segunda-feira, novembro 13, 2017

Inimigo do povo - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA

O afastamento do jornalista William Waack, acusado de 'racismo' pela Rede Globo, é um clássico em matéria de hipocrisia e oportunismo


A maior parte dos meios de comunicação do Brasil, com a Rede Globo disparada na frente, está se transformando num serviço de polícia do pensamento livre. É repressão pura e simples. Ou você pensa, fala e age de acordo com a atual planilha de ideias em vigor na mídia ou, se não for assim, você está fora. Os chefes da repressão não podem mandar as pessoas para a cadeia, como o DOPS fazia antigamente com os subversivos, mas podem lhes tirar o emprego. É isso, precisamente, que o comando da Globo acaba de fazer com o jornalista William Waack, estrela dos noticiários da noite, afastado das suas funções por suspeita de racismo. Por suspeita , apenas – já que a própria emissora não garante que ele tenha mesmo feito as ofensas racistas de que é acusado, numa conversa particular ocorrida um ano atrás nos Estados Unidos. Mas, da mesma forma como se agia no Comitê de Salvação Pública da velha França, que mandava o sujeito para a guilhotina quando achava que ele era um inimigo do povo, uma acusação anônima vale tanto quanto a melhor das provas.

William não foi demitido do seu cargo por ser racista, pois ele não é racista. Em seus 21 anos de trabalho na Globo nunca disse uma palavra que pudesse ser ofensiva a qualquer raça. Também nunca escreveu nada parecido em nenhum dos veículos de imprensa em que trabalha há mais de 40 anos. Nunca fez um comentário racista em suas numerosas palestras. O público, em suma, jamais foi influenciado por absolutamente nada do que ele disse ou escreveu durante toda a sua carreira profissional. O que William pensa ou não pensa, na sua vida pessoal, não é da conta dos seus empregadores, ou dos colegas, ou dos artistas que assinam manifestos. O princípio é esse. Não há outro. Ponto final.

William Waack foi demitido por duas razões. A primeira é por ser competente – entre ele, de um lado, e seus chefes e colegas, de outro, há simplesmente um abismo. Isso, no bioma que prevalece hoje na Globo e na mídia em geral, é infração gravíssima. A segunda razão é que William nunca ficou de quatro diante da esquerda brasileira em geral e do PT em particular – é um cidadão que exerce o direito de pensar por conta própria e não obedece à atitude de manada que está na alma do pensamento “politicamente correto”, se é que se pode chamar a isso de “pensamento”. Somadas, essas duas razões formam um oceano de raiva, ressentimento e neurastenia.

A punição a William Waack tem tudo para se tornar um clássico em matéria de hipocrisia, oportunismo e conduta histérica. A Rede Globo,como se sabe, renunciou à sua história tempos atrás, apresentando – sem que ninguém lhe tivesse solicitado nada – um pedido público de desculpas por ter apoiado “a ditadura militar”. Esse manifesto, naturalmente, foi feito com o máximo de segurança. Só saiu vários anos depois da “ditadura militar” ter acabado e, sobretudo, depois da morte do seu fundador, que não estava mais presente para dizer se concordava ou não em pedir desculpas pelo que fez. A emissora, agora, acredita estar na vanguarda das lutas populares – não falta gente para garantir isso aos seus donos, dia e noite. William Waack, com certeza, só estava atrapalhando.

iGen: Jovens em agonia - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 13/11

O conceito de geração, criação bem sucedida do marketing americano desde os chamados baby boomers, ganhou "credencial" científica.


A pesquisadora americana Jean Twenge, em seu último livro "iGen, Why Today's Super-Connected Kids Are Growing Up Less Rebellious, More Tolerant, Less Happy -and Completely Unprepared for Adulthood" (Geração i, por que os jovens de hoje, superconectados, estão crescendo menos rebeldes, mais tolerantes, menos felizes -e completamente despreparados para idade adulta), lançado pela Atria Books, constrói, a partir de um arsenal de pesquisas, um perfil dos jovens nascidos entre 1995 e 2012.

O universo é o americano, mas, podemos aplicá-la com razoável segurança aos jovens brasileiros das classes A e B.

Vale esclarecer que "i" (internet) aqui se refere ao "i" do iPhone, logo, a autora está dizendo que esses jovens vivem com um iPhone nas mãos. E também "i" para "individualismo", traço marcante da iGen.

Trabalho com jovens entre 18 e 20 há 22 anos. E posso perceber enormes semelhanças entre o que ela descreve e o que vejo no dia a dia, não só em sala de aula mas também graças ao contato alargado com jovens via mídias sociais.

Muitas dessas características são quase universais, devido à ampla rede de comunicação e distribuição de bens criada pelas mesmas mídias sociais.

Escolas e famílias, muitas vezes, são parte do problema, e não da solução. Ambas se atolam em modas de comportamento e iludem a si mesmas e aos jovens por conta, seja do marketing das escolas, seja das projeções vaidosas dos pais sobre seus filhos. O marketing das escolas é desenhado a partir dessas mesmas projeções vaidosas dos pais em relação aos seus filhos, ou seja, clientes das escolas.

Algumas dessas projeções são: os jovens de hoje são mais evoluídos afetivamente, são mais preocupados com temas sociais, mais tolerantes com o diferente, mais seguros com relação ao que querem, menos submetidos à moral "imposta" pela sociedade, mais sensíveis a desigualdade social, mais conscientes de uma alimentação equilibrada e, no caso das meninas, mais autônomas, independentes e donas do seu corpo.

Algumas dessas projeções não são, necessariamente, falsas.

O discurso da tolerância entre os jovens aumentou de fato, principalmente no tema gay/lésbica/transgênero (associado a questão "cada um é cada um").

A preocupação com a desigualdade social também aparece, mas, principalmente, limitado ao campo das mídias sociais ou intercâmbios caros pra cuidar de crianças sírias na Alemanha, claro, aprendendo alemão junto e conhecendo jovens do mundo inteiro.

A realidade e o clichê não se recobrem totalmente.

Segundo a pesquisa de Twenge, nunca houve jovens tão infelizes na face da Terra. Consumidores de ansiolíticos em larga escala, a iGen busca "safe spaces" nas instituições de ensino a fim de não sofrerem com "frases" que causem desconforto emocional. Se são cuidadosos com os riscos físicos, esse mesmo cuidado no âmbito emocional indica a quase total incapacidade de lidar com a realidade.

Percebe-se facilmente que os jovens, "cozidos" no discurso psi da "vulnerabilidade", vão se tornando mais medrosos. Inseguros, morrem de medo de qualquer ideia que coloque em xeque seus "direitos à felicidade".

O mundo não ajuda. Ainda mais com essa gente que mente por aí dizendo que o capitalismo está ficando consciente ou espiritual. Eles sabem muito bem que o mundo deles será pior: mais incerto, mais violento, mais competitivo. A agonia com o futuro é crescente.

Se esses jovens desconfiam do mundo, têm razão em fazê-lo. Muitos pais e professores optaram por um discurso infantil, muitas vezes querendo "aprender" com os mais jovens -quando deviam apenas pedir ajuda com o iPhone.

Fazem menos sexo, ao contrário do que o blá-blá-blá da liberação sexual diz até hoje. Têm medo de contato físico e veem em tudo a ameaça de assédio sexual. A simples demonstração de desejo é assédio.
Pensar em ter filhos, jamais! Filhos, como eles, custam caro, duram muito e nunca querem virar adultos. Melhor cachorros e gatos.

Um país de chatos - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA

Não existe hoje no Brasil obrigação moral e cívica mais cobrada do cidadão do que se manifestar contra o “preconceito” e a “intolerância”


SERIA POSSÍVEL Nelson Rodrigues existir como autor no Brasil de hoje? Não dá para saber com certeza científica, mas é extraordinariamente difícil imaginar que pudesse escrever e dizer tudo o que escreveu e disse. Quem deixaria? Nelson Rodrigues é o maior autor de teatro que o Brasil já teve — seu nome estaria no topo da literatura mundial se não tivesse nascido, vivido e escrito na língua portuguesa. Mas hoje seria considerado uma ameaça nacional. A mídia veria nele um agente da “onda conservadora” ou uma voz da “extrema direita”; estaria banido pela boa sociedade cultural brasileira como intolerante, preconceituoso e fascista. Os educadores públicos fariam objeções à leitura de seus textos nas salas de aula. Sua entrada poderia ser proibida no departamento de novelas da Rede Globo. Procuradores e juízes estariam em cima dele o tempo todo, tentando condená-lo por machismo, racismo ou homofobia. Pense um pouco no que Nelson estaria escrevendo, por exemplo, sobre transgêneros, “feminicídio” ou a indignação contra o papel higiênico preto — isso para não falar no homem pelado como obra de arte, ou nas multas aplicadas aos clubes de futebol quando a torcida grita “bicha” para o goleiro do outro time. Não dá. Nelson Rodrigues não cabe no Brasil de 2017.

Como poderia ser diferente, num país tão empenhado no policiamento da atividade de pensar? Não existe hoje no Brasil nenhuma obrigação moral e cívica mais cobrada do cidadão do que se manifestar contra o “preconceito” e a “intolerância”. Não espere, portanto, nenhum Nelson Rodrigues num ambiente assim. Em vez disso, fique atento às suspeitas da ocorrência, próxima ou distante, de qualquer comportamento que possa ser classificado como preconceituoso ou intolerante. Aí, se quiser ser um bom cidadão, assine o mais depressa possível um manifesto de condenação, desses que aparecem todos os dias no jornal — ou, se não tiver cacife para tanto, por não ser licenciado como celebridade, faça alguma coisa a respeito, nem que seja um telefonema anônimo para o “Disque-Denúncia” mais próximo. É fácil descobrir a opinião que você deve ter a respeito dos assuntos em circulação. Preconceito e intolerância, em termos práticos, são o que o Comitê Brasileiro de Vigilância do Pensamento decreta, de hora em hora, que são preconceito e intolerância.

