terça-feira, setembro 20, 2016

Cada macaco no seu galho - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 20/09

"Escreve sobre aquilo que conheces." Eis o conselho-clichê do escritor sênior para o escritor júnior. Faz sentido, não faz?

Se escrevermos sobre aquilo que conhecemos –as pessoas que nos rodeiam, os lugares que habitamos, as alegrias ou tristezas que tivemos ou temos–, existe pelo menos a promessa romântica da autenticidade. A ficção contemporânea é isso, ou quase isso: reportagens sobre nós próprios, mesmo que os personagens estejam mascarados com outras identidades.

Um escritor de classe média, que habite os subúrbios da metrópole e que, sei lá, tenha um gosto especial por jogar boliche aos sábados, acabará por escrever um romance sobre um escritor de classe média, que habita os subúrbios de uma metrópole, e que descobre subitamente que a sua paixão pelo boliche é um sentimento reprimido pelo badminton.

Nada disso é grave. Exceto pelo pormenor óbvio de que nem todas as vidas são interessantes. As nossas livrarias estão cheias de obras ensimesmadas e onanistas porque o escritor seguiu o conselho-clichê de escrever sobre aquilo que conhece. O desafio deveria ser outro: escrever sobre aquilo que se desconhece. O que implica curiosidade, descoberta. E, palavra fundamental, imaginação.

Aposto que Lionel Shriver, autora do brilhante "Precisamos Falar sobre o Kevin", concorda comigo. Mas Shriver foi ainda mais longe no festival de escritores de Brisbane, na Austrália. Tema de sua palestra: apropriação cultural. Ou, traduzindo, será que é legítimo um autor usar personagens, comportamentos ou valores de outras culturas?

Exemplo: um escritor branco que vive em Nova York pode narrar o mundo –interior ou exterior– de um negro que habita em Nova York, São Paulo ou Johannesburgo?

Shriver afirma que sim e ataca violentamente as vestais da "apropriação cultural". Se a literatura aceita se autocensurar para não correr o risco de "apropriação cultural", o que resta são livros de memórias –ou, acrescento eu, exercícios nulos de autoficção.

Nomes como Truman Capote ou Graham Greene, para usar dois escritores citados por Shriver, seriam impensáveis para a tribo que luta contra a "apropriação cultural". Capote não teria direito a escrever sobre o "white trash" criminal da América "profunda"; Greene estaria impedido de viajar para os trópicos e incluir os indígenas nas suas narrativas.

Lionel Shriver tem razão. Literária e filosoficamente. Comecemos pelo princípio: se a literatura aceitasse o mandamento de que nenhum escritor pode espreitar o quintal do vizinho, as bibliotecas ficariam vazias.

Estamos em 2016. Festejamos os 400 anos da morte de Shakespeare. Devemos tolerar que o bardo da Inglaterra isabelina tenha escrito sobre portadores de deficiência homicidas (Ricardo 3º), judeus gananciosos (Shylock) ou generais mouros facilmente enganáveis (Otelo, claro)?

E que dizer de Cervantes, outro centenário, que cometeu o supremo abuso de dar corpo e voz a aristocratas alienados (como o Quixote) e a escudeiros analfabetos, mas sensatos (o impagável Sancho)? Como justificar a "apropriação cultural" de Shakespeare, Cervantes –mas também de Homero, Dante, Goethe ou Dickens?

Ver na "apropriação cultural" um problema seria retirar à literatura a sua força maior: a possibilidade de entrarmos em universos distintos, sejam mentais ou materiais, para assim compreendermos a única coisa que interessa a um criador –a natureza humana.

Mas a fraude da "apropriação cultural" também revela um paradoxo filosófico: em nome de um "respeito" pela singularidade do outro, esse multiculturalismo demente é uma forma perversa de racismo. Brancos só escreveriam sobre brancos. Negros sobre negros. Índios sobre índios.

No fundo, o sonho de qualquer racista: instituir uma espécie de "apartheid" intelectual que proíbe qualquer gesto empático para suplantarmos a diferença e nos imaginarmos "no lugar do outro".

O discurso de Lionel Shriver contra a imbecilidade da "apropriação cultural" provocou polêmica imediata. E o festival australiano, horrorizado com a sensatez, distanciou-se das palavras de Shriver e organizou um nova mesa para responder às suas colocações. O ataque ficou a cargo das escritoras Yassmin Abdel-Magied e Suki Kim.

Quem?

Leitor, não vale ir ao Google. Obviamente, são duas autoras que só escrevem sobre aquilo que conhecem.

Incerteza da atividade - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 20/09

Na economia, o pior ficou para trás, mas o melhor ainda vai demorar. Mesmo quando o país tiver um PIB positivo, estará começando a fazer o caminho de volta de quase 10% que se perdeu. Na política, a incerteza permanece. Na Lava-Jato, começará um período de maior atividade, porque muito foi investigado durante a Olimpíada e as fases serão deflagradas agora. A turbulência vai continuar.

O medidor de atividade do Banco Central trouxe ontem novo desalento. Não era esperado. O país tinha crescido em junho, pelo IBC-Br, e a expectativa quase unânime no mercado era que fosse ser divulgado um novo número positivo. Mas o índice relativo a julho veio negativo. Esta recuperação será assim, lenta e hesitante.

Nos últimos 31 meses, desde que o país entrou em recessão, no fim de 2013, houve 23 resultados negativos, e a queda acumulada pelo indicador do Banco Central é de 9,7%. O difícil agora será sair do que é o maior e mais complicado tombo que a economia brasileira levou.

Não é apenas fundo, é de difícil superação, porque a crise resultou de um ataque às bases que sustentavam o crescimento na área monetária e fiscal e misturou-se com a crise política. Como o país cresceu no passado recente puxado pelo consumo e endividamento, terá que crescer agora pelo investimento. Como sustentar o investimento com baixa confiança e crise fiscal?

O investimento federal previsto para este ano é de R$ 47 bilhões. Para o ano que vem, é de R$ 46 bilhões. Como nesse valor estão incluídos o que já foi contratado e o que estava atrasado, é muito pouco para sustentar uma retomada pelo investimento. É também por isso que se fez o programa de concessões, licitações e venda de ativos. A Petrobras, empresa que mais investia no país, está reduzindo seus projetos e cortando custos. Não será um caminho fácil.

A equipe do Bank of America escreveu em relatório que o PIB só voltará a crescer no quarto trimestre. Havia esperança de que fosse positivo já no terceiro, porque a indústria está subindo há cinco meses. O Bradesco, que chegou a prever 0,6% de crescimento do IBC-Br em julho, ao ver o resultado de 0,1% de queda, disse que o terceiro trimestre será de leve retração. O comunicado do Bank Of America diz que “junto com outros indicadores, a atividade econômica continua apontando para uma recuperação no curto prazo, mas também sugere que a recuperação é frágil e será bem gradual”.

Contudo, o relatório de ontem do Focus mostra que o mercado continua ajustando para cima o crescimento do ano que vem: a mediana das previsões estava em 1,3% e passou para 1,36%. Tem subido semana após semana, desde abril, quando a projeção era de apenas 0,2% de alta do PIB de 2017.

A economia continuará morna, ora com um número positivo, ora negativo. Pelo menos, parou de cair em queda livre como aconteceu desde o fim de 2014. E o número do ano que vem será positivo. Mas nada disso pode ser chamado de retomada do crescimento porque o país estará apenas reduzindo as perdas que teve neste período final do governo Dilma.

A inflação foi um dos fatores que derrubou a economia, continua muito acima do teto da meta. Em agosto, fechou em 8,97%, em queda desde o pico de 10,67%, mas ainda muito acima da meta de 4,5%. As expectativas pararam de cair. Chegou a ser previsto que no ano que vem ficaria em 5,12%, voltou para 5,14%, e agora está estacionado de novo em 5,12%. Parece pouco, mas vinha descendo semana a semana desde abril, quando estava em 6%. Com a expectativa ainda longe do centro da meta para o ano que vem, os juros podem cair em um ritmo mais lento.

O Brasil precisa de tudo para crescer: que a inflação caia forte, que os juros possam ser reduzidos, que haja redução do desequilíbrio fiscal e aumente a confiança para que o setor privado participe mais do esforço de investimento. A retomada pelo consumo é sempre mais rápida, mas só agora estão aparecendo sinais de queda do endividamento das famílias, o que no futuro abrirá espaço para novas dívidas. A cada indicador, o país vai ajustando as suas expectativas. O de ontem foi frustrante, porque se esperava algum crescimento em julho e não houve. Ter ficado o pior para trás é um alívio, mas esta lenta espera de que o país volte a crescer aflige e desanima.

O presidente e seus calçados - ALMIR PAZZIANOTTO PINTO

ESTADÃO - 20/09

Temer deve ser rápido na modernização da CLT, que se tornou foco de insegurança jurídica



O presidente Michel Temer mostra-se decidido a romper a barreira de atraso que cerca a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Dispondo de pouco tempo para entrar na História como estadista, deve ser rápido para modernizar a legislação que se tornou foco de insegurança jurídica, como revelam relatórios do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Escolheu dois alvos: 1) A aprovação do projeto de lei sobre terceirização, que dormita no Senado à espera de pauta; e 2) tornar concreta a norma constitucional que imprime validade às convenções e aos acordos coletivos.

Sobre terceirização não há o que discutir, tantos têm sido os seminários, debates, escritos e audiências públicas em torno do assunto. Recusam-se, porém, os inimigos do contrato de prestação de serviços entre empresas privadas – apesar de regulamentado e amplamente aceito no setor público – a compreender que se trata de fenômeno inerente à moderna economia. A irreversibilidade da terceirização é demonstrada desde 1993, quando a Súmula 256 do TST a condenou à ilegalidade. Perseguida pelo Judiciário, sobreviveu, ganhou força e se impôs. Cerca de 1,5 milhão de homens e mulheres terceirizados encontram emprego em mais de 15 mil empresas no Estado de São Paulo.

A validade das convenções e dos acordos coletivos resulta da Constituição federal e da Convenção n.º 154 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Decreto n.º 1.256, de 29/9/1994, que a incorporou à legislação interna. Trata-se de figuras jurídicas valorizadas no mundo desenvolvido como insubstituíveis instrumentos de composição e equilíbrio nas relações entre patrões e empregados.

Outro tema que deve atrair a atenção do presidente Michel Temer é o do recibo de quitação. Passado pelo empregado, segundo as exigências legais, deveria oferecer a certeza de que o distrato se reveste de segurança para ambas as partes, e não unicamente para o empregado. É sabido que a maior parcela das reclamações ajuizadas nas Varas do Trabalho tem como autor empregado demitido sem justa causa. O empregador evita recorrer à demissão por falta grave. O pagamento será efetuado mediante Termo de Rescisão padronizado, na presença de representante do respectivo sindicato ou de servidor do Ministério do Trabalho e Emprego. Cabe-lhes a responsabilidade de rever os cálculos e conferir autenticidade à quitação.

Apesar das formalidades, a eficácia jurídica do termo é praticamente nula. Ao deixar o local onde acabou de receber, é comum o trabalhador procurar o mesmo sindicato, ou advogado que se oferecera para dar-lhe assistência, a fim de ajuizar processo contra o incauto empregador. Já não se respeitam pedidos de demissão incentivada (PDIs) ou programas de demissão voluntária (PDVs), em que os desligados negociam e recebem mais do que lhes defere a lei.

Alterações na CLT que obriguem a entrega ao empregado, no ato de concessão do aviso prévio, da relação dos valores a que tem direito, para que se manifeste dentro de determinado prazo se concorda ou não com as quantias propostas, reforçariam o significado da quitação. Atualmente ele toma ciência dos créditos no momento em que serão pagos. Reside aí um dos argumentos para ele reaparecer, pleiteando diferenças.

A má redação do artigo 477 da Consolidação das Leis do Trabalho causa decisões em que o empregador é condenado a gastar com ex-empregado mais do que com ele despendeu na vigência do contrato. Para que haja segurança jurídica o recibo final de quitação deve revestir-se de eficácia liberatória geral, como ocorre com o documento lavrado em comissão de conciliação prévia (CLT, artigo 625-E).

Três fenômenos caracterizam a economia do século 21: globalização, tecnologia e terceirização. É inútil ignorá-los, assim como é estúpido tentar acabar com a livre-iniciativa. A legislação trabalhista brasileira, contudo, permanece alheia ou procede como inimiga dos três. Excessivamente intervencionista, ela retira do empresário, que suporta os riscos do negócio, o direito de administrar livremente a empresa. Não percebeu, até hoje, a globalização como fator de mudanças no mercado mundial de trabalho, ignora a tecnologia como força destruidora e criadora de empregos e combate a terceirização com o falso argumento da precarização, mantendo-se indiferente ao pesadelo vivido por 12 milhões de excluídos do mercado.

Em recente viagem à China, para participar do encontro do G-20, o presidente Michel Temer deixou-se fotografar quando adquiria calçados em Pequim. Bastou isso para que empresários do setor calçadista investissem contra S. Exa., acusando-o de comportamento nocivo aos interesses nacionais. Não se deram conta da mensagem embutida na notícia. Ao comprar sapatos chineses, demonstrou o presidente, voluntária ou involuntariamente, a força da globalização. Dias depois, outra fotografia mostrava a felicidade estampada no rosto do ministro da Agricultura, Blairo Maggi, ao exibir caixas de pés de galinha congelados produzidos por empresas brasileiras e vendidos nos mercados de Xangai.

Há muita tolice dita contra a reforma trabalhista. O tolo, todavia, é vitalício e impermeável, como registrou Ortega y Gasset. Sem forte presença no mercado internacional a economia brasileira continuará pedalando bicicleta ergométrica, sempre no mesmo lugar. Para conquistar espaço externo os produtos brasileiros dependem de agilidade, confiabilidade, pontualidade, qualidade e preços, como provam os exportadores de pés de galinha. O elevado custo Brasil, a CLT, com o seu emaranhado de leis, e a confusa e inconstante jurisprudência que a acompanha são obstáculos ao desenvolvimento e responsáveis pelo desemprego no País.

Sendo assim, por que não modernizá-la?

*Advogado, foi ministro do trabalho e presidente do TST

A importância dos indícios penais - ALOÍSIO DE TOLEDO CÉSAR

ESTADÃO - 20/09

No caso de Lula, até mesmo ao leigo parece estar evidente a prática de crimes


É ofensivo à inteligência e ao sentimento nacional de justiça imaginar que a condenação de um criminoso de colarinho branco depende unicamente de provas materiais, tais como impressão digital ou fotografias. Esse tipo de crime é praticado às escondidas, nas sombras e sob proteção de cúmplices bem localizados no serviço público. Por isso mesmo é quase impossível encontrar impressões digitais, filmes ou fotos.

Vigora no sistema no sistema processual brasileiro o princípio do livre convencimento, segundo o qual compete ao juiz da causa valorar com ampla liberdade os elementos de prova constantes dos autos, desde que o faça motivadamente. Nesse panorama, para a condenação de conduta criminosa o juiz pode valer-se também de indícios, ou seja, de circunstâncias conhecidas e aparentes, capazes de demonstrar a existência do crime. Em verdade, os indícios estão claramente previstos pelo Código de Processo Penal, no capítulo das provas.

Neste momento tormentoso vivido pelo ex-presidente Lula, é compreensível que seus advogados e defensores entoem descontentamento com a denúncia pública feita contra ele, alegando ausência de prova material. Na falta de argumentos que envolvam o mérito, compreende-se que usem tal estratégia de defesa, mas dificilmente convencerão o juiz quanto à ausência de provas, uma vez que são muito expressivos os indícios da conduta criminosa.

O Código de Processo Penal, em seu artigo 239, prevê com toda a clareza que se considera indício a circunstância conhecida e provada que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias. Essa indução autorizada pela lei às vezes é tormentosa, pois alguns defendem não ser possível condenação se não há prova material. Mas cristalizou-se progressivamente o entendimento de que nem sempre é possível obter diretamente a prova do crime e, por isso, torna-se necessária a captação dos indícios, por intermédio dos quais se chega à verdade real.

A denúncia que o Ministério Público faz contra Lula, causando impacto tão forte no País, está fundamentada num conjunto enorme e expressivo de indícios e circunstâncias, que permitem, pela indução prevista no artigo 239, concluir que houve mesmo crime, e dos mais graves.

Muitos juízes entendem que a eficácia dos indícios não é menor que a da prova direta. Quando bem estabelecidos, e bem evidentes, eles podem adquirir importância predominante e decisiva, permitindo fixar condenações que a sociedade exige.

No caso de Lula, até mesmo ao leigo parece estar evidente a prática de crimes. Quando do episódio do mensalão, prevaleceram condenações brandas, defendidas vitoriosamente pelo ministro Ricardo Lewandowski, do STF, que tem um enorme coração bondoso. Graças a isso, os criminosos políticos José Dirceu, José Genoino e João Paulo Cunha foram abençoados e beneficiados por leve sentença.

Houve naquela oportunidade uma grave ofensa a cada um de nós, porque Marcos Valério, o acusado que não era político e não tinha a mesma proteção, foi mantido no cárcere. Já os políticos protegidos saíram logo.

Também naquela ocasião, embora José Dirceu fosse o braço direito de Lula (ou, quem sabe, os dois braços), prevaleceu o entendimento de que não havia prova material da participação criminosa do ex-presidente. E com isso ele, que não sabia de nada, não viu nada, não participou de nada, ficou fora da condenação.

Vê-se hoje que faltou coragem ao Ministério Público Federal para incluí-lo na denúncia, talvez ao fundamento de inexistência de impressões digitais ou de filmagem dos crimes praticados. Agora, a conduta dos promotores de Justiça do Paraná é outra e vemos que o conjunto de circunstâncias indicadoras da prática de crime autorizou a propositura de ação penal.

A propósito, o STF, por voto de Sepúlveda Pertence, já concluiu que os indícios, dado o livre convencimento do juiz, são equivalentes a qualquer outro meio de prova, pois a certeza pode provir deles. A recomendação feita na ocasião foi de que o uso dos indícios requer cautela e o nexo de causalidade, ou seja, sua conformidade com qualquer outro tipo de prova. E o paulista Frederico Marques, tantas vezes citado por sua invejável lucidez, dizia que “o valor probante dos indícios e presunções, no sistema de livre convencimento do juiz, é em tudo igual ao das provas diretas”.

Assim, por mais que os defensores de Lula se apeguem à tese enganosa de inexistência de provas, buscando, quem sabe, convencer-se a si próprios, a finalidade do processo criminal consiste em provar – e provar nada mais é do que proporcionar ao juiz a convicção sobre a existência de um fato. Isso equivale a dizer que o conjunto de circunstâncias e indícios que levaram os promotores da Lava Jato a propor a denúncia contra o ex-presidente Lula é por si só suficiente, pois permite formar um quadro de segurança compatível com a almejada verdade real.

Como o legislador brasileiro erigiu os indícios como meio de prova, não se pode concluir que a ausência de determinada prova material desejável impeça o juiz de manifestar seu livre convencimento na forma de um decreto condenatório, apoiado exclusivamente em prova indiciária. Isso é o que se pode prever quanto ao processo judicial contra o ex-presidente, lembrando, como curiosidade, que ele próprio ao manifestar-se em entrevista de mais de uma hora, transmitida ao vivo pelas televisões, em momento algum fez defesa do mérito, ou seja, que não deixou seus amigos mais próximos roubar à vontade dinheiro nosso, com o claro propósito não só de encher os bolsos, mas de levar avante um projeto populista dos piores.

*Desembargador aposentado do TJSP, foi secretário estadual de justiça. 

Privatizações e concessões entre o céu e o inferno - GIL CASTELLO BRANCO

O GLOBO - 20/09

As incertezas quanto ao sucesso do PPI estão atreladas ao baixo nível de confiança que o Brasil inspira



Diz o ditado popular que de boas intenções o inferno está cheio. Lembrei-me da frase quando foi anunciado na semana passada um pacote de 34 privatizações e concessões. Parte dos projetos já constava de divulgações anteriores, com pompa e circunstância, durante a gestão de Dilma.

Nesta semana, Temer e vários ministros estão em Nova York para tentar vender o peixe para investidores internacionais. Estão na prateleira aeroportos, terminais portuários, ferrovias, rodovias, usinas e distribuidoras de energia elétrica, campos de petróleo e áreas de mineração, além das empresas de saneamento básico de Rio, Pará e Rondônia. A Lotex, braço da Caixa para loterias instantâneas, também será leiloada.

Com base nas experiências malsucedidas, o governo mudou as regras do jogo. O prazo entre a publicação dos editais e os leilões, que era de até dois meses, foi ampliado para cem dias, dando mais tempo para a formação de consórcios; os editais só serão publicados após a obtenção da licença ambiental prévia; as tarifas não entrarão nos critérios de julgamento, visto que empresas ganhavam com valores irreais e, sem caixa, não tocavam as obras exigindo repactuações; as agências reguladoras, que até então participavam da elaboração dos editais, agora exercerão apenas a fiscalização, o que precisarão fazer com competência e autonomia; a Infraero não mais será imposta como parceira obrigatória dos grupos que arrematarem os aeroportos.

As empresas vencedoras nas licitações emitirão debêntures que serão adquiridas pelo BNDES (R$ 18 bilhões) e pela Caixa (R$ 12 bilhões), como forma de financiar os investidores. As novas condições de financiamento eliminam os empréstimos-ponte que eram usados até o investidor obter o crédito definitivo, o que gerava insegurança. Agora, o BNDES será mais ágil e os leilões serão realizados já com os financiamentos equacionados, envolvendo captação de recursos nos mercados interno e internacional.

O novo Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) foi recebido com otimismo, apesar de algumas críticas e muitas incertezas. Os otimistas entendem que os projetos são atraentes, as regras serão estáveis, a cultura dos atuais gestores é menos intervencionista, e as circunstâncias políticas são mais favoráveis. De fato, vários empresários diziam que, ao se sentar à mesa de negociações, a primeira pergunta dos petistas era sobre quanto iriam lucrar, consulta no mínimo curiosa para um governo que criou a “propinocracia”, expressão utilizada na semana passada pelo procurador Deltan Dallagnol.

As críticas ao PPI foram direcionadas à demora para o programa deslanchar, visto que nenhum leilão ocorrerá este ano e sequer foram detalhadas as condições oferecidas para cada negócio. Houve também insatisfações quanto à pouca ousadia do programa e ao financiamento de 80% dos empreendimentos via BNDES e Caixa — sabe-se lá em que condições. Da minha parte, prefiro um anúncio “pé no chão”, com maior agilidade e mais ousadia na execução. É evidente, porém, a necessidade do “desmame” dos empresários, acostumados aos generosos empréstimos dos bancos públicos.

A verdade é que o Estado quebrou. Se o PPI der certo, entrarão nos cofres da União cerca de R$ 24 bilhões em 2017, valor já previsto no Orçamento do próximo ano. No entanto, mesmo com esses recursos, o rombo fiscal estimado é de R$ 139 bilhões. E, acreditem, pode ser maior...

As incertezas quanto ao sucesso do PPI estão atreladas ao baixo nível de confiança que o Brasil inspira. Várias empresas brasileiras que costumam integrar consórcios estão no olho do furacão da Lava-Jato. As agências de risco rebaixaram o país recentemente. A credibilidade no reequilíbrio das contas públicas só será restabelecida se o Congresso aprovar a essência da PEC do teto para os gastos públicos e uma ampla reforma da Previdência. A meia-sola nesses temas será um péssimo sinal. Ademais, as condições macroeconômicas terão que permitir a queda da taxa básica de juros pois, no patamar de 14,25%, muitos investidores irão preferir manter o dinheiro aplicado no mercado financeiro. Para não falar no Custo Brasil e no “risco Lava-Jato”, com efeitos imprevisíveis sobre o próprio governo.

Enfim, o secretário-executivo do PPI, Moreira Franco está entre o céu é o inferno. Se conseguir fazer decolar esses e outros projetos de privatizações e concessões, dará contribuição relevante não só para o ajuste fiscal de curto prazo, mas também para otimizar a atividade produtiva. Se não conseguir, será mais um “bem intencionado” a ir para o inferno.

Gil Castello Branco é economista e fundador da organização não governamental Associação Contas Abertas

Aquarius - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 20/09

‘Aquarius’ já não tem admiradores, mas militantes. Não amar o filme é de repente se ver posicionado na luta de classes — contra o povo oprimido. Não amá-lo é discurso de ódio



É produtivo refletir sobre como o enredo dos golpeados encontrou na carreira de “Aquarius” uma trilha por meio da qual prosperar — e faturar. Preterido na disputa por (tentar) representar o cinema brasileiro no Oscar, Kleber Mendonça Filho, diretor do filme, não bobeou em — fiel ao script totalitário de que é um dos formuladores — associar a escolha de “Pequeno segredo”, de David Schurmann, à “realidade política do Brasil”.

E qual seria “a realidade política do Brasil”, segundo Kleber Mendonça Filho? O leitor decerto se lembra do último Festival de Cannes, em que parte da equipe de “Aquarius” denunciou — cartazes em punho — o que seria um golpe contra a democracia brasileira, sinônimo petista para tudo quanto se oponha e resista ao projeto de perpetuação no poder de Lula e do Partido dos Trabalhadores. Ali, o cineasta fez uma opção. Não para si, mas para seu filme. Ali, para além do que vai na tela, ele apresentou também o roteiro de como “Aquarius” deveria ser projetado por seus divulgadores e percebido pelo público. Ali, definiu o tom, a realidade — a narrativa, esta maldita — à qual submeteria sua arte e com a qual operaria a mais oportunista campanha de marketing da história do cinema nacional.

Foi Kleber Mendonça Filho quem politizou — a não poder mais reverter — o destino de seu filme, obra que amarrou, com método, ao desfecho do processo de impeachment. E aqui, pois, estamos.

Onde estamos?

Dilma Rousseff teve o mandato cassado pelo Congresso Nacional. Foram longos meses de trabalho no Parlamento, em que a ex-presidente — apesar da irresponsabilidade petista, que pretendeu rasgar o texto constitucional e deslegitimar Câmara e Senado — teve amplo direito à defesa. Ela mesma, Dilma, compareceu diante dos que a golpeavam, num dia em que Chico Buarque integrou a excêntrica comitiva de convidados-golpeados-oficiais da golpeada-mor.

Kleber Mendonça Filho, por sua vez, teve cassado o mandato — divino — segundo o qual seu filme seria o aclamado representante do Brasil no pleito por (tentar) disputar o Oscar. Foram longas semanas de pressão, de assessoria de imprensa vestida de jornalismo, de difamação, de fofoquinha, de menosprezo aos concorrentes (eram 15, os fantasmas), de mi-mi-mi (nunca terá havido tantas Gleisis, tantos Lindberghs), de conchavo entre cineastas, de coação, de intimidação intelectual, de tentativa de calar o contraditório, de desrespeito a uma comissão julgadora previamente escolhida, período no curso do qual parecia só haver “Aquarius” — até que, não!, o colegiado, soberano, desautorizou a imposição da corriola, peitou os donos do cinema brasileiro e selecionou outro que não o filme do golpe.

Onde estamos?

Ainda não estamos. Porque antes convém destrinçar — à luz desse histórico — o que vai dito quando Kleber Mendonça Filho costura a não indicação de “Aquarius” à “realidade política do Brasil”. Sim, ele se vitimiza. O golpe também é contra ele. Isso é evidente, lucrativo — e integra a estratégia da guerrilha criativa, que necessita de perseguições forjadas, de conspirações inventadas, de censuras fabricadas. Já o fizera, aliás, contra a classificação indicativa do filme, estabelecida em 16 anos — algo que, claro, só poderia decorrer de retaliação do Ministério da Justiça golpista.

Agora, com “Aquarius” nos cinemas, recorre-se ao expediente de desqualificar aqueles que não veem tanta genialidade assim no filme, deslocando o gosto puro e simples para o terreno da política — como se o desencanto não pudesse existir, não em relação a “Aquarius”, sem uma intenção partidária. (A turma é generosa, no entanto; porque você, que não apreciou o filme, pode não ter maldade nisso, pode nem perceber que, na raiz de não lhe ter gostado, há uma deformação de extrema-direita.)

Já não é aceitável considerar “Aquarius” uma obra comum, mediana ou mesmo correta, boa, legalzinha, sem que sobre essa modesta impressão individual recaia o juízo de que fruto de um olhar ideológico. (Só Kleber Mendonça Filho e o pessoal do Edifício Solaris — ops!, perdão, Aquarius — podem manipular a política e a ideologia.) Assim, o filme já não tem críticos, mas inimigos. Já não tem admiradores, mas militantes. Diga, com base nos números, que não é um sucesso de público — e leve um “Fora, Temer!” na cara. Não amar “Aquarius” é de repente se ver posicionado na luta de classes — contra o povo oprimido. Não amar “Aquarius” é discurso de ódio. Bolsonaro!

Onde estamos?

Próximos ao momento em que não será mais possível contrariar um petista (os interesses de um petista) sem ser chamado de canalha, de golpista. E isso tem nome: fascismo.

Carlos Andreazza é editor de livros

Luca e as eleições - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 20/09

SÃO PAULO - Se não houvesse pressões do meio ambiente, não haveria evolução, e a vida teria sido fácil para Luca ("last universal common ancestor"), a sigla inglesa pela qual os biólogos designam o mais recente organismo de qual descendem todos os seres vivos que habitam a Terra. Sem um ambiente muito volúvel e frequentemente inóspito, Luca, um ser unicelular que viveu entre 3,5 e 3,8 bilhões de anos atrás, talvez ainda reinasse soberano, hipótese em que não estaríamos aqui falando sobre biologia e política.

A decisão do STF que baniu as doações de empresas para eleições é o equivalente de um cataclismo ambiental que levará o sistema a evoluir. As ondas de choque estão aparecendo. Nos primeiros cruzamentos de dados, já foram encontradas doações feitas por generosos cadáveres e por entusiasmados beneficiários do Bolsa Família. Espera-se que os mal-adaptados políticos que conceberam esses esquemas sejam rapidamente fulminados pela Justiça Eleitoral, que assim contribuiria para reduzir a burrice escancarada do pool da nossa política.

Esses casos, porém, são só a casquinha. A brutal redução de recursos a alimentar as campanhas, se não for revertida por uma PEC ou compensada por fraudes mais difíceis de detectar, pressiona o sistema a modificar-se. Não é algo que veremos em uma ou duas eleições, mas a tendência é que os próprios políticos, para não morrer de inanição, busquem um desenho institucional em que o dinheiro de doações importe menos para o sucesso de suas candidaturas.

O elemento mais propenso a sofrer mutações é o sistema de voto proporcional, que hoje coloca milhares de candidatos a disputar as mesmas vagas (e os mesmos doadores) em grandes áreas geográficas. Uma solução bem razoável para reduzir custos e facilitar a escolha do cidadão é a adotar o voto distrital, que traria como subproduto um Legislativo mais próximo do eleitor.

História nos autos - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 20/09
Ex-líderes do PT e do PP relatam a devastação da maior empresa do país, a Petrobras. Em outubro, eles e mais dez envolvidos devem recontar a história para a Justiça dos EUA


Os óculos transitavam entre as mãos, cadenciando a fala diante da câmera. Já durava uma hora o interrogatório do ex-senador sobre a política no Brasil nos últimos 15 anos.

— O senhor diz que o presidente Lula tinha conhecimento do ilícito que estava sendo praticado lá na Petrobras, “arrecadação” de propina, desde a formação do governo. É isso mesmo? — quis saber o procurador.

— É isso. Então, doutor, no princípio era uma coisa mais restrita de menor monta, não atingiu a dimensão que veio depois.

O procurador queria detalhes sobre “a participação do Luiz Inácio Lula da Silva no esquema”. O ex-senador Delcídio Amaral demonstrava ansiedade em contar como foi o fatiamento do poder sobre o caixa da estatal de petróleo para financiar o PT, o PP e o PMDB, entre outros. Petista por década e meia, foi líder do governo Dilma até o início deste ano. Preso por obstruir a Justiça, resolveu fazer um acordo de colaboração, como outros 60 envolvidos (há mais duas dezenas de acusados na fila de negociações em Brasília e Curitiba).

— Sobre o processo “arrecadatório”, de propina, como é que se dava a relação do presidente da República com os diretores da Petrobras?

— Eram os partidos que executavam — explicou Delcídio. — Como ele conversava com os partidos, tinha um acompanhamento quase em tempo real de como cada partido estava agindo dentro dentro da Petrobras. Tinha ciência clara. Evidente que não entrava na execução, mas sabia o que estava acontecendo. Isso aí é inegável. E uma coisa é certa: se um diretor não “desempenhasse”, a reclamação era direta lá no Planalto.

— E ele (Lula) tinha conhecimento de quanto cada diretoria da Petrobras arrecadava?

— Do PT, ele tinha conhecimento claro. Dos outros partidos podia ter uma noção dos valores, pelo tamanho dos negócios. É inegável.

Setembro mal começara e o ex-líder do PT falou por mais uma hora sobre Lula, partidos e propinas em contratos da Petrobras. Na mesma época, em Curitiba, o antigo líder do PP na Câmara, Pedro Corrêa, relatou reuniões com Lula desde a nomeação de Paulo Roberto Costa na diretoria de Abastecimento da Petrobras, em 2004, para “arrecadação de propina”. Costa “atendia satisfatoriamente”, contou, mas o partido sempre queria mais.

— Em reunião do Conselho Político foi cobrado um ministério. Era eu, (os deputados) Janene, Pedro Henry e o (ministro) Dirceu. O Lula respondeu: “Vocês têm uma diretoria muito importante, estão muito bem atendidos financeiramente, o Paulinho tem me dito”.

No ano eleitoral de 2006, Corrêa e Janene voltaram ao Planalto: — Lula disse não. Nas palavras dele, “o Paulinho tinha deixado o partido muito bem abastecido, com dinheiro para fazer a eleição de todos os deputados”.

Delcídio e Corrêa continuam reconstituindo nos autos judiciais a devastação da maior empresa do país. Em outubro devem recontar a história para a Justiça dos EUA, na companhia de outros dez acusados. Jed Rakoff, juiz de Manhattan, pediu para ouvi-los no processo contra a Petrobras movido por investidores estrangeiros. Em Curitiba, Brasília e Nova York há certeza de que a Petrobras, fornecedores, executivos e políticos envolvidos não conseguirão escapar ilesos de indenizações e punições rigorosas no tribunal de Nova York.

O militante imaginário - ARNALDO JABOR

ESTADÃO - 20/09

O que é o “militante imaginário”? O filósofo José Arthur Giannotti criou essa expressão e eu a achei perfeita. O “militante imaginário” é o sujeito que se acha revolucionário, mas nunca fez nada pelo povo. Chamemo-lo de MI. É-se militante imaginário como se é Flamengo ou Corinthians. Agora, nessa grande crise de mutação que vivemos, pululam militantes imaginários.

O MI se julga em ação, só que não se mexe. Ele é a favor de um Bem que não conhece bem. O que é o “Bem” para ele, o nosso militante imaginário?

Para o MI de hoje o “Bem” é uma mistura de crenças ideológicas que nos levariam a um futuro de felicidade. A mente de um MI é um sarapatel de leninismo vulgar, socialismo populista, subperonismo, vagos ecos getulistas e um desenvolvimentismo tosco.

Eles gostam de ser militantes porque é bonito ser de uma vaga esquerda enobrecedora; ela abriga, como uma igreja, muitos tipos de oportunismo ideológico. São professores universitários, intelectuais sem assunto, jovens sem cultura política e até mesmo os “black blocs” que já são tolerados e viraram uma espécie de “guarda revolucionária” dos militantes.

Existem vários tipos de militantes imaginários.

Há o militante de cervejaria, de estrebaria e de enfermaria. Bêbados, burros e loucos.

O MI é um revolucionário que não gosta de acordar cedo. É muito chato ir para porta de fábrica panfletar.

O militante verdadeiro, puro, escocês, só gosta de teorias. A chamada “realidade” atrapalha muito com suas vielas e becos sem saída. Os MI’s odeiam a complexidade da realidade brasileira, porque eles aspiram a um absoluto social num mundo relativo; eles querem um Brasil decifrado por três ou quatro slogans.

A grande paixão do MI é a certeza. “Dúvida” é coisa de burguês reacionário, frescura social-democrata ou neoliberal. O MI só pensa no futuro; odeia o presente com suas complicações, idas e vindas. O militantes odeia meios; só tem fins.

Para o MI, o presente é chato. O futuro é melhor porque justifica qualquer fracasso: “Falhamos hoje, mas isso é apenas uma contradição passageira na marcha para a grande harmonia que virá!”. E quanto mais fracassos, mais fé. O MI perde o poder, mas não perde a pose e a fé. A cada uma de suas frequentes derrotas, mais brilha sua solidão de “vítima” do capitalismo. Aliás, ser “contra” o capitalismo justifica tudo e garante uma respeitabilidade reflexiva. E hoje, como o comunismo está inviável, os MI’s lutam pela avacalhação do que já existe, pois não têm nada para botar no lugar.

O MI é uma espécie de herói masoquista, pois tem o charme invencível do derrotado que não desiste.

Os MI’s são em geral românticos, são até bons sujeitos, mas são meio burros.

Há até MI’s cultíssimos, eruditos; porém, burros. Eles não veem o óbvio, porque o óbvio é muito óbvio. Acham que a verdade só existe escondida nas nervuras do real.

Depois de 13 anos de erros sucessivos, quando o PT abriu as portas para o presidencialismo de corrupção, houve o impeachment. Foram longos meses de cuidados constitucionais até a conclusão. O STF, o Congresso, a OAB, a PGR, todos consagraram rituais institucionais corretos.

Mas, não adianta; depois de pixulecos e panelaços, começou a gritaria de “golpe, golpe” e refloriu a primavera dos militantes imaginários que estavam meio arredios, acuados. A desgraça é que eles insistem nas dualidades ideológicas, quando o problema do Brasil é contábil. É a economia, estúpidos! – como disse Carville.

Hoje, eles estão pululando e gritando “Fora Temer”; até sem saber porquê.

Não importa se dilmistas e petistas tenham arrasado o País, jogando-o na maior depressão da história; o que importa para os MI’s é que, mesmo arrebentando tudo, eles portavam a bandeira mágica da revolução imaginária que tudo justifica. Espanta-me a frivolidade desses protestos abstratos. Os MI’s não se permitem nem alguns meses da esperança de que se consertem as contas públicas; destruíram-nas e não deixam consertá-las.

O militante imaginário se considera superior a todos nós, reacionários e caretas.

O MI é uma alegoria de si mesmo; ele não é apenas um indivíduo – ele é mais do que isso, ele é o autodeclarado embaixador do povo. O militante imaginário se considera o sujeito da história, o cara que vai mudar o rumo do erro; enquanto isso, a direita sabe que a história não tem sujeito; só objeto (no caso, o lucro).

Eles lutam pelo passado. São regressistas com toques sebastianistas de paz no futuro e glória no passado. Eles têm uma espécie de saudade de um mundo que já foi bom. Quando foi bom? Durante as duas guerras, no stalinismo, quando?

Ou seja, eles tem saudade de um tempo em que se achava que o mundo poderia vir a ser bom... É a saudade de uma saudade.

O MI acha que o mundo se divide em esquerda e direita – em opressores e oprimidos. Qualquer outra categoria é instrumento dos reacionários. O MI detesta contas, safras de grãos, estatísticas, tudo aquilo que interessa à velha direita. Por isso, ela ganha sempre.

O militante imaginário não pode ser confundido com o patrulheiro ideológico. Este vigia os desvios dos outros. O MI brilha como um exemplo a ser seguido. O MI só ama o todo.

Enquanto a direita só ama a “parte” (sua, claro). O MI nunca leu O Capital; a direita também não, mas conhece o enredo. O MI vive falando em “democracia”, mas não acredita nela. Como sempre, os MI’s só defendem a democracia como estratégia (“a gente apoia e depois esquece...”) .

Ultimamente, os MI’s andam eufóricos – não precisam mais governar e outras chateações administrativas. Agora, estão na doce condição de vítimas. E por aí vão, se enganando, se sentindo maravilhosos guerreiros com “boa consciência”, enquanto contribuem para a paralisia brasileira. É isso aí...

O MI me lembra uma frase de Woody Allen que adoro:

“A realidade não tem sentido, mas ainda é o único lugar onde ainda se pode comer um bom bife”.

O MI não quer bife.

Temer lá e cá - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 20/09

Após 'ordem e progresso', Temer entra com o lema 'normalidade e segurança'


O presidente Michel Temer carregou na mala para Nova York duas palavrinhas mágicas para o seu discurso de hoje na abertura da Assembleia-Geral da ONU, na sua agenda bilateral com presidentes e primeiros-ministros e nos seus encontros com, principalmente, setores privados. São elas: normalidade e segurança. Pena que Temer não se encontrará com Barack Obama.

Com a versão do “golpe” desmilinguindo-se – foram vinte os gatos pingados gritando palavras de ordem na chegada de Temer à cidade –, não seria ele que a resgataria e poria em pauta na sua segunda e mais importante viagem internacional. A ordem é deixar “golpe” para lá, sair da defesa e partir, não para o ataque, mas para o convencimento de que o Brasil está no rumo certo.

Temer pretende dizer ao mundo que o País está voltando à maior normalidade, com as instituições funcionando, a relação do governo com o Congresso fluindo e uma grande expectativa nacional de que o pior já passou e todos os esforços são para voltar a crescer, criando condições para a indústria, os empregos, a inclusão.

Pretende dizer também, particularmente aos investidores, que a normalidade institucional vem junto com a restauração da segurança jurídica, do pragmatismo econômico, da abertura aos investimentos. Acabou a era do Estado inchado, do preconceito contra o capital e das canetadas como a que botou o setor elétrico de pernas para o ar. Como acabou a era das alianças internacionais erradas e começa uma outra em que estão na mesa os interesses nacionais – de um lado (o brasileiro) e do outro (o interlocutor).

O discurso de Temer, que fala em tese, foi precedido e está sendo detalhado por compromissos práticos assumidos pelos seis ministros que integram sua comitiva. José Serra, por exemplo, abriu os trabalhos reunindo-se com os chanceleres dos parceiros originais do Mercosul: Argentina, Paraguai e Uruguai. Sem a Venezuela e seu viés, digamos, heterodoxo, o grupo acertou e divulgou que é hora – aliás, já passou da hora – de fechar o acordo com a União Europeia.

Moreira Franco, da infraestrutura, levou o cardápio de obras, concessões e licitações. Fernando Bezerra Filho, as oportunidades no setor de minas e energia. Zequinha Sarney, o discurso de que o Brasil está calibrando bem a proteção ao meio ambiente e a garantia de desenvolvimento. Alexandre de Moraes, da Justiça, respaldou o discurso de ontem sobre refugiados, e Henrique Meirelles, da Fazenda, é o grande troféu do binômio “normalidade e segurança”.

Em comum, todos fazem duas sinalizações para investidores. Uma é que o novo governo tem força para aprovar no Congresso pelo menos três mudanças essenciais para desobstruir o desenvolvimento: o teto de gastos (ajuste fiscal), a reforma da Previdência (sustentabilidade do sistema) e a flexibilização das leis trabalhistas (combate ao desemprego). O outro compromisso, que pode ser explícito ou velado, é de que o governo não tentará, de nenhuma forma, obstruir a Lava Jato.

A ida de Temer à China foi um treino, aproveitando o G-20 e para trazer uma foto com os maiores líderes do planeta. Esta segunda viagem, ao ainda “centro do mundo”, já é para valer. Temer discursou na reunião sobre refugiados – um dos maiores problemas deste século, que também aumenta no Brasil –, e vai à ONU não apenas falar “para fora” (a presidentes e primeiros-ministros), mas também “para dentro” (a sociedade brasileira). Na verdade, os presidentes brasileiros abrem a assembleia-geral por tradição, mas a repercussão dos seus discursos acaba sendo muito maior no Brasil do que nos outros governos e na imprensa internacional. Temer sabe. Assim como sabe que a demanda por “normalidade” e “segurança” em contratos e investimentos é tão grande cá como lá.

A reforma trabalhista amadurece - JOSÉ PASTORE

O Estado de São Paulo - 20/09

Durante anos a fio – para não dizer décadas –, fiquei quase sozinho nas discussões sobre a reforma trabalhista. Senti na pele quando o ministro do Trabalho Jaques Wagner disse considerar palavrão toda e qualquer referência à flexibilização das leis do trabalho.

O Brasil precisou destruir 1,5 milhão de empregos em 2015 e chegar a 12 milhões de desempregados em 2016 para admitir a necessidade daquela reforma. Hoje a imprensa, os advogados, os acadêmicos, os governantes e até mesmo boa parte dos dirigentes sindicais – laborais e empresariais – admitem a necessidade de modernizar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) engrossaram essa ideia e deixaram claro que, havendo trocas compensatórias, empregados e empregadores, com a participação dos sindicatos, podem firmar suas próprias regras para presidir as condições do trabalho. É o reconhecimento da importância da negociação e da valorização dos acordos e convenções coletivas.

É claro que a modernização das leis do trabalho não é receita para gerar mais empregos. Estes dependem de investimentos bem direcionados para criar oportunidades de trabalho. Mas, feitos os investimentos, sobrará como obstáculo o medo de empregar que hoje domina a maior parte dos empregadores.

E de onde vem esse medo? Ele decorre da insegurança em relação às leis e à conduta da Justiça do Trabalho. Sim, porque os detalhes antiquados e superados que ainda habitam os textos legais deixam perplexos os empregados e empregadores que têm de entrar numa relação de trabalho.

Muitos dos preceitos legais que hoje assustam as partes foram justificáveis nas décadas em que se criou a legislação trabalhista. Naquele tempo, por exemplo, muitas mulheres carregavam sacas de café e de açúcar nas costas, sem dizer as que passavam horas a fio cortando cana sob sol a pino e mal alimentadas. Por isso, o legislador pôs na CLT que as mulheres teriam direito a descansar 15 minutos antes de começar a fazer uma hora extra.

Mas hoje tudo mudou. As tecnologias tornaram o trabalho mais leve. Por isso, enfermeiras, bancárias e balconistas não entendem por que têm de parar 15 minutos antes de fazer uma hora extra. E se revoltam quando isso é exigido porque esses 15 minutos, além de não serem remunerados, atrasam a sua hora de saída do trabalho. É evidente que essa proteção se tornou desnecessária e disfuncional nos dias atuais.

O mesmo se pode dizer da regra que impede a divisão das férias em dois períodos para os trabalhadores que têm 50 anos ou mais. Volto a dizer: nas décadas de 30 e 40, quando as primeiras leis trabalhistas foram cunhadas, um homem de 50 anos era considerado velho e, por isso, precisava descansar 30 dias seguidos depois de um ano e trabalho. Mas a demografia mudou, o envelhecimento é acompanhado por uma inegável melhoria da saúde, de modo que os trabalhadores de 50 anos estão mais para jovens do que para velhos. Não há razão, pois, de admitir o parcelamento de férias para quem tem 49 anos e a proibição para quem tem 50 anos.

Os exemplos são infindáveis para mostrar que a CLT envelheceu e não se ajustou aos tempos modernos. O Constituinte de 1988 percebeu isso, o que o levou a conceder enorme liberdade para empregados e empregadores negociarem coletivamente o que consideram melhor para si, respeitadas, é claro, as normas constitucionais, as regras de proteção da saúde e as convenções internacionais ratificadas pelo Brasil.

O espaço de liberdade contido na Constituição de 1988 vem sendo reconhecido e aprovado pelo STF. Isso constitui grande avanço e deixa para trás o conceito de palavrão que os governantes do passado pretenderam atribuir às medidas que buscavam atender melhor empregados e empregadores e gerar mais empregos. É bom verificar que a sociedade começa a compreender a necessidade de modernização no campo do trabalho.

Petrolão foi ditadura sem tanque na rua, mas com propina no bolso - KIM KATAGUIRI

FOLHA DE SP - 20/09

Lula finalmente foi denunciado pela força-tarefa da Lava Jato. Como mostraram os slides de Deltan Dallagnol -que, apesar de ridicularizados pela petistada, serviram muito bem aos seus fins didáticos-, Lula foi o grande chefe do petrolão e do mensalão. Apesar de, na denúncia, a força-tarefa não tê-lo denunciado como o comandante da organização criminosa porque tal investigação não está sob sua alçada, ficou claro que o escândalo foi muito mais do que um esquema para encher os bolsos de políticos e empreiteiros ligados ao PT.

Uma das defesas mais comuns utilizadas por militantes petistas quando confrontados com a realidade é a de que "o PT não inventou a corrupção". É verdade! Sempre houve desvio de dinheiro público. O problema é que, a partir da corrupção, os petistas conseguiram desenvolver algo ainda pior. Os governos petistas, com seu ímpeto autoritário, fizeram da corrupção um método de governo. Compraram parlamentares para passar seus projetos sem ter de dialogar nem com a sociedade nem com o Congresso. Na prática, acabaram com o Legislativo. Instauraram a ditadura da propina, ou, como definiu Dallagnol, a "propinocracia".

Ainda que não houvesse provas sobre o maior responsável por esse esquema criminoso e autoritário -e, apesar dos esperneios e das mentiras petistas, elas existem, sim, e são fartas-, é possível descobri-lo por meio de um simples exercício de lógica. Tanto o mensalão como o petrolão foram esquemas que buscavam garantir a governabilidade. A quem interessa manter a governabilidade? Ora, obviamente, a quem governa. O Poder da República responsável por governar é o Executivo. Quem comandou este Poder durante ambos os escândalos foi o PT, cuja figura mais poderosa é o ex-presidente Lula. É tão claro quanto 1 + 1 = 2. Infelizmente, nem essa soma elementar a militância petista é capaz de entender.

O pior é que ainda existem aqueles que veem nesse método de governo antidemocrático uma virtude. Para muitos petistas, figuras como José Genoíno e José Dirceu são "guerreiros do povo brasileiro" porque roubaram para o partido, não em benefício próprio. A lavagem cerebral é tão profunda que esses imbecis são capazes de exaltar aqueles que colocam um projeto de poder acima da democracia.

Lula foi, sim, o grande protagonista dos escândalos do mensalão e do petrolão. É o que mostram as provas da força-tarefa da Lava Jato e da Procuradoria-Geral da República; é o que mostra a lógica; é o que está evidente para todos aqueles que não se deixam levar por cegueiras ideológicas. Por isso, não tenho a menor dúvida de que será preso.

Quem condena a democracia de todo um país deve ser punido da maneira mais rigorosa possível. Resta à Procuradoria-Geral da República apresentar uma denúncia que faça jus à gravidade dos crimes cometidos pelo político mais corrupto que a população brasileira já viu.


Reação bem-sucedida - MERVAL PEREIRA

O Globo - 20/09
Uma reação de deputados e senadores impediu que fosse adiante, pelo menos por enquanto, o projeto de lei que pretendia, ao criminalizar o caixa 2 em campanhas eleitorais, na verdade dar uma espécie de anistia aos parlamentares e ex-parlamentares que tenham sido financiados através desse mecanismo anteriormente à aprovação da lei.

A manobra, denunciada na coluna de domingo, tinha o apoio das lideranças dos principais partidos do Congresso — PMDB, PT, PSDB —, com exceção da Rede e do PSOL, e foi abortada por uma obstrução do deputado Miro Teixeira, da Rede, que exigiu da presidência da Câmara que revelasse se realmente havia um projeto nesse sentido para ser votado.

O projeto não constava inicialmente da pauta de votação, mas estava sobre a Mesa Diretora e poderia ser colocado em discussão a qualquer momento. Miro disse que considerava a manobra inútil, pois a seu ver o caixa 2 já é considerado crime em diversas leis, eleitorais ou de crimes financeiros, e alegou que a Câmara passaria pelo constrangimento de ser acusada de participar de um golpe.

Vários deputados, inclusive das legendas que apoiavam o projeto, declararam-se contrários a ele, e o assunto foi descartado, pelo menos no momento. No Senado, Randolfe Rodrigues, também da Rede, com base na coluna “Por baixo dos panos”, pronunciou-se contrário ao que chamou de tentativa de usar as dez medidas contra a corrupção, do Ministério Público Federal, para desvirtuar seus objetivos.

“Querem transformar um limão para os criminosos numa limonada”, disse o senador, que teve o apoio de outros. A tentativa de aprovar o projeto a toque de caixa tinha o objetivo de neutralizar uma denúncia que deve ser feita pela empreiteira Odebrecht, que na sua delação premiada dará uma relação de cerca de cem parlamentares e ex-parlamentares que teriam recebido financiamentos, por dentro e por fora da lei.

A ideia generalizada é que será difícil distinguir os financiamentos legais dos ilegais, ainda mais depois que o PT inventou a doação de propina legalizada no TSE. A criminalização, com lei específica, passaria a punir os políticos que se financiassem ilegalmente, e as empresas que se utilizassem desse mecanismo, mas deixaria o que aconteceu antes da lei num limbo, pois não se pode punir crime que não esteja previsto na legislação.

Muitos, porém, como o deputado Miro Teixeira e a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, consideram que já existe legislação tratando do assunto, considerando a prática criminosa.

Punição definitiva
Ao mesmo tempo que, em depoimento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Otávio Azevedo, ex-presidente da empreiteira Andrade Gutierrez, confirmava que a campanha presidencial de Dilma Rousseff em 2014 recebeu parte dos R$ 15 milhões de propina referentes ao contrato da usina de Belo Monte doados ao PT como se fossem legais, transitava em julgado sua condenação, e a de Flávio Barra, ex-diretor da área de Energia da empreiteira, na Justiça Federal do Rio.

Os prazos para recursos de apelação esgotaram-se para a defesa no dia 15, e para o Ministério Público ontem, dia 19. O juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal, condenou Otávio Azevedo à pena de 18 anos de reclusão, que, seguindo o acordo de delação premiada, será cumprida da seguinte maneira: regime domiciliar fechado com monitoramento eletrônico por um ano, progredindo para o regime semiaberto diferenciado pelo prazo de dez meses, e para o regime aberto diferenciado pelo prazo de dois anos e, cumulativamente, prestação de serviços à comunidade.

Flávio Barra foi condenado a 15 anos de reclusão, pena que cumprirá nos mesmos moldes de Azevedo. A partir de agora, os dois não poderão ser condenados mais em nenhuma instância, só podendo ser ouvidos como testemunha de acusação, pois suas penas pela 7ª Vara Federal Criminal do Rio já atingiram o limite do contrato da colaboração premiada.

Realidade impõe à Federação cortes de pessoal - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 20/09
Políticos precisam aprender que grandes gastanças demagógicas com o funcionalismo semeiam crises futuras, cuja solução pode passar por medidas legais drásticas

Os efeitos da mais grave crise fiscal de que se tem notícia no país levam o poder público a se defrontar com situações inéditas. Considerados fontes inesgotáveis de financiamento de despesas, com destaque para as folhas de salários, os tesouros estaduais e municipais estão asfixiados pela queda de receitas, devido à recessão, e pelo aumento de despesas, por força de insanos mecanismos de indexação de gastos.

A União sofre do mesmo estrangulamento, mas não tem as limitações existentes para o resto da Federação. Atrasa repasses, suspende pagamentos, e também pode pode se endividar pelo lançamento de títulos, por exemplo, caminho obstruído para governadores e prefeitos. Não sobra outra alternativa a estados e municípios do que realizar cortes, algo contrário à cultura paternalista (e demagógica) da política brasileira. Há pouco, uma romaria de governadores tentou arrancar do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, um aval para empréstimos emergenciais. Nada conseguiram, sob o correto argumento de Meirelles de que limites da Lei de Responsabilidade Fiscal não lhes permitem voltar a se endividar.

Bastam os R$ 90 bilhões de empréstimos que puderam levantar em quatro anos, incentivados pela insensatez do governo Dilma.

E tampouco existe possibilidade de o Tesouro repassar-lhes recursos. Têm mesmo de esperar concluir a renegociação de dívidas com o Tesouro, na qual haverá contrapartidas a cumprir.

No caso dos estados, muitos já cortam a folha de pagamentos, algo inimaginável há não muito tempo. Por enquanto, têm sido atingidos funcionários terceirizados e os celetistas (contratados pela CLT), geralmente de empresas públicas.

O teto dos gastos com funcionários estabelecido pela LRF, de 49% da receita líquida corrente, já foi estourado pelo Rio Grande do Norte (50,28%), Tocantins (51,88%), Mato Grosso (50,46%) e logo deve ser ultrapassado por outras unidades da Federação. O Rio de Janeiro, com 39,71% de gastos com salários só não deverá atingir agora o limite prudencial de 44,1% da receita líquida corrente porque recebeu da União R$ 3 bilhões a fim de conseguir realizar a Olimpíada. Mas o governador em exercício, Francisco Dornelles, determinou uma redução de 30% nas despesas de custeio, e tem havido cortes de comissionados.

Farras fiscais ocorridas na Federação no vácuo da irresponsabilidade da presidente Dilma e equipe econômica forçam essas demissões e podem impor a drástica medida de afastamento de servidores estáveis. Base para isto existe, na própria LRF. Segundo os artigos 22 e 23 da lei, caso o teto seja rompido, ele precisa voltar a ser obedecido em dois quadrimestres, e para isso servidores estatutários poderão ser demitidos.

A crise serve para que políticos compreendam que grandes gastanças demagógicas com pessoal semeiam rebordosas mais à frente. Com o agravante, para eles, de que o impeachment de Dilma reforçou a LRF e a cultura do equilíbrio fiscal.

O fim da farra na Petrobrás - EDITORIAL ESTADÃO

ESTADÃO - 20/09


O desastre administrativo da Petrobrás permitiu ao País constatar o mal que faz submeter a gestão das estatais à patota sindical. Felizmente, a nova direção da empresa tomou coragem para retomar o caminho do profissionalismo, ao propor um pacote trabalhista que, na prática, visa a encerrar esse período nefasto em que os servidores da petroleira se tornaram uma casta de privilegiados às expensas do contribuinte.

Conforme noticiou o Estado, a proposta inclui redução de jornada de trabalho e de salário, congelamento do piso salarial e corte de horas extras, do auxílio-alimentação e do subsídio para compra de remédios por funcionários, tudo como parte do ajuste nas depauperadas finanças da estatal e da recuperação de sua capacidade de investimento.

Como era previsível, a proposta encontrou forte resistência dos sindicalistas, cuja presença em diversos cargos de direção, por obra e graça da trevosa era lulopetista, é um dos elementos que explicam por que a estatal chegou ao estágio de degradação em que se encontra. Dizendo-se defensora da empresa contra o “imperialismo” e contra o “neoliberalismo”, a companheirada esmerou-se em criar e ampliar mimos para os funcionários, como se esses servidores fossem de uma categoria especial apenas pelo fato de trabalharem na estatal que “traz em sua bandeira verde e amarela a paixão e o orgulho do povo brasileiro”, como qualificou a Federação Única dos Petroleiros (FUP). Ser empregado da Petrobrás, segundo essa turma, não é exercer uma simples ocupação remunerada; é abraçar a nobre missão de proteger a soberania nacional.

Essa patranha foi utilizada na tentativa de justificar barbaridades. Assim, por exemplo, os funcionários que deixaram de trabalhar nas plataformas de petróleo e passaram a despachar nos escritórios no centro do Rio de Janeiro não perderam o extra que recebiam a título de periculosidade – esse dinheiro foi convertido em bônus, graças a um acordo dos sindicatos com os gerentes de recursos humanos e de relações sindicais, não por acaso ex-dirigentes da FUP. Suspeita-se que tal acordo – que, na prática, anula o adicional de periculosidade – tenha sido deliberadamente malfeito pelos gerentes-sindicalistas com o objetivo de deixar brechas para contestações judiciais e uma enxurrada de indenizações, das quais os sindicatos abocanham uma parte.

Vantagens inexplicáveis como essa, que não são encontradas em nenhuma empresa do setor privado, se multiplicam na Petrobrás. Os funcionários dispõem de generosa assistência médica e de ampla participação nos lucros – que foi paga mesmo quando a empresa começou a registrar prejuízo bilionário. Além disso, prevalece o sistema em que funcionários são promovidos apenas em razão do tempo de casa.

É claro que, ao estimular essa esbórnia trabalhista, a tigrada só pensa em arregimentar, entre os felizes e agradecidos empregados da Petrobrás, os contribuintes que sustentarão a máquina sindical. É um círculo vicioso que precisa ser rompido sem hesitação, mesmo diante do desgastante confronto com os sindicatos.

A reação começou entre os próprios funcionários da Petrobrás, cansados do aparelhamento promovido pelo PT, que, entre outros estragos, abriu um rombo no fundo de pensão da estatal. Na mais recente eleição para representante dos funcionários no Conselho de Administração da Petrobrás, saiu vencedora a chapa constituída por engenheiros sem qualquer ligação partidária ou sindical. Até então, essa vaga era ocupada por gente da FUP e da Federação Nacional dos Petroleiros (FNP).

Agora, a nova direção da Petrobrás quer avançar ainda mais no desmonte dessa estrutura perniciosa, restabelecendo a racionalidade no trato com seus funcionários. O melhor sinal de que a Petrobrás está no caminho certo é a reação irada dos sindicatos, que prometeram uma “resposta dura” ao pacote. Espera-se que a direção da estatal deixe claro que a época da administração companheira, responsável por permitir a pilhagem da empresa por aqueles que dizem defendê-la, acabou de vez.