De onde vem a humanidade? Uma parte (pequena) da resposta apareceu na capa dos jornais há poucos dias, na forma de uma simpática figura feminina, nua e peluda. Ela viveu há 4,4 milhões de anos onde hoje fica a Etiópia. Pertence à espécie Ardipithecus ramidus, de onde tiraram seu apelido carinhoso: Ardi. Com seu aspecto perturbador, a meio caminho entre a mulher sensual e a Chita do Tarzan, Ardi foi saudada como parente distante dos humanos. Não é a nossa "mãe" (não sejamos sacrílegos), mas bem pode ser uma tia-tataravó.
Pelo menos é isso o que nos garante a Ciência - e na Ciência nós acreditamos sem pestanejar, como já acreditamos nos oráculos, nos adivinhos e nos astrólogos. Os evolucionistas destrincham o DNA dos vivos e dos mortos. Com suas pesquisas irrefreáveis, dão a impressão não de saber tudo, mas de poder saber tudo, de poder saber sobre qualquer vivente mais do que ele mesmo já soube de si.
Isto posto, deixemos o passado de lado, por alguns instantes. Deixemos para lá os hominídeos (como Ardi), os dinossauros, os homens das cavernas. Olhemos um pouco para o futuro. Para onde vai a humanidade? O que saberão de nós dentro de milhões de anos? Eles nos estudarão como agora estudamos essa nova velha fêmea do nosso passado, essa tal de Ardi?
Aqui, é recomendável um pequeno distanciamento em relação a tudo o que seja científico em demasia. Pensemos em outras referências, outras formas de olhar o mundo. A música popular, por que não? Há uma canção de Chico Buarque, Futuros Amantes, que é providencial. No futuro, canta o compositor, as nossas cidades estarão submersas. Nosso mundo terá naufragado. Se algum estilhaço restar, se um recorte de jornal envolto em âmbar atravessar milênios, um caderno de notas, uma palavra que seja, então, um dia, os escafandristas virão coletar os resquícios do que teremos sido.
A letra prossegue: "Sábios, em vão,/ Tentarão decifrar/ O eco de antigas palavras/ Fragmentos de cartas, poemas ,/ Mentiras, retratos,/ Vestígios de estranha civilização."
Com a melodia indo e vindo na cabeça, imagino os movimentos lentos desses arqueólogos-mergulhadores. O que eles descobrirão de nós? Saberão de nós mais do que nós mesmos sabemos? Como interpretarão nossos hábitos? Que impressões deixaremos a esses seres do futuro?
Uma hipótese: será que julgarão que idolatrávamos objetos industrializados como se fossem amuletos encantados? Pistas nessa direção eles hão de ter. Se derem de cara com outdoors fossilizados, concluirão que, para nós, as peças de vestuário, como sapatos ou camisas, tinham o atributo mágico de atrair o sexo oposto - ou nem tão oposto assim. Talvez eles nos vejam como animais supersticiosos que, para perenizar a juventude, atritavam poções misteriosas contra o couro cabeludo. Dos shopping centers dirão que eram pontos de peregrinação, muito mais que de comércio. Sobre os estádios, esses espaços imensos a céu aberto, próprios para coreografias aeróbicas com uso de bolas e bandeirinhas, decretarão: eram catedrais para celebrações místicas.
Os nossos hábitos de consumo receberão, enfim, o estatuto de práticas rituais. Teremos sido adoradores não de divindades antropomórficas, mas de coisas corpóreas às quais atribuíamos poderes sobrenaturais. A nossa "estranha civilização", no entanto, não chamava de magia a magia invisível que acreditava emanar dos objetos fabricados. Chamávamos a isso de Ciência. Se um creme dental nos deixava com o sorriso de galã, não dizíamos que era autossugestão, mas um efeito cientificamente comprovado e recomendado por dentistas.
A nossa verdadeira religião, eles hão de sustentar, estava naquilo que pensávamos ser nossa atividade econômica. A nossa fé, naquilo que chamávamos de Ciência - tanto que, até para resolver se um milagre tinha sido milagre de verdade, as mais respeitáveis agremiações religiosas passaram a convocar cientistas que as ajudassem a separar a invencionice da verdade. A nossa "estranha civilização", vendo-se como um projeto racional - não mágico, jamais -, deixou de ver na Ciência uma forma de investigação falível, exposta ao erro e que, por isso mesmo, porque errava, teria sido um dia digna de crédito. De território da dúvida e da busca de caminhos, a Ciência converteu-se num fetiche, entronizada na crença fundamentalista. Daí que, em vez de pensar cientificamente, passamos apenas a crer na Ciência.
Os escafandristas ficarão perplexos. Tentarão entender por que, em vez de nos perguntarmos tanto sobre origem genética da espécie humana, nós não pensávamos um pouco mais sobre o que havia de humano em cada um de nós? A primeira dúvida é científica; a segunda, bem mais vasta, é filosófica. A partir daí, talvez queiram saber se fomos mesmo capazes de filosofar e se, entre nós, o espírito humano se expandiu ou se amofinou.
Isso tudo numa perspectiva otimista, pois é preciso muito otimismo para supor que deixaremos descendentes de outra espécie e que esses descendentes se interessarão por nós. Em primeiro lugar, é preciso acreditar que a Ciência restará, devidamente científica, não mistificada, pois sem ela, nada de escafandristas. Mas é preciso apostar, ainda, que algo além da Ciência ficará. Se o único método que resistir for o científico, os escafandristas serão apenas robôs - jamais sábios ou poetas.
Se os escafandristas forem filósofos, o que desejarão saber de nós? Eu olho para o desenho de Ardi e sou tomado por uma quase compaixão. Ardi chorava de medo do abandono? Ria da miséria alheia? Será que olhava o céu só por achá-lo bonito? Apaixonou-se por um amante que jamais teve? Sabia beijar na boca? A Ciência não responde, ao menos por enquanto, assim como não sabe dizer o que perguntarão sobre nós daqui a 4 milhões de anos. |