sábado, junho 27, 2020

O futuro que nos escapa - MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

O Estado de S.Paulo - 27/06

Hoje não temos governo e a boçalidade se instalou em diversos setores da vida nacional



Não é só pela pandemia, pela ameaça de uma segunda onda do vírus ou pelas indicações de que ninguém fica imunizado contra ele por muito tempo. Também não é só porque a OMS advertiu que a pandemia continua em expansão, com efeitos que serão sentidos por décadas. É por tudo isso, mas também porque estamos perdendo a ideia de futuro.

Ninguém sabe com certeza como será a retomada. Fala-se em “novo normal” como um esforço para afirmar que as coisas encontrarão um eixo, um padrão regular. É um reflexo automático daquela necessidade primal que temos de segurança, ordem, estabilidade, rotina.

A verdade é que o futuro está coberto por trevas obscurantistas e promessas de regressão. É como uma paisagem na neblina. Sabemos que há algo lá e que lá chegaremos, mas não conseguimos deslindar a imagem por inteiro. O futuro escapa-nos por entre os dedos. Não temos mais uma ideia de “progresso”, que moveu a modernidade e o capitalismo desde que se projetaram na História. Mas intuímos que não voltaremos a viver como nossos pais, mesmo que conservemos muito do seu legado de hábitos e valores. Estamos meio que a esmo, perplexos.

O arranjo socioeconômico, institucional, cultural é outro. A começar da família, que modelou até hoje a sociedade. Nossos filhos adotam novos formatos de vida familiar, de casamento, vivem juntos de maneira distinta, são felizes ou infelizes de um modo todo deles.

A mesma coisa na economia. Damos como óbvio que todos querem empregos estáveis, longas carreiras em empresas sólidas, rotinas estabelecidas, carteira assinada. Seria a receita contra a “precarização”, um remédio para valorizar o trabalho e os trabalhadores. Não sabemos se é isso mesmo que as pessoas querem. Talvez não seja a expressão do desejável para as novas gerações, mais chegadas ao improviso, à excitação do movimento, da velocidade. Também ignoramos se tal cenário é factível num mundo de tecnologias onipresentes e mudanças aceleradas. E as empresas, por sua vez, têm dificuldades para se reposicionar no mercado e reformular plantas e procedimentos.

Dá-se algo parecido na política. É quase impossível admitir que os partidos voltarão a ser o que foram no século 20, estruturas burocráticas, pesadas, focadas na conquista e no controle do poder, com dirigentes que se eternizam no cargo. A democracia está posta como valor, inquestionável para a maior parte dos humanos. Mas os sistemas democráticos estão em crise, são chantageados e corrompidos por líderes e movimentos fundamentalistas, que se querem “patrióticos”, mas minam sistematicamente as bases da Nação e do Estado.

A vida mudou, arrastando consigo as imagens que tínhamos do futuro. Diante de nós se abrem uma interrogação, muitas distopias e nenhuma utopia.

Foi-se o tempo em que o escritor suíço Stefan Zweig podia se encantar com o “país do futuro”, que ele via com uma generosa pitada de ufanismo, como uma comunidade que sabia harmonizar seus contrastes. Zweig viveu no Brasil entre 1940 e 1942, auge do Estado Novo e do hitlerismo, que avançava na Europa. Suicidou-se em Petrópolis.

De lá para cá, houve grandes transformações. Aprendemos muito, o País transfigurou-se de cima a baixo. Mas não temos motivos para nos ufanarmos. Continuamos a carregar o fardo da desigualdade. Nossa produtividade estagnou, junto com a educação. O Brasil está cheio de carências e buracos. Metade da população não dispõe de água encanada e saneamento básico. Hoje não temos governo e a boçalidade se instalou em diversos setores da vida nacional.

O futuro está oculto. Em parte porque pouco sabemos sobre ele e tememos o que imaginamos a seu respeito. E em parte porque o futuro, ele próprio, se oculta de nossos olhos, desarrumado pela realidade. Há um enorme volume de conhecimentos, mas não sabemos, com nossas ciências especializadas, como organizá-los de modo a capturar o fluxo, o processo. Precisamos de uma abordagem que ultrapasse as visões parceladas, “religue-as” (Morin) e apreenda o que está conectado, o todo.

O futuro, a rigor, já está aí, incorporado à vida cotidiana sem que percebamos. Não há por que fazer previsões proféticas. “A dificuldade de conhecer o futuro depende também do fato de que cada um projeta no futuro as próprias aspirações e inquietações”, escreveu certa vez Norberto Bobbio.

A ordem geral é sempre sobreviver. Não é por acaso que tanto se valoriza o aqui e agora, o que pode ser minimamente “apalpado”, é menos incerto e duvidoso.

Mas não há somente trevas à frente. Bem ou mal, o mundo se move, os protestos se acumulam, as perversões ficam mais transparentes, a ciência se afirma, a democracia permanece no horizonte. Buscamos o tempo todo ver além da neblina, para agarrar o futuro que nos escapa.

Para sobreviver com dignidade precisamos manter a lucidez e a serenidade, combinando-as com a indignação que nos faz recusar injustiças, nos mobiliza e nos ajuda a manter a esperança e a grandeza de espírito. Essas são nossas estrelas-guia.

Professor titular de teoria política da Unesp

Bolsonaro ensaia estilo ‘paz e amor’ para defender os filhos e o governo - GUSTAVO URIBE

Folha de S. Paulo 27/06

Presidente recuou nos últimos dias em conduta agressiva e tem feito gestos de pacificação ao Judiciário e Legislativo


Em uma tentativa de diminuir o desgaste do governo e proteger os filhos, o presidente Jair Bolsonaro deixou de lado nos últimos dias a postura beligerante, deu uma guinada em seu discurso público e passou a adotar um estilo “paz e amor”.

Nas duas últimas semanas, marcadas por operações policiais contra alvos próximos à sua família, o presidente recuou em conduta agressiva e fez gestos de pacificação ao Judiciário e ao Legislativo.

A mudança de postura —ao menos por enquanto— ocorreu após pelo menos dois integrantes da equipe ministerial terem recomendado ponderação ao presidente: Fernando Azevedo (Defesa) e Fábio Faria (Comunicações).

De acordo com assessores palacianos, ambos sugeriram a Bolsonaro que ele intensifique o diálogo tanto com o Judiciário como com o Legislativo na tentativa de evitar novos reveses, entre eles contra seus filhos.

Na quinta-feira (25), por exemplo, ao lado do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Dias Toffoli, Bolsonaro defendeu, em evento no Palácio do Planalto, a cooperação e a harmonia entre os três Poderes.

"Esse entendimento, essa cooperação, bem revela o momento que vivemos aqui no Brasil”, disse. “O nosso entendimento, no primeiro momento, é que pode sinalizar que teremos dias melhores para o nosso país", acrescentou.

Na quinta-feira (25), em um movimento que surpreendeu a classe política, nomeou o economista Carlos Decotelli, conhecido pelo perfil moderado e técnico, para o comando do Ministério da Educação.

O esperado, até mesmo por ministros palacianos, era que Bolsonaro mantivesse a pasta sob o controle de um nome olavista, que repetisse a linha ideológica adotada pelo antecessor Abraham Weintraub.

Ainda no mesmo dia, em live nas redes sociais, o presidente prestou homenagem às vítimas do novo coronavírus, destoando da defesa que tem feito desde o início da pandemia de que se trata de uma “gripezinha” que não pode interromper a atividade econômica.

“Sei que muitos programas de rádio pelo Brasil, às 18h, tocam a música 'Ave Maria'. Queria então prestar uma homenagem aos que se foram, vítimas do coronavírus”, pediu Bolsonaro ao presidente da Embratur, Gilson Machado, que a tocou em uma sanfona.

Em conversas reservadas, Bolsonaro tem demonstrado preocupação com as situações jurídicas do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ).

Segundo relato de um deputado bolsonarista, o presidente chegou a se emocionar recentemente ao citar a possibilidade de uma operação ou de uma prisão de seus dois filhos mais velhos.

O receio começou na semana passada, quando a Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão contra aliados do governo em inquérito sobre protestos antidemocráticos.

A operação não foi a primeira determinada pelo STF contra entusiastas do presidente. No final de maio, ativistas bolsonaristas também foram alvos no inquérito das fake news.

As duas investigações têm como relator o ministro Alexandre de Moraes, que citou a suspeita de participação do chamado “gabinete do ódio” em um esquema para disseminar notícias falsas e ofensas contra autoridades.

O "gabinete do ódio", bunker digital do Palácio do Planalto, é formado por três assessores presidenciais e é tutelado por Carlos, que coordenou a estratégia digital da campanha eleitoral bem-sucedida do pai, em 2018.

Após a segunda operação, realizada no início da semana passada, o presidente, que tinha como hábito fazer ataques diretos à corte, citando-a nominalmente, diminuiu o tom e começou a fazer apenas críticas indiretas.

A mudança de postura era ainda pontual, mas teve de ser ampliada após uma nova crise envolvendo outro filho.Naquela quinta-feira (18), foi preso o policial militar aposentado Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio. Ele é investigado por participação em suposto esquema de “rachadinha” no ex-gabinete do senador, quando ele era deputado estadual no Rio de Janeiro.

Os dois episódios impactaram o presidente, segundo aliados próximos, que decidiu deflagrar no mesmo dia uma operação de pacificação. Naquela tarde, Bolsonaro demitiu Abraham Weintraub, que havia insultado o STF e era desafeto tanto do Supremo como do Congresso.

E se reuniu no gabinete presidencial com deputados federais do centrão. No encontro, segundo relatos de presentes, ele teceu elogios ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), com quem já protagonizou diversas trocas de críticas durante o mandato.

No dia seguinte, para reforçar o gesto, o presidente enviou a São Paulo três ministros para um encontro com Moraes. Na reunião, segundo relatos de presentes, foi dado o recado de que Bolsonaro está disposto a iniciar uma nova relação com o STF.

Nesse sentindo, o presidente decidiu estender bandeira branca ao futuro presidente do Supremo, Luiz Fux, e, por meio de interlocutores, informou ao ministro que quer construir um canal de diálogo com ele, evitando uma fissura permanente.

Na avaliação de deputados bolsonaristas, o movimento em relação ao Legislativo, além de evitar a instauração de um processo de impeachment, também tem como objetivo tentar proteger Flávio.

O Conselho de Ética do Senado analisa representação que pede a cassação do mandato do filho do presidente. A prisão de Queiroz levou a Rede a pedir inclusive urgência na abertura do processo.

Apesar de a nova postura de Bolsonaro ser elogiada tanto por integrantes do Legislativo como do Judiciário, ela ainda é vista com certo ceticismo.

Eles lembram que o presidente já ensaiou moderação em outros momentos no qual se sentiu acuado, mas que voltou a adotar um discurso beligerante após não se sentir mais ameaçado.

O silêncio vale ouro - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 27/06

Pode ser que, a qualquer momento, a natureza de Bolsonaro fale mais alto, mas o clima de Brasília desanuviou um pouco em razão desse mutismo bolsonarista


Desde sua posse, em janeiro do ano passado, praticamente não houve um único dia em que o presidente Jair Bolsonaro não desse alguma declaração que alimentasse o confronto com todos os que considera seus rivais, reais ou imaginários. Construiu sua Presidência na base dessa guerra permanente, para frenesi de suas hostes radicais e desespero do resto do País. Entendimento, quando havia, era apenas circunstancial: servia somente a algum propósito tático, sem qualquer expectativa de construção de uma governança estável e sólida.

Eis então que, de uns dias para cá, o presidente decidiu silenciar. Pode ser que, a qualquer momento, a natureza de Bolsonaro fale mais alto e ele perca novamente as estribeiras, alinhando-se a manifestações golpistas e desafiando as instituições republicanas, mas o fato é que o clima de Brasília desanuviou um pouco em razão desse recente mutismo bolsonarista.

O contexto indica que o silêncio do presidente provavelmente se deva aos contratempos que ele, seus filhos, alguns de seus parlamentares de estimação e empresários simpatizantes enfrentam na Justiça. A prisão de Fabrício Queiroz, o notório ex-assessor de Flávio Bolsonaro, filho de Bolsonaro e hoje senador, parece ter sido o fato determinante para que ele afinal se recolhesse. Não se sabe o que o caso Queiroz pode revelar, mas há suspeitas de traficâncias diversas que podem comprometer a família presidencial – ao mesmo tempo que avançam inquéritos em outras frentes, alguns dos quais tocados por um STF que já demonstrou suficiente resiliência para resistir às estocadas bolsonaristas.

Alguém de bom senso no governo deve ter finalmente convencido Bolsonaro de que a manutenção da estratégia de atrito queimaria as últimas pontes com as instituições que têm poder de encurtar seu mandato e também de punir crimes com os rigores da lei. E o que não faltam, como se sabe, são motivos para embaraçar Bolsonaro.

Pode ser também que tenha ficado claro para o presidente que ele talvez não disponha do apoio militar que julgava ter, a despeito de ter se cercado de generais reformados e da ativa em seu Ministério e de, a todo momento, referir-se às Forças Armadas como se estivessem a seu serviço e respondessem a seu comando em qualquer circunstância.

Seja qual for a explicação, é forçoso reconhecer que a política nacional vive raríssimo momento de calmaria. E isso bastou para dar à gestão de Bolsonaro uma feição semelhante à de um governo. O presidente acelerou a negociação com sua base parlamentar e, com isso, já há movimentação para que o governo apresente projetos com vista à recuperação do País depois da pandemia. Além disso, nomeou um ministro da Educação que não só é considerado bem melhor do que o antecessor, o que não é uma façanha, mas um que parece disposto ao diálogo com o Congresso e com os Estados – algo que destoa frontalmente do bolsonarismo radical, que havia tomado a Educação como sua cidadela.

Isso não significa nem que as negociações do governo com parlamentares sejam necessariamente hígidas – pois têm envolvido partidos conhecidos por seu notório apetite por cargos e verbas – nem que os projetos governistas sejam realmente bons para o País. Contudo, tendo em vista a paralisia quase total do governo, prisioneiro da retórica incendiária de Bolsonaro e da ala lunática da Esplanada dos Ministérios, trata-se de um avanço e tanto.

Depois de um ano e meio de mandato, o governo Bolsonaro, pelo menos por alguns dias, começa finalmente a ser tratado, com alguma boa vontade, como “normal”. Isso mostra que o foco de instabilidade do governo e, por extensão, do País era o próprio presidente – que até agora não havia descido do palanque e que tratava como desafetos todos os que não o aceitassem como o “messias” que veio salvar o Brasil.

Nada garante que o presidente não sofrerá alguma recaída em breve, especialmente porque os processos judiciais que decerto o deixam nervoso correm independentemente de sua vontade ou de qualquer gesto seu – e assim devem continuar, tirando o sono de quem tem contas a acertar com a Justiça. Mas, graças à calmaria aparente, o País tem a oportunidade, finalmente, de aquilatar o trabalho do presidente da República pelo que é, sem a distração constante dos ruídos causados pela sua lamentável capacidade de alimentar polêmicas inúteis e de menosprezar a democracia. Se o julgamento lhe será favorável, são outros quinhentos.

Wassef: 'Não se deve dar as costas para aliados' - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 26/06


Quando Fabrício Queiroz foi preso num simulacro de escritório de Frederick Wasseff em Atibaia, confesso que tive má impressão do então advogado da família Bolsonaro. O doutor parecia ter violado a ética da advocacia e a própria legislação. Mas depois de ler as manifestações mais recentes de Wasseff fiquei me sentindo culpado por desconfiar dele. Estamos diante de uma alma superior.

Wasseff contou à revista Veja que soube que Fabrício Queiroz estava às voltas com um câncer. Ficou sensibilizado. O amigo Jair Bolsonaro tinha cortado contato com Queiroz. O ex-chefe Flávio Bolsonaro se distanciou completamente do operador da rachadinha. E Wasseff decidiu ajudar. Fez isso não porque era advogado de Flávio, mas por razão "100% humanitária", como declarou este ser humano especial.

Depois, Wasseff descobriu que havia uma trama para matar Queiroz e colocar a culpa na família Bolsonaro, acusando o presidente e seu filho de queima de arquivo para evitar uma delação. O que seria, naturalmente, uma fraude. A partir desse momento, além de proteger a vida de Queiroz, Wasseff passou a favorecer o presidente e seu filho, evitando que um cadáver lhes caísse no colo. Fez isso sem avisar aos Bolsonaro. O presidente poderia ter acionado a Polícia Federal. Mas por que preocupá-lo com algo tão trivial? O doutor revelou-se um sublime cultor da amizade.

Tratado como criminoso, Wasseff diz que o Judiciário e o Ministério Público do Rio deveriam lhe agradecer. Não fosse por suas iniciativas, Queiroz não estaria vivo. Bolsonaro e sua família estariam sendo investigados por um suposto assassinato. O advogado disse ter pedido desculpas ao presidente pelos dissabores que possa ter causado. Mas não receia ser esquecido pela primeira-família. Além de todas as qualidades que fazem dele um ser notável, Wasseff realça sua lealdade. "Não traio ninguém nunca."

Wassef pronunciou uma frase simbólica: "Não se deveria virar as costas para antigos aliados." Um observador maldoso poderia interpretar como um recado. Mas Wasseff se declara apaixonado por Bolsonaro: "Amo o presidente", disse ele. Confesso que fiquei decepcionado comigo mesmo por ter pensado mal de alguém como o doutor Wasseff. Se alguém tem culpa nessa história, sou eu.