Que “comitê” é esse? É o habitual aglomerado de artistas, com ou sem obra, pessoas descritas como intelectuais, com ou sem algum intelecto visível, e gente de currículo em estado gasoso, mas que por alguma razão é apresentada como “importante”. São eles os árbitros, hoje em dia, do que é certo ou errado neste país. Decidem como todos os demais cidadãos devem se comportar dos pontos de vista moral, social e político. Não toleram que alguém demonstre intolerância — é assim que chamam, automaticamente, qualquer ponto de vista não autorizado por seu livro de regras. O delito essencial, por esse catecismo, é pensar com a própria cabeça a respeito de uma lista cada vez maior de assuntos. Sobre cada um deles há decisões já tomadas em última instância; são apresentados diariamente nos meios de comunicação.


“Vai se inventando, de cima para baixo, uma sociedade mal-humorada, neurastênica e hostil à liberdade de expressão”


O resultado é que o combate a tudo o que possa ser carimbado como intolerância está criando no Brasil mais uma raça de intolerantes. Acaba de ser derrubada no STF, por exemplo, a regra baixada quatro anos atrás pelos organizadores do Enem pela qual levam nota zero os estudantes que escreverem na prova de redação alguma coisa considerada contrária aos “direitos humanos”. Considerada por quem? Por eles mesmos, os burocratas do “Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais”. Ou seja: nomearam a si próprios árbitros do que os alunos podem ou não podem pensar e dão zero quando não gostam do que o aluno pensa. Nem no regime militar se chegou a esse grau de megalomania na tentativa de controlar o pensamento alheio; nunca, na época, alguém assinou um papel em que se determinava a anulação de provas de conteúdo subversivo. Quem é essa gente para decidir o que você pode dizer?

Outro exemplo comum de hostilidade a ideias discordantes é a conversa da “identidade de gênero” — ou a questão, ou até a “causa”, das pessoas atualmente descritas como “transgêneros”. Ficou estabelecido, como princípio moderno e gerador de mais justiça, que os seres humanos não devem ser diferenciados, para propósitos de identificação, pelo sexo anatômico com que nasceram. Podem escolher o gênero que combina mais com o seu jeito de ser, no momento em que julgarem necessário fazer essa opção. Tudo bem: cada um pensa o que quiser, e, além do mais, todo cidadão é livre para levar a vida que prefere, ou que pode, em termos de sexualidade. Mas não há nenhuma razão para a sociedade se escandalizar com quem não concorda, ou não entende, que as coisas sejam assim — ou não acredita que esse seja um assunto de interesse universal. Qual é o problema? Não deveria ser considerado intolerante, retrógrado ou totalitário quem acredita que os sexos são só dois, masculino e feminino. Ou que todo ser humano, sem exceção, tem um pai e uma mãe, que obrigatoriamente são um homem e uma mulher. Ou que é impossível um homem ficar grávido, por lhe faltarem um útero, trompas, ovário — ou por não ter leite, não menstruar e não produzir óvulos, da mesma maneira que uma mulher não produz espermatozoides. Não pode haver, é claro, nenhum problema com nada disso. Só que há.

A lista de pecados capitais contra o pensamento obrigatório vai longe. Você estará perto da blasfêmia se argumentar que animais não têm direitos, pois a noção de direito se aplica unicamente a seres humanos — animais não podem ter o direito de votar, por exemplo, ou de ter nacionalidade, ou de receber salário mínimo. Mas dizer isso é infração gravíssima.

Está vetado, igualmente, o debate sobre a questão ambiental como um todo; é considerado suspeito qualquer pedido de mais pesquisas científicas sobre temas como o aquecimento global, ou a cobrança de dados mais seguros sobre a previsão de que o Rio de Janeiro vai ser engolido pelo mar daqui a alguns anos. Defensivos agrícolas são uniformemente descritos como “agrotóxicos”; não insista. Também é tido como preconceito grave discordar da ideia de que o crime no Brasil é um “problema social” e que os criminosos, portanto, são vítimas da sociedade, e não agressores. O deputado Jair Bolsonaro foi condenado por uma juíza do Rio de Janeiro, ainda outro dia, por ter feito uma piada de quilombola durante uma palestra. A Constituição, obviamente, proíbe que um deputado seja punido por falar o que lhe passa pela cabeça, mas a juíza argumentou que “política não é piada” e foi em frente. Não é piada? De que país ela está falando?

A intolerância contra opiniões que incomodam começa a produzir, depois de algum tempo, disparates como esse. É uma surpresa que o Ministério Público ainda não tenha proibido as piadas de papagaio, ou que uma juíza não tenha decretado que a dama deve valer a mesma coisa que o rei no jogo de baralho. Vai se inventando, de cima para baixo, uma sociedade mal-humorada, neurastênica e hostil à liberdade de expressão. É um ambiente que convive mal com a observação dos fatos, a ciência e o raciocínio lógico. Estão construindo, talvez acima de tudo, um país de chatos.