domingo, novembro 01, 2020

Uma dívida fora dos padrões - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 01/11

Ministros brigam e o presidente brinca enquanto o mercado vê a dívida crescer


Dívida crescente e com prazo minguante é o novo normal das esburacadas finanças federais. O governo central enfrentará o vencimento de R$ 2,66 trilhões nos 12 meses a partir de 30 de setembro. Isso corresponde a 43,4% do total devido naquela data. No fim de 2019 os vencimentos previstos para este ano eram cerca de 30% do total. Depois vieram a pandemia e centenas de bilhões de gastos extraordinários. Para evitar juros maiores, o Tesouro Nacional vem aceitando redução de prazos para renegociar os títulos. Os R$ 6,13 trilhões de papéis federais em poder do mercado são 93,9% da dívida bruta do governo geral, formado pelos três níveis da administração mais o INSS. Esse valor global equivalia em setembro a 90,6% do Produto Interno Bruto (PIB).

Comparações internacionais são feitas normalmente com a dívida bruta do governo geral. No Brasil, essa dívida estará muito próxima de 100% do PIB no fim de 2020. Nos anos seguintes ficará pouco acima disso, devendo atingir 104,2% em 2024, pelas projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI).

O Brasil está amplamente fora dos padrões, como estava nos anos anteriores. Também segundo o FMI, a dívida pública dos países emergentes e de renda média deve atingir 62,2% do PIB em 2020 e subir até 70,4% nos quatro anos seguintes. Na América Latina a média deve manter-se próxima de 80% nesse período, mas o número seria bem menor sem o peso do Brasil.

Antes da pandemia a equipe econômica havia planejado manter abaixo de 80% a relação dívida/PIB. Com a crise, a economia encolheu, a arrecadação diminuiu e os gastos cresceram de forma explosiva. Dívida bem maior seria um dos efeitos inevitáveis. Isso também ocorreu em outros países, de todos os níveis de desenvolvimento. Em dezenas de países de todos os continentes, o aumento de gastos só foi possível com a ajuda do FMI.

Em todo o mundo as despesas cresceram, assim como as dívidas, e o caso brasileiro só é excepcional por outros fatores. Em primeiro lugar, a relação dívida/PIB já era maior no Brasil que nos outros emergentes. Em segundo, as condições fiscais no País já eram muito precárias. Em terceiro, a economia brasileira estava emperrada antes da pandemia. Em quarto, o poder central, depois de ações positivas na pior fase da crise, parou de funcionar, enrolado em brigas e com o presidente concentrado em objetivos pessoais.

Diante da confusão em Brasília, as incertezas cresceram nos mercados. A confiança minguou, a instabilidade cambial aumentou e disparou a insegurança em relação à política fiscal e ao futuro da dívida. Nada mais natural que a dificuldade para renegociar os papéis do Tesouro.

Enquanto ministros e políticos trocam desaforos, as contas mostram os efeitos fiscais da pandemia e das ações emergenciais. Em setembro, o governo central teve déficit primário de R$ 76,2 bilhões, pelos cálculos do Tesouro, e de R$ 75,1 bilhões, pelo critério do Banco Central – BC (baseado na necessidade de financiamento). No ano, o Tesouro registrou saldo primário negativo de R$ 677,4 bilhões. Um ano antes o buraco havia sido de R$ 72,5 bilhões. O mesmo cenário indica um déficit de R$ 871 bilhões em 2020, cerca de 12,1% do PIB. Não se incluem juros nessas contas.

Um cenário mais amplo das finanças públicas aparece no relatório do BC. Somando-se os dados de todos os níveis de governo e das estatais (sem Petrobrás e Eletrobrás), chega-se ao total do setor público: déficit primário de R$ 635,9 bilhões no ano. Acrescentando-se os juros, obtém-se o resultado nominal, um déficit de R$ 888,5 bilhões em nove meses, valor correspondente a 16,7% do PIB. Um ano antes a proporção havia sido de 7,1%, já muito alta pelos padrões internacionais. Em 12 meses, o resultado nominal, um rombo de R$ 991 bilhões, bateu em 13,7% do PIB.

Qualquer governo com essas contas deveria cuidar muito seriamente de sua imagem perante o mercado. Um dia antes de sair o relatório do BC, ministros brigaram em Brasília, enquanto o presidente, no Maranhão, fazia piada homofóbica sobre um refrigerante local.

Tempestade e bonança - FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

ESTADÃO/O GLOBO - 01/11

Vivemos, mansamente, o início de uma crise política. Os sinais de alarme já soam fortes


A crer no que se sente e se lê nos jornais, pouco a pouco a situação econômica do País está piorando. Será? Não tenho certeza, mas assim parece. Os sinais pipocam de todos os lados. Quase no final da semana passada os índices da bolsa, para usar o jargão, “desabaram” e o dólar foi a quase R$ 6.

No geral os críticos se queixam da morosidade das reformas no Congresso – a administrativa e, principalmente, a tributária – e da falta de compromissos do governo com a lei do teto de gastos. Faltaria um claro compromisso com a austeridade.

De tanto baterem na mesma tecla, os críticos que assim procedem, em geral jornalistas, empresários ou os que os seguem, parecem ser pessimistas. Mas é certo: sem compromissos claros do Executivo com o frear dos gastos e sem ação congressual mirando o futuro, a marcha da economia desanda. E isso parece estar acontecendo: a queda do valor do real e dos índices das bolsas são indícios de que algo vai mal no reino da Dinamarca...

Além do mais, o Banco Central mantém os juros baixos. A taxa Selic foi definida pelo Copom em 2% para o ano, enquanto as próprias previsões “do mercado” para a inflação (que nem sempre acerta...) já passam de 3%.

É certo que em parte é graças aos juros baixos que muita gente se dispõe a comprar casas e apartamentos ou a fazer reformas. Assim, o mercado imobiliário e o de materiais de construção se mantêm ativos. E este não é o único setor que prospera: basta olhar as exportações para ver que os produtores agrícolas vão bem, obrigado.

Mas, cuidado: tal bonança provém, sobretudo, do mercado chinês, que compra sem parar nossos produtos do campo. E ainda assim há quem tema ver a pandemia nos levar a tratativas para importar e usar vacinas chinesas... Tomara que os chineses (e não só eles) continuem consumindo nossos produtos e que produzam boas matérias-primas para as nossas vacinas.

Não escrevo isso para diminuir as preocupações com os sinais negativos que a economia apresenta, mas para, ao matizá-los com perspectivas menos sombrias, tentar entender o que acontece.

Cabe repetir que estamos vivendo um mau momento: além dos sinais não alvissareiros emitidos por alguns setores da economia, existe um clima de pessimismo que deriva de preocupações com a saúde das pessoas. Desde a epidemia da “gripe espanhola”, que assustou a geração de meus pais logo depois da 1.ª Grande Guerra, não se via uma crise sanitária de proporções tão amplas como a criada pela periculosidade do coronavírus: ele parece ser mais contagioso do que letal. Mesmo assim, barbas de molho: principalmente, mas sem exclusividade, os velhos (como eu) que se cuidem. As moléstias de que algumas pessoas são portadoras se agravam com o coronavírus e podem levá-las à morte. Além do mais, parece que o vírus pode deixar sequelas em quem sobrevive.

As notícias que nos chegam da Europa e dos Estados Unidos sobre o crescimento da doença são alarmantes. Os próximos meses se afiguram sombrios. Quanto mais inerte o governo, mais necessária é a responsabilidade de cada um pelos gestos que nos protegem e protegem os outros. Ninguém pode fazer isso em nosso lugar. Seguir a orientação dos médicos, conversar com as pessoas em quem confiamos, manter a distância, usar as máscaras, lavar as mãos estão a alcance de todos. Não menos imperativo será assegurar o acesso de toda a população a vacinas seguras e eficientes, sem politizações mesquinhas. Se Trump perder a eleição, como apontam as pesquisas, o fator determinante terá sido sua gestão desastrosa da pandemia.

Também do ponto de vista da economia, o que mais me preocupa é a relativa omissão do governo. Juros muito baixos e descontrole fiscal podem levar rapidamente à inflação. Só quem cuidou dela no passado sabe o quanto tal “vírus” é danoso: arrasa tudo e liquida em pouco tempo o salário dos pobres, mais do que a capacidade ou o “apetite” para investir dos mais afortunados.

E é isso que mais me preocupa. De intriga em intriga, o governo parece ser displicente diante de sinais que não deixam dormir os mais obcecados. Os responsáveis no governo pela economia não entendem o Congresso. Este funciona no ritmo das eleições que se aproximam. E governar implica apontar caminhos, os quais muitos se obstinam em não aceitar.

É difícil conciliar popularidade com sucesso econômico, a conciliação dos dois fatores nem sempre está nas mãos de quem governa. Mas a História cobrará dos governos o fato de haverem sido cúmplices se houver desvios de rumo. É por isso que governar não é fácil e depende tanto da sorte quanto da competência.

No fundo vivemos, e pior, mansamente, o início de uma crise política. Com o que se preocupa quem tem nas mãos as rédeas do poder? Ao parecer, mais com o que lhe toca diretamente, como a reeleição, ou com os familiares, do que com os sinais de alarme que já estão soando fortes...

Deus queira que as minhas sejam preocupações vãs.


SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA