segunda-feira, janeiro 20, 2020

Marx tinha razão - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 20/01

O idiota de mercado acha que sociedade de mercado é entidade meramente econômica


Portaria inteligente ou remota. Claro que o termo “inteligente” aparece sempre que alguém quer vender algo que faz os inteligentinhos de mercado ficarem excitados.

Tenho conversado com pessoas cujos condomínios contrataram portarias inteligentes e as opiniões são controversas. Mas a moda está pegando e a demissão em massa dos profissionais na área cresce.

Uma portaria inteligente é uma portaria sem porteiros ou nenhum funcionário similar. Você fala com um cara, sei lá, no Acre, que monitora 150 portarias pelo país. O argumento básico é a redução de custos, claro.

Podemos olhar para esse fenômeno de um modo mais amplo, ou mais imediato, ligado ao cotidiano. A portaria inteligente torna o prédio impermeável, inclusive a você e a seus convidados ou encomendas. Coisa de gente chata.

A ordem espontânea e expandida (expressão usada pelo economista liberal Friedrich Hayek para se referir ao mercado) é uma entidade moral, social, política e econômica. Na China, por exemplo, você vê um número enorme de pessoas, claramente sem grande formação, realizando pequenos trabalhos.

Esse fato garante a atividade e a dignidade de pessoas dentro dessa ordem espontânea e expandida. Economia sem a dimensão social é uma economia tão cega quanto um mercado em que o Estado controla preços: gera desemprego, instabilidade, e, por tabela, pobreza, concentrando a riqueza na mão de quem destrói o próprio tecido social do mercado. Coisa de idiotas de mercado.

Infelizmente, no Brasil, existe em grande número esse personagem que é o idiota de mercado ou o liberal inteligentinho, que acha que sociedade de mercado é uma entidade meramente econômica.

Não. O mercado é moral e social. Adam Smith, filósofo do século 18, antes de ser um economista, foi um filósofo moral. Como você identifica um idiota de mercado?

Esse personagem confunde a dimensão social e moral do mercado com a ingerência de um Estado gigantesco na vida das pessoas. A dimensão social e moral do mercado é a responsabilidade moral dos agentes econômicos nas suas pequenas decisões diárias, nas suas esferas de poder.

Mas, para além dessas consequências mais amplas, há que se pensar nas consequências mais imediatas, a curto e médio prazo, no mínimo.

A humanidade envelhece a passos largos. Idosos que conseguem manter suas casas, onde viveram e constituíram memória, dependem de pessoas que os ajudem a lidar com o cotidiano, nos prédios em que vivem. Portarias inteligentes destroem essa dimensão do vínculo externo da casa com o condomínio. Apenas millennials, enquanto ainda têm 15 anos de idade, não percebem isso.

Todo mundo sabe que porteiros e similares são os primeiros a darem socorro e tomarem decisões em momentos de emergência. Muitos idosos dependem deles no seu dia a dia, inclusive para ajudar na lida com pequenas compras.

Os inteligentinhos de mercado, provavelmente, dirão que esses idosos devem ser lançados em casas de repouso, locais em que a história presente na memória material deles inexiste.

O problema é que o número de idosos só cresce, e destruir essa rede de vínculos próximos, no cotidiano, só aumenta a inviabilidade da vida desses idosos nos prédios em que sempre viveram. É uma forma clara de desumanização.

Se por um lado, a sociedade contemporânea deve pensar no meio ambiente e nos jovens, ela deve se ocupar com o modo como lidará com o crescimento da longevidade.

Outro traço das portarias inteligentes é o aumento gigantesco de burocracia, inclusive mediado pelo uso de ferramentas mais próximas à sensibilidade dos millennials.

Receber, por exemplo, uma nova faxineira, transforma-se num processo semelhante a tirar vistos para viajar. Cada passo banal da relação do prédio com o mundo externo se transforma num grande processo kafkiano. Você se sente um K, personagem famoso do Kafka, se quiser receber uma encomenda e não tiver ninguém em casa pra recebê-la.

Portarias inteligentes comprovam a tese marxista segundo a qual o capital, um dia, mandaria os humanos a merda e se tornaria autônomo no seu processo entrópico.

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.