O horror dos detalhes
O GLOBO - 08/10/09
A chacina não apenas desmente todas as belas palavras de Henrique sobre o caráter do seu bando de irmãos como contraria o código de honra que norteava o comportamento de cavaleiros cristãos nas guerras medievais (mas só contra outros cristãos, como prova o que aprontaram contra os árabes nas Cruzadas). Talvez Shakespeare, colocando um massacre nada honrado no meio da sua peça mais ufanista, estivesse sendo matreiramente irônico com seus conterrâneos. Ou apenas quisesse lembrar que na celebração de grandes vitórias militares, a exaltação esquece o sangue e as belas palavras costumam esconder o horror dos detalhes.
A fala de Henrique ordenando o massacre é um lacônico “Que cada soldado mate seus prisioneiros. Passe a palavra adiante”. Sem preâmbulo, sem explicação, sem qualquer elaboração. A terrível singeleza da frase até justifica o fato da cena ter sido frequentemente omitida, já que parece tão inconsequente – a não ser para os degolados, claro. O próprio Henrique não menciona mais o incidente, banido, até Shakespeare resgatá-lo cem anos depois, da sua biografia. Que não seria muito longa. Ele casaria com a filha do rei francês e seria nomeado herdeiro do trono da França, mas morreria pouco depois, aos 35 anos de idade. O que conquistara com tanto sangue foi recuperado pela França, sob a liderança de Joana D’Arc. Que vingou a derrota humilhante em Agincourt e cuja vitória é celebrada até hoje como a manifestação de um certo espírito peculiarmente francês, esquecidos todos os detalhes sangrentos.
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