Morte digna
Miguel Reale Júnior
O Estado de S.Paulo - 01/01/11
O Ministério Público Federal propôs ação civil pública visando à determinação de nulidade de norma da Resolução n.º 1.805/06 do Conselho Federal de Medicina, segundo a qual "é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal". A norma foi antecipadamente suspensa até sentença final.
Vem de ser prolatada, então, a sentença, baseada em alentada manifestação da procuradora da República Luciana Loureiro Oliveira, que, contrariando a orientação anterior, defendeu a legalidade do dispositivo autorizador da ortotanásia. Com base na opinião do constitucionalista Luís Roberto Barroso, reconhece a procuradora haver na ortotanásia o exercício de um direito à autodeterminação, com respeito à vontade livre do paciente, e a prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana, que compreende o direito a uma morte digna.
Surgiu em abril de 2010 o novo Código de Ética Médica, que diz no artigo seu 41, parágrafo único: "Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal."
Determina-se, então, não serem adotadas medidas terapêuticas inúteis que visem obstinadamente a prolongar a vida e se manda aplicar cuidados paliativos para minorar a dor. Como me manifestei em artigo neste espaço sobre o Código de Ética Médica, o direito de vida digna compreende o direito de não sofrer manobras invasivas não curativas prolongadoras do curso da morte, para se reconhecer a validade da vontade do paciente, em estado incurável e terminal, no sentido de ser auxiliado "no morrer", com meios paliativos e sem imposições obstinadas de levar avante não a vida, mas sim o já instalado processo doloroso de morrer.
A questão, todavia, ao contrário do que se diz na sentença, não é apenas do campo da ética médica, pois seria uma contradição a ortotanásia constituir crime e ser eticamente aprovada pelo Conselho Federal de Medicina. Independentemente da previsão da exclusão de ilicitude por meio de lei, pode-se, sem dúvida, com base na teoria do delito, considerar lícita a ação, pois não se estaria ofendendo o bem jurídico vida ao se praticar a ortotanásia, mas agindo em defesa do valor do direito de alguém determinar como quer que a sua vida se desenrole no processo de morte inevitável, para ter um fim de vida digno e uma morte digna.
Creio, todavia, que é de todo aconselhável que a lei penal estatua claramente a situação de ortotanásia, para que haja um modelo de ação lícita, com os seus requisitos e limites bem fixados, visando a se definir melhor a disciplina constante das normas éticas.
Participei da elaboração de dois anteprojetos de Parte Especial do Código Penal, em 1984 e em 1997. Em ambos se previa a figura penal da eutanásia, com pena menor que a cominada ao homicídio simples, e consistente em dar causa à morte de alguém por compaixão, a pedido da vítima, imputável e maior, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave. Mas previa-se também que a ortotanásia não constituía crime, pois excluída era a criminalidade na hipótese de se "deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão".
Desenha-se, destarte, com mais precisão o quadro em que se deve encaixar a conduta para se excluir a ilicitude do comportamento: 1) Morte iminente e inevitável; 2) atestado dessa situação por dois médicos; 3) ação consistente em deixar de manter artificialmente a vida do paciente; 4) consentimento do paciente; 5) na impossibilidade de dar o paciente o consentimento, deve este ser dado pelo ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.
Creio agora, para maior segurança, dever-se estabelecer no tipo de exclusão do crime que cabe o paciente estar plenamente informado da sua situação clínica, exigindo-se o seu reiterado consentimento.
Questão árdua diz respeito à fidedignidade do consentimento. Primeiramente, pesquisas indicam que o consentimento pode ser viciado em vista da hospitalização, que infantiliza o doente e leva à depressão. Daí ser preciso colher a anuência de forma reiterada.
Por outro lado, entendo que se deva admitir, também, a validade de declaração antecipada em cartório no sentido de que, em caso de perda da capacidade de consentir, seja feita a vontade então expressa de não ser mantido vivo por meios artificiais, desejando viver o processo natural da morte quando iminente e inevitável. O melhor, no entanto, está em se adotar a figura da "pessoa de confiança" do Direito francês, a ser designada pelo paciente ao dar entrada no hospital e que por ele falará se preciso.
Mas, na inexistência dessa pessoa de confiança, como se põe a questão do consentimento por familiares, tendo em vista ser comum a divergência entre parentes - por exemplo, entre pais e filhos do paciente, filhos e segunda mulher, companheira e pais do paciente? A opinião de quem deve prevalecer? Caberá, então, ao médico, na urgência da situação, avaliar quem se mostrou na hospitalização efetivamente o responsável pelo paciente? A sua decisão, contudo, não restará isenta de contestações.
Como se vê, são questões delicadas, que só nos casos concretos se poderá buscar a decisão justa, pois o Código de Ética não enfrenta tais situações. Na hipótese de conflito, só o bom senso e a prudência podem ser as fontes da justiça.
ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA