segunda-feira, agosto 05, 2019

O historiador Salem Zoar - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 05/08

O que levaria ao suicídio do ser maior, o universo?

A negatividade em filosofia tem longa credencial. Negatividade é um nome chique para crítica, pessimismo, acosmismo (negação de que exista alguma ordem de sentido nas coisas ou que exista, sim, uma perversa), enfim, para concepções que retiram de nós a esperança.

A tragédia grega ática e o niilismo moderno são exemplos sofisticados. Uma de suas grandes forças é desmascararem negativos gourmets que andam por aí posando de pessimistas.

Entre essas formas de negatividade se encontram as distopias, como “1984”, de George Orwell, “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, e “A Revolta de Atlas”, de Ayn Rand.

Os gnósticos cristãos, no início da era cristã, o zoroastrismo persa, mais antigo, o maniqueísmo iraniano —uma forma de cristianismo influenciada pelo pessimismo cosmológico persa—, também do início da era cristã, são formas de espiritualidade negativa. Nos três casos, quem criou o mundo foi uma divindade
cruel. Agora, temos um gnóstico entre nós, o filósofo Carlos Malferrari, o discreto.

Sei que muitos seguidores das novas espiritualidades dizem que são gnósticos, mas, coitados, não sabem o que dizem.

Para ser um herdeiro verdadeiro do gnosticismo antigo (além de dever possuir um enorme repertório no gnosticismo antigo), você deve sustentar uma melancolia ontológica profunda que se manifesta numa desesperança assustadora.

A moçada das novas espiritualidades, em geral (com raras exceções), é gente infantil que crê na “força” em Thor e vê a Mulher Maravilha como a prova de que o mundo originalmente era matriarcal. Neste último caso específico, uma espécie de idiota de gênero sem doutorado.

Um exemplo de artista importante que já demonstrou possuir uma percepção gnóstica de mundo é o dinamarquês Lars von Trier, que sempre apanha por isso.

“O Delírio Filosófico do Historiador Salem Zoar”, escrito pelo filósofo Carlos Malferarri, o discreto, ainda sem editora, é um exemplo primoroso desse estilo distópico, que guarda uma semelhança significativa com as cosmogonias gnósticas pessimistas em que o mundo é criação de um demiurgo idiota, orgulhoso e incompetente.

Só que nosso filósofo gnóstico paulista narra uma escatologia (o fim do universo), e não uma cosmogonia (origem do universo), de têmpera gnóstica, e seu agente é a estupidez humana. Nós somos os demiurgos. E o universo “desiste” de si mesmo por conta disso.

Importante não dar spoiler sobre o curso da narrativa de nosso “herói”, o historiador
Salem Zoar, alter ego de Carlos Malferrari, o discreto. Salem, por si só, já é um nome que nos remete a Jerusalém, às bruxas de Salem ou mesmo a Matusalém —personagem bíblico famoso por viver mais do que o normal entre os homens.

Zoar, claramente, nos leva à cabala e a narrativas cosmogônicas típicas dessa espiritualidade judaica antiga. Mas é o delírio, enquanto tal, que nos importa e nos atormenta.

O livro de Malferrari é uma crítica à modernidade e sua “causa pelo progresso”, que começa tornando o elétron livre um escravo na corrente elétrica.

Sua intuição inicial é cosmológica e só em seguida revela seu vínculo humano. O delírio se abre com a desistência do universo por si mesmo: ele para. Suas partículas “se suicidam”. O movimento, causa profunda do universo ser o que ele é, cessa e daí as consequências que se seguem. O que levaria ao suicídio do ser maior, o universo? Evidentemente eu não vou lhe dizer.

Mas, entre tantas coisas, uma eu posso contar, para dar a você um gostinho da força dessa narrativa discreta acerca de nossa vaidade moderna. Num dado momento, antes do momento final do Ser, a humanidade atinge seu objetivo “científico” maior: a imortalidade. Entre tantas ferramentas possíveis para tal, duas chamam a atenção do leitor treinado no olhar negativo para com o momento contemporâneo.

A primeira é a “descoberta científica” de que células cancerosas podem ser uma grande ajuda para nos tornarmos imortais —basta lembrarmos da “tenacidade em existir” que caracteriza a célula como essa. Uma vez descoberto tal passo, as pessoas passam a induzir câncer em si mesmas, apesar do fedor e da deformação que elas causam.

A segunda é a maior de todas: a descoberta de que comer fezes, principalmente as próprias fezes, nos fazem imortais. A alimentação “saudável” muda e a ciência da nutrição passa a defender saladas
feitas de cocô. Estamos quase lá, não? Merda é natural e orgânica, afinal de contas.

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

Minerando o sono - RONALDO LEMOS

FOLHA DE SP - 05/08

Tecnologia começa a ocupar o sono e pode virar novo território para coleta de dados


Um amigo comprou há pouco uma dessas pulseiras digitais que são usadas o tempo todo para monitorar dados de atividade física (quantos passos você deu etc.) e também a quantidade e a qualidade do sono de cada noite.

Enquanto você dorme, a pulseirinha fica analisando a hora exata em que você apagou, quanto tempo ficou rolando na cama, quantas horas teve de sono profundo, de sono leve e de REM (“Rapid Eye Movement”, fase dos sonhos mais intensos).

Depois de analisar tudo isso, o aplicativo da pulseira faz um ranking de quem dormiu melhor naquela noite, comparando todos os usuários. No caso do meu amigo, na sua primeira noite com o aparelho, ele tinha dormido melhor que 98% de todas as pessoas no país.

Considerando que ele estava na China, fiquei impressionado com sua capacidade de dormir bem e, na mesma medida, preocupado com a conquista do sono como novo território para a coleta de dados.

O fato é que as tecnologias de monitoramento do sono não estão só nas pulseirinhas. Há também uma onda de colchões inteligentes, conectados à internet. Um exemplo é o Eight Sleep. A ideia é um colchão que manipula os ciclos do sono, permitindo que o dorminhoco possa dormir menos e descansar mais, ganhando tempo para fazer mais coisas acordado.

O colchão monitora cada movimento, virada ou variação de temperatura do corpo. No momento em que a pessoa está adormecendo, ele aquece. Quando a pessoa adormece, ele diminui um pouco a temperatura, aprofundando assim o ciclo de sono profundo (de acordo com o fabricante).

Para acordar, o colchão usa um alarme térmico: ele resfria o corpo a até 12ºC para acelerar os batimentos cardíacos, levando ao despertar sem ficar grogue. Tudo isso usando inteligência artificial.

O preço? Vai de US$ 2.000 a US$ 5.000 (de R$ 7.800 a R$ 19,5 mil). Em uma entrevista à jornalista Arielle Pardes, da revista Wired, o inventor da geringonça disse que o colchão permite dormir apenas seis horas por noite, gerando “seis anos a mais acordado durante a vida”.

Os mais radicais podem optar talvez por um produto como o Dreem, uma faixa cheia de sensores para ser usada na cabeça no estilo tenista dos anos 1970. O aparelho promete “precisão de laboratório” no monitoramento do sono.

Em vez de alterar a temperatura, o Dreem tem outra estratégia. Usa efeitos sonoros para aprofundar o ciclo do sono. Por exemplo, produz o “pink noise” (ruído rosa), que, segundo alguns estudos, é capaz de ampliar as ondas cerebrais durante o sono profundo.

Todos esses produtos têm por característica o fato de transformar a experiência privada do sono em um território público. Os dados coletados por meio deles podem ser compartilhados, agregados, processados e assim por diante.

Mais do que isso, trazem competição ao sono. Quem dorme melhor? Como estou dormindo comparado aos meus vizinhos? Em outras palavras, a tecnologia não só ocupa cada momento em que estamos acordados mas começa a ocupar também o sono.

Acertou na mosca Jonathan Crary no livro “24/7: Capitalismo Tardio e os Fins do Sono”, boa reflexão teórica sobre o tema, que ficou para trás em face das práticas atuais. Preciso perguntar a meu amigo se ele continua dormindo bem. Não vai ser surpresa se sua qualidade de sono tiver deteriorado desde que comprou sua pulseirinha.

READER

Já era Hambúrguer e ovo só de origem animal


Já é A onda do hambúrguer vegetal

Já vem O ovo vegetal

Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Abono salarial para quem realmente precisa - ROGÉRIO MARINHO

FOLHA DE SP - 05/08

Proposta de revisão beneficiará os mais pobres


O benefício do abono salarial surgiu na Constituição Federal de 1988 com o objetivo de complementar a renda dos trabalhadores formais de baixa remuneração. O cenário era outro: o salário mínimo estava extremamente desvalorizado em termos reais, e o Brasil enfrentava uma crise inflacionária. Essa política foi necessária à época, mas não acompanhou as transformações sociais e econômicas do país.

Em dezembro de 1990, ano da regulamentação do abono, o salário mínimo tinha poder de compra quase três vezes menor que em dezembro de 2018. Esse movimento de valorização permitiu uma perda de foco do programa. Se em seu início o abono estava voltado para os trabalhadores de baixa renda, tendo como público potencial beneficiário cerca de um quarto do mercado formal de trabalho coberto pela Relação Anual de Informações Sociais (Rais), atualmente esse referido potencial abrange cerca de metade dos trabalhadores formais cobertos por esse parâmetro. Em 1990, apenas 27% dos trabalhadores formais recebiam até dois salários mínimos, contra 51,7% em 2017, de acordo com a Rais.

Um programa focado no mercado formal e que compreende cerca de metade dos vínculos formais necessariamente acabará incluindo pessoas que não estão nos estratos inferiores de renda da população, que em muitos casos buscam sua sobrevivência na informalidade. Além disso, como o critério de renda é individual, e não familiar, abre-se espaço para que, por exemplo, pessoas de famílias ricas possam receber o abono salarial.

Com essas profundas transformações, tornou-se fundamental reavaliar o abono para aprimorar o foco de políticas de transferência de renda, inclusive previdenciária, que ainda não se mostram adequadas para reverter de forma mais eficiente a desigualdade; e ao mesmo tempo garantir o financiamento do seguro-desemprego e das políticas ativas de mercado de trabalho.

Diante desse quadro, para melhorar a eficiência da política, surge a proposta de revisão da regra de acesso ao abono dentro da Proposta de Emenda à Constituição da Nova Previdência, pela qual ficaria restrito aos trabalhadores que atingiram remuneração de até R$ 1.364,43, com todas as demais condições mantidas constantes. O abono terá melhor focalização nos mais pobres e irá atender ainda um número significativo de trabalhadores.

A maior focalização do abono nos mais pobres implica, também, melhora do perfil distributivo do benefício. Estudos mostram que há grande representação dos beneficiários do abono na metade da população que ganha mais. A alteração do critério de renda proposto carrega consigo maior participação dos trabalhadores pertencentes aos estratos mais baixos da distribuição de renda. Portanto, a alteração melhorará o caráter distributivo do abono.

No tocante ao avanço da despesa, a cobertura do abono apresentou crescimento em termos reais expressivos, com aumento na quantidade de benefícios em mais de cinco vezes em comparação com o início da década de 1990.

O custo do benefício também aumentou de forma insustentável, não apenas pelos reajustes do salário mínimo, mas também por esse crescimento vegetativo dos beneficiários. O gasto com pagamentos do abono salarial passou de R$ 327 milhões no ano calendário 1994/1995 para R$ 16,7 bilhões em 2017/2018.

As estimativas de impacto realizadas pela Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia indicam que, com a melhor focalização do abono salarial, será possível uma economia de R$ 76,4 bilhões ao longo dos próximos dez anos. Fora a questão da sustentabilidade fiscal, a mudança irá permitir melhor priorização nos mais pobres e maior espaço fiscal para o financiamento do seguro-desemprego e das políticas ativas de mercado de trabalho.

Assim, a alteração proposta para o abono salarial é simultaneamente a modernização e o reforço dos preceitos originais da política, pois busca a redução da pobreza e da desigualdade de renda, mas com mais foco e mais eficiência no uso do recurso público.

Rogério Marinho
Secretário especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia

Cordiais cortadores de cabeça - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 05/08

O que se coloca pela frente não é apenas brigar com Bolsonaro. O essencial hoje é pensar em como sobreviver à sua passagem

Nossa geração foi educada na crença de que os brasileiros são cordiais. Um profeta popular como Gentileza e sua frase “gentileza gera gentileza” pareciam confirmar essa tese. Se acreditasse nisso, estaria, como algumas senhoras da minha idade, postando fotos do sol nascente com a frase “mais um dia maravilhoso em nossa vida”.

Ultimamente, temos decapitado muito. Constatei isso em Pedrinhas, no Maranhão, em Manaus e, agora, dizem os jornais que dos 58 mortos em Altamira 16 foram decapitados.

Não conheço lugar do mundo em que isso aconteça com tanta intensidade. O Estado Islâmico, que usou a decapitação como espetáculo, parece que encerrou a temporada. Lembro-me de alguns casos no Haiti, mas isso num período de intensa luta política.

A novidade no caso é que o presidente do país não condena essas execuções e aconselha a pensar nas vítimas dos decapitados, e não nas suas cabeças cortadas. Isso nos dá uma sensação de barbárie. Mesmo os defensores da pena de morte a aceitam depois de um julgamento legal. No Brasil de hoje, as grandes organizações criminosas acabam ganhando o direito de matar, após um julgamento sumário.

Na mesma semana, Bolsonaro resolveu, sem nenhuma base, desenterrar um morto para desonrá-lo. Todos os que acreditam no respeito humano protestaram.

Ao remover o passado para soprar as cinzas e fazer algum fogo, Bolsonaro questiona um dos fundamentos do nosso processo de democrático. Ele se fez num quadro conciliatório de anistia geral. Os atores radicais da época perceberam que estavam envoltos nas turbulências da Guerra Fria e expressavam internamente aqueles conflitos da época.

De agora em diante, muitas divergências não desapareciam, mas a novidade é que seriam resolvidos pacificamente num processo democrático. Mais ainda: apesar das divergências que eventualmente sobrevivem, havia um imenso campo em que, apesar delas, trabalhar lado a lado para resolver alguns problemas do Brasil.

Por que Bolsonaro revolve as cinzas de uma fogueira extinta e sopra tentando reanimar as chamas? Não estamos mais naquela época, ele mesmo sabe.

Bolsonaro tem Trump como ídolo, e parece que seu guru é Steve Bannon, cuja visão é a de promover uma guerra contínua a partir do próprio governo.

Na esquerda, já se discutiu isso em outro contexto e outro nível de profundidade, quando Troski defendia a tese de uma revolução permanente.

Muitos afirmam que as táticas de Trump e Bolsonaro têm uma grande eficácia eleitoral. Isso ainda não foi demonstrado, uma vez que não houve nova eleição.

A situação do Brasil é diferente. Vivemos ainda numa grande crise econômica, o presidente não tem um Partido Republicano no Congresso. E, finalmente, o fator subjetivo: nosso temperamento é diferente não só pela cultura como pelo fato de não termos enfrentado tantas guerras como eles.

É muito possível que a tática de Bolsonaro o leve à sua verdadeira dimensão política: o líder de uma ala radical da direita longe de ser aprovado pelos 57 milhões de eleitores.

Ele não só rompeu com uma espécie de acordo no qual o presente e o futuro importam mais que o passado. Busca destruir uma política ambiental de quase três décadas. Não é perfeita, tem lacunas imensas como o saneamento básico, mas ainda merecia respeito internacional.

A tese dos que veem eficácia na guerra permanente de Bolsonaro não levam muito em conta o potencial de seus eleitores compreenderem seus erros.

O que se coloca pela frente não é apenas brigar com Bolsonaro. O essencial hoje é pensar em como sobreviver à sua passagem, construindo um horizonte que passa pela reconstrução econômica, mas vista como algo maior. Não é possível crescer sem uma política adequada de educação. Muito menos com uma visão destrutiva do meio ambiente.

Esses temas não têm um condão mágico. Mas quem os subestima abertamente tende a um isolamento relativo, entra em confronto com a ciência, nega valores humanos, flerta com a barbárie.

E acaba contando apenas com a ideia de uma guerra permanente. Umberto Eco, no seu livro “O fascismo eterno”, revela com ironia: “Em maio ouvíamos dizer que a guerra tinha acabado. A paz me deu uma sensação curiosa. Tinham me dito que a guerra permanente era a condição normal de um jovem italiano.”

A lógica do destempero - DENIS LERRER ROSENFIELD

ESTADÃO - 05/08

Não há incontinência verbal, mas a lógica de um projeto de poder, muito bem pensada

As manifestações intempestivas do presidente da República, suscitando confrontos permanentes, aparecem como formas de descontrole, quando são, na verdade, lógicas segundo sua arte de governar. São coerentes não apenas com o seu estilo pessoal, mas também, e sobretudo, com sua forma de fazer política.

Somente agora completa o novo governo sete meses, porém tem-se a impressão de que alguns anos já transcorreram. Discute-se a sucessão presidencial como se as eleições já estivessem ali adiante, expondo um quadro de envelhecimento precoce do governo. Nestes poucos meses ele ainda não disse ao que veio, mas novas eleições já entraram em pauta.

A duras penas completou o novo governo a aprovação da primeira rodada de votações da reforma da Previdência na Câmara dos Deputados. O processo, provavelmente, não se concluirá no Senado antes de outubro, no que se configura o início de um duro processo de retomada do crescimento. No entanto, o debate público é regido por questões manifestamente menores, como liberação de cadeirinhas para crianças nos automóveis, porte de fuzis, nomeação de um filho para embaixador, acusações de que o pai do presidente da OAB teria sido “justiçado” por seus “companheiros” durante o regime militar, e assim por diante. Há uma evidente confusão entre o principal e o acessório. A comunicação social do presidente é manifestamente falha. Só agrada aos fiéis e aos já convertidos.

Note-se que o governo, em vez de se beneficiar dos seus feitos – como o começo da aprovação da reforma da Previdência, a lei sobre o direito à legítima defesa (depurada de seus excessos), a concessão de aeroportos, o debate sobre a necessidade das privatizações, o início de desburocratização administrativa via eliminação de decretos, portarias e conselhos –, se perde em pautas claramente secundárias, ofuscando o que faz pelo País. Há uma inversão: o principal sai de foco e entra em seu lugar o subsidiário.

Qual é a lógica? Certamente não é a arte de governar, pois esta exigiria uma atenção às políticas públicas voltadas para tirar o País do marasmo de uma economia que patina e de um desemprego que aterroriza milhões de brasileiros. A insegurança pessoal ronda boa parte da população. Em seu lugar entra um conjunto de questões menores que diz respeito à concepção política dos bolsonaristas, voltada para o embate permanente, sempre à caça do inimigo real ou imaginário, não importa. O que conta é a “existência” do inimigo, real ou não.

Quando o presidente confronta opositores, logo tomados como inimigos, logo o faz sob a forma do embate, como se ele próprio estivesse em questão, como se estivesse sendo atacado. Qualquer ocasião é aproveitada segundo sua intuição dos dividendos que poderá extrair do confronto. Precisa do embate para fortalecer a própria posição, sentindo-se ameaçado. Tal processo funcionou muito bem durante a campanha eleitoral, particularmente propícia para a “destruição do inimigo”, no caso, o PT. Deixa, porém, de funcionar quando se aplica à arte democrática de governar, baseada na negociação e na composição com os adversários.

Tomemos o caso do confronto com o presidente da OAB. Em aparente descontrole, o presidente fez acusações, sem nenhuma prova, ao pai do dr. Felipe Santa Cruz, procurando criar uma instabilidade no interlocutor. Tratou-se de um ato gratuito, fora de contexto, sem nenhuma compaixão. A moral foi para o espaço. A liturgia do cargo foi abandonada. Suscitou um problema que não deveria sequer ter sido levantado. Por que o fez?

Procurou trazer para o debate político a questão do “justiçamento” dos que participaram da luta armada para a instauração do socialismo/comunismo no Brasil. Ressalte-se: não lutaram pela democracia. Eram “companheiros” que não mais concordavam com o uso da violência, que discordavam ou, simplesmente, pretendiam voltar a uma vida normal. Eram tidos por “suspeitos” ou ”traidores”. Foram “julgados” por “tribunais populares” e sumariamente assassinados. Tais casos, porém, não foram investigados pela Comissão da “Verdade”, por contrariarem a narrativa de que a “esquerda” seria “vítima” e lutava pela “democracia”. Acontece que o caso específico do pai do presidente da OAB não se enquadra nesse tipo de fato, tendo sido atestada sua morte, seu “desaparecimento”, nas mãos de órgãos do Estado.

Ora, o presidente, ao suscitar um problema histórico e mal aplicá-lo ao caso em questão, trouxe a entidade dos advogados para o embate político, realçando seu perfil de esquerda e colocando-a como “inimiga”, na esteira de outros ataques ao PT. Ou seja, o presidente precisa do PT e da esquerda em geral para se justificar, para manter em movimento o seu embate político, pois é essa narrativa que o seu grupo pensa ser a sua forma de sustentação. Se 2022 é o horizonte, é necessário que sua narrativa seja preparada desde já. O “inimigo” deve estar agora presente. Se o PT não existisse, seria necessário criá-lo.

Na verdade, o inimigo real dos bolsonaristas não é o PT, mas o centro do espectro partidário, que se pode apresentar nas próximas eleições em figuras como o governador João Doria ou o apresentador Luciano Huck. Eles são os alvos ocultos. Pense-se, por hipótese, que os bolsonaristas representam em torno de 30% dos eleitores e o PT e a esquerda, outros 30%. O embate entre os dois grupos favorece ambos, excluindo terceiros. O presidente Bolsonaro está voltado para o fortalecimento de seu eleitorado, de seus fiéis, apostando que o adversário num eventual segundo turno seria o PT. Suas chances eleitorais seriam grandes. Se, contudo, o PT não tiver condições de chegar ao segundo turno, entrando em seu lugar Doria ou Huck, o presidente estaria seriamente ameaçado.

Não há incontinência verbal, mas a lógica de um projeto de poder, muito bem pensada.

DENIS LERRER ROSENFIELD É PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFGRS.

Dodge faz a lição de casa para ser reconduzida por Bolsonaro - LEANDRO COLON

FOLHA DE SP - 05/08

O subprocurador Augusto Aras é o preferido, mas atual chefe da PGR emite sinais para ficar


Raquel Dodge deu a senha a Jair Bolsonaro no dia 7 de junho. “Estou à disposição, tanto da minha instituição quanto do país, para uma eventual recondução”, disse a procuradora-geral da República sobre o desejo de permanecer no posto.

Desde então, a chefe da PGR intensificou uma articulação nos bastidores, sustentada em alguns ministros do STF e parlamentares influentes. Em outra ponta, emitiu sinais para os pares no Ministério Público Federal, com os quais travou embates nos últimos dois anos. Não à toa, não quis disputar a lista tríplice da associação da categoria —provavelmente ela seria derrotada pelos colegas.

E Dodge fez o mais importante: aproximou-se de Bolsonaro,denunciado por ela por racismo e dono da caneta da indicação do próximo PGR.

Ao recorrer da decisão de Dias Toffoli (STF) que limitou o uso de dados do Coaf em investigações no país, Dodge deixou a porta aberta para manter parado o inquérito sobre Flávio, filho do presidente. Ela pede que Toffoli se limite ao caso do senador do PSL-RJ, que pediu a suspensão da apuração até análise em plenário, prevista para novembro. A procuradora-geral cumpriu o papel de recorrer, mas tomou cuidado para não incomodar o Planalto.

Depois de esnobar os colegas de Lava Jato em Curitiba por longo período, Dodge passou a bater bola com procuradores da força-tarefana reta final da sucessão na PGR.

A procuradora-geral, que evita a imprensa e o contraditório, faz vista grossa para a gravidade das mensagens trocadas por Deltan Dallagnol, pego atropelando regras de conduta, forjando a criação de empresa para levar dinheiro com palestra e usurpando competência ao estimular a investigação de ministro do STF.

Para Dodge, nada disso é preocupante, afinal ela precisa agora do respaldo de alas estratégicas da categoria, como a de Curitiba. No Planalto, o subprocurador Augusto Aras, que se mostrou pouco disposto a atrapalhar o governo na PGR, é o preferido. Mas Dodge tem feito direitinho a lição de casa para ser reconduzida.

Tudo pela economia? - CIDA DAMASCO

ESTADÃO - 05/08

Crença na retomada, apesar das loucuras do presidente, esbarra no investimento


A reforma da Previdência está bem encaminhada, as propostas para reforma tributária já mobilizam o Congresso e a equipe econômica, mal ou bem, tenta buscar algumas saídas para romper a estagnação. Quem gosta de tapar os olhos e os ouvidos para as loucuras de Bolsonaro tem tudo para se convencer de que a economia é um território isolado, onde investidores e empresas se abrigam para fazer negócios, bater metas e ganhar cada vez mais dinheiro.

Não é por acaso que, nas últimas duas semanas, enquanto se sucediam declarações e atitudes desastrosas do presidente, executivos de grandes empresas e dos mercados saíram a público para declarar que a economia vive um ciclo que “nunca antes” se viu nesse País. Sobre o destempero de Bolsonaro, ou o silêncio ou a consideração de que não compromete a economia.

Nos mercados, o bom humor é visível: a Bovespa se sustenta acima dos 102 mil pontos e o dólar abaixo dos R$ 3,90. No setor produtivo, os indicadores permanecem desfavoráveis, embora o discurso e a torcida de alguns analistas sejam de que finalmente a virada começou. Só como exemplo, a produção industrial está em queda generalizada e opera no nível de 2009. E o mercado de trabalho ainda frágil deixa à margem 28,4 milhões de pessoas, a chamada mão de obra subutilizada – que reúne desempregados, quem trabalha menos do que poderia e também quem não tem ânimo para sair de casa em busca de uma vaga.

A chave para aproximar esses dois mundos é o investimento. Há consenso de que um crescimento sustentado e não aos soluços, como tem ocorrido no Brasil, depende da retomada dos investimentos. Que estão, nesse momento, em 15,5% do PIB, bem abaixo do desejado e perto do fundo do poço da década, de 15% em 2017. E essa retomada, por sua vez, depende não só do fortalecimento da demanda existente como dos sinais de que País teremos mais à frente.

É justamente nesse ponto do roteiro que entra o Bolsonaro falastrão, do “sou assim mesmo” – aquele que parece governar com o fígado, mas no fundo mira a fidelização dos seus 30% de “consumidores”. Dá para enumerar pelo menos três grandes contenciosos políticos e sociais, que poderão invadir aquele terreno aparentemente “isolado” da economia. Em primeiro lugar, os ataques de Bolsonaro ao presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, e seus desdobramentos despertaram críticas inflamadas até nas fileiras dos aliados do Planalto dentro do Congresso, onde se encontram os principais projetos de interesse do governo.

Além disso, a investida contra o Inpe, em razão das estatísticas sobre o avanço do desmatamento, e a descortesia com a visita do chanceler francês – Bolsonaro trocou o encontro por um corte de cabelo – confirmam sua aversão às questões ambientais, decisivas para ampliar a inserção do Brasil e suas empresas no mercado internacional e, em particular, para garantir o aval ao festejado acordo entre Mercosul e União Europeia.

Em terceiro lugar, o “conjunto da obra” provoca reações contrárias no Supremo Tribunal Federal (STF), explicitadas na derrubada da MP de demarcação das terras indígenas e na manifestação dura do decano Celso de Mello. Reações potencializadas pelo cerco da turma de Curitiba aos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, exposto nos vazamentos da Lava Jato.

É claro que guerra de posts nas redes sociais, por si só, não afasta investidores interessados em licitações de estradas, aeroportos e outras obras de infraestrutura: segundo levantamentos do Estado, o programa de desestatização do governo Bolsonaro pode render mais de R$ 450 bilhões. Mas caso os embates do Planalto com o Congresso e o Judiciário resultem em obstrução de projetos, idas e vindas em decisões importantes, enfraquecimento dos instrumentos de controle e regulação, comandantes de grandes grupos pensarão duas vezes antes de colocar seu dinheiro no Brasil.

Por mais que o Congresso esteja disposto a levar adiante uma agenda econômica consequente – e tudo indica que isso está na cabeça de empresários e executivos –, não dá para imaginar que será possível passar ao largo das tempestades criadas pelo presidente. Um cenário que deixa à mostra a vulnerabilidade do “tudo pela economia”. Inclusive na economia.

CIDA DAMASCO É JORNALISTA

Novos tempos, novas regras - ROGÉRIO MARINHO

O GLOBO - 05/08

A Previdência precisa se atualizar diante das transformações demográficas, sociais e econômicas


O Brasil é um ponto fora da curva em relação às pensões por morte. A despesa pública com esse benefício gira em torno de 3% do Produto Interno Bruto (PIB). A média no âmbito dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de 1% do PIB.

Entre as nações que integram a OCDE, 12 gastam menos que 0,5% do PIB com pensões; entre elas, Suécia, Noruega e Reino Unido. Trata-se de uma comparação com países que possuem sistemas de proteção social que estão entre os melhores do mundo.

A Previdência precisa se atualizar diante das transformações demográficas, sociais e econômicas que ocorrem ao longo do tempo. Muitos países têm se adaptado a essa nova realidade, redirecionando recursos para ações que combatam a pobreza e a desigualdade.

No Brasil, a maioria dos beneficiários de pensão por morte é formada por mulheres, pois vivem mais do que os homens. Entretanto, uma mudança cultural tem chegado ao sistema de proteção social: cada vez mais as mulheres conseguem a própria aposentadoria, diminuindo a dependência em relação à pensão.

De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, entre 1992 e 2015 o percentual de pensionistas que acumulavam esse benefício com aposentadoria aumentou de cerca de 10% para um terço do total. E a tendência de alta deve ser mantida, pois são inúmeras as pensionistas que ainda não atingiram a idade e/ou o tempo de contribuição necessários para aposentadoria.

De fato, no âmbito do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), as mulheres já são maioria não apenas de pensionistas, mas também de aposentadas. Dos 20,9 milhões de aposentados ativos em maio de 2019, 10,5 milhões eram mulheres (50,2%). Se forem considerados apenas os aposentados por tempo de contribuição, idade e invalidez, a participação das mulheres chega a 51,1% do total.

Conforme a Pnad, a cobertura dos trabalhadores já era maior entre as mulheres do que entre os homens. Nesse novo contexto, o valor das pensões por morte deve considerar se os cônjuges têm filhos menores e se possuem outras fontes de renda, até como forma de evitar diferenças de tratamentos não justificáveis e de alocar os recursos escassos da melhor forma. Pelo texto aprovado na Câmara em primeiro turno, em nenhuma hipótese o segurado receberá menos que o salário mínimo no total de suas rendas formais.

Um argumento largamente utilizado contra as mudanças na pensão é que a perda de um membro da família não leva necessariamente à redução dos gastos pela existência de custos fixos. Contudo, também de acordo com dados da Pnad, 83,6% das mulheres aposentadas e pensionistas viviam em imóvel próprio já pago ou quitado. Quando se consideram as mulheres idosas, esse percentual se elevava para 84,8% do total.

A necessidade de ajustar as regras de pensão por morte no Brasil às melhores práticas internacionais foi reconhecida até mesmo por governos da esquerda, com o envio da Medida Provisória nº 664 em 2014, posteriormente convertida, com alterações que retiraram algumas medidas inicialmente propostas, na Lei nº 13.135/2015. Portanto, permanece plenamente válida a constatação de que é preciso reformular as regras desse benefício, de forma a redimensionar o seu impacto sobre as políticas da Previdência Social, considerando o desafio de se manter um sistema sustentável financeiramente e alinhado com questões demográficas.

As mudanças aprovadas até o presente momento nas regras de pensão por morte se enquadram na construção de uma Nova Previdência não apenas sustentável a médio e longo prazo, como também, na racionalização do uso dos recursos para aqueles que mais precisam, o que torna o sistema mais justo do ponto de vista social.

Rogério Marinho é secretário especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia

Decálogo do bom governante - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 05/08

Um governante deve ser o primeiro a se mostrar aberto à conciliação das divisões políticas. É papel dele pacificar a sociedade, não estimular rupturas.

Governar é difícil. Governar o Brasil, por sua vastidão territorial, multiplicidade étnica e cultural, histórica desigualdade e deficiência crônica em áreas básicas para o progresso humano, é tarefa para quem, antes de tudo, enxergue essas questões como estímulo e, de forma empática, saiba liderar a Nação na busca por soluções para nossas mazelas.

As variáveis que levaram os eleitores a escolher Jair Bolsonaro como presidente da República em outubro do ano passado já não importam, senão para a historiografia. A democracia não corre o risco de embolorar quando a sociedade se mostra capaz de aprender as lições deixadas por cada pleito. Aliás, é dessa abertura dos cidadãos ao aprendizado cívico que vem o oxigênio que mantém a democracia viva. Ora avançando, ora retrocedendo, o que importa é o constante apuro do discernimento dos eleitores.

Os cidadãos serão mais uma vez convocados às urnas no ano que vem para escolher os prefeitos e vereadores dos 5.570 municípios do País. É uma escolha muito importante porque é o município a base do sistema político brasileiro. É no município que acontecem os fatos que mais afetam a vida de milhões de homens e mulheres no País. Trata-se, pois, de mais uma excelente oportunidade para os eleitores buscarem informação confiável, sopesarem seus interesses e necessidades e identificarem no rol de candidatos aqueles que julgam estar preparados para melhorar suas vidas.

Já dissemos que governar é difícil. Um governante, pois, para dar conta da responsabilidade de influenciar a vida de milhões de pessoas, deve estar munido de uma série de atributos que o qualifiquem para o desafio.

Em Do institutions matter? (As instituições importam?, em tradução livre), publicado em 1993, R. Kent Weaver e Bert A. Rockman enumeraram as dez capacidades que seriam indispensáveis a todos os governantes, seja qual for o sistema político-eleitoral de um país. É um bom decálogo para orientar o processo decisório dos eleitores.

A primeira é a capacidade de definir prioridades diante da miríade de interesses coletivos em jogo, muitos deles contraditórios. Uma vez definidas as prioridades, é fundamental que um governante saiba empregar os recursos humanos e financeiros para atingir tais objetivos eficazmente.

A terceira capacidade é a de inovar quando os modelos até então tentados se mostram ineficazes para o atingimento daqueles objetivos. A quarta é a capacidade de construir um “todo coerente” a partir da coordenação de projetos conflitantes. A quinta capacidade indispensável a um governante é a de impor perdas a grupos poderosos. Não raro os interesses desses grupos se contrapõem ao interesse nacional. A um governante cabe fazer a justa distinção.

A sexta capacidade que os eleitores devem enxergar em seus escolhidos é a de saber representar “interesses difusos e desorganizados” ao lado de “interesses concentrados e mais bem organizados”. Definido um programa de governo, cabe ao governante, por óbvio, cuidar de sua execução, avaliando eventuais mudanças que possam se interpor no caminho. Este é o sétimo atributo básico enumerado pelos autores.

Os governantes também devem assumir compromisso com a estabilidade política, de modo a criar as condições para que as ações do poder público possam surtir os efeitos delas esperados. O mesmo vale para os compromissos assumidos no plano internacional, área em que devem estar divididos claramente os interesses de governo e de Estado.

Por fim, mas não menos importante, um governante deve ser o primeiro a se mostrar aberto à conciliação das divisões políticas a fim de garantir que a sociedade “não degenere numa guerra civil”. Ou seja, é papel de um governante pacificar a sociedade, não estimular rupturas.

Tanto melhor seremos uma nação quanto os eleitores estiverem dispostos a observar a presença de tais atributos nos que lhes suplicam o voto. É um processo que não levará mais ou menos tempo a depender do grau de amadurecimento da sociedade entre um pleito e outro.

Falta dinheiro no governo, mas sobra em 220 fundos - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 05/08

Engessamento orçamentário impede a transferência de recursos paralisados para áreas sem dinheiro


Com excesso de otimismo, o investimento público federal deverá alcançar R$ 40 bilhões neste ano. É pouco, sobretudo se for considerado o fato de que a despesa da União, descontados juros da dívida pública, será de R$ 1,4 trilhão.

Gasta-se muito, investe-se pouco. Na realidade, cada vez menos: o investimento público federal, em valores de hoje, é metade do que era cinco anos atrás.

Esse cenário indica a gravidade da crise fiscal, cuja perspectiva de solução no médio prazo depende da rapidez nas reformas estruturais do ambiente econômico.

Reflete, também, um legado de balbúrdia nas finanças públicas, resultante do engessamento do Orçamento da União a partir de interesses setoriais e corporativos.

Exemplos dessa herança dominam o cotidiano da Esplanada dos Ministérios, em Brasília.

Faltam cerca de R$ 60 milhões no caixa do Ministério da Infraestrutura para obras em rodovias essenciais ao escoamento da safra agrícola. No entanto, existe um conjunto de fundos públicos na órbita da Infraestrutura que superam R$ 30 bilhões, segundo estimativa do ministro da Economia, Paulo Guedes.

O problema é que esses recursos estão “carimbados” no Orçamento. Como não podem ser remanejados, as estradas permanecem deterioradas até que se consiga o dinheiro necessário por outros meios.

Com estados impotentes, por virtual insolvência, a crise na segurança pública se agrava na guerra entre facções criminosas pelo domínio de presídios superlotados. O Ministério da Justiça até projeta um aumento do efetivo da Força Nacional, fundamental no socorro rápido. O custo previsto é de R$ 500 milhões, mas não há previsão orçamentária.

Existe um fundo penitenciário com disponibilidade de R$ 1,5 bilhões, mas esse também é um dinheiro “carimbado”, impossibilitado de uso. Casos assim se repetem na União, nos estados e nos municípios.

Estima-se que existam 220 fundos federais, mas nem o governo sabe ao certo —há uma equipe do Ministério da Economia tentando mapeá-los. São poças de recursos dentro do Orçamento, criadas nas últimas cinco décadas e meia ao abrigo da lei (nº 4.320, de 1964).

Na prática, perdeu-se o controle do número e do valor desses fundos, todos “carimbados”, como observou o secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, em recente debate no Congresso.

É preciso liquidar com esses autênticos feudos orçamentários, e burocráticos, rapidamente.

Não há lógica política ou econômica em manter ilhas de ineficiência na gestão do dinheiro público, especialmente numa etapa financeira crítica, com sucessivos déficits projetados até 2026.

O Legislativo deveria acelerar a faxina nas leis sobre o Orçamento. A situação requer profunda revisão que privilegie a transparência.