Tarak para roubar os gansos que viviam no jardim mais suntuoso de Bagdá. Ali Abn caiu e quebrou a perna. Foi se queixar ao califa: "Sombra de Alá na Terra! O rico mercador Mustafá Tarak ergueu um muro tão alto para proteger seu jardim que eu, indo roubar os seus gansos, caí e quebrei a perna. Mustafá deve ser enforcado!".

O califa mandou chamar Mustafá, repetiu a queixa do ladrão e ouviu a desculpa: "Luz enviada por Alá para iluminar o mundo! A culpa foi do mestre de obras, que ergueu o muro mais alto do que o combinado. Gastou tanto o meu dinheiro que caí na miséria!".

O mestre de obras foi chamado pelo califa, que o culpou de ter quebrado a perna de Ali Abn e de ter falido Mustafá Tarak. Mas o acusado explicou: "Pai de todos os crentes! Eu ia erguer o muro pela metade, mas certa manhã vi a formosa Fátima, filha de Mustafá, dando comida aos gansos. Aumentei o muro para que a pudesse ver mais e melhor. Por causa dela, gastei demais e perdi o emprego. Ela deve ser afogada no Eufrates!".

A formosa Fátima foi chamada e ia ser afogada no Eufrates por ter desempregado o mestre de obras, falido o pai e quebrado a perna do ladrão. Mas ela contou: "Pedaço de lua crescente! Todas as manhãs preciso dar comida aos meus gansos!".

O califa, sombra de Alá na Terra, pai de todos os crentes, pedaço de lua crescente, mandou matar todos os gansos da filha de Mustafá.

Não sei se inventei essa história ou li coisa parecida em qualquer canto. É a tomografia computadorizada do poder, de qualquer poder, em cujas entranhas todos entregam todos e pedem castigo para punir o erro dos outros, inclusive a corrupção. Quem paga tudo são os gansos, que somos todos nós.

Flexão no Código - ILIMAR FRANCO

O GLOBO - 01/04/12


Depois de bater pé pela aprovação do texto do Código Florestal do Senado, a presidente Dilma foi convencida, por alguns ministros, a reabrir a negociação com os ruralistas da base do governo. A presidente está disposta a fazer concessões para os setores moderados, representados pelo ministro Mendes Ribeiro (Agricultura). Mas há divisão no governo, por causa dos ambientalistas mais radicais, liderados pela ex-ministra Marina Silva.

Velha briga
O novo ministro do Desenvolvimento Agrário, Pepe Vargas, defende a atualização dos índices de produtividade, utilizados como parâmetro para desapropriação de terras para a reforma agrária. Eles são os mesmos desde 1975 e sua atualização foi uma promessa de campanha do ex-presidente Lula. “A atualização dos índices tem que ser feita por razões econômicas, e não ideológicas. É uma discussão técnica. Não vai criar um caos na agricultura nem inviabiliza o agronegócio”, afirma Vargas. As tentativas de atualização feitas no governo Lula foram barradas pela bancada ruralista. No governo Dilma será diferente?

"O projeto do Eduardo (Campos) é a presidência da República. Quando, as condições objetivas vão dizer. Não vamos brigar com a realidade"
— Roberto Amaral, vice-presidente do PSB

ALINHADOS. A despeito das divergências no PSDB paulista, os serristas acreditam que tucanos e aliados marcharão unidos em torno da candidatura de José Serra à prefeitura de São Paulo. E justificam: o governador Geraldo Alckmin perde força para a reeleição se o partido perder a prefeitura de São Paulo, e o prefeito Gilberto Kassab (PSD) foi rejeitado por Fernando Haddad (PT) e agora precisa dos tucanos para disputar o Senado.

O retorno
O ex-presidente Lula marcou para 25 de abril sua primeira ida a Brasília depois da cura do câncer na laringe. Ele irá para a estreia do documentário sobre a posse da presidente Dilma, “Pela Primeira Vez”, de autoria de Ricardo Stuckert.

Congestionamento
Os senadores do PMDB travam guerra silenciosa pela presidência do Senado. São candidatos: Renan Calheiros (AL), Edison Lobão (MA), Garibaldi Alves (RN), Eunício Oliveira (CE) e Vital do Rêgo (PB). Muito cacique para pouco índio.

Aposta na opinião pública
As centrais sindicais querem isentar do Imposto de Renda a Participação nos Lucros e Resultados (PLR) das empresas. A Fazenda resiste, alegando que isso significará prejuízo de R$5 bi aos cofres públicos. Mas, pelo cálculo do Dieese, o impacto seria de R$1,8 bi. Presidente da Força Sindical, o deputado Paulo Pereira da Silva (PDT-SP) diz que, se o governo não ceder, a isenção será incluída na medida provisória 556, em tramitação. “Ou vai fazer por bem, ou vai ter que vetar”, disse ele, apostando no desgaste da presidente Dilma.

Inadministrável
O governo não aceita excetuar produtos no projeto de unificação do ICMS sobre produtos importados, como quer o governador Renato Casagrande (ES), porque teme uma guerra de emendas no Senado, atendendo lobbies diversos.

Intromissão
Os senadores não gostaram nada de o STF ter fixado prazo, até o final deste ano, para o Congresso redefinir os critérios de distribuição dos recursos do Fundo de Participação dos Estados. Alegam que os Poderes são independentes.

NA PONTA DO LÁPIS. Além das capitais, Roberto Amaral (PSB) e Paulo Frateschi (PT) discutirão, nesta semana, os palanques em cidades como Mossoró (RN), Campinas (SP), e no Crato (CE).

CONDIÇÕES. A deputada Luiza Erundina (PSB-SP) não descarta disputar a prefeitura de São Paulo, mas diz que para isso precisa ampliar o tempo de TV. “Não vou sair para marcar posição”, argumenta.

A PRESIDENTE Dilma está só esperando a poeira baixar para mudar o comando do Banco do Brasil.

O macacão branco - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - 01/04/12


Quem de nós pode vestir um modelo decotado na frente e nas costas, colado ao corpo, sem antes passar por uma lipoescultura?

Sejamos honestas, colegas de trabalho: quem de nós pode vestir um macacão branco decotado na frente e nas costas, colado ao corpo, sem antes passar por uma lipoescultura, uma sessão de bronzeamento e ficar duas semanas sem comer? Resposta no final dessa coluna.

Não teria adjetivos suficientes para comentar o show que Maria Rita fez no Anfiteatro Pôr do sol , semana passada, cantando músicas da sua mãe, Elis Regina. O espetáculo foi perfeito do início ao fim, e São Pedro ainda deu uma canja, oferecendo um entardecer de cinema, com direito a uma lasca de lua, céu estrelado e brisa suave. Se Elis não fosse gaúcha, teria se naturalizado naquele instante, em algum cartório no céu.

Mas voltemos a Maria Rita. Toda de branco, ela entrou no palco com uma túnica diáfana que ia até os pés: praticamente um anjo de bons modos. Até que, quatro ou cinco músicas depois do início do show, ela retirou a túnica e ficou só de macacão branco decotado, com as costas de fora, colado no corpo. Pensei: é peituda essa mulher.

Peituda porque, além de peito, Maria Rita tem coxa, tem bunda, tem barriguinha, tem sustância, tem o corpo da brasileira típica, que passa longe das esquálidas das revistas, das ossudas das passarelas. A numeração de Maria Rita não é 36, mas vestiu aquele macacão branco como se fosse.

Quaquaraquáquá, quem riu? Quaquaraquáquá, foi ela. Cantando Vou Deitar e Rolar e outros tantos hits da sua talentosa progenitora, Maria Rita rebolou, sambou, jogou charme, braço pra cima, braço pro lado, ajeitadinha no cabelo, caras e bocas, dona e senhora do pedaço e com o namorado bonitão (Davi Moraes, na guitarra) ali na retaguarda, babando – se não estava, deveria.

Porque Maria Rita, além de cantar divinamente, mostrava 100% seu lado fêmea, segura e incomparável. Que nem as modelos de revista? Quaquaraquaquá. Muito melhor.

Fiquei pensando depois: como mulher se preocupa com besteira. Usa roupa preta pra afinar, veste bermudas compressoras pra chapar a barriga, manga pra esconder os braços roliços, e mais isso, e aquilo, quando o maior segredo de beleza consta do seguinte: sinta-se num palco, mesmo que nunca tenha chegado perto de um.

Imagine-se com 60 mil pessoas te aplaudindo, te admirando pelo que você faz, pelo que você é, imagine-se com o público na mão, pois você é competente e tem uma elegância natural (tem, né?). Conscientize-se de que sua inteligência é superior às suas medidas, que ser magrinha não atrai amor instantâneo, que sua personalidade é um cartão de visitas, que a felicidade é a melhor maquiagem, que ser leve é que emagrece.

E dá-se a mágica.

Quem de nós pode vestir um macacão branco decotado na frente e nas costas, colado ao corpo, sem antes passar por uma lipoescultura, uma sessão de bronzeamento e ficar duas semanas sem comer? Qualquer uma de nós, ora.

As noites sem dormir - DANUZA LEÃO

FOLHA DE SP - 01/04/12

Será um problema físico, ou sinal de uma mente atormentada? Não dá para ler, não dá para trabalhar


Existem os que deitam na cama e dormem. Simplesmente dormem, dormem a noite inteira e acordam na manhã seguinte leves, descansados, de bom humor. E há os outros, os que não têm sono nunca.

Mesmo que estejam cansados, exaustos, eles simplesmente não conseguem dormir. A cabeça não para de pensar, seja no que for; esses não têm descanso, não têm paz, e volta e meia olham o relógio para ver quanto tempo se passou, há quanto tempo estão tentando, quanto falta para o dia clarear, e pensam em como vão poder trabalhar no dia seguinte, já que não dormiram.

Dizem que dormem bem os que têm a consciência leve, mas conheço muitos que a têm bem pesada, mas que põem a cabeça no travesseiro e dormem o sono dos justos.

Os insones tentam de tudo. Desde os chás mais inocentes à ioga, aos antialérgicos -dizem que são ótimos-, até chegarem aos quase pré-anestésicos. Com esses conseguem dormir por algumas horas, mas como o efeito dura pouco, acordam de madrugada, ligados, sem saberem o que fazer.

Como se conhecem bem, evitam pensar em problemas, em tristezas. Fazem planos para uma futura viagem, uma possível mudança de casa, de vida, não pensam nunca em coisas tristes e fazem os planos mais absurdos para o futuro, mas nem assim. Conheço um que escolheu o número 650, sei lá por que, e vai contando ao contrário: 649, 648, e assim vai indo -e nada. Quando consegue dormir um pouquinho, é um sono tão leve que nem tem a certeza se dormiu ou não.

Será um problema físico, ou sinal de uma mente atormentada? Nas horas em que ficou estabelecido que devemos estar dormindo, não dá para ler, não dá para trabalhar, não dá para fazer nada, a não ser ficar agoniado e pedir a Deus para adormecer. Com o universo dormindo, os insones só pensam em uma coisa, que é também dormir.

Conheço um a quem aconselharam chá de maconha; ele comprou um pacotinho -todo mundo tem um amigo para essas coisas-, disse para que era (o amigo não acreditou), fez o chá, e nada. Pensou então que seu sonho seria um anestesista todos os dias, às 11h30 da noite.

Esse mesmo amigo, depois de consultar vários médicos, soube que a partir dos 60 ninguém precisa das famosas oito horas de sono; cinco são mais do que suficientes, e deram o exemplo dos bebês, que quando nascem, dormem quase o tempo todo. Ok, cinco horas por noite; mas como conseguir dormir cinco, e como administrar o resto do tempo?

Ele tentou alugar filmes; vários filmes. Se eles eram bons, o sono não vinha, claro, e se eram ruins, não dava para assistir. Não, não foi por aí. Uma sexta-feira resolveu não tomar remédio algum e passar a noite em claro sem angústia, sem pensar em dormir; o tempo não passava, aconteceram alguns cochilos, e só.

Lembrou que nunca dorme em longas viagens de avião, mas tinha pelo menos no que pensar: como seria bom quando chegasse, as coisas que iria ver, as novidades de uma cidade nova. Mas dentro do quarto era bem diferente. Se ao menos o telefone tocasse; mas quem iria telefonar às 3h da manhã?

Teve a ideia de fundar um clube, o clube dos que não dormem, para ter com quem falar, nas madrugadas, mas o projeto não prosperou.

Vou confessar: tudo o que contei se refere a mim, que nunca tenho sono, e mesmo quando tomo uma bola, resisto a dormir, penso que com medo.

Porque dos pensamentos consigo me defender, mas não dos sonhos.

Causa Nóbrega - MÔNICA BERGAMO


FOLHA DE SP - 01/04/12


Seduzido pela cultura popular brasileira, o multi-instrumentista Antonio Nóbrega funda companhia de dança e protagoniza filme

Antonio Nóbrega em números: 60 anos de idade, 40 de carreira, 20 de Instituto Brincante, espaço de cultura e dança popular. Patrocínio de R$ 1,25 milhão da Petrobras. Três bandolins, três violões, 18 rabecas e oito violinos. Dois filhos, uma neta.

É pouco.

A história do instrumentista, dançarino e pesquisador da cultura brasileira é de multiplicação.

A paixão pela cultura de raiz o levou aos palcos e ao altar. Influenciou a carreira profissional dos filhos e de amigos dos filhos. E o alimenta como artista e intelectual até hoje.

"Minha cachaça é o Brasil. Troco partida de futebol e mesa de bar por uma leitura sobre a cultura popular", diz à repórter Thais Bilenky. "Faz 40 anos que me envolvo com puxantes de caboclinhos, brincantes de cavalo-marinho, batedores de alfaia e maracatu. Em algum momento, minha vida triscou em algo, viu e prendeu com muita força. E tem o poder de me alimentar desde então."

O artista está fundando uma companhia de dança que vai funcionar em seu instituto, na Vila Madalena. Prepara um espetáculo em homenagem a Luiz Gonzaga. E criou coreografias para um filme sobre sua trajetória que está sendo dirigido por Walter Carvalho.

Nóbrega toca violino, bandolim, violão, pandeiro, clarinete e saxofone. É coreógrafo e bailarino. Pesquisa e ensina. Seus últimos espetáculos -o mais recente, "Naturalmente", entrou em cartaz em 2009- foram aulas-show, em que interrompe números de dança para explicar o que apresenta. São, como diz, "performances entremeadas por canto e instrumentos conciliados com falas e depoimentos".

"Ele anda mais introspectivo", diz o filho, Gabriel, 28. "Tá se vestindo de maneira mais sóbria, a estética dos espetáculos está mais sóbria. Acho que ele entrou numa fase síntese da carreira."

O cineasta Walter Carvalho usa a mesma palavra, "síntese". O filme sobre o artista, "Brincante", sai no fim do ano, com patrocínio de

R$ 600 mil da Petrobras. É o quarto trabalho que Carvalho e Nóbrega fazem juntos. Já assinaram antes três DVDs.

"Na minha cabeça, ele é uma síntese do Brasil. Um cara que bebe na fonte do popular e do erudito e tira disso uma leitura que é dele. É um caso profundo de dedicação consigo mesmo, compreende?", diz o diretor.

Pela primeira vez tocará seus projetos sozinho. Sua filha, Maria Eugenia, 25, e a nora, Marina Abib, 24, que dançam em seus espetáculos há seis anos, fundaram a Companhia Soma e vão passar temporada na Europa. A mulher, Rosane Almeida, atriz e bailarina com quem trabalha desde que se conheceram, vai tocar um projeto paralelo. E o filho, Gabriel, que tocou percussão em sua banda desde que tinha dez anos, agora está no mercado publicitário.

"Estou crescidinho para caminhar com minhas próprias pernas." Maria Eugenia acha que fará bem ao pai se livrar dos "pitacos" da família. "São bons pitacos. Devo muito a elas", responde ele.

Há três décadas ainda morava no Recife, onde nasceu. Tinha 29 anos. Já dançava e tocava. Foi ver o show de um contorcionista. Zangou-se: "Trabalho todo dia com o corpo e não consigo fazer um décimo do que ele faz".

A menina de 17 anos que estava sentada atrás dele escutou e achou graça. Um ano depois, se casaram. Começaram a trabalhar juntos. Faziam um espetáculo em que ele atuava e dançava. Ela contracenava mascarada ou fazendo a voz de bonecos.

Dez anos mais tarde, fundaram o Instituto Brincante, espaço de ensino de manifestações artísticas na Vila Madalena, bairro paulistano onde moram.

Para o longa Nóbrega contratou 20 bailarinos -por coincidência, quase todos paulistanos da periferia. Eles se encontraram nos últimos seis meses de 2011 três vezes por semana. Ensaiavam coreografias criadas para o filme. "Deu certo demais. Não tive nenhum atrito com um único bailarino."

Dez desses bailarinos foram herdados pela recém-fundada Antonio Nóbrega Companhia de Dança, cujos ensaios começaram no final de março. Daqui a um ano, saem em turnê de 20 apresentações. Nóbrega terá R$ 650 mil da Petrobras para usar em dois anos.

No meio tempo o artista apresenta o espetáculo em homenagem a Gonzaga. E haja pesquisa. "Ele gravou 1.660 vezes as suas músicas, algumas mais de uma vez. Tem entre 600 e 700 gravações originais. Das 200 que eu conheço, já está sendo difícil selecionar as que vou utilizar." O show deverá acontecer em setembro, no Auditório Ibirapuera.

Nóbrega é metódico. Se não estiver viajando, acorda às 7h e faz 40 minutos de exercícios físicos enquanto assiste ao noticiário na TV. Toma café da manhã, um mingau de aveia que ele mesmo prepara há 25 anos. E dedica as manhãs aos estudos. "Se alguém interrompe, fica muito irritado", diz Gabriel.

"As pessoas perguntam como consigo ser tão disciplinado. Eu digo, rapaz, para mim o difícil é ser indisciplinado. Eu não leio um livro só, não leio três somente. Eu leio seis ao mesmo tempo. A minha natureza é assim, não dá para mudá-la mais."

Fez faculdade de letras, direito e música. Não concluiu nenhuma. "Tive formação muito boa. Meu avô [Manuel da Nóbrega] era um homem preocupado com os destinos do homem. Eu, um cara de 14 anos, me vi confidente intelectual dele. Tinha uma biblioteca extraordinária e escreveu livros maravilhosos." Busca na prateleira. "Ó os nomes, se quiser anotar: 'Demagogia Política e Religiosa', 'Vade Mecum do Pensador' e 'Realidades desse Mundo e Problemas do Outro'."

Aos 18 anos, conheceu o dramaturgo Ariano Suassuna, determinante em seu mergulho profissional. "Ficava ouvindo as conversas e aquilo ia me enchendo de informação, aguçando minha curiosidade. Se me aparece uma coisa muito pouco estudada, muito fértil, eu digo: Acho que eu vou é aprofundar. Senti esse chamado."

Sua casa no Recife sofria enchentes com frequência. Nóbrega deixava a chuva levar tudo -menos os livros. Até hoje guarda alguns com marca de água. Diverte-se ao lembrar de um alagamento que ocorreu quando tinha 24 anos: "Saí de casa com um papagaio numa mão e um violino na outra".

Apaixonado pelo violino, sim. O erudito pelo erudito, não. "É meio esquisito que a gente tenha numa cidade como São Paulo mais de dez orquestras sinfônicas mantidas por empresas ou instituições públicas e não tenha sequer um grupo de choro mantido por qualquer instituição."

Nóbrega defende "um Brasil que juntou, teve uma mestiçagem racial e cultural popular. As tradições culturais têm riquezas que não percebemos. Tô muito atento para encontrar conteúdos e valores que, se a gente consegue aprender e colocar na dinâmica da vida contemporânea, porra, acho que a vida moderna seria melhor".

A Comissão da Verdade contra as mentiras - ELIO GASPARI

FOLHA DE SP - 01/04/12
Na segunda fase do combate no Araguaia não sobrou prisioneiro, mas do bunker de Hitler, quase todos

A Comissão da Verdade não poderá rever a Lei da Anistia, mas poderá desmontar quase meio século de mentiras com as quais os brasileiros são obrigados a conviver. Quem tem hoje menos de 43 anos ainda não nascera em 1969, quando a tortura foi transformada em política de Estado pela ditadura. O conflito do século passado não faz parte do seu mundo, mas as mentiras ofendem-lhe a inteligência, mutilando o direito que uma sociedade tem de saber o que aconteceu no seu país. Saber, só saber.

As mentiras não persistem em nome da pacificação dos ânimos. Acima de tudo, foram e são o exercício de um poder que busca o bloqueio da lembrança. Dilma Rousseff reconhece que participou de uma organização que matou gente que nada tinha a ver com sua luta (o caso do major alemão que foi confundido com um capitão boliviano, assassinado no Rio em 1968). Por conta dessa militância, ela foi presa, torturada e pagou três anos de cárcere. Os torturadores e assassinos que participaram do combate a essas organizações cumpriram ordens e, em muitos casos, foram condecorados e continuam protegidos por um manto de silêncio. Em seu governo, Fernando Henrique Cardoso reconheceu a responsabilidade do Estado nesses crimes, mas falta responder a perguntas que completarão meio século de silêncio.

Tome-se um exemplo, o do segredo em torno do que aconteceu no combate à Guerrilha do Araguaia.

Em 1972, o Exército soube que havia naquelas matas um projeto de foco guerrilheiro do PC do B. Eram cerca de 70 militantes. A tropa chegou em abril e, até dezembro, capturou oito guerrilheiros, entre eles José Genoino, atual assessor do ministro da Defesa. Nesse período, morreram 12 combatentes da organização comunista e oito foram capturados. Processados e condenados pela Justiça Militar, cumpriram suas penas e foram libertados.

Em outubro de 1973, o Exército iniciou uma nova operação. Depois do Natal não havia mais guerrilha. Restavam apenas fugitivos e só dois escaparam. Um era o comandante militar do foco; o outro, seu guia. O efetivo do PC do B ficou reduzido a algo como 35 militantes.

A mentira impõe aos brasileiros a ideia de que eles desapareceram. Só um foi visto morto. Talvez tenham sido recolhidos numa clareira por um disco voador albanês. Depoimentos colhidos posteriormente mostram que houve casos de prisioneiros mortos semanas depois de terem sido capturados. Sumiram até mesmo os que se renderam, convidados a entregar as armas em panfletos assinados por militantes presos na primeira fase e por exortações feitas por militares que usavam megafones nos helicópteros.

Entre dezembro de 1973 e fevereiro de 1974, a operação militar do Araguaia foi comandada pelo então coronel Nilton Cerqueira. Como major, em 1971, ele estava na cena em que o ex-capitão Carlos Lamarca foi fuzilado, no interior da Bahia. Em 1981, comandava a Polícia Militar do Rio de Janeiro quando uma bomba explodiu no colo de um sargento do DOI e estripou um capitão no estacionamento do Riocentro. Em sua carreira só teve uma derrota. Enfrentou os bicheiros da cidade e viu-se exonerado. Nos anos 90, o general presidiu o Clube Militar e, em 1994, elegeu-se deputado federal pelo PP. O governador Marcelo Alencar (PSDB) nomeou-o secretário de Segurança.

Talvez ele possa contar o que aconteceu numa campanha militar que, sob seu comando, não conseguiu capturar vivo um só prisioneiro. Só contar.

Em maio de 1945, os alemães abandonaram o bunker de Hitler embaixo da chancelaria do Reich. Da equipe do führer eram umas 20 pessoas, civis e militares. Naquele caos, sumiu só a nutricionista. A arcada dentária do desaparecido Martin Bormann, a maior autoridade a bordo do bunker, foi identificada em 1998. Os aliados e o Exército Vermelho capturaram quase todos, inclusive o dentista da SS que ajudou a sedar as seis crianças de Joseph Goebbels que seriam envenenadas. Dos que foram levados para a Rússia, pelo menos um morreu e outros ficaram presos até a segunda metade dos anos 50. A secretária de Hitler foi solta pelos ingleses em 1946. O suboficial SS Rochus Misch, que servia como telefonista, está vivo, com 95 anos.

VIVA O ITA

A doutora Dilma trabalha num grande projeto: duplicar o tamanho do Instituto Tecnológico da Aeronáutica, glória do ensino da engenharia nacional e joia da coroa da visão do presidente Getúlio Vargas.

LIÇÃO DO PORCO


Há dois anos o governo chinês botou na cadeia o empresário Huang Guangyu, que fora o homem mais rico do país, com US$ 6,3 bilhões.

Na semana passada foram encarcerados os irmãos Raymond e Thomas Kwok, magnatas do mercado imobiliário. Juntos, teriam US$ 15 bilhões.

Os três esqueceram-se de um velho provérbio de sua terra: "Porco esperto não engorda".

DESINDUSTRIALIZAÇÃO

Um grupo industrial brasileiro precisava de uma nova unidade de produção e comparou custos. No Brasil a energia elétrica custa o triplo do que se cobra nos Estados Unidos, a matéria prima sai pelo dobro, e a mão de obra vale o mesmo.

A fábrica custará US$ 100 milhões e será construída nos Estados Unidos.

VLADO

Vladimir Sacchetta, incansável pesquisador de documentos históricos, resgatou uma fotografia nítida do corpo de Vlado Herzog, na qual aparece a segunda barra horizontal da grade da cela onde ele teria se suicidado. Dela só se conheciam cópias borradas.

À época divulgou-se apenas uma fotografia que, astuciosamente, suprimia essa barra, situada uns 30 centímetros acima da primeira, que foi usada para amarrar a tira de pano com a qual ele teria se enforcado.

Havia uma cadeira na cela. Subindo nela, Herzog alcançaria a segunda barra e teria vão livre para se matar. Há casos de pessoas que se enforcam sem vão livre, mas são mais raros aqueles em que, dispondo dele, o suicida dispensa-o.

MISÉRIA AMERICANA

O senador Cyro Miranda (PSDB-GO) diz que "tenho pena daqueles que são obrigados a viver com R$ 19 mil líquidos".

O doutor tem um patrimônio declarado de R$ 3 milhões e queixa-se do fim dos 14º e 15º salários que recebia. Talvez seja demagogia lembrar que a renda média do brasileiro é de R$ 1.700.

Disseminou-se na nobiliarquia nacional a ideia de que ela ganha pouco. Um senador americano recebe US$ 174 mil anuais brutos, equivalentes a um salário brasileiro de R$ 24 mil, R$ 2,7 mil menos que o doutor Cyro Miranda. O tucanão deve ter pena de seus similares de Washington, pois eles levam para casa menos de R$ 19 mil líquidos mensais.

BOA NOTÍCIA

As coisas boas também acontecem. O ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, apresentou um estudo condenando a proposta de aumento do número de titulares da corte de 33 para 66. Ele disse ao repórter Rodrigo Haidar:

"Quanto mais se aumenta o número de juízes de um tribunal que tem como incumbência constitucional unificar a jurisprudência sobre o direito federal, pior. Corremos o risco de pulverizar a jurisprudência".

ERRO

A Sociedade de Amigos da Biblioteca Nacional informa e demonstra que a demissão do professor Luciano Figueiredo da direção da "Revista de História" deveu-se a razões administrativas.

Em janeiro, a revista colocou em seu site uma resenha do livro "A Privataria Tucana" que foi considerada ofensiva pelo presidente do PSDB. O texto foi expurgado, e seu autor, o jornalista Celso de Castro Barbosa, dispensado por Figueiredo.

No episódio, o professor esteve mais para lâmina do que para pescoço.

Hegemonia - de quem e de quê? - GAUDÊNCIO TORQUATO


O Estado de S.Paulo - 01/04/12


O termo é usado a torto e a direito, de acordo com as conveniências do interlocutor, nem sempre correspondendo à complexidade conceitual que efetivamente abriga, com base no conceito, formulado por Gramsci, de que hegemonia implica transformar ideologia e plataforma política de uma classe em escopo de uma era. No nosso cardápio cotidiano, a expressão "projeto hegemônico" reduz-se à ideia de amarrar um partido político ao tronco da perpetuação de poder. O exemplo a que se recorre é o Partido Revolucionário Institucional (PRI), que, ao controlar a máquina pública do México por 71 anos - de 1929 a 2000 -, foi guindado à posição de descobridor da "ditadura perfeita" por passar uma "eternidade" no poder sem golpes, participando de eleições periódicas e sob o pluripartidarismo.

No momento em que, por aqui, se formam alianças partidárias em torno do pleito municipal de outubro próximo, a polêmica sobre hegemonia volta à tona. O alvo do tiroteio é o PT, cuja meta de eleger o maior número de prefeitos, a partir das capitais e das grandes e médias cidades, acirra os ânimos de parceiros governistas, que o acusam de engendrar um projeto de domínio de longa duração.

Se a efetiva intenção petista é mesmo a de alargar os espaços municipais e estaduais para garantir o domínio sobre o imenso território federal (meta, aliás, comum aos partidos), precisa avaliar o risco de implementar a estratégia deixando aliados a ver navios. A estratégia de expansão de uma sigla tem que ver com a meta finalista dos atores políticos: conquistar o poder onde ele estiver. Chegar sozinho à direção do País é praticamente impossível na modelagem do chamado presidencialismo de coalizão. Por conseguinte, um partido deve abrir um olho para se ver e outro para enxergar os parceiros.

A concepção de que um único partido pode dominar a cena e intervir em todos os momentos da vida social e política, abrindo fronteiras nas camadas da população, é do velho Lenin e não condiz com os nossos tempos. A coerção, outro eixo da carroça hegemônica, não funciona mais. A esfera política, em todos os quadrantes, é plasmada pela expressão dos contrários. A contestação emerge até mesmo nas ditaduras (poucas) contemporâneas. Portanto, a ambição de um partido de tomar conta de todos os espaços, por uma infinidade de tempo, esbarra nos interesses da multifacetada cadeia partidária. Se os parceiros se sentirem excluídos do banquete, acabarão por se afastar da mesa em que permanecem sob desconforto.

Sob o ponto de vista ideológico, um projeto hegemônico é ainda mais complexo. Perguntas-chave: que ideologia deve compor a plataforma política? Que classe influenciará as outras? Como se recorda, Gramsci pregava a hegemonia de uma classe, à qual caberia o papel de persuadir os outros pilares sociais, constituindo-se, ela mesma, em síntese da coletividade.

Ora, o mundo mudou seus paradigmas. A arquitetura socialista desmoronou na onda do tsunami das economias abertas ao capital, cedendo lugar às alavancas da privatização de empresas, da concessão dos serviços públicos e da desregulamentação das relações de trabalho. Floresceu um ideário social-democrata, juntando vetores do velho socialismo e vertentes do mercado, cuja imagem, hoje meio borrada, mostra o Welfare State (o Estado de Bem-Estar), com seus programas de segurança do emprego, direitos da cidadania, justiça e integração social. Se alguém quiser identificar traços de hegemonia ideológica, enxerga a social-democracia, na qual se distinguem matizes de um bloco conservador, à direita, e sinais de um núcleo avançado, à esquerda. Não há fortes diferenças na moldura governativa de 24 Estados - oito governados pelo PSDB, seis pelo PSB, cinco pelo PMDB e cinco pelo PT.

No compartimento da hegemonia de classe, a impressão é de que se vê mais um retrato bolorento, dos tempos em que o planeta dava os primeiros passos na era industrial. A ditadura do proletariado, pensada por Lenin, e retomada por Gramsci, que inseriu a classe operária no patamar hegemônico, é figura aposentada na gramática política.

Vejamos o Brasil de hoje.

A classe C, chamada de nova classe média, abriga 95 milhões de brasileiros, detém 46,24% do poder de compra e é a maior do ponto de vista eleitoral e econômico. Mas não detém hegemonia de pensamento e sua influência é tênue. Nossa composição social é uma polifonia de vozes, ideias e sentimentos, embalados em costumes, tradições e culturas regionais. Somos uma sociedade que preza valores de convivência, harmonia, justiça e solidariedade. Radicalismos não criam raízes em nossa índole. Projeto sectário, que alimente polêmica ou provoque dissensão entre camadas sociais, soçobrará. Partidos nanicos até podem bater na tecla da luta de classes. Fazem seu papel. Não aumentam um palmo à sua altura quando vestem a indumentária da revolução industrial.

Incompreensível, isso sim, é o fato de um grande partido, como o PT, vir a público para tentar vender quinquilharias do arco da velha: a luta de pobres contra ricos, a defesa da supremacia socialista, a hegemonia da classe operária. Verbos em excesso não combinam com ações de menos. Traços de opulência agridem o desfile dos excluídos, que ainda existem. O olho do povo capta engodos. Todo o cuidado é pouco na construção de um projeto hegemônico. De partido, ideologia ou classe